Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
217/10.0GBPRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: DOCUMENTAÇÃO DE DECLARAÇÕES ORAIS
DEFICIÊNCIA DA GRAVAÇÃO
NULIDADE
BURLA
NEXO DE IMPUTAÇÃO
Nº do Documento: RP20130417217/10.0GBPRD.P1
Data do Acordão: 04/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - Perante as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, ao art. 363.º do CPP, quer a omissão de documentação quer a documentação deficiente [que impossibilite a captação do sentido das declarações] constitui nulidade, a qual se tem por sanada se não for tempestivamente arguida, contando-se o prazo de dez dias (artigo 105.º, n.º 1) a partir da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido.
II - Não se tratando de nulidade da sentença (tanto mais que ocorreu antes de a mesma ter sido proferida), deve o aludido vício ser arguido perante a 1.ª instância e não em sede de recurso: “dos despachos recorre-se, das nulidades reclama-se”.
III - A burla, delito de execução vinculada, pressupõe um duplo nexo de imputação objetiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património, próprio ou alheio e, depois, entre estes e a verificação do prejuízo.
IV - O engano desencadeador ou provocante do prejuízo ou perda patrimonial há de ocorrer num momento temporal em que o sujeito passivo desarma a sua defesa intelectual e volitiva para se deixar enlear no artifício congeminado e posto em prática peio agente infrator.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Proc. nº 217/10.0GBPRD.P1
1ª secção
Relatora: Eduarda Lobo
Adjunto: Des. Alves Duarte
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Paredes com o nº 217/10.0GBPRD.P1, foi submetido a julgamento o arguido B….., tendo a final sido proferida sentença, depositada em 10.07.2012 e notificada pessoalmente ao arguido em 13.07.2012, que condenou o arguido pela prática de um crime de burla p. e p. no artº 217º nº 1 do Cód. Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros).
nconformado com a sentença condenatória, dela veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. Era intenção do arguido recorrer da matéria de facto dada como provada em audiência de julgamento;
2. Todavia, após ter requerido a gravação da prova, constatou o arguido que a mesma é inaudível por impercetível;
3. Na sentença, a Juiz a quo refere que a convicção do Tribunal resultou do conjunto da prova produzida em audiência, a qual se encontra integralmente documentada;
4. Para tal, foram valoradas pela Juiz a quo, as declarações da testemunha C….., mãe do ofendido, pessoa com pouca instrução escolar, mas que explicou que se dirigiram dois senhores a sua casa, com vista a conceder em empréstimo ao seu filho. Sabe que este assinou papéis e que ficou sem € 190,00 que nunca forma restituídos e que foram transferidos para a conta de uma D…..;
5. Dispõe o artº 363º do CPP: “As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas em ata, sob pena de nulidade”. Dispõe também o artº 364º nº 1 do CPP: “A documentação das declarações prestadas oralmente na audiência é efetuada, em regra, através de gravação magnetofónica, ou áudio-visual, sem prejuízo da utilização de meios estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas…”;
6. O arguido só teve acesso à gravação da audiência final, na fase de preparação das motivações de recurso, e só neste momento se apercebeu da impercetibilidade das declarações prestadas pela testemunha – C......;
7. O apuramento das declarações prestadas pela testemunha C...... é essencial para a descoberta da verdade;
8. Dado que tal depoimento é praticamente inaudível por impercetível na totalidade, na gravação efetuada em sede de audiência de julgamento, não é passível a sua valoração em sede de decisão final como meio de prova;
9. Como de resto tal depoimento foi valorado em sede de sentença, tal valoração gera a nulidade que não poderá considerar-se sanada, sendo aqui invocada nos termos do artigo 410º nº 3 do C.P.P.;
10. Pelo que, salvo o devido respeito por opinião contrária, a douta sentença violou os preceitos constantes dos artigos 363º, 364º e 410ºnº 3 do C.P.P., devendo em consequência, o depoimento da testemunha – C......, ser retirado da motivação da sentença e, em consequência, ser julgado repetido;
11. Caso não seja acolhida a referida nulidade, o arguido foi condenado pela prática de um crime de burla p. e p. no artº 217º nº 1 do Código Penal, nos termos do qual: “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”;
12. São elementos típicos do crime de burla:
- o comportamento astucioso do agente;
- do qual resulte erro ou engano do sujeito passivo relativamente a certos atos;
- a prática pelo sujeito passivo, porque induzido em erro, de determinados atos de que de outro modo não praticaria;
- o prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro, em virtude do ato de disposição patrimonial;
13. Das declarações do ofendido E….. prestadas em sede de inquérito, de resto lidas em audiência de julgamento por o mesmo possuir uma impossibilidade duradoura de comparecer em julgamento, retiram-se as seguintes premissas:
- que através do Jornal de Notícias o ofendido tomou conhecimento de um anúncio sobre empréstimos bancários;
- que, com base nesse anúncio, foi efetuado entre arguido e ofendido um contrato com vista à concessão de crédito e que deu origem aos autos;
- Que o ofendido teria de aguardar alguns dias para saber se o crédito foi aprovado; - Que na sequência da não concessão do crédito, o ofendido contactou o arguido, que lhe disse que nada mais podia esclarecer sobre o crédito, uma vez que a PSPdos Carvalhos tinha feito uma busca ao escritório deste, tendo-lhe apreendido vários documentos, entre os quais os do ofendido, o que foi confirmado por este através de contacto para a PSP dos Carvalhos;
14. Antes de mais, o ofendido faz referência a um contrato que celebrou com o arguido, contrato esse que não foi junto a estes autos por ter sido apreendido pela PSP dos Carvalhos, e que atualmente ainda se encontra junto aos autos de processo em fase de inquérito a decorrer no Tribunal de Vila Nova de Gaia;
15. Tratava-se pois de um contrato de prestação de serviços, que de resto o arguido celebrou igualmente com outros clientes […];
16. Do que ficou exposto resulta que o arguido apenas se limitou a prestar ao ofendido um serviço de consultoria financeira, dando-lhe a conhecer as exatas diligências que iria desenvolver, e que consistiam na entrega da documentação junto das instituições bancárias, com as quais de resto o ofendido concordou, aceitando pagar uma contrapartida a título de honorários, independentemente do crédito lhe vir a ser concedido ou não, ficando totalmente esclarecido que a obtenção do empréstimo seria feita com recurso a instituição autorizada de crédito, e não resultando da simples assinatura do contrato de consultoria ou mediação;
17. Em nenhum momento o arguido garantiu ao ofendido a obtenção do crédito, tendo este ficado ciente que os serviços que lhe seriam prestados consistiam em averiguar junto de instituições bancárias a obtenção do crédito pretendido;
18. De resto, o ofendido assinou o contrato plenamente ciente do respetivo teor, sem qualquer artifício ou engano, aceitando pagar determinada quantia a título de honorários, para o que assinou os impressos de transferência bancária de livre vontade;
19. Não se vislumbra pois que o arguido tenha levado o ofendido a agir por meio de engano sobre os factos, pois que aquele informou o ofendido dos exatos contornos do contrato que celebraram;
20. Assim, face ao que supra se expôs, necessariamente terá que falecer o preenchimento do tipo legal de crime de burla que lhe vinha imputado;
21. Tal fundamentação foi de resto acolhida pelo Tribunal da Comarca do Baixo Vouga – Ovar –Juízo de Instância Criminal – Juiz 2, Processo nº 167/10.0GCOVR, o qual absolveu o arguido pela prática do crime de burla;
22. Pelas razões de direito acima explanadas deve o arguido/recorrente ser absolvido do crime pelo qual foi condenado.
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Na 1ª instância o Mº Público respondeu às motivações de recurso concluindo pela respetiva improcedência.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a qualidade da gravação do depoimento da testemunha C...... não conduz à impercetibilidade do depoimento, não se mostrando por isso afetado o valor do ato praticado nem prejudicado o direito de defesa do arguido, pelo que não deve ser anulado e repetido aquele depoimento. Quanto ao mérito do recurso, remete para a resposta do Mº Público na 1ª instância, concluindo pela improcedência do mesmo.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
1. No dia 22 de Fevereiro de 2010, cerca das 22.00 horas, o ofendido E…. e o arguido B….. encontraram-se na habitação daquele, na Avenida …., em …., área desta comarca de Paredes, tendo em vista a celebração de um contrato de crédito no valor de € 3.220,00;
2. Nessa ocasião, E....... assinou toda a documentação que o arguido lhe apresentou e forneceu-lhe ainda a identificação de uma conta bancária para onde seria creditada a quantia em causa;
3. Entretanto, volvida cerca de uma semana, o arguido entrou em contacto com E....... e deu-lhe conhecimento que o crédito não havia sido aprovado, sendo necessário para que tal sucedesse que ele lhe fornecesse a identificação de uma outra conta bancária sediada em Portugal e que apresentasse saldo positivo;
4. Na sequência do que lhe havia sido solicitado pelo arguido, no dia 8 de Março de 2010 E....... enviou um SMS ao arguido com a identificação de uma outra conta bancária com o NIB 003505850002612630091, da Caixa Geral de Depósitos;
5. Na posse de tal informação, no dia 9 de Março de 2010 o arguido, sem o conhecimento e consentimento de E......., retirou da aludida conta bancária pertencente àquele a quantia de € 190,00, que de imediato transferiu para a conta nº 004300010400102116828 do Deutsche Bank titulada pela sua mãe D......., e que o arguido não tem autorização para movimentar, quantia esta com que se locupletou ilegitimamente e que até à presente data não restituiu ao ofendido;
6. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, na sequência de plano que previamente estabelecera, com o intuito concretizado de obter um enriquecimento patrimonial ilegítimo em favor da sua mãe, que sabia que lhe não era devido, correspondente ao prejuízo sofrido por E....... no valor de € 190,00;
7. A forma ardilosa como o arguido agiu e o meio utilizado, bem assim como as mensagens electrónicas trocadas com o ofendido, lograram convencer E....... da seriedade do acordo entre ambos celebrado, levando-o a aceitar o negócio e a assinar toda a documentação que lhe foi apresentada pelo arguido e a fornecer todos os dados bancários que aquele também lhe foi solicitando;
8. Estava o arguido perfeitamente ciente que a sua conduta era proibida e, por consequência, punida por lei.
Mais se provou que:
9. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
A convicção do tribunal resultou do conjunto da prova produzida em audiência a qual se encontra integralmente documentada.
O arguido não compareceu em julgamento, motivo pelo qual se desconhece a sua versão dos factos, caso o mesmo a pretendesse apresentá-la ao Tribunal.
Assim, foram valoradas as declarações da testemunha C......, mãe do ofendido, pessoa com pouca instrução escolar, mas que explicou que se dirigiram dois senhores a sua casa, com vista a conceder um empréstimo ao seu filho. Sabe que este assinou papéis e que ficou sem € 190,00 que nunca lhe foram restituídos e que foram transferidos para a conta de uma D........
Procedeu-se à leitura das declarações do ofendido E......., prestadas em sede de inquérito a fls. 73, por o mesmo ter uma impossibilidade duradoura de comparecer em julgamento (cfr. despacho de fls. 156), sendo com base nas mesmas que se fixaram os factos em causa.
Mais se atendeu às fotocópias das cadernetas do ofendido de fls. 7 a 11, informações do Deutshe Bank de fls. 93 a 95 e 98 a 99 e certificado do registo criminal do arguido de fls. 150.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso em apreço, resulta das conclusões do recurso que o recorrente delimita o respetivo objeto à questão prévia da deficiência da gravação que, em seu entender, coarta a reapreciação, em plenitude, da questão de facto cometida a este tribunal, impondo-se a repetição do julgamento. Impugna ainda a matéria de facto, alegando que os pontos 5, 6, 7, 9 e 10 devem ser julgados como não provados.
Quanto à deficiência da gravação:
Alega o recorrente que se verifica a nulidade da sentença em virtude de a gravação do depoimento da testemunha C...... ser inaudível por totalmente impercetível.
Vejamos:
O Código de Processo Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, veio pôr cobro às divergências que se fizeram sentir na jurisprudência quanto ao vício decorrente da falta de gravação da prova produzida em audiência.
A problemática colocou-se ao nível da finalidade da documentação das declarações, entendendo alguns que a documentação das mesmas, quando prestadas perante tribunal coletivo com arguidos presentes, não era imposta por lei, nem obrigatória, servindo apenas como instrumento de orientação do e para o próprio tribunal inteiramente livre de optar, ou não, pela documentação[3], enquanto outros defendiam não ser tal posição sustentável, após as alterações introduzidas no Cód. Proc. Penal pela Lei n.º 59/98, aduzindo que a documentação prescrita no artigo 363.º visava garantir os poderes de reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso e deveria verificar-se mesmo que o julgamento tivesse lugar perante o tribunal coletivo[4].
O Supremo Tribunal de Justiça, através do Ac.nº 5/2002[5] veio a uniformizar jurisprudência no sentido de que: «A não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no art. 363.º do CPP, constitui irregularidade, sujeita regime estabelecido no art. 123.º do mesmo diploma legal, pelo que, uma vez sanada, o tribunal já dela não pode conhecer».
Com a revisão de 2007 que, alterando o quadro legal, fez caducar a jurisprudência do STJ, assim fixada, a audiência perante tribunal singular, coletivo ou de júri é sempre obrigatoriamente documentada – não podendo os sujeitos processuais da mesma prescindir -, sendo a nulidade a consequência resultante da não documentação – (artº 363º do CPP).
E que dizer acerca do vício resultante de gravação insuficiente, incompleta ou parcialmente inaudível?
Sobre tal aspeto pronunciaram-se vários arestos, referindo-se, a título exemplificativo, os acórdãos do STJ de 26.09.2007[6], de 01.02.2006[7], de 15.02.2006[8] – todos no sentido da irregularidade – artigo 123º do CPP – os acórdãos da Relação de Lisboa de 11.04.2000, da Relação do Porto de 23.01.2002, e de 13.10.2004, da Relação de Évora de 10.02.2004 e da Relação de Coimbra de 09.07.2003[9].
Perante as alterações introduzidas ao Código de Processo Penal, parece-nos isento de dúvida – embora continue a suscitar divergências, designadamente na jurisprudência – que quer a omissão de documentação quer a documentação deficiente [que impossibilite a captação do sentido das declarações] constitui nulidade, a qual se tem por sanada, se não for tempestivamente arguida, contando-se o prazo de dez dias (artigo 105.º, n.º 1) a partir da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido[10].
No caso concreto, a sentença foi publicada em 10.07.2012. Contudo, na sequência de requerimento apresentado pelo arguido e de pedido de escusa formulado pela defensora oficiosa nomeada, por decisão proferida em 12.09.2012 (cfr. fls. 190), determinou-se a interrupção dos prazos em curso, tendo vindo a ser nomeada nova defensora que foi notificada da nomeação em 01.10.2012.
Ora, não obstante esta nova nomeação, o termo do prazo de dez dias para arguir a nulidade em causa ocorreu em 05.09.2012, estando então o arguido devidamente patrocinado. Só em 10.10.2012, veio a nova defensora oficiosa requerer a entrega dos suportes técnicos da documentação da prova, vindo a suscitar a questão apenas nas motivações de recurso.
Nessa data já se mostrava esgotado o prazo para arguir o vício, entretanto sanado – [cf. artigo 120º do CPP], decorrente da alegada deficiente audibilidade dos registos de prova.
Acresce que, não se tratando de nulidade da sentença (tanto mais que ocorreu antes de a mesma ter sido proferida), uma vez detetado, deve o aludido vício ser arguido perante a 1.ª instância e não já em sede de recurso, o que não sucedeu.
Com efeito, mantém-se atual a jurisprudência a que Alberto dos Reis aludia, em sede de processo civil, quando citava o postulado “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”. Só a nulidade de sentença penal pode ser arguida em sede de recurso da decisão final e, portanto, em prazo superior àquele prazo legal supletivo, sendo certo que a nulidade por falta ou deficiência de documentação reporta-se a atos ocorridos numa fase prévia à sentença e que não a inquinam com qualquer nulidade das previstas no artigo 379º do CPP, pelo que se submete ao regime geral sobre nulidades processuais.
Termos em que se conclui no sentido de que a eventual nulidade, não sendo absoluta e não tendo sido, tempestivamente, arguida junto do tribunal de 1.ª instância, se encontra sanada.
Consequentemente, não há lugar à determinação da repetição do depoimento da testemunha C......, improcedendo o recurso nessa parte.
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Alega o recorrente que não se verificam, em concreto, os elementos típicos do crime de burla, o que impõe a sua absolvição.
Fá-lo, porém, por apelo a documentos que não se encontravam juntos aos autos antes da prolação da sentença recorrida, razão porque não puderam ser devidamente apreciados pelo tribunal recorrido.
Ora, a junção do referido documento não observou a disciplina constante do artº 165º nº 1 do C.P.P. e, por outro lado, o Tribunal de recurso não pode apreciar elementos de prova que o tribunal recorrido não apreciou.
É que os recursos visam apenas modificar as decisões recorridas e não criar novas decisões sobre matérias ou questões que não foram, nem podiam ter sido, conhecidas pelo tribunal recorrido. É pacífica a jurisprudência no sentido de que “a missão do tribunal de recurso é a de apreciar se uma questão decidida pelo tribunal de que se recorreu foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes; o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questão nova, salvo se isso for cometido oficiosamente pela lei”[11].
Porque o sistema é harmonioso, o art. 165º nº 1 do C.P.P. apenas permite a junção de documentos até ao encerramento da audiência.
Se agora o Tribunal da Relação considerasse elementos juntos após o julgamento, estaria a proferir uma decisão nova com base em elemento de prova antes inexistente. Não estaria a formular um juízo sobre a justeza da decisão recorrida, mas a indicar qual teria sido a decisão correta se tivesse sido outra a prova produzida. Em todo o caso, violaria o art. 355º nº 1 do C.P.P. nos termos do qual “não valem (…) quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”[12].
Acresce que, nada permite concluir que o acordo celebrado entre o arguido e o queixoso nestes autos, foi reduzido a escrito e, em caso afirmativo, se contém os mesmos elementos do documento junto com as motivações de recurso.
Contudo, verifica-se uma questão de conhecimento oficioso: os factos que a decisão recorrida considerou provados (e que constituem, aliás, reprodução dos constantes da acusação pública deduzida) são manifestamente insuficientes para a integração na previsão dos elementos típicos do crime de burla p. e p. no artº 217º do Cód. Penal.
Os elementos constitutivos deste tipo de crime são o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados, para determinar outrem à prática de atos que lhe causem ou a terceiro, prejuízo patrimonial, e a intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
Acrescem a estes elementos, o dolo genérico, traduzido no conhecimento e vontade de realização da factualidade antijurídica, com conhecimento da ilicitude. A burla, delito de execução vinculada, pressupõe um duplo nexo de imputação objetiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património, próprio ou alheio e, depois, entre estes e a verificação do prejuízo.
Como se refere no Ac. da Rel. Coimbra de 10.09.2008[13] «O crime de burla é apelidado de “crime de participação da vítima”, uma vez que, a saída de valores ou de coisas da esfera fáctica do sujeito passivo, reporta-se tanto à conduta do agente, como à ação do próprio burlado. É necessário que se verifique um duplo nexo causal: o engano deve ser a causa da situação de erro em que se encontra a vítima e, por sua vez, esse estado de erro é a causa da prática pelo burlado dos atos de que decorrem prejuízos patrimoniais.
O engano deve ser a causa da situação de erro em que se encontra a vítima – os meios enganosos devem ser adequados à produção de erro. Estes nexos de causalidade aferem-se nos termos da teoria da causalidade adequada (art. 10º/1), isto é, tendo em conta as circunstâncias concretas, aí incluídas as características do burlado. O prejuízo patrimonial é o requisito para a consumação: o crime de burla é um crime material ou de resultado e um crime de dano, pelo que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efetivo no património do sujeito passivo ou de terceiro, isto é, com a saída das coisas ou valores da esfera de “disponibilidade fáctica” do sujeito passivo ou de terceiro – prejuízo patrimonial».
O necessário nexo de causalidade entre a situação de erro provocado pelo engano e entre aquele e a prática de atos pela vítima de que decorrem os prejuízos patrimoniais, implica que o dolo do agente tem de anteceder ou ser concorrente na dinâmica defraudadora, não se valorando penalmente no que ao tipo de burla se refere, o dolo subsequente, quer dizer, superveniente e não anterior à celebração do negócio de que se trate; aquele dolo característico da burla supõe a representação para o sujeito ativo, consciente da maquinação enganosa, das consequências da sua conduta, quer dizer da indução que alenta ao desprendimento patrimonial como correlato do erro provocado e o consequente prejuízo suscitado no património do sujeito vitima”[14].
O engano desencadeador ou provocante do prejuízo ou perda patrimonial, como é entendimento generalizado entre os autores, há-de ocorrer num momento temporal em que o sujeito passivo desarma a sua defesa inteletual e volitiva para se deixar enlear no artifício congeminado e posto em prática pelo agente infrator. Como se decidiu na sentença do Tribunal Supremo espanhol (STS de 23 de Abril de 1997)[15], o engano há-de ser antecedente, causante e bastante. Antecedente porquanto teria que preceder e determinar o consequente prejuízo patrimonial, não sendo aptas para originar o delito de burla as hipóteses do denominado “dolo subsequente”; causante, já que o engano deve achar-se ligado por um nexo causal com o prejuízo patrimonial, de tal forma que este haja sido gerado por aquele; e bastante, no sentido da idoneidade do engano para viciar a vontade ou o consentimento concreto do sujeito passivo da argúcia.
No caso em apreço, apesar do que se considera provado, em termos conclusivos no ponto 7. dos factos provados – “a forma ardilosa como o arguido agiu e o meio utilizado, bem assim como as mensagens eletrónicas trocadas com o ofendido, lograram convencer E....... da seriedade do acordo entre ambos celebrado, levando-o a aceitar o negócio e a assinar toda a documentação que lhe foi apresentada pelo arguido e a fornecer todos os dados bancários que aquele também lhe foi solicitando” – não se concretiza em que consistiu o ardil do arguido de forma a obter a documentação assinada pelo queixoso, bem como das suas intenções, designadamente se o arguido jamais pretendeu obter a concessão do referido crédito de € 3.220,00 em benefício do queixoso, sendo a descrição de facto omissa quanto ao tipo de documentação assinada.
E, embora se não esclareça de que forma o arguido conseguiu “retirar” da conta bancária do queixoso a quantia de € 190,00, que transferiu para uma conta bancária de sua mãe, o certo é que é do conhecimento generalizado que, apenas com acesso ao NIB de uma conta bancária, não é possível efetuar quaisquer movimentos a débito nessa conta. Se o arguido o conseguiu fazer, foi porque lhe foram fornecidos pelo queixoso outros elementos dessa conta bancária ou emitida declaração escrita a autorizar o arguido a efetuar a referida transação na instituição bancária em causa.
Acresce que a matéria de facto, tal como se encontra descrita e já constava da acusação, não especifica qual o ardil previamente utilizado pelo arguido para conseguir obter do queixoso os referidos elementos bancários que lhe permitiram efetuar a aludida transferência patrimonial que veio a causar àquele o correspondente prejuízo.
A não ser que se demonstrasse que o arguido jamais teve intenção de conseguir obter a aprovação de um crédito bancário a favor do queixoso e que, convencendo-o do contrário, tenha obtido daquele autorização escrita para movimentar (a débito ou a crédito) a sua conta bancária.
Nada disso resulta dos factos provados e nem sequer constava da acusação pública deduzida.
Conclui-se, assim que a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito proferida. Contudo, não se trata de vício da sentença a que alude o artº 410º nº 2 al. a) do C.P.P., uma vez que os factos supra referidos nem sequer constavam da acusação.
Ora, por força do princípio do acusatório e da vinculação temática, com consagração constitucional (artº 35º nº 2 da CRP), o tribunal só pode investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos pela acusação. É esta que define e fixa, perante o Tribunal o objeto do processo. É ela que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e é nela que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da consunção do objeto do processo penal.
Não constando da acusação todos os elementos objetivos do tipo, e não se tratando, como se disse, de vício da sentença suprível nos termos do artº 426º do C.P.P., impõe-se a absolvição do arguido.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso, embora com fundamento diverso do alegado, absolvendo o arguido/recorrente do crime de burla simples que lhe era imputado.
Sem tributação.
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Porto, 17 de Abril de 2013
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
António José Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Cfr. Acs. do STJ de 08.02.2001, Proc. n.º 3414/00 – 5.ª e de 14.03.2001, Proc. n.º 254/01 – 3.ª.
[4] Cfr. Acs. do STJ de 17.01.2002, CJACSTJ, X, T. I, pág. 173 e ss. e de 24.052001, CJACSTJ, IX, T. II, pág. 207.
[5] Publicado no DR., I Série, de 17 de Julho de 2002.
[6] Proferido no Proc. nº 07P2052, Cons. Pires da Graça, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Proferido no Proc. nº proc. 07P2052, Cons. Soreto de Barros, no mesmo site.
[8] Proferido no Proc. nº 05P2874, Cons. Pires Salpico, no mesmo site.
[9] In CJ, XXV, T. II, pág. 156; CJ, XXVII, T. I, pág. 226; CJ, XXIX, T. IV, pág. 217; CJ, XXIX, T. I, pág. 261; CJ, XXVIII, T. IV, pág. 36, respetivamente.
[10] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edª., pág. 922.
[11] V., por todos, Acs. do STJ de 06.02.1987 e de 03.10.1989, in BMJ 364/714 e 390/408.
[12] Cfr., neste sentido, Ac. R. Guimarães de 12.07.2010, relatado pelo Des. Fernando Monterroso, disponível em www.dgsi.pt
[13] Rel. Des. Barreto do Carmo, disponível em www.dgsi.pt
[14] Cfr. J.A. Choclán Montalvo, em “El Delito de Estafa”, Bosch, Barcelona, 2000, p.81
[15]Citado pelo Des. Gabriel Catarino no Ac. R. Coimbra de 07.06.2006, Proc. nº 1148/06, disponível em www.dgsi.pt.