Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
938/10.7TYVNG-K.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: RESOLUÇÃO A FAVOR DA MASSA INSOLVENTE
TRANSACÇÃO
CONFISSÃO
Nº do Documento: RP20161110938/10.7TYVNG-K.P1
Data do Acordão: 11/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 75, FLS.141-155 VRS.)
Área Temática: .
Sumário: I - Enquanto o negócio não estiver cumprido, a resolução em benefício da massa insolvente pode ser declarada, a todo o tempo, por via de excepção.
II -Está ainda por cumprir o negócio jurídico em relação ao qual se possa dizer que subsistem por cumprir obrigações dele emergentes ou, pelo menos, a obrigação principal que caracteriza o negócio e que tem como devedor a parte interessada em invocar o seu não cumprimento.
III - Se na “transacção” lavrada num processo o demandante não faz qualquer cedência e não se vincula a qualquer prestação a favor do demandado e este aquiesce a todas as pretensões dos autores, o requerimento não contém um contrato de transacção mas apenas uma confissão de factos e/ou do pedido por parte do demandado.
I - A confissão de factos e do pedido é um acto jurídico produtor de efeitos instantâneos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 938/10.7TYVNG-K.P1 [Comarca do Porto/Inst. Central/V.N. Gaia/Sec. Cível]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B… e mulher C…, contribuintes n.º ……… e ………, respectivamente, residentes em Viana do Castelo, instauraram por apenso ao processo de insolvência da sociedade comercial D…, S.A., nos termos do artigo 125º do CIRE, acção declarativa para impugnação de resolução em benefício da massa insolvente, contra a Massa Insolvente de D…s, s.a., representada pelo Administrador de Insolvência E…, com domicílio profissional em Viana do Castelo, formulando os seguintes pedidos:
a) Julgar a excepção de prescrição do direito de resolução em benefício da massa insolvente procedente com as legais consequências.
b) Julgar a presente impugnação procedente e, em consequência, declarar válida e eficaz a transacção homologada por douta sentença nos autos n.º 3319/10.9TBVCT que correram seus termos junto do 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo.
c) Subsidiariamente, para o caso de ser declarada a resolução do acto em benefício da massa insolvente: i) reconhecer que o contrato promessa de compra e venda foi definitivamente incumprido por exclusiva culpa da insolvente; ii) condenar a insolvente a entregar aos autores a quantia global de €103.495,00, acrescida dos juros à taxa legal a contar da citação até efectivo e integral pagamento; iii) reconhecer que os autores gozam do direito de retenção sobre a fracção objecto do contrato promessa, pelo crédito de €61.000,00, correspondente ao dobro do sinal; iv) conceder aos autores o direito de se manterem gratuitamente no imóvel, podendo usa-lo livremente para os fins a que se destina, até que lhes seja integralmente paga a quantia de €103.495.
Para o efeito, alegaram que em 15.10.2008 celebraram com a sociedade comercial D…, S.A. um contrato-promessa de compra e venda de uma loja no prédio denominado Edifício …, sito em Viana do Castelo, pelo preço de €122.000, do qual os autores entregaram à promitente-vendedora, a título de sinal, a quantia de €30.500, obrigando-se esta a celebrar a escritura de compra e venda até ao final de Agosto de 2009, altura em que seria pago o remanescente do preço. A promitente-vendedora entregou aos autores as chaves da loja, a qual passou desde Outubro de 2008 a estar na posse destes, que a usavam conformem entendiam. Desde finais de Agosto de 2010 os autores solicitaram insistentemente a outorga da escritura de compra e venda, mas a D…, S.A. foi protelando a situação até acabar por admitir que não tinha capacidade financeira para acabar a construção do imóvel.
Mais alegaram que no dia 29.11.2010 os autores instauraram uma acção judicial contra a D…, S.A. pedindo que se declarasse resolvido o contrato promessa de compra e venda, que se condenasse a ré a entregar-lhes a quantia de €103.495,00, acrescida de juros desde a citação, que se declarasse que os Autores gozam do direito de retenção sobre a fracção pelo crédito de €61.000,00 correspondente ao dobro do sinal, que se autorizasse os autores a manter-se gratuitamente na posse da fracção até que lhe seja integralmente paga a quantia de €103.495,00. Esse processo terminou por transacção celebrada entre as partes no dia 02.12.2010, a qual foi homologada por sentença no dia imediato. Nessa transacção, a ré reconheceu que o contrato-promessa foi definitivamente incumprido por sua culpa exclusiva e obrigou-se a pagar aos autores a quantia de €103.495,00, reconheceu que entregou aos autores as chaves do imóvel prometido vender e que a partir daí os Autores entraram na posse da fracção, reconheceu que os autores gozam do direito de retenção sobre a fracção pelo crédito de € 61.000,00 e autorizou os autores a manterem-se gratuitamente na fracção até que lhes seja integralmente paga a quantia de €103.495,00. Posteriormente, por carta registada com aviso de recepção datada de 13.01.2012, o Administrador de Insolvência da D…, S.A., notificou os autores da resolução em benefício da massa insolvente da referida transacção e para entregarem o imóvel no prazo de 15 dias.
Sustentam ainda que a resolução foi feita já depois de esgotado o prazo do artigo 123.º do CIRE quando já se encontrava prescrito o direito de resolução. Que a transacção foi homologada por sentença e que esta não podia ser objecto de resolução mas apenas de recurso, o qual não foi interposto. Que não estão verificados os requisitos invocado pelo Administrador para a resolução em benefício da massa insolvente, nem verificados os requisitos do artigo 120º, nºs 1, 2, 4 e 5 do CIRE.

A acção foi contestada, pugnando-se pela improcedência total do pedido, mediante a alegação de que, não obstante o decurso do prazo do n.º 1 do artigo 123.º do CIRE, a resolução pode ser declarada nesta acção por via de excepção uma vez que o negócio ainda não está cumprido conforme permite o n.º 2 do mesmo preceito legal; que os fundamentos da resolução são os que foram indicados pelo Administrador de Insolvência na carta a comunicar a resolução; que o processo de insolvência foi instaurado no mesmo dia em que os ora autores instauraram a acção que referem e onde foi celebrada a transacção apenas três dias depois, tendo a insolvente sido representada por advogado sem poderes para o acto, o mesmo que subscreve a petição inicial da apresentação à insolvência; que a notificação da insolvente para ratificar a transacção nos termos do artigo 301º, n.º 3, do Código de Processo Civil foi enviada para onde funcionavam os escritórios da insolvente, desconhecendo o Administrador de Insolvência quem recebeu tal carta; que os autores tinham conhecimento da situação de insolvência da ré o que consubstancia má-fé de todos quantos intervieram na aludida transacção; que a sentença transitada apenas se impõe aos chamados terceiros juridicamente indiferentes, mas já não aos terceiros juridicamente interessados como é o caso da massa insolvente.
Após julgamento foi proferida sentença julgando a acção improcedente e absolvendo a ré dos pedidos.
Do assim decidido, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I - O n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 17.º do CIRE, preceitua que, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados.
II - Perscrutado o teor da douta sentença, constata-se que o Meritíssimo Juiz a quo não elencou os factos dados como não provados, ficando-se sem saber se não o fez por ter entendido que não se logrou provar os mesmos, se, pura e simplesmente, entendeu não serem relevantes para a boa decisão da causa, por se tratar de factos instrumentais ou secundários e/ou de meros argumentos jurídicos, ou se, por mera hipótese, por lapso é que não os introduziu nos factos provados.
III - “Para evitar este risco, deverá o Tribunal elencar, na fundamentação da sentença, todos os factos que julga provados e todos os que julga não provados, sem quaisquer omissões, o que exige do juiz uma acrescida independência, porquanto, ao fazer essa descrição completa, sabe que parte deles serão despiciendos face à solução de direito que, logo de seguida, vai proferir.” – cf. entendimento de Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª Edição Revista e Ampliada, Janeiro/2014, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda.
IV - De harmonia com a doutrina expressa no Acórdão do STJ, de 15.7.92, in CJ, ano XVII; tomo IV, pág. 13, “enumerar é enunciar ou expor um a um; narrar minuciosamente, especificar, relacionar metodicamente”. Não é, pois (continua o aresto) “apenas indicar de maneira mais ou menos vaga, a forma de determinar os factos não provados, nomeadamente pela exclusão em relação aos que se descrevem como provados”.
V - Ao não elencar quais os factos que se deveriam dar como não provados, a douta sentença recorrida não se pronunciou sobre questões que devia apreciar, pelo que se constata, assim, que há uma omissão de pronúncia que leva à nulidade da douta sentença nos termos do preceituado na alínea d) do n.º1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 17º do CIRE, a qual desde já se deixa arguida para os devidos efeitos legais.
VI – Nos termos do preceituado no n.º 2 do artigo 608º do Código de Processo Civil, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
VII - Aquando da apresentação em juízo da impugnação da resolução em benefício da massa insolvente ajuizada, os recorrentes suscitaram diversas questões atinentes à referida resolução, designadamente: a) defenderam a prescrição do direito de resolução em benefício da massa insolvente; b)pugnaram pela impossibilidade da declaração de tal resolução por se tratar de uma transacção homologada por sentença transitada em julgado; c) alegaram, ainda que, in casu, não se verificam os requisitos para a declaração da resolução ajuizada e d) já a título meramente subsidiário, defenderam que, a admitir-se a resolução operada, sempre deveriam ser reconhecidos os créditos/direitos de que são titulares.
VIII - Junta aos autos toda a documentação pertinente para a tomada de decisão acerca de todas as questões acima elencadas e produzida que foi a prova (testemunhal) em sede de audiência de discussão e julgamento, a douta sentença recorrida debruçou-se tão só acerca da primeira questão suscitada pelos recorrentes (julgando improcedente a prescrição do direito de resolução), omitindo por completo a sua posição quanto às demais questões - que não saíram prejudicadas pela decisão anterior -, mormente a verificação dos requisitos para o exercício do direito de resolução, que é o escopo essencial de acções desta natureza.
IX - Ao não conhecer tais questões e ao não valorar os respectivos elementos de prova, ignorando-os, imotivada e infundadamente, a douta sentença recorrida não se pronunciou sobre questões que devia apreciar, pelo que se constata, assim, que também com este fundamento há uma omissão de pronúncia que leva à nulidade da douta sentença, nos termos e para os efeitos da disposição legal já citada supra na conclusão V.
X – Conforme resulta da conjugação dos factos provados mencionados nas alíneas L) e N) ínsitos na douta sentença e do documento junto aos autos com a petição inicial sob o n.º 4, foi celebrada uma transacção no âmbito do processo que correu seus termos junto do 1º Juízo Cível de Viana do Castelo sob o n.º 3319/10.9TBVCT, onde a própria insolvente: a) reconheceu que o contrato promessa de compra e venda ajuizado, foi definitivamente incumprido por exclusiva culpa da mesma; b)se obrigou a pagar aos recorrentes a quantia de €103.495,00 (cento e três mil quatrocentos e noventa e cinco cêntimos); c) reconheceu que, com a celebração do contrato promessa ajuizado, ou seja, em Outubro de 2008, entregou aos recorrentes as chaves do imóvel prometido vender e que a partir daí os mesmos entraram na posse da loja, com garagem, tendo vindo desde então a usa-la como melhor entendem, nomeadamente a colocar aí objectos ligados à actividade da recorrente mulher, designadamente cadeiras, espelhos, mesas e bancos e a publicitar esse local como futuras instalações da mesma actividade, praticando os autores os referidos factos ininterruptamente, em exclusivo, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de que exercem um direito próprio que lhes advém da celebração do referido contrato promessa de compra e venda e não ofendem o de outrem; d)reconheceu que os recorrentes gozam do direito de retenção sobre a loja, com garagem, objecto do aludido contrato-promessa, pelo crédito de €61.000,00 (sessenta e um mil euros), correspondente ao dobro do sinal que deles recebeu; e) concedeu aos recorrentes o direito de se manterem gratuitamente no imóvel objecto do contrato promessa referido (loja com garagem), podendo usa-lo livremente para os fins a que se destina, até que lhes seja integralmente paga a quantia de €103.495,00 (cento e três mil quatrocentos e noventa e cinco euros).
XI - Tal transacção foi oportunamente homologada por douta sentença a qual condenou as partes nela intervenientes a observarem-na nos seus precisos termos – cfr. douta sentença homologatória in doc. 4 – tendo a insolvente sido notificada (no dia 24.01.2011) nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 301º do Cód. Processo Civil (ratificação da transacção), não tendo manifestado a sua oposição. – cfr. alíneas N) e O) dos factos provados.
XII - A única forma de a insolvente (na pessoa do Digníssimo Administrador de Insolvência) impugnar a sentença homologatória da transacção seria ou através da interposição de recurso de apelação ou de recurso de revisão, este último no prazo de dois anos contados do conhecimento da sentença, caso alegasse e provasse que a transacção se trataria de um acto simulado das partes. – cfr. artigos 696º e 697º, ambos do CPC.
XIII - Acontece que, como não foi feito uso de tais meios processuais, a referida sentença homologatória transitou em julgado, tornando-se imodificável e com força obrigatória dentro e fora do processo – cfr. Artigo 619º, n.º 1 e 621º, ambos do Código de Processo Civil -, e, não podendo ser objecto de resolução, deverão, assim, ser mantidos todos os efeitos decorrentes da titularidade pelos recorrentes dos créditos nos exactos termos definidos na transacção em apreço.
XIV - Pese embora o tribunal a quo tenha declarado improcedente a prescrição invocada pelos recorrentes, inexistem, no elenco dos factos provados, os factos essenciais que permitam sustentar a posição perfilhada pelo Meritíssimo Juiz a quo, nomeadamente: a data em que o Digníssimo Administrador de Insolvência teve conhecimento da transacção homologada por sentença; em que momento comunicou aos recorrentes a resolução da transacção acima identificada e por que meio aquele exerceu tal direito e se tal comunicação foi ou não recebida pelos mesmos…
XV - Fica-se, assim, sem saber com base em que factos é que o Meritíssimo Juiz a quo decidiu a questão ajuizada, o que limita o direito dos recorrentes atacarem o sentido de tal decisão, por desconhecimento do iter seguido pelo tribunal a quo, o que levará, insofismavelmente, à nulidade da douta sentença recorrida.
XVI - o Mmo. Juiz a quo referiu, na parte destinada à motivação de direito da douta decisão recorrida, o seguinte: “No caso “sub judice” o acto de resolução verificou-se (pelas protocolares vias) em 13 de Janeiro de 2012, sendo certo que já tinha no entrementes transcorrido o prazo assinalado no n.º 1 do art. 123º do CIRE”, decidindo, a final, erradamente, pela improcedência do pedido formulado pelos recorrentes.
XVII - Dispõe o n.º 1 do artigo 123º do CIRE que “a resolução pode ser efectuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de recepção nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.”
XVIII - O Administrador de Insolvência teve, pelo menos conhecimento da transacção objecto da resolução com a apresentação pelos recorrentes da reclamação de créditos junto do mesmo em 10 de Janeiro de 2011. – cfr. carimbo in doc. 5 junto aos autos com a petição inicial.
XIX - A declaração da resolução da transacção em benefício da massa insolvente foi efectivada por carta registada enviada pelo Digníssimo AI aos recorrentes datada de 13 de Janeiro de 2012 – cfr. documento junto com a contestação como doc. 1 – pelo que resulta inequívoco que o direito de resolução em benefício da massa insolvente foi exercido de forma extemporânea, pelo que deverá ser declarada verificada a prescrição invocada.
XX – No entanto, o Meritíssimo Juiz a quo defendeu que, por se tratar de um negócio (contrato promessa) que ainda não se encontrava cumprido, seria de se recorrer à solução prevista no n.º 2 do art. 123º do CIRE, que permite que a resolução possa ser declarada, sem dependência de prazo, por via de excepção.
XXI - A solução que tal preceito legal prescreve não tem aplicação in casu, desde logo porque, tendo optado pela primeira das duas alternativas, não poderá o Digníssimo AI, a seu bel-prazer, vir usufruir a posteriori da outra alternativa.
XXII - Em segundo lugar, diga-se que o objecto da resolução em benefício da massa insolvente foi a transacção homologada por sentença e não o contrato promessa não cumprido, a qual não poderá ser considerada um “negócio ainda por cumprir” já que, através da mesma a insolvente limitou-se tão só a reconhecer expressamente a sua responsabilidade no incumprimento do contrato promessa, prevendo-se na referida transacção não mais que as consequências legais decorrentes desse mesmo incumprimento.
XXIII - A questão do cumprimento ou não do contrato promessa visado nos presentes autos já há muito se encontra definitivamente definida, já que, por via da transacção ajuizada, as partes resolveram o dito contrato, nos termos ali melhor exarados e o próprio Digníssimo Administrador de Insolvência, ao reconhecer aos recorrentes um crédito (ainda que parcial e por isso objecto de impugnação) do montante de €30.500,00, correspondente ao valor do sinal entregue pelos mesmos à Insolvente, assumiu tal incumprimento definitivo, já que vem sendo pacificamente defendido que que a inclusão pelo Administrador de Insolvência dos créditos dos promitentes-compradores no elenco dos créditos reconhecidos, sem o subordinar a qualquer condição, corresponde à declaração de recusa do cumprimento do invocado contrato promessa e, por inerência, ao incumprimento definitivo do contrato pela insolvente.
XXIV - E mesmo considerando que o contrato ajuizado ainda não estava resolvido, certo é que nos termos do preceituado no artigo 106º do CIRE, no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador de insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador, sendo que vem sendo entendido que, ainda que sem eficácia real, havendo somente a tradição da coisa, o AI não se pode recusar ao cumprimento do contrato. – cfr. entendimento de Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2013, 7ª Edição, Almedina, pág. 138.
XXV - Ainda que assim se não entenda, o direito de resolução em benefício da massa insolvente - por via de excepção sem dependência de prazo -, não foi legalmente exercido na presente acção, já que tem que o ser pelo Digníssimo Administrador de Insolvência e através de acção intentada para o efeito - acção resolutiva em benefício da massa insolvente (art. 126º, n.º2 do CIRE) e nunca por iniciativa da própria Recorrida Massa Insolvente e da forma como pretendeu nesta sede ver declarada a resolução, designadamente através da mera dedução de uma excepção no âmbito de uma contestação apresentada na sequência da instauração de uma acção de impugnação à resolução já previamente operada.
XXVI - Desde logo porque a sentença a proferir na presente acção vocacionada à impugnação judicial da resolução não tem efeitos constitutivos, sendo que in casu deveria limitar-se o tribunal a averiguar e a declarar se se verificam ou não, no caso concreto, os pressupostos da resolução já efectuada - o que erradamente não fez. […]
XXVII – Admitir que a resolução pudesse operar por excepção deduzida na contestação, implicaria que o Administrador de Insolvência tivesse que exercer sempre, em primeira linha, o direito de resolução em benefício da massa insolvente por via de carta registada no prazo dos ditos 6 meses após o conhecimento do acto em causa nunca podendo, em primeira via, exercer tal direito nos termos do preceituado no n.º 2 do artigo 123º do CIRE e estivesse dependente da instauração de uma acção de impugnação, questionando-se então, se assim é, qual o interesse prático deste preceito legal.
XXVIII – O art.º 662.º do Código de Processo Civil regula a reapreciação da decisão da matéria de facto dando-lhe a configuração de um novo julgamento, pelo que a alteração daquela decisão é agora um poder vinculado da Relação, reconhecendo-se-lhe agora o poder/dever de investigação oficiosa (podendo realizar as diligências de renovação da prova). Na reapreciação da matéria de facto, a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos e valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua própria convicção, pelo que urge pugnar pela prolação de decisão por este Venerando Tribunal que se debruce sobre a verificação ou não, in casu, dos requisitos para ser exercido o direito de resolução ajuizado, constando dos autos os elementos que permitam proferir decisão a esse respeito.
XXIX - O AI fundamentou de direito a resolução por si declarada nos artigos 120º, nºs 1, 2, 4 e 5, alíneas a), b) e c) e 121º, n.º 1, alíneas b), c) e f) do CIRE. – cfr. documento junto com a contestação como doc. 1.
XXX - O caso ajuizado não se inscreve em qualquer uma das situações acima transcritas no citado artigo 121º do CIRE, em primeiro lugar porque, através da transacção ajuizada, não se verificou a celebração de qualquer acto a título gratuito pela insolvente a favor dos recorrentes, nem, tão pouco, qualquer pagamento ou outro acto de extinção de qualquer obrigação imposta à insolvente perante os mesmos, tendo-se esta limitado tão só a reconhecer expressamente a sua responsabilidade no incumprimento (que, de resto, atentas as circunstâncias, se presume) do contrato promessa anteriormente celebrado entre as partes, e prevendo-se na referida transacção não mais que as consequências legais decorrentes desse mesmo incumprimento.
XXXI - Por outro lado, reportando-nos ao requisito de anterioridade do acto alegadamente prejudicial à massa insolvente, cumpre dizer que, muito embora a transacção, cuja resolução a favor da massa insolvente foi declarada pelo Digníssimo AI, só tenha sido formalizada em 02.12.2010, o acto jurídico subjacente a essa transacção é o contrato promessa de compra e venda celebrado em 15.10.2008 e se acto prejudicial à massa houvesse, e não há, tal acto seria a própria promessa de compra e venda da loja ajuizada nos termos acordados em 15.10.2008 e não a transacção de 02.12.2010.
XXXII - O teor e alcance da transacção em nada prejudica a massa insolvente, desde logo porque o que na mesma se encontra previsto decorre, sem mais, do preceituado nas disposições legais aplicáveis ao caso em apreço, em nada indo para além das mesmas. – cfr. artigos 432º; 441º; n.º 2 do 442º; 755º, nº 1, al. f); 759º, n.º 1; 798º; 801º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil.
XXXIII - Também com base nos mesmos fundamentos não se verificam os requisitos previstos no artigo 120º, nºs 1, 2, 4 e 5 do CIRE, não podendo concluir-se ser a transacção em apreço um acto prejudicial à massa insolvente, por diminuir, frustrar, dificultar, por em perigo ou retardar a satisfação dos credores da insolvência, não tendo existido, assim, por via da transacção qualquer ilegal favorecimento dos recorrentes em detrimento dos restantes credores, já que mesmo que inexistisse a transacção ajuizada, os autos mandados instaurar pelos recorrentes contra a insolvente sempre teriam prosseguido os seus trâmites normais e, a final, esta acabaria por ser condenada nos precisos termos constantes da dita transacção, nem se podendo concluir que os recorrentes agiram de má-fé (que, aliás, aqui não presume - cfr. artigo 120º, n.º 4 do CIRE).
XXXIV - A admitir-se a resolução da transacção ajuizada, certo é que a mesma tem efeitos retroactivos, devendo reconstituir-se a situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado ou omitido, consoante o caso - cfr. artigos 126º do CIRE e 434º e 289º, n.º 1, ambos do C.C -, e, atenta toda a factualidade dada como provada, resultando inequívoco o incumprimento do contrato promessa por parte da insolvente, na sequência desse incumprimento (e não sendo possível operar a execução específica) assiste aos recorrentes o direito de ver reconhecido: a) que o contrato promessa de compra e venda ajuizado, foi definitivamente incumprido por exclusiva culpa da insolvente; b) o crédito do montante de €103.495,00 (…); c) o direito de retenção sobre a loja, com garagem, objecto do aludido contrato promessa, pelo crédito de €61.000,00 (…), correspondente ao dobro do sinal que entregaram à insolvente - cfr. artigo 755º, nº 1, al. f), do Código Civil – direito este derivado do facto de se ter provado que houve tradição da coisa – vide alíneas C) e D) da douta sentença de que se recorre. […]; d) o direito de se manterem gratuitamente no imóvel objecto do contrato promessa referido (loja com garagem), podendo usa-lo livremente para os fins a que se destina, até que lhes seja integralmente paga a quantia de €103.495,00 (…).
XXXV - A douta sentença recorrida violou, pois, por errada interpretação o disposto nos artigos 120º, nºs 1, 2, 4 e 5, alíneas a), b) e c); 121º, n.º 1, alíneas b), c) e f); n.ºs 1 e 2 do artigo 123º e artigo 126º, todos do CIRE; nos artigos 289º, n.º 1; n.º 1 do artigo 304º; 432º; 434º; 441º; n.º 2 do 442º; 755º, nº 1, al. f); 759º, n.º 1; 798º; 801º, nºs 1 e 2, todos do Código Civil; no n.º 3 do artigo 301º; n.º 4 do artigo 607º; n.º 2 do artigo 608º; alínea d) do n.º1 do artigo 615º, artigo 619º, n.º 1; artigo 621º; artigos 696º e 697º, todos do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 17º do CIRE.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
A] Se a sentença é nula nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil por nela não existir a indicação dos factos julgados provados nem referência a factos que são indispensáveis para o julgamento do mérito de algumas das questões colocadas.
B] Se a sentença é nula, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, por o Juiz não ter conhecido de questões que deveria ter apreciado.
C] Se o direito à resolução caducou ou, por o negócio não estar cumprido, pode ser exercido a todo o tempo e como excepção oponível nesta acção pela massa insolvente.

III. Os factos:
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos[1]:
A) Por contrato promessa de compra e venda celebrado no dia 15 de Outubro de 2008, os autores prometeram comprar à insolvente, D…, S.A., que lhes prometeu vender, livre de ónus e encargos, uma loja, situada no rés-do-chão, identificada com o nº 1, com garagem, do prédio denominado Edifício …, sito no …, freguesia …, cidade de Viana do Castelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o n° 2203/… e omisso à matriz predial respectiva.
B) O preço convencionado pela referida aquisição foi de €122.000, a ser pago da seguinte forma: a) €12.200 a título de sinal e princípio de pagamento, montante que os requerentes entregaram à insolvente com a assinatura do aludido contrato promessa e de que esta deu quitação; b) €18.300 no mês de Fevereiro de 2009, que os requerentes também entregaram atempadamente à insolvente; c) o remanescente do preço, ou seja, €91.500 no acto da outorga da escritura do contrato prometido.
C) A insolvente, D…, S.A., obrigou-se a outorgar a escritura de compra e venda da referida fracção autónoma até ao final de Agosto de 2009.
D) Com a celebração do contrato promessa ajuizado, ou seja, em Outubro de 2008, a D…, S.A. entregou aos autores as chaves do imóvel prometido vender.
E) A partir daí os autores entraram na posse da loja, com garagem, passando desde então a colocar aí objectos ligados à actividade da autora mulher, designadamente mobiliário, cadeiras, espelhos, mesas e bancos.
F) Posteriormente colocaram nesse imóvel uma faixa publicitária com os seguintes dizeres "F…".
G) - Desde Outubro de 2008, os autores deslocaram-se à loja e garagem em questão por inúmeras vezes, quer para levar e levantar material quer para o disponibilizar a pessoas que iam proceder à sua adaptação aos fins pretendidos por eles e à sua decoração.
H) - Por contrato, datado de 14 de Outubro de 2009, a Autora mulher celebrou com o IAPMEI (Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação, IP) um Contrato de Concessão de Incentivos a Projectos de Modernização do Comércio (MODCOM).
I) Esse contrato destinava-se a instalar na loja prometida comprar um estabelecimento de cabeleireira e estética.
J) Nos termos desse contrato a autora mulher receberia a fundo perdido (na modalidade de incentivo não reembolsável), para os referidos fins, a quantia de €42.495, sujeito, entre outras, às seguintes condições: a)execução do investimento no período de 12 meses a contar da data da notificação da aprovação do incentivo. Não estando o projecto totalmente executado no prazo acima indicado a autora mulher disporia ainda de um prazo adicional de 3 meses, após o qual se consideraria o projecto como concluído sendo não comparticipáveis as despesas realizadas para além desse prazo.
K) Os representantes legais da D…, S.A. transmitiram aos autores que não tinham capacidade financeira para acabar a construção do imóvel e que, por essa razão, tinham-no abandonado.
L) Os autores pediram então à D…, S.A. o dobro do sinal entregue, respondendo-lhe esta que não lhes entregariam o dobro do sinal nem sequer o próprio sinal, porque não tinham capacidade financeira para o fazer.
M) Os autores instauraram, no dia 29 de Novembro de 2010, contra a D…, S.A. uma acção judicial que correu seus termos pelo 1° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo sob o n° 3319/10.9TBVCT, onde peticionaram: a) Que se declarasse resolvido o contrato promessa de compra e venda referido nos artigos 5° a 7°, inclusive, desta peça; b) Que se condenasse a D…, S.A. a entregar-lhes a quantia global de € 103.495, acrescida dos juros à taxa legal de 4% a contar da citação e até efectivo e integral pagamento; c) Que se declarasse que os autores gozam do direito de retenção sobre a loja, com garagem, a que se refere o aludido contrato-promessa, pelo crédito de
N) O processo de insolvência da D…, S.A. teve o seu início em 29 de Novembro de 2010 (Proc. nº 938/10. 7TYVNG – 3º Juízo - Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia).
O) Nesse mesmo dia, os ora autores instauraram contra a hoje insolvente a acção ordinária onde a transacção sub judice foi feita. Esta foi celebrada três dias depois - dia 2 de Dezembro de 2010 - sendo que o dia 1 de Dezembro foi feriado nacional. Em tal transacção a insolvente foi representada pelo Sr. Dr. G…, distinto advogado desta cidade, sem poderes para o acto.
P) Por sentença de 3 de Dezembro de 2010, foi homologada a transacção condenando as partes nos seus precisos termos, e ordenada a notificação da insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 301º/3 CPC (ratificação da transacção). A carta de notificação foi enviada para a ré onde funcionavam os escritórios da insolvente. Desconhece-se quem recebeu tal carta. O que é certo é que a insolvente nada disse.
Q) Em 17 de Dezembro de 2010 foi proferida a sentença de declaração de insolvência da D…, S.A.
R) O Sr. Dr. G… foi o mandatário subscritor da petição inicial de apresentação à insolvência pela D…, S.A. no Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, no dia 29 de Novembro de 2010.

IV. O mérito do recurso:
A] Se a sentença é nula nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil por nela não existir a indicação dos factos julgados provados nem referência a factos que são indispensáveis para o julgamento do mérito de algumas das questões colocadas:
O artigo 615.º do novo Código de Processo Civil, aplicável aos autos nos termos do artigo 5.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, qualifica como causas de nulidade da sentença, além de outras, as seguintes situações:
a) falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
c) existência de oposição entre os fundamentos e a decisão ou alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
O artigo 607.º do mesmo diploma, relativo ao conteúdo da sentença, estabelece que:
i) a sentença contém os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
ii) na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, e toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.
Esta norma está em consonância com o disposto no artigo 154.º segundo o qual as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas, não podendo a fundamentação consistir na simples adesão aos fundamentos alegados por uma das partes.
Perante estas disposições, justifica-se, a nosso ver, distinguir entre falta de fundamentação de facto da sentença e insuficiência da matéria de facto constante da sentença. A primeira situação gera a nulidade da sentença, com as consequências inerentes a esse vício e ao modo de o sanar. A segunda situação não inquina a sentença e gera apenas a necessidade de proceder à ampliação da matéria de facto por determinação da Relação quando a parte logre convencê-la dessa necessidade.
Na verdade, as normas citadas não indicam que a decisão sobre o que o tribunal julga provado e não provado deva abranger a totalidade dos factos alegados, ou seja, que o tribunal se deva pronunciar, necessariamente, isto é, sempre, sobre todos os factos alegados, independentemente do seu interesse ou relevância para a decisão de mérito ou mesmo da sua natureza meramente instrumental, não lhe sendo facultada a possibilidade de se pronunciar apenas sobre os factos que o próprio tribunal considera relevantes.
Seria uma inutilidade obrigar o tribunal a pronunciar-se sobre a totalidade dos factos alegados por ambas as partes, mesmo que se tratem de factos sem qualquer relevo para as questões de mérito ou de factos meramente instrumentais ou acessórios e alegados apenas para contextualizar a alegação fundamental, ainda que à revelia daquele que deve ser agora o conteúdo dos articulados.
Para evitar essa inutilidade, vedada pelo artigo 130.º do novo Código de Processo Civil, deve reconhecer-se ao julgador a faculdade de seleccionar, de entre os factos alegados, aqueles que interessam e são necessários para a decisão de mérito a proferir.A ser assim, como nos parece, uma decisão de 1.ª Instância que se pronuncia apenas sobre parte dos factos alegados, julgando uns provados e outros não provados, por entender que a boa decisão da causa não depende de outros, não padece de nulidade por não se ter pronunciado também sobre os demais factos alegados.
A nulidade por falta de fundamentação de facto apenas ocorre quando se constata que para decidir alguma das questões de direito que ao tribunal cumpre decidir faltam na sentença os factos necessários, indispensáveis e, portanto, a decisão que venha a ser proferida carece de suporte factual, radicará em formulações jurídicas sem estar enunciado o respectivo pressuposto de facto.
Fora dessa situação, digamos extrema, o que pode suceder é a parte entender que foram alegados outros factos relevantes e recorrer da decisão da matéria de facto, com base na insuficiência da mesma, procurando convencer o Tribunal ad quem do interesse e importância desses outros factos sobre os quais o tribunal a quo não se pronunciou.
Se a matéria que não foi objecto de julgamento pelo tribunal recorrido for irrelevante para o conhecimento do mérito da acção, aquela situação não constitui sequer uma falha relevante, sendo possível à Relação avançar sem mais para o julgamento do recurso.
Ao contrário, se o Tribunal ad quem reconhecer o interesse dessa matéria colocam-se-lhe duas hipóteses alternativas: i] se o processo fornecer todos os elementos probatórios para julgar os novos factos, o tribunal ad quem, ao abrigo do disposto nos artigos 662.º, nº 1 do novo Código de Processo Civil, pronuncia-se sobre os mesmos em conformidade com esses meios de prova, alterando eventualmente a matéria de facto; ii] se o processo não fornecer todos os elementos probatórios necessários para julgar os novos factos, o tribunal ad quem, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do novo Código de Processo Civil, tem de anular a decisão proferida em 1.ª instância e determinar a repetição do julgamento para resposta aos novos factos.
O vício da falta de fundamentação da sentença que gera a nulidade da sentença tem também um regime diferente do dos vícios da decisão da matéria de facto, o qual se encontra regulamentado no artigo 662.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil.
No anterior Código de Processo Civil eram distintos e estavam separados no tempo o despacho com a decisão sobre a matéria de facto e a sentença. Naquele despacho o Juiz decidia a matéria de facto, declarando quais os factos que o tribunal julgava provados e quais os que julgava não provados e, em sede de motivação, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (artigo 653.º, n.º 2, do antigo Código de Processo Civil). Na sentença a elaborar posteriormente o Juiz não tinha de repetir esse passo, bastava-lhe indicar os factos que foram julgados provados e que irão servir de fundamentação de facto da decisão a proferir.
Também eram distintos os vícios daquele despacho e os vícios da sentença. Relativamente à decisão da matéria de facto, a lei previa que essa decisão podia padecer de quatro vícios: a deficiência da resposta, a obscuridade da resposta, a contradição entre as respostas e a falta de motivação da decisão. Uma vez lida a decisão e feito o exame da mesma pelos mandatários, estes podiam reclamar contra a deficiência (onde se incluía a falta de decisão sobre alguns dos factos que deviam ser decididos), obscuridade ou contradição da decisão ou contra a falta da sua motivação, cabendo ao tribunal decidir as reclamações apresentadas (artigo 653.º, n.º 4, do antigo Código de Processo Civil).
Se esses vícios não fossem objecto de reclamação e/ou não fossem sanados pelo tribunal e viesse a ser proferida sentença com a decisão da matéria de facto a padecer de tais vícios, cabia à parte suscitá-los no recurso da sentença, mediante impugnação da decisão da matéria de facto.
Feita essa impugnação, havia que distinguir os vícios. Se este fosse o da falta ou insuficiência da motivação da decisão, a Relação podia, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de 1.ª instância a fundamentasse devidamente (artigo 712.º, n.º 5, do Código de Processo Civil) e, feita essa melhoria da fundamentação, passava-se ao conhecimento do restante objecto do recurso.
Se, pelo contrário, o vício consistisse em deficiência, obscuridade ou contradição da decisão, a Relação confrontava-se com duas possibilidades: se estivessem no processo todos os elementos probatórios que serviram de base à decisão, a Relação devia proceder à correcção da decisão introduzindo na matéria de facto as modificações correspondentes e prosseguindo para a apreciação do restante objecto do recurso; se a Relação não dispusesse da totalidade desses elementos, anulava a decisão proferida na 1.ª instância e, por inerência, a sentença, regressando os autos à 1.ª instância para repetição do julgamento na parte afectada (artigo 712.º, n.º 4, do antigo Código de Processo Civil).
Em qualquer das circunstâncias a sentença não era nula, podia era existir um vício, prévio à sentença e prejudicial em relação a ela, que era específico da própria decisão da matéria de facto e cujos efeitos ou eram sanáveis, pela Relação ou por mero aperfeiçoamento incidental da 1.ª instância, ou não eram sanáveis, caso em que determinavam o regresso dos autos à fase do julgamento com a inutilização do processado posterior. A falta de fundamentação da decisão da matéria de facto não tinha pois o regime dos artigos 659.º, n.º 2, e 668.º, n.º 1, alínea d), do antigo Código de Processo Civil, mas o estabelecido no artigo 712.º, n.º 5, do mesmo diploma, que regia precisamente sobre o problema de a decisão estar ou não devidamente fundamentada.
Sucede que uma das alterações introduzidas na estrutura do processo declarativo comum pela reforma do Código de Processo Civil proveniente da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, consistiu na eliminação do “momento processual exclusivamente reservado para uma pronúncia do juiz sobre a matéria de facto”, passando a ser “na própria sentença, em sede de fundamentação de facto, que o juiz deverá declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, por referência à prova produzida, por um lado, e por referência aos demais elementos dos autos, por outro” – cf. Exposição de Motivos da proposta de lei n.º 113/XII –.
Em consonância com esse desiderato, o artigo 653.º do antigo Código, que regia sobre o julgamento da matéria de facto antes da elaboração da sentença, deixou de ter correspondência no novo Código, e o artigo 607.º do novo Código, que sucedeu ao artigo 659.º do antigo e rege sobre a elaboração da sentença, passou a conter, nos seus números 4 e 5, normas próprias sobre a decisão da matéria de facto e sua motivação.
Por outro lado, o artigo 615.º do novo Código, correspondente ao artigo 668.º do antigo, manteve as causas de nulidade da sentença tal qual as mesmas eram definidas no antigo Código, com excepção apenas do aditamento das situações de ambiguidades ou obscuridade que tornem a decisão ininteligível que antes eram fundamento do pedido de aclaração da sentença e que com a eliminação do incidente da aclaração passaram a ser fundamento de nulidade da sentença.
Finalmente o artigo 662.º do novo Código, relativo ao modo como a Relação pode conhecer dos erros ou vícios da decisão da matéria de facto, prevê que a Relação pode anular a decisão da 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou considere necessário proceder à ampliação da matéria de facto, ou determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados. O mesmo regime, portanto, que vinha dos nos. 4 e 5 do artigo 712.º do antigo Código.
Perante esta evolução legislativa, a motivação que lhe subjaz e a manutenção da previsão dos vícios da decisão da matéria de facto e da sentença propriamente dita e do regime de conhecimento dos mesmos pela Relação, cremos bem que se mantém o regime que vigorava no anterior Código de Processo Civil:
i) Existe falta de fundamentação de facto da sentença, gerando a nulidade desta, nos casos em que a sentença não exibe os factos (leia-se, provados) em se baseia a solução jurídica levada à decisão;
ii) Se da sentença constam os factos a que a decisão fez aplicação do direito, não falta aquela fundamentação nem a sentença é nula;
iii) Se a fixação da matéria de facto, que incorpora a sentença mas constitui um momento prévio à fundamentação de facto da sentença padecer de deficiência, obscuridade, contradição ou falta de motivação da decisão, segue-se o regime do artigo 662.º, n.º 2, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil, cabendo à parte interessada, no recurso da sentença, o ónus de impugnar a decisão da matéria de facto e sustentar a presença desses vícios;
iv) A parte pode ainda arguir a necessidade de proceder à ampliação da matéria de facto (julgada provada) argumentando que para além dos factos que a decisão recorrida julgou provados existem outros que são indispensáveis para o conhecimento do mérito (parte final da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º);
v) Confrontada com essa arguição (ou mesmo oficiosamente, designadamente no caso da ampliação), a Relação só pode anular a decisão se não tiver à sua disposição todos os meios de prova que lhe permitiriam sanar, por si mesma, a deficiência, obscuridade, contradição da decisão ou a insuficiência da matéria de facto;
vi) Nos demais casos (o vício é um desses, mas a Relação tem à sua disposição todos os meios de prova; o vício é a falta de fundamentação) a Relação não pode anular a decisão da 1.ª instância, cabendo-lhe sanar ela mesma o vício, excepto se se tratar de falta da “devida” fundamentação caso em que poderá ordenar à 1.ª instância que acrescente a fundamentação em falta, prosseguindo depois com o conhecimento do objecto do recurso.
Apliquemos agora esta interpretação ao caso em apreço.
Lendo a decisão recorrida não podemos deixar de reconhecer, com pesar, que a mesma enferma de deficiências várias, não possuindo o conteúdo nem patenteando o cuidado exigível numa decisão judicial. Não só faltam factos importantes e mesmo necessários para o conhecimento do mérito das questões que foram conhecidas e mesmo das questões cujo conhecimento foi igualmente omitido, como falta a especificação dos factos julgados não provados.
Não obstante isso, constando da motivação da decisão sobre a matéria de facto, embora de forma perfunctória, lacunosa e abstracta, alguma motivação da decisão relativa «aos remanescentes factos dados como não provados por relação ao alegado nos articulados» parece dever interpretar-se a sentença como tendo sido julgados não provados todos os restantes factos alegados pelas partes que não foram incluídos no elenco dos factos julgados provados.
Nessa leitura, digamos que compreensiva, das deficiências da decisão recorrida, entendemos que a sentença não é nula, existe sim uma decisão deficiente da matéria de facto e uma insuficiência da matéria de facto julgada provada para permitir o conhecimento de mérito de todas as questões suscitadas pelas partes que cumpre conhecer. Veremos mais à frente como proceder para sanar essas deficiências. Por ora, cabe apenas julgar improcedente a nulidade da sentença com este fundamento.

B] se a sentença é nula, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, por o Juiz não ter conhecido de questões que deveria ter apreciado:
Na petição inicial os impugnantes suscitaram a questão da caducidade do direito de resolução em benefício da massa insolvente, a questão da (im)possibilidade legal da declarar a resolução de uma transacção homologada por sentença judicial transitada em julgado, a questão da não verificação dos requisitos da resolução em benefício da massa insolvente e a questão das consequências da resolução em relação aos direitos dos autores.
Na sentença recorrida o Mmo. Juiz a quo pronunciou-se apenas sobre a questão da caducidade do direito de resolução em benefício da massa insolvente, sobre o requisito da resolução da má fé dos intervenientes e sobre a questão dos direitos dos autores afirmou que esta deve ser apreciada no apenso da verificação e graduação dos créditos estando prejudicado o conhecimento da mesma na presente acção.
A sentença recorrida é, por isso mesmo, nula, por nela não se terem conhecido todas as questões que deviam ser conhecidas. Procede assim esta questão do recurso.
Sucede que o artigo 665.º do Código de Processo Civil consagra a regra da substituição ao tribunal recorrido, estipulando que na apelação, ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, a Relação deve conhecer do objecto da apelação (n.º 1) e ainda que se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários (n.º 2). É o que, não obstante a nulidade, se fará de seguida.

C] da caducidade do direito à resolução:
Como vimos, na decisão recorrida a questão da caducidade do direito à resolução em benefício da massa falida foi apreciada, tendo-se decidido que o direito à resolução não tinha caducado uma vez que o negócio jurídico objecto da resolução ainda não estava cumprido, pelo que o prazo de caducidade aplicável era o do n.º 2 do artigo 123.º do CIRE, ou seja, a resolução podia ser feita a todo o tempo, por via de excepção, circunstâncias que aqui se verificariam.
Os recorrentes insurgem-se contra esse entendimento.
Para decidir esta questão, a matéria de facto fixada na decisão recorrida é insuficiente, sendo necessário proceder à sua ampliação.
Sucede que o processo fornece todos os elementos probatórios para a Relação poder fixar os factos ainda necessários para aquele efeito, uma vez que estamos perante factos relativos a actos praticados por escrito, para demonstração dos quais se encontram nos autos documentos com valor probatório decisivo.
Assim, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, amplia-se a matéria de facto julgada provada em 1.ª instância nos seguintes termos:

1. Altera-se a redacção da alínea M) do elenco atrás apresentado, cuja redacção passa a ser a seguinte:
«Em 29.11.2010, os autores instauraram contra a D…, S.A. uma acção judicial que correu seus termos pelo 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo sob o nº 3319/10.9TBVCT, onde peticionaram:
a) Que se declarasse resolvido o contrato-promessa de compra e venda;
b) Que se condenasse a D…, S.A. a entregar-lhes a quantia global de €83.495, acrescida de juros à taxa legal a contar da citação e até integral pagamento

2. Aditam-se os factos com as seguintes numeração e redacção:
«M.1) No dia 02.12.2010, os autores juntaram ao processo referido na alínea M) um documento intitulado transacção extrajudicial, no qual os autores e a D…, S.A., representada pelo Dr. G…, sem poderes especiais para o acto, acordaram transigir sobre o objecto dessa lide.»
«M.2) Nesse documento a D…, S.A. declarou: a) reconhecer que o contrato-promessa de compra e venda foi definitivamente incumprido por sua exclusiva culpa; b) obrigar-se a pagar aos autores a quantia de €103.495,00 da proveniência referida nos artigos 42º e 43º da douta petição inicial; c) que com a celebração do contrato-promessa em Outubro de 2008 entregou aos autores as chaves da fracção e a partir daí estes entraram na sua posse da loja, vindo desde então a usá-la como entendem, ininterruptamente, em exclusivo, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de que exercem um direito próprio que lhes advém da celebração do referido contrato promessa de compra e venda e não ofendem o de outrem; d) reconhecer que os autores gozam do direito de retenção sobre a fracção para garantia do crédito de € 61.000,00 correspondente ao dobro do sinal prestado; e) que concede aos autores o direito de se manterem gratuitamente na fracção, podendo usa-lo livremente até que lhes seja paga a quantia de €103.495,00.»
«S) Em 10.01.2011 os autores entregaram ao Administrador de Insolvência da D…, S.A., a sua reclamação de créditos, na qual informavam terem instaurado a acção referida na alínea M) e nela ter sido lavrada a transacção referida em M.1), homologada por sentença.»
«T) Nessa reclamação requereram que fosse julgado verificado e graduado o crédito no montante de €103.495 acordado na aludida transacção, reconhecido o direito de retenção sobre a fracção para garantia do crédito de €61.000 e o direito de se manterem gratuitamente na fracção até lhes ser paga a quantia de 103.495.»
«U) Por carta registada com aviso de recepção datada de 13.01.2012, o Administrador de Insolvência da D… S.A. notificou os autores da declaração de resolução em benefício da massa insolvente da transacção referida na alínea M.1), nos termos da carta cuja cópia está junta com a contestação como doc. 1 e que aqui se dá por reproduzida.»

A decisão de operar estas alterações na matéria de facto é motivada pelos documentos que acompanham a petição inicial, os quais revelam os factos aditados e a alteração da alínea M).
Em relação a este facto sublinha-se, no entanto, para fundamentar a decisão, que a redacção ora introduzida não traduz exactamente o alegado pelos autores porque o documento n.º 3 apresentado com a petição inicial desta acção e constituído pela cópia da petição inicial da acção referida no facto em apreço é diferente do que foi alegado pelos autores, os quais não se aperceberam que juntaram um documento que não corresponde ao alegado.
Essa petição inicial poderá ter sido alterada antes da transacção (o que é provável porque uma das cláusulas desta se refere a artigos – 42º e 43º - da petição inicial que não existem no articulado cuja cópia foi junta), mas isso não está documentado nos autos pelo que não pode ser julgado provado, sendo certo que tratando-se de um acto de um processo judicial o mesmo só pode ser provado por documento.
Podemos então agora conhecer da questão da caducidade do direito de resolução.
Esta questão encontra previsão legal no artigo 123.º do CIRE, o qual, segundo a sua epígrafe, e descontando o acerto terminológico, rege sobre a forma e a prescrição do direito de resolução.
Segundo o n.º 1 do preceito, «a resolução pode ser efectuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de recepção nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência».
Acrescenta o n.º 2 que «enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a resolução ser declarada, sem dependência de prazo, por via de excepção».
Não existe divergência entre as partes quanto a já se encontrar esgotado o prazo previsto no n.º 1 do artigo 123.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas quando a resolução em benefício da massa falida foi declarada pelo Administrador de Insolvência. A decisão recorrida também acolhe esse entendimento e cremos que o mesmo é, no caso, inquestionável.
Com efeito, o Administrador de Insolvência tomou conhecimento da acção judicial instaurada anteriormente, da transacção nela lavrada pelas partes e da sentença homologatória da transacção, pelo menos, em 10.01.2011, através da reclamação de créditos que os autores lhe apresentaram. Todavia, apenas procedeu ao envio da carta registada a comunicar a resolução em 13.01.2012, quando, portanto, estava já esgotado há muito o prazo de seis meses a contar do conhecimento do acto fixado no n.º 1 do artigo 123.º do CIRE para o exercício do direito de resolução.
Defende, no entanto, a massa insolvente que esse direito podia ainda ser exercido a todo o tempo uma vez que o negócio resolvendo não estava ainda cumprido, posição que foi acolhida na sentença recorrida. Cremos que não lhe assiste razão. E para assim concluir não é sequer necessário analisar se é possível exercer esse direito por via de excepção na contestação a uma acção de impugnação da resolução, que é a situação assaz curiosa com que nos deparamos nos autos. Basta colocar a atenção no que se deve entender por «negócio não cumprido».
A norma em apreço não nos diz o que deve entender-se por negócio por cumprir. Daí que seja lícito procurar na ordem jurídica essa noção e o respectivo significado. A norma tem equivalente no disposto no artigo 287.º, n.º 2, do Código Civil, que a propósito da anulabilidade do negócio jurídico e do prazo de um ano dentro do qual o vício deve, em regra, ser arguido, estabelece que «enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de acção, como por via de excepção».
A propósito desta norma, o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 18.12.2003, relatado por Lucas Coelho, in www.dgsi.pt, manifestou o seguinte entendimento:
«Desde logo, não pode duvidar-se, em face dos trabalhos preparatórios do preceito, de que nele se consagrou o princípio, digamos, da perpetuidade da excepção, expresso no brocardo romanístico quae temporalia sunt ad agendum perpetua sunt ad excipiendum. E os mencionados trabalhos revelam do mesmo passo elementos de interpretação assaz elucidativos acerca do sentido que deve atribuir-se à condicionante legal de o negócio não estar cumprido.
Assim, o artigo 5.º do anteprojecto de Rui de Alarcão (..), que esteve na origem mediata do artigo 287.º, preceituava em quanto aqui interessa (itálicos nossos): «Art. 5.º (Prazo de arguição) 1. (...) 2. A anulabilidade pode fazer-se valer pelo prazo de um ano, a contar do momento em que a inércia de quem tem direito de anular o negócio já não encontra a sua justificação no facto mesmo que é causa da anulabilidade. 3. A anulabilidade pode, todavia, ser oposta, por via de excepção, a todo o tempo em que o cumprimento do negócio for pedido. Se não se achar cumprido o negócio, pode o direito de anulação fazer-se valer, ainda que por via de acção ou de declaração, sem dependência de prazo.»
O primeiro período do n.º 3 é, assim, sobremaneira expressivo, quer no sentido da «perpetuidade» da excepção de anulabilidade, quer no sentido de esta se referir ao «pedido de cumprimento do negócio», ou seja, necessariamente, ao pedido de cumprimento de obrigação ou obrigações dele emergentes. Por outro lado, a alusão do segundo período à circunstância de o negócio «não se achar cumprido» - uma formulação, note-se, praticamente idêntica à do actual n.º 2 do artigo 287º - é, no contexto, normativamente equivalente à do primeiro período quanto ao estado e condicionalismos do negócio anulável, um negócio, repete-se, ainda não cumprido nalguma ou algumas das obrigações dele resultantes.
O próprio autor do anteprojecto observava, a propósito do primeiro período do n.º 3 do artigo 5.º, que «o prazo para a invocação da anulabilidade [de um ano, previsto no n.º 1] é apenas estabelecido no tocante à invocação por via de acção (...), podendo ela, porém, ser invocada a todo o tempo por via de defesa ou excepção», segundo o adágio quae temporalia.
Tratava-se, por outro lado, de solução corrente, também consagrada no artigo 693.º do Código de Seabra então em vigor, cuja redacção, sobremodo significativa do sentido da alusão ao estado do negócio anulável, aqui se recorda: «A nulidade do contrato [nulidade relativa, segundo a terminologia de então] pode ser oposta, por via de excepção, a todo o tempo em que o cumprimento do contrato nulo for pedido.» (..).
Estava, nos termos expostos, nuclearmente balizado, mercê do n.º 3 do artigo do 5.º do anteprojecto doutrinário, o conteúdo normativo do futuro n.º 2 do artigo 287.º do Código Civil. Com efeito, as modificações depois introduzidas no inciso em exame redundariam fundamentalmente em mera simplificação e aperfeiçoamento técnico-legislativo.
Ao artigo 5.º sucedeu, no anteprojecto emergente da 1.ª revisão ministerial, o artigo 255.º, com dois números, correspondendo o n.º 1 ao n.º 2 daquele artigo, expurgado do pendor académico, e reproduzindo o n.º 2 praticamente à letra o anterior n.º 3, incluindo o sintagma do primeiro período «a todo o tempo em que o cumprimento do negócio seja pedido» e o do segundo período «Se o negócio não se achar cumprido». Da 2.ª revisão ministerial resultou, por seu turno, o artigo 287.º, cujo n.º 2 apresentava já a redacção definitiva, hoje vigente.
Concluímos, pois, que o sentido do n.º 2 do artigo 287.º na óptica do caso sujeito à nossa apreciação, é aquele mesmo que lhe foi originalmente impresso desde a sua mais precoce concepção: enquanto não estiver cumprida a obrigação, ou obrigações, emergentes do negócio, pode a anulabilidade deste ser arguida por via de excepção a todo o tempo em que o cumprimento seja pedido.
Nesta orientação se pronunciam entre nós os autores escrevendo: «Cessa o limite do prazo, nos termos do n.º 2, se o negócio ainda não foi cumprido, como se, por ex., não foi ainda entregue a coisa vendida ou entregue o preço, num contrato de compra e venda anulável. Se for exigido judicialmente o cumprimento, a anulabilidade pode ser oposta a todo o tempo por via de excepção, nos termos gerais do direito processual.» (..)
«Ao contrário da acção, que está sujeita a prazo - pondera-se doutrinariamente de outro lado -, a excepção é perpétua, isto é, o cumprimento pode ser sempre recusado por invocação da anulabilidade (...)
«A distinção justifica-se: vendo que o outro contraente não executa a obrigação emergente do contrato anulável, pode o titular do direito de acção anulatória convencer-se de que aquele renunciou a exigir a execução do negócio; não intenta a acção porque não sofreu ainda (nem prevê que venha a sofrer) qualquer prejuízo. Mas se, decorrido aquele prazo, a exigência é feita, o único modo de proteger o prejudicado, permitindo-lhe repelir a pretensão injusta, é admiti-lo a usar da excepção de anulação.» (..).»
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, pág. 186, na anotação ao artigo 287, «cessa o limite do prazo, nos termos do nº 2, se o negócio ainda não foi cumprido, como se, por exemplo, não foi ainda entregue a coisa vendida ou entregue o preço num contrato de compra e venda anulável
Também Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, pág. 422, dá como exemplo de negócio não cumprido a compra e venda em que o bem ainda não foi entregue ao comprador, afirmando que o negócio não está cumprido quando «o estado de coisas anteriores se manteve de pé» (pág. 184) e justificando a solução com o argumento de que nessa circunstância não há expectativas da contraparte que legitimem a caducidade pelo decurso do tempo do direito de invocar a anulabilidade (no mesmo sentido cf. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição act., pág. 613).
Na jurisprudência, afirma-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 11.11.2004, no proc. n.º 6422/2004-2, in www.dgsi.pt, que «para efeitos do art. 287º, nº 2, do Código Civil, negócio não cumprido é aquele em que ainda não foram cumpridas todas as obrigações dele emergentes ou em que, pelo menos, subsistem por cumprir obrigações relevantes» (no mesmo sentido os Acórdãos da mesma Relação de 14.11.2013, proc. n.º 66/11.9TBOER.L1-2 e de 11.02.2016, proc. n.º 1117-13.7TVLSB.L1-8). No Acórdão Relação de Lisboa de 16.10.2012, no proc. 3870/07.8TVLSB.L1-7, in loc. cit., afirma-se por adesão à posição comum que «a expressão normativa “enquanto … o negócio não estiver cumprido” compreende os casos em que subsistam incumpridas a obrigação ou obrigações deles emergentes, ou pelo menos a obrigação do contraente interessado na anulabilidade». Fazendo aplicação dessa posição, afirma-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.02.2014, no proc. 1115/05.4TCGMR.G1.S1, loc. cit., que «não está, na compra e venda, cumprido o negócio se a coisa não foi entregue ou o preço não foi pago» e no Acórdão da Relação de Coimbra de 24.03.2015, relatado pela aqui 1.ª Adjunta Maria Inês Moura, loc. cit., que o contrato de compra e venda «não está cumprido se o preço não foi pago ou se a coisa não foi entregue».
Parece, portanto, que deve considerar-se não cumprido o negócio jurídico em relação ao qual se possa dizer que subsistem por cumprir obrigações dele emergentes ou, pelo menos, a obrigação principal que caracteriza o negócio e que tem como devedor a parte interessada em invocar o seu não cumprimento. A ideia é a de que se a parte interessada no vício ainda não cumpriu a sua obrigação e é necessário à parte contrária accioná-la para obter o cumprimento da obrigação daquele, deve considerar-se que o negócio ainda não está cumprido, ou seja, ainda consente à parte interessada excepcionar a existência do vício na acção de cumprimento.
Todavia, no Acórdão da Relação de Coimbra de 02.02.2016, no proc. n.º 27/10.4TBPNL-O.C2, in www.dgsi.pt, a propósito precisamente da aplicação dos disposto no n.º 2 do artigo 123.º do CIRE num caso em que antes da declaração de insolvência a sociedade depois declarada insolvente cedeu a outrem créditos que detinha sobre terceiros, a Relação manifestou o seguinte entendimento sobre a faculdade de declarar a resolução a todo o tempo e por via de excepção:
«Esta faculdade está dependente da verificação cumulativa de dois requisitos, a saber: o negócio resolvendo não estar ainda cumprido; a resolução ser efectuada por via de excepção. […] A previsão deste segmento normativo «enquanto…o negócio não estiver cumprido» reporta-se aos contratos de execução continuada ou duradoura. O «cumprimento» deve ser entendido como a realização, a perfeição, do negócio inter partes considerada, isto é, tal como elas o quiseram e gizaram entre si e por reporte aos efeitos que dele para elas poderão advir. O aproveitamento, ou não, dos efeitos possíveis do negócio, por uma das partes, designadamente com relação ou com intervenção/afectação de terceiros, não releva, interfere com, ou impede o cumprimento; pois que é uma realidade que se situa, a jusante, para além deste. […] O contrato de cessão de crédito cumpriu-se com o acordo das partes e a sua vinculação ao mesmo com a aposição das assinaturas dos respectivos outorgantes. Não estamos perante um contrato de execução continuada ou duradoura, máxime, na perspectiva das partes. A cobrança dos créditos cedidos é um direito da cessionária que ela exercerá, se e quando lhe aprouver, e que, poderá, ou não, ser concretizado/efectivado; e não resultando, em qualquer dos casos, qualquer vinculação ou responsabilidade para a cedente, pois que no contrato nada ficou exarado no sentido de a adstringir à consecução do direito cedido
Precisamos então de saber qual é a natureza jurídica de uma transacção das partes num processo judicial, para o que seguiremos de perto o que escrevemos no Acórdão de 24.04.2014, relatado pelo aqui Relator, no processo n.º 878/13.8TJPRT.P1, in www.dgsi.pt.
O artigo 1248.º do Código Civil define a transacção como o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões, acrescentando que as concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido.
Daqui resulta, desde logo, que a transacção é um contrato e, por isso mesmo, que se encontra sujeito à disciplina dos contratos, designadamente às suas disposições gerais (artigos 405.º a 409.º) e ao regime geral dos negócios jurídicos (artigos 217.º e segs.), incluindo as exigências de forma e consequências da respectiva inobservância (artigos 219.º e 220.º), bem como as regras de interpretação da declaração negocial (artigo 236.º a 238.º, todos do Código Civil).
No dizer que Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., pág. 856, o fim do contrato é prevenir ou terminar um litígio. Admite, portanto, a lei que a transacção tenha lugar, não só estando a causa pendente, mas também antes da proposição da acção judicial; trata-se, neste caso, da transacção chamada preventiva ou extrajudicial, a que se refere o artigo 1250.º. O que a lei não dispensa é uma controvérsia entre as partes (cfr. n.º 2), como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la. (…) A transacção tem por objecto recíprocas concessões (transactio nullo dato vel retento seu promisso minime procedit: 1.38 C. de transact., 2,4). Se a parte que invoca o seu direito desiste de o tornar efectivo, dando ao acto um simples efeito extintivo, há uma desistência: se a outra parte acaba por reconhecer a legalidade da pretensão, através de um acto com eficácia meramente confirmativa ou constitutiva, há uma confissão. Na transacção, nem há desistência plena, nem reconhecimento pleno do direito. Também não há na transacção o ânimo de fixar ou determinar a situação jurídica anterior das partes (negozio di accertamento); a ideia básica dos contraentes é a de concederem mutuamente e não a de fixarem rigidamente os termos reais da situação controvertida, como quando se fixa a redução do preço correspondente à venda de uma coisa defeituosa ou à entrega da obra com defeitos por parte do empreiteiro.
A transacção é assim a formulação contratual de uma solução de compromisso para um determinado diferendo[2]. Nelas as partes põem fim ao diferendo, conformando os seus interesses através de um consenso resultante de concessões e cedências mútuas. As cláusulas da transacção não têm pois de estar em conformidade com a correcta, verdadeira ou integral conformação jurídica dos factos reais que motivam o diferendo, já que toda a concessão ou cedência mútua pressupõe um afastamento dessa justa medida que o direito emprestaria a tais factos e às pretensões iniciais dos litigantes.
Aliás o objectivo da transacção é mesmo o de colocar fim ao diferendo por acordo das partes, obstando e impedindo que caiba ao tribunal apurar os factos do diferendo e fazer-lhes a aplicação da legalidade estrita, sendo certo que a sua homologação judicial, por sentença, depende apenas da auscultação da possibilidade legal e licitude do seu objecto e da legitimidade das pessoas que nela intervieram, não cabendo ao tribunal qualquer poder de verificação da razoabilidade ou adequação das cláusulas respectivas e/ou do seu fundamento jurídico.
Atentas as correspectivas concessões, em princípio as obrigações a que as partes se vinculam na transacção têm carácter sinalagmático, são geradoras de prestações recíprocas para ambas as partes do contrato de transacção. Mas esse carácter comutativo reside no conjunto das prestações que têm como origem a transacção, não a relação material controvertida onde a transacção é alcançada. Por outras palavras, a presença de sinalagma e o respeito do princípio do contrato afirma-se mesmo que a relação controvertida não gerasse efectivamente o direito que seria o correspectivo da prestação prevista na transacção.
Ao permitir que as concessões possam envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido, o n.º 2 do artigo 1248.º do Código Civil alarga o objecto da transacção a todos os interesses jurídicos que as partes possam chamar para a negociação e usar para obter a adesão da outra à solução de compromisso. Mais do que puderem ultrapassar o objecto do direito concretamente controvertido e que motivou o diferendo, as partes podem incluir na transacção a composição sobre direitos em relação aos quais não tinham sequer qualquer diferendo. Daí que se entenda ser lícito às partes em litígio judicial colocarem fim a todas as acções entre si pendentes mediante transacção global lavrada por termo num dos processos[3].
Sucede assim que uma vez celebrada de forma válida, a transacção opera como que uma substituição da obrigação primitiva por outra[4]. A nova obrigação pode ser bastante diferente da obrigação original e, sobretudo, não tem de corresponder à obrigação que resultaria da fonte original do direito em litígio ou chamado à composição de interesses por via transaccional, uma vez que a sua fonte é a transacção propriamente dita, sendo o resultado do exercício da liberdade negocial. A transacção pode inclusivamente conter em si mesma os termos de outro contrato, como sucede na transacção em que as partes se vinculam às prestações características de um tipo negocial cuja conteúdo aí fixam (v.g. num determinado conflito sobre a existência de um arrendamento de um bem, as partes celebram transacção operando a venda do bem ao detentor que se arroga arrendatário do mesmo). Nessa situação a transacção faz mesmo nascer uma nova relação contratual que não existia anteriormente e cuja celebração nenhuma das partes podia exigir em virtude da relação controvertida que motivou a celebração da transacção.
Se não enfermar de qualquer invalidade, a transacção vincula as partes e vincula-a nos precisos termos da obrigação definida ou estabelecida no acordo. O que significa que o credor da obrigação fixada na transacção pode exigir o seu cumprimento, mesmo que a relação jurídica, legal ou contratual, originária do diferendo não lhe conferisse o direito a essa prestação. Por outras palavras, uma vez celebrada, em corolário do princípio pacta sunt servanda (artigo 406.º, n.º 1, do Código Civil), a transacção é irrevogável unilateralmente, só podendo modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes.
Tendo isto presente é necessário centrar agora a atenção na transacção a que se reportam os autos para ver qual é exactamente a sua natureza jurídica.
No documento que contém a intitulada transacção, a D…, S.A. declarou: a) reconhecer que o contrato-promessa de compra e venda foi definitivamente incumprido por sua exclusiva culpa; b) obrigar-se a pagar aos autores a quantia de €103.495,00 (valor do sinal em dobro e outro prejuízo alegado pelos autores); c) que aquando da celebração do contrato-promessa entregou aos autores as chaves da fracção e a partir daí estes entraram na sua posse da loja, vindo desde então a usá-la como entendem; d) reconhecer que os autores gozam do direito de retenção sobre a fracção para garantia do crédito de €61.000 correspondente ao dobro do sinal prestado; e) que concede aos autores o direito de se manterem gratuitamente na fracção, podendo usa-lo livremente até que lhes seja paga a quantia de €103.495,00.»
Resulta com absoluta clareza desta transacção que afinal a mesma não consubstancia a formação de quaisquer obrigações comutativas entre as partes. No aludido documento intitulado transacção, os autores não fizeram qualquer cedência, não assumiram qualquer obrigação, não se vincularam a qualquer prestação a favor da ré, só esta fez declarações e se vinculou a prestações a favor daqueles. Em rigor, a dita transacção não é afinal transacção alguma já que não passa de uma confissão pela ré de factos alegados e do pedido formulado pelos autores na acção, na medida em que a ré se limitou a anuir a todas as pretensões dos autores (excedendo mesmo o pedido destes, a atender à versão da petição inicial da acção que ficou provada, mas que, conforme admitimos, pode não ser mesmo a versão final, sendo certo que a confissão do pedido é total e absoluta em relação aos que os aqui autores alegam ali ter pedido).
Ora como sabemos, a lei permite às partes confessar factos (artigos 352.º e seguintes do Código Civil) ou confessar pedidos (artigo 283.º do Código de Processo Civil). Também é possível o reconhecimento de qualidades jurídicas, mas isso apenas quando essas qualidades jurídicas não são precisamente o objecto do processo, nem são determinantes para a solução do caso. Numa acção de responsabilidade civil pode admitir-se que o réu reconheça que o autor é proprietário da coisa danificada, mas já não que o réu reconheça que a responsabilidade pelos danos provocados é sua. O réu pode confessar factos ou pode confessar o pedido, dispondo do direito, mas não pode confessar a conclusão jurídica, que está em discussão na acção, de que é responsável pelos danos, a qual resultará sempre da aplicação do direito aos factos. Se quiser assumir a responsabilidade, independentemente da sua culpa ou contra esta, poderá confessar o pedido ou os factos que o suportam, mas fica sempre sujeito ao que for entendido como resultante da aplicação do direito aos factos confessados (que podem ser ou não suficientes para alicerçar o juízo de responsabilidade formulado pelo autor).
Não sendo pois a dita transacção um verdadeiro contrato de transacção mas a forma como se intitulou (se travestiu) a confissão do pedido efectuada pela ré da acção, é agora fácil concluir que não estamos afinal perante um negócio jurídico, mas somente perante um acto jurídico produtor de efeitos instantâneos, e consequentemente não nos deparamos com um qualquer negócio jurídico por cumprir em relação ao qual a resolução em benefício da massa insolvente pudesse ser arguida a todo o tempo e por via de excepção.
Tanto basta para concluir que no caso o direito de resolução já se mostrava caducado quando foi exercido pelo Administrador de Insolvência, caducidade essa que deve ser reconhecida pelo tribunal e que conduz de imediato à procedência da acção quanto ao pedido principal.
Essa conclusão torna inútil apreciar a questão de saber se a excepção prevista no n.º 2 do artigo 123.º do CIRE podia ser exercida na contestação a esta acção quando o pedido principal não corresponde ao exercício de qualquer direito emergente da transacção resolvenda[5] mas é precisamente a impugnação da resolução comunicada (e se foi comunicada, foi exercida por via extrajudicial, não por via de excepção), e bem assim a questão de saber qual a consequência desse imbróglio processual (por hipótese: a improcedência da caducidade do direito de resolução invocada pelo autor como fundamento de impugnação; inutilidade da apreciação do pedido de impugnação no tocante aos demais fundamentos; prosseguimento da lide apenas em relação aos pedidos subsidiários, cabendo à demandada fazer a prova dos fundamentos da resolução invocada por via de excepção). Tal como torna inútil apreciar as demais questões suscitadas no recurso.
De referir, por último, que não cabe aqui tomar posição sobre os efeitos que, independentemente da resolução afastada, pode produzir no processo de insolvência a confissão do pedido pela insolvente no processo instaurado pela autora. O tribunal não pode ignorar que estamos perante um golpe jurídico encenado pela autora e pela insolvente absolutamente denunciado pelos actos praticados e pela sua relação temporal com a apresentação à insolvência, cujos efeitos só não são arredados já neste sede em virtude da demora do Administrador de Insolvência no exercício da resolução.
Na sentença recorrida remeteu-se esse aspecto para a verificação e graduação dos créditos e parece-nos que bem. Será aí que caberá decidir se e em que medida esse golpe jurídico que visou inequivocamente dar àquela vantagens que o regime jurídico do contrato-promessa (v.g. no tocante ao acrescento ao valor da indemnização resultante do mecanismo do sinal de outra indemnização em manifesta violação do n.º 4 do artigo 442.º do Código Civil) e o CIRE (v.g. no tocante ao afastamento de o administrador poder decidir sobre o contrato-promessa nos termos do artigo 106.º e os direitos do promitente-comprador se fixarem no montante previsto no CIRE) não lhe proporcionavam pode merecer acolhimento da ordem jurídica ou se esta dispõe de institutos para o impedir, como por exemplo, se necessário for, o abuso do direito.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, dando provimento à apelação, declaram caducado o direito de efectuar a resolução comunicada pelo Administrador de Insolvência e julgam procedente a acção no tocante ao pedido de impugnação da referida resolução.
Custas do recurso pela massa insolvente (tabela I-B).

Porto, 10 de Novembro de 2016.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto309)
Inês Moura
Paulo Dias da Silva
______________
[1] Na transcrição corrige-se a numeração que está errada na sentença e mantém-se a incompletude da redacção da alínea M) constante da sentença.
[2] Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.04.2001, Sousa Inês, in www.dgsi.pt, a transacção, do ponto de vista substantivo, é um acordo vinculativo pelo qual as partes previnem ou terminam um litigio, mediante recíprocas concessões ou dando uma à outra alguma coisa em troca do reconhecimento do direito em litígio - art. 1248º do Código Civil – no mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.03.2004, Araújo de Barros -.
[3] Cf. Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado II, 4ª Edição, pág. 930 e seg., e Menezes Leitão, in Direito das Obrigações – III, Contratos em Especial, 4ª Edição, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 588 e seg.). Na jurisprudência, cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25.02.2014, João Proença, in www.dgsi.pt.
[4] Afirma-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.05.2000, Garcia Marques, in www.dgsi.pt que o facto de uma transacção ser efectuada em audiência e homologada por sentença, não lhe retira o carácter e natureza contratual: consiste num contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões, através das quais se podem até constituir, modificar ou extinguir direitos diversos do direito controvertido.
[5] Convém recordar que uma excepção – o exercício de um fundamento de oposição por via de excepção - só é excepção quando tem efeito impeditivo do direito que se quer exercer na acção, ou seja, por referência a esse direito, não a outro direito estranho ao objecto da acção.