Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0111037
Nº Convencional: JTRP00032029
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: BURLA
BURLA RELATIVA A SEGUROS
TENTATIVA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DECLARAÇÃO
DESISTÊNCIA
Nº do Documento: RP200110100111037
Data do Acordão: 10/10/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J AMARANTE 3J
Processo no Tribunal Recorrido: 370/99
Data Dec. Recorrida: 04/26/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO. REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CP95 ART22 ART24 N1 ART217 N1 N2.
Sumário: Integra tentativa de burla a apresentação a uma companhia seguradora de uma "declaração amigável de acidente automóvel" em que se fez uma versão falseada do acidente, com vista a levá-la, através desse engano, a pagar indevidamente o valor dos danos sofridos pelo veículo automóvel segurado, já que a responsabilidade pelo acidente era de um outro condutor.
Provado, porém, que, ainda antes da apresentação da queixa, o proprietário e o condutor do veículo segurado repuseram por escrito, perante a seguradora, a verdade sobre as circunstâncias do acidente, solicitando que desse sem efeito tal declaração amigável, e afirmando não desejarem ser indemnizados, há que concluir terem os arguidos desistido de prosseguir na execução do crime, pelo que a tentativa de burla deixou de ser punível.
Não obsta a essa conclusão o facto de os arguidos só terem feito tais declarações, com que puseram fim ao seu projecto criminoso, depois de confrontados com as suspeitas de um perito da seguradora de que a versão inicial do acidente não correspondia à verdade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da comarca de Amarante, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foram submetidos a julgamento e condenados, pela prática de um crime de burla, na forma tentada, p. e p. pelos artºs 217º, nºs 1 e 2, e 73º do CP, os arguidos
1- Deolinda.....:
- na pena de 60 dias de multa a 2.000$00 diários;
2- Cândido.....:
- na pena de 70 dias de multa a 1.500$00 diários.
Dessa sentença interpôs recurso a arguida Deolinda....., sustentando, em síntese, na sua motivação:
- Há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
- O tribunal recorrido incorreu em erro notório na apreciação da prova.
- De qualquer modo, a haver tentativa de burla, ela não é punível, visto ter havido desistência voluntária.
- Deve, pois, revogar-se a sentença recorrida, absolvendo-se a recorrente.
O recurso foi admitido
Respondendo, o Mº Pº na 1ª instância defendeu a manutenção da decisão recorrida.
Nesta instância, o senhor Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de se estar perante tentativa não punível, devendo em consequência absolver-se ambos os arguidos.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Factos dados como provados:
No dia 25/12/1998, cerca das 19, 50 horas, no lugar de....., Amarante, no cruzamento formado pela Estrada Municipal nº--, que liga..... a ....., e a estrada que dá acesso aos lugares da....., da freguesia de....., ocorreu um acidente de viação entre o veículo automóvel ligeiro de matricula ..-..-AJ e o ciclomotor de matricula ..-AMT-..-.., conduzidos, respectivamente, pela Deolinda..... e por José......
O condutor do ciclomotor, vindo do lugar da..... para o lugar do....., entrou na referida EM cortando a linha de marcha do ..-..-AJ, que por aí seguia , e embateu na frente esquerda deste veículo.
Do choque resultaram danos na frente esquerda do ..-..-AJ e no ciclomotor, para além de ferimentos na perna esquerda do José......
O ciclomotor tripulado pelo José.....o não tinha seguro válido, facto que ele revelou à arguida Deolinda..... e ao arguido Cândido....., quando este chegou ao local.
Então, a Deolinda....., o Cândido..... e o José......, agindo de comum acordo e em comunhão de esforços, resolveram dar uma versão diferente da forma como o acidente se tinha dado, trocaram o ciclomotor e o respectivo condutor, indicando como interveniente o ciclomotor de matricula ..-MCN-..-.. conduzido pelo arguido Cândido....., e alteraram o seu sentido de marcha.
Relataram, em união de propósitos, na Declaração Amigável de Acidente Automóvel, assinada pela Deolinda e pelo Cândido, que o ciclomotor de matricula ..-MCN-..-.. seguia do lugar do..... para o lugar da....., tendo desrespeitado um sinal de dar prioridade.
Os arguidos Deolinda e Cândido prestaram também declarações sobre o acidente ao elemento da GNR que se deslocou ao local para tomar conta da ocorrência, indicando como interveniente no sinistro o ciclomotor ..-MCN-..-.., conduzido pelo Cândido.
No entanto, omitiram na declaração amigável que a GNR tinha tomado conta da ocorrência.
A Companhia de Seguros....., no exercício da sua actividade seguradora, celebrou com António..... o contrato de seguro titulado pela apólice nº...., através do qual assumiu a cobertura da responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro ..-..-AJ.
Perante a versão do acidente exposta na referida declaração amigável, a responsabilidade pelo acidente cabia ao condutor do ciclomotor ..-MCN-..-.., por se apresentar pela esquerda em relação ao ..-..-AJ e por não ter respeitado o sinal de aproximação de estrada com prioridade.
Daí resultava que os danos sofridos pelo ..-..-AJ seriam da responsabilidade da seguradora do ciclomotor ..-MCN-..-.., mas seria a Companhia de Seguros..... que teria de liquidá-los, por força da Convenção de Indemnização Directa ao Segurado.
Depois do acidente, a Companhia de Seguros..... encetou diligências no sentido de apurar se o que constava daquela declaração amigável correspondia ou não à verdade.
Posteriormente, no seguimento de tais averiguações, o arguido Cândido e o José..... assinaram cada um uma declaração, na qual davam conta da forma como o acidente ocorrera e de quem nele participara.
E a arguida Deolinda solicitou à companhia de seguros que desse sem efeito a declaração amigável enviada, afirmando não desejar ser indemnizada pelos prejuízos sofridos, declaração essa assinada também por seu pai, António....., que era o titular do seguro.
Os arguidos Deolinda e Cândido e o José.... fizeram as referidas declarações depois de confrontados pelo perito averiguador com as suspeitas que este tinha de que o acidente não se dera do modo descrito na declaração amigável e com as diligências que ele, perito, efectuara e o levavam a concluir naquele sentido, nomeadamente declarações que lhe foram feitas pelo pai do José....
Os arguidos agiram de forma a conseguirem vantagens para a arguida Deolinda, que receberia a indemnização directamente da seguradora, e para o José....., que não seria responsabilizado pelo pagamento dessa indemnização.
Os arguidos agiram de forma livre e consciente, sabendo que as suas condutas eram ilícitas e proibidas por lei.
A Companhia de Seguros..... não liquidou qualquer indemnização, mas suportou despesas com a averiguação do acidente em valor não concretamente apurado.
A arguida Deolinda exerce a profissão de..... no Hospital de....., aí auferindo cerca de 160.000$00 por mês. Trabalha ainda numa clínica privada, com remuneração de valor não apurado. É solteira e reside com os pais. É educadora e catequista na paróquia da sua residência, e é vista pelas pelos que a conhecem como pessoa sociável e de bom comportamento.
O arguido Cândido exerce, por conta própria, a profissão de...... É casado, residindo com a mulher, e não tem filhos. É proprietário do ciclomotor com que se desloca para o trabalho.
Nenhum dos arguidos foi anteriormente condenado pela prática de um crime, e nenhum deles esteve alguma vez preso.
Foi dado como não provado que
- o José... não era titular de licença de condução;
- o arguido Cândido se deslocou ao local do acidente por ter sido chamado pela Deolinda;
- foi de acordo com o teor da declaração amigável que elaboraram que o Cândido e a Deolinda prestaram declarações sobre o acidente ao elemento da GNR que se deslocou ao local;
- da versão exposta na declaração amigável resultava que os danos sofridos pelo ligeiro ..-..-AJ seriam da responsabilidade da Companhia de Seguros.....;
- os arguidos agiram de forma a conseguirem vantagens também para o Cândido;
- a Deolinda conduzia o ..-..-AJ pela metade direita da faixa de rodagem da EM nº--, atento o sentido..... –.....;
- o ciclomotor percorria uma estrada de terra batida;
- com a declaração amigável, pretendia o António..... ser indemnizado pela seguradora dos prejuízos sofridos no ..-..-AJ;
- a demandante suportou despesas no valor de 23.976$00, a título de deslocações, honorários do averiguador do sinistro e fotografias, e de 40.960$00, relativamente à taxa de gestão com o seu processo;
- a Deolinda tem bom comportamento anterior e posterior aos factos.
Fundamentação:
Ninguém põe em dúvida que os factos dados como provados integram uma tentativa de burla, nos termos dos artºs 217º, nºs 1 e 2, e 22º do CP.
Tal tentativa concretizou-se na apresentação à Companhia de Seguros..... de uma versão falseada do acidente, com vista a levá-la, através desse engano, a pagar ao proprietário do automóvel conduzido pela arguida Deolinda..... o valor dos danos sofridos por esse veículo, quando a responsabilidade de tal pagamento, atenta a forma como o acidente ocorreu, não era dela, mas do José....., que foi arguido, mas entretanto faleceu.
E a apresentação da versão falseada do acidente àquela seguradora por parte dos arguidos foi feita através de Declaração Amigável de Acidente Automóvel.
Mas, algum tempo depois, ainda antes da apresentação da queixa, o José..... e o arguido Cândido..... repuseram por escrito perante “a Seguradora...” a verdade sobre as circunstâncias do acidente, e a arguida Deolinda..... e seu pai, António....., proprietário do automóvel conduzido por ela, solicitaram por escrito àquela seguradora que desse sem efeito a declaração amigável, afirmando não desejarem ser indemnizados em relação aos danos sofridos pelo automóvel em consequência do acidente, de tal modo que a queixosa não chegou a pagar qualquer indemnização por esses danos.
Esta atitude dos arguidos representa a sua desistência do propósito de levarem a “a Seguradora” a pagar os referidos prejuízos, ou seja, os arguidos desistiram de prosseguir na execução do crime.
Ora, diz o nº 1 do artº 24º do CP: “A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação ...”.
É certo que os arguidos só fizeram as declarações com que puseram fim ao seu projecto criminoso depois de confrontados com as suspeitas de um perito da queixosa de que a versão do acidente descrita na declaração amigável não correspondia à verdade.
Mas, essas suspeitas, por serem isso mesmo, não impediam, ou não se mostra que impedissem, os arguidos de fazerem prevalecer a versão do acidente que passaram para a declaração amigável, até porque, não havendo outras pessoas com conhecimento dos factos, hipótese que não foi afastada, bastaria aos arguidos concertar posições e manter aquela versão; ou poderia bastar.
As suspeitas com que os arguidos foram confrontados não eram, pois, de molde a fazer-lhes crer que já não havia possibilidade de o projecto criminoso ser coroado de êxito.
Perante essas suspeitas, os arguidos puderam, assim, escolher entre levar por diante aquele projecto ou desistir dele. As possibilidades de sucesso de modo nenhum estavam inviabilizadas.
Deste modo, ainda que os arguidos tenham desistido por pressão daquelas suspeitas, estas não impunham a desistência. Os arguidos tiveram uma margem de escolha: decidiram desistir quando podiam prosseguir, com boas possibilidades de êxito.
Essa margem de escolha ou de decisão torna a desistência voluntária e, portanto, não punível, em conformidade com o falado artº 24º, nº 1, do CP.
Consequentemente, não sendo a tentativa punível, impõe-se a absolvição tanto da recorrente como do co-arguido Cândido....., a quem o recurso aproveita, nos termos do artº 402º, nº 2, alínea a), do CPP.
Com esta solução, fica prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas no recurso.
Decisão:
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação, no provimento do recurso, em revogar a sentença recorrida, na parte em que condenou os arguidos, absolvendo estes da acusação.
Sem custas.
Os honorários da defensora oficiosa do arguido Cândido....., na 1ª instância, são da responsabilidade do CGT.
Porto, 10 de Outubro de 2001
Manuel Joaquim Braz
Francisco Marcolino de Jesus
Fernando Manuel Monterroso Gomes