Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
852/15.0PPPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL SOARES
Descritores: CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
ERRO
CENSURABILIDADE
CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA ILEGAL
Nº do Documento: RP20171026852/15.0PPPRT.P1
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 731, FLS.287-297)
Área Temática: .
Sumário: É censurável, por não ter uma consciência ética conformada com os valores normativos vigentes, a falta de consciência da ilicitude, da detenção de um aerossol que a lei qualifica há cerca de 40 anos como arma proibida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 852/15.0PPPRT.P1
Comarca do Porto
6ª Secção do Juízo Local Criminal do Porto

Acórdão deliberado em Conferência

1. Relatório
1.1 Decisão recorrida
Por sentença proferida em 21 de Março de 2017 a arguida B… foi condenada pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto nos artigos 86º nº 1 al. d), com referência aos artigos 2º nº 1 al. a) e nº 5 al. g), 3º nºs 1 e 2 al. h) e 4º nº 1, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €7.

1.2 Recursos
1.2.1 O Ministério Público interpôs recurso pedindo a absolvição da arguida com base em erro de julgamento dos factos em que ficaram determinados os elementos subjectivos do tipo de crime, alegando, em suma, que as declarações da arguida e o depoimento da testemunha C…, nos segmentos que elencou, impõem decisão diversa daquela a que o tribunal chegou.
1.2.2 A arguida também interpôs recurso, pedindo igualmente a sua absolvição e, a título subsidiário, a redução da pena. Alegou, em resumo, que houve erro de julgamento dos factos onde se deu como provado que actuou com dolo e conhecimento da ilicitude, com violação dos parâmetros da livre apreciação da prova e do princípio in dubio pro reo e que, quanto à pena, a sua fixação não obedeceu aos critérios legais.
A este recurso respondeu o Ministério Público para, no essencial, manifestar a sua concordância com o pedido de absolvição.
1.2.3 Na Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso do Ministério Público e da arguida, quanto à absolvição por erro de julgamento da matéria de facto, e de procedência parcial do recurso da arguida, quanto à pena, que considera dever ser de admoestação. Afirmou, no geral, que os excertos de prova elencados pelo Ministério Público comportam a leitura que o tribunal fez na sentença recorrida e não impõem decisão diversa, não tendo havido violação do princípio da livre apreciação da prova.

2. Questões a decidir no recurso
As questões a decidir são as seguintes, por esta ordem:
- A arguida cumpriu o ónus de especificação dos factos e das provas para impugnar o erro de julgamento da matéria de facto?
- Houve erro de julgamento dos factos relativos aos elementos subjectivos do crime?
- Houve erro de julgamento na interpretação e aplicação do direito quanto à determinação da pena?
- Qual a repercussão desse erro na aplicação do direito e na pena?

3. Fundamentação
3.1. Factualidade provada e sua fundamentação
Começamos por transcrever da sentença recorrida os factos provados e não provados e a respectiva fundamentação (sem as referências doutrinárias e jurisprudenciais e a exposição teórica sobre o conceito do dolo e a prova indiciária):
MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
Em data não concretamente determinada, mas em 2008, a arguida, B…, entrou na posse de 1 (um) aerossol de defesa, que lhe foi então oferecido pelo seu padrasto;
O sobredito aerossol, da marca Top-Hit e com a menção super defence inscrita, de origem alemã, com formato cilíndrico e com capacidade para 40 ml de gás, continha uma solução de CS (2–clorobenzalmalononitrilo, substância com propriedades lacrimogéneas);
No dia 19 de agosto de 2015, a arguida, B…, detinha tal aerossol, na cada onde então residia, sita na Rua …, n.º …, …, no Porto;
A arguida detinha o supradito objeto, cujas características conhecia perfeitamente, nomeadamente a sua idoneidade para ser utilizado como meio de agressão e de causar lesões físicas;
A arguida detinha tal aerossol de defesa, nas apontadas circunstâncias, sem ter nenhuma justificação válida para a sua posse;
A arguida, B…, agiu de forma livre, voluntária e consciente, e detinha o referido objeto para agredir terceiros, caso fosse necessário, sendo ainda certo que o mencionado objeto apenas serve para ser utilizado como arma de agressão;
Sabia ainda ser sua conduta proibida e punida por lei;
A arguida é solteira e não tem filhas;
Vive, sozinha, em Liverpool, Inglaterra, há cerca de um ano;
É enfermeira e aufere 1600 libras mensais;
Reside numa casa arrendada, a que corresponde a renda de 550 libras mensais;
Não tem veículo motorizado;
É licenciada em enfermagem.
Do certificado de registo criminal da arguida consta que não tem antecedentes criminais.

MOTIVAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
A facticidade positiva resultou da convicção do Tribunal, formada com base no conjunto da prova produzida.
Em jeito preambular, anote-se que as declarações e o depoimento prestados foram objeto, nos termos legais, de gravação magnetofónica – por tal motivo, interessa sobrelevar apenas os aspetos substanciais da pertinente prova.
Feito o reparo antedito, destaque-se que se consideraram, de pronto, as declarações da arguida B…, que, no perímetro objetivo, descreveu os factos nos exatos termos dados como assentes. Clarificou ainda o seguinte: o seu padrasto deu-lhe o aerossol quando tinha 15 anos, no seguimento de um problema que a declarante havia dito; tal aerossol destinava-se, por isso, à sua defesa, caso fosse necessário; por vezes, maiormente quando saía à noite, levava o aerossol; no dia em tela, solicitou a presença da polícia no local, dado que o seu companheiro, com quem então vivia, a agrediu; quando foi viver com o seu companheiro, levou o aerossol consigo; o aerossol estava no seu quarto, na mesinha de cabeira, no interior de uma bolsa, juntamente com produtos de higiene e de beleza; e foi o seu companheiro que entregou o aerossol à polícia.
Porém, no quadrante subjetivo, a arguida tentou alijar a sua responsabilidade – para o efeito, no substantivo, pretextou o seguinte: ignorava que a detenção do aerossol era proibida; e, na sua perspetiva, o seu padrasto não lhe ia dar um objeto que fosse proibido (nesse contorno, desenvolveu que o seu padrasto não é uma boa pessoa [embora não tenha concretizado o que quis dizer com isso), mas era cuidadoso).
Trata-se, contudo, ubi infra se destacará, de uma versão que não foi de nenhuma forma persuasória.
Ponderou-se ainda o depoimento da testemunha C…, agente da PSP, que se dirigiu ao local, em face da particularidade de ter sido solicitada a presença da polícia; que conheceu a arguida por ocasião dos factos; e que apreendeu o aerossol.
Incumbe então concretizar, de alguma forma, na fração predominante, o sobredito depoimento.
A testemunha C…, com valência, concretizou: a presença policial foi reclamada pela arguida; a casa para onde se deslocou pertencia ao companheiro da arguida, de nome D…, e nela viviam os dois (o D… e a arguida); na oportunidade, a arguida, que estava muito perturbada e chorava bastante, afirmou que havia sido agredida pelo D…; ainda na circunstância, o D… disse que a arguida tinha usado o aerossol contra ele e que o jato correspondente o tinha atingido nas costas; desconhece onde estava guardado ao aerossol; e não se recorda quem entregou o aerossol.
Ajuntou ainda que, perante a declaração do D…, a arguida lhe desvelou o seguinte: que tinha efetivamente usado o aerossol contra o D…, mas fê-lo por ter sido agredida por ele; e que o aerossol lhe havia sido dado pelo padrasto.
Por fim, a testemunha afirmou ter ficado com a ideia/convicção de que a arguida não sabia que era proibida a detenção do aerossol.
Valorizaram-se, também, os seguintes documentos: o auto de apreensão de fls. 8; e o exame pericial de ff. 69-70.
Insta, neste ensejo, avultar que a sobredita versão da arguida B…, no segmento em que curou de apartar/abduzir a responsabilidade pelos factos dos autos, alegando ignorar a proibição da sua conduta, não se mostrou minimamente convincente – na verdade, a facticidade dada como assente ancorou, nessa fração, na inconcludência/fragilidade das declarações da arguida, em concatenamento com as regras da experiência e os critérios de normalidade (pelo tocante ao recurso a presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou à regra geral da experiência (…).
Neste cenário, visto que se questiona o dolo, interessa, por ora, atentar nas respetivas modalidades prevenidas no artigo 14.º, n.os 1-3, do Código Penal.
Aí se assinala:
(…)
Alinhadas as preditas considerações, releva, hic et nunc, agregar, com interesse superlativo, as particularidades subsequentes.
Em primeiro lugar, vale sobressair que a arguida detinha o aerossol desde data não concretamente determinada de 2008 – conforma-se aqui um hiato temporal, sobremodo, dilatado, que determina, quase de forma cogente, a consciencialização, por parte da arguida, da ressonância criminal da sua conduta. Significa isto que se admite, naturalmente, que a arguida, num primeiro momento, não tivesse conhecimento da proibição atinente à detenção do aerossol; todavia, já não se outorga/concede que, com o evolver do tempo, a arguida não tenha adquirido e firmado tal proibição.
De outra parte, releva enfatizar as especificidades subsecutivas: a arguida detinha o aerossol para a sua defesa, caso fosse necessário (aliás, chegou a utilizá-lo, no dia em pauta, contra o seu companheiro); por vezes, máxime quando saía à noite, levava o aerossol; quando foi viver com o seu companheiro, levou o aerossol consigo; e o aerossol estava no seu quarto, na mesinha de cabeira, no interior de uma bolsa, juntamente com produtos de higiene e de beleza. Do exposto, assoma que a arguida renovava, com alguma frequência, a posse efetiva, concreta e material do aerossol.
Incumbe ressaltar, nesta oportunidade, de forma terminante, o condicionalismo subsequente: a arguida ingressou no Curso de Enfermagem em 2011; tal curso teve a duração de 4 anos; e, à data dos factos, tinha-se licenciado há pouco tempo. Ora, do encadeamento de tais elementos, decorre naturalmente que a arguida, apesar de ter apenas 22 anos, era uma pessoa com uma capacidade de autocrítica acrescida e com um grau de inteligência relevante. Não é ainda ocioso aditar que uma pessoa que frequentou o curso de enfermagem e que obteve a correspondente licenciatura tem, de harmonia com as regras da experiência, uma nítida/clara propensão para se inteirar da constituição/composição dos artigos, mediante a consulta dos pertinentes rótulos ou bulas/folhetos.
No que afeta ao comportamento da arguida, perante o agente policial, em que reconheceu ter utilizado o aerossol contra D…, nada se divisa de relevante com idoneidade/aptidão para respaldar o desconhecimento da proibição. Com efeito, insta não preterir o seguinte: o aerossol foi entregue pelo companheiro da arguida à polícia; o D… (o tal companheiro) afirmou que a arguida tinha usado o aerossol contra si; a arguida, perante tal, reconheceu a titularidade e o uso do aerossol, mas contextualizou a sua utilização na esfera da legítima defesa; e o estado da arguida na ocasião (encontrava-se então muito perturbada e chorava bastante).
Por derradeiro, cabe avultar que a arguida, em face do seu posicionamento, foi cotejada, pelo Tribunal, acerca da singularidade de o aerossol apenas servir para efeitos de agressão, ainda que numa atitude/ação defensiva. Após, foi então questionada pelo tocante à razão por que, mantendo a posse do aerossol durante tanto tempo, nunca excogitou a sua proibição. Diante de tal confronto, a arguida limitou-se a chorar e pareceu, num primeiro momento, querer assumir os factos na sua totalidade; contudo, de seguida, recompôs-se e manteve a sua posição inicial, conquanto o tenha feito de forma esquiva e nada assertiva (nesse perímetro, destaque-se que há gestos, expressões corporais, semblantes, entoações, inflexões da voz, reações/respostas e posturas que são difíceis de retratar, mas nos quais, em resultado da imediação, se captam, muitas vezes, indicações/indícios da verdade ou da mentira).
À vista do exposto, perante a prova efetuada, na sua dimensão holística/poliédrica, está expungida qualquer dúvida relativamente à subsistência ou à verificação do pressuposto/requisito arrazoado pela arguida. Na verdade, a tese/versão do arguido não prospera de nenhuma forma, porquanto infringe/colide frontalmente com as regras da experiência e os critérios de normalidade e conforma-se, ipso facto, insensata/inconsistente – dessume-se, assim, com solidez, que os factos ocorreram nos termos assentados.
Relativamente às condições pessoais e económicas da arguida, aceitou o Tribunal as respectivas declarações.
Alfim, no atinente aos antecedentes criminais, atendeu-se ao certificado de registo criminal da arguida.

3.2. Erro no julgamento da matéria de facto
3.2.1 A arguida impugnou a decisão da matéria de facto, afirmando que o fazia ao abrigo do disposto no artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP, mas acabou também por dizer a certo ponto que ocorre o vício do artigo 410º nº 2 al. c): erro notório na apreciação da prova.
Parece-nos existir confusão quanto à qualificação do vício apontado à decisão.
O erro notório na apreciação da prova ocorre nas situações em que se verifica pela simples leitura de decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, que a prova foi avaliada de maneira contrária a todas as evidências, de forma clamorosamente enganada ou omissa. Trata-se de um vício lógico no raciocínio do julgador, que consiste em retirar da prova uma ilação manifestamente errada, insusceptível de levar ao convencimento de qualquer pessoa. No caso em análise, a decisão do tribunal, ao não dar como provados os factos constitutivos do crime, é adequada ao raciocínio que expressou na sentença. Lendo-se a decisão, encontra-se uma argumentação racional e lógica, feita com base numa avaliação do conteúdo das provas e da sua credibilidade e na explicação de como é que as mesmas não permitiram chegar à demonstração do facto. Não há, portanto, qualquer contradição ou erro no raciocínio do tribunal que seja imediatamente perceptível pela simples leitura da sentença recorrida e que se deva considerar ostensivo e evidente.
Este vício é diferente do erro de julgamento da matéria de facto, pois aqui o erro não é manifesto e só é possível de detectar com uma nova valoração das provas. O que nos é proposto pela arguida é que alteremos a decisão da matéria de facto com base numa nova avaliação das provas e não na simples leitura da decisão. Só isso basta para se perceber que o que está em causa é a impugnação da matéria de facto ao abrigo do referido artigo 412º nºs 3 e 4.
Resulta daquelas normas que a impugnação da decisão da matéria de facto impõe que o recorrente indique os exactos pontos que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa. Tendo tais provas sido gravadas – como foi o caso – aquelas especificações fazem-se por referência ao que está na acta e indicando concretamente as passagens dos depoimentos ou os dos documentos em que funda a impugnação. Interpretando estas normas, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, nº 3/2012 fixou-se jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com a reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no art. 412º, n.º3, al. b) do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
No Comentário do Código de Processo Penal, na anotação ao artigo 412º do CPP (página 1131 da 2ª edição), Paulo Pinto de Albuquerque refere o seguinte: «a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (...) mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento». «(...) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização de concretização exigido pela Lei nº 48/2007, de 29.8, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado (...).»
Ora, se bem que sejam perceptíveis os factos que a arguida considera mal julgados, a motivação do recurso e suas conclusões são completamente omissas em relação às outras indicações. Para além de uma exposição geral sobre o significado que a arguida considera ser de retirar dos depoimentos, não indicou os excertos exactos desses depoimentos que imporiam conclusão diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido e menos ainda a sua localização nos respectivos registos. O incumprimento do ónus de especificação precisa daqueles pontos condiciona a procedência da impugnação da matéria de facto, uma vez que o artigo 421º b) do CPP só nesse caso autoriza a modificar a decisão de facto da primeira instância.
Se tais indicações constassem na motivação e apenas estivessem em falta nas conclusões, teria sido caso para convite ao aperfeiçoamento do recurso. Porém, não é o caso. A omissão é completa. A possibilidade de corrigir o recurso a convite está configurada na lei apenas para as conclusões e não para própria motivação. De outro modo, a admitir-se o aperfeiçoamento da motivação e conclusões, o convite implicaria uma modificação do âmbito do recurso, que a lei não consente – artigo 417º nºs 3 e 4 do CPP. Como se decidiu nos Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 259/2002, de 18 de Junho de 2002, e nº 140/2004, de 10 de Março de 2004, isso «equivaleria, no fundo, à concessão de um novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso».
Dito isto, não tendo a arguida cumprido o ónus imposto pelo referido artigo 412º nºs 3 e 4, não conheceremos da sua pretensão de impugnação da matéria de facto.
3.2.2 A impugnação da matéria de facto no recurso do Ministério Público está feita correctamente e é de conhecer. Estão indicados os factos e as provas, com transcrição dos trechos relevantes dos depoimentos e referência à sua localização no registo áudio.
Na óptica do recurso, como fundamento do erro de julgamento, está a violação das regras da livre apreciação da prova e também do princípio in dubio pro reo.
Estamos portanto em condições de ver se o tribunal errou no julgamento da matéria de facto.
É sabido que os poderes de cognição do tribunal de recurso para alterar a decisão da matéria de facto fixada em primeira instância não são ilimitados. O sistema de reapreciação dos erros de julgamento em recurso tem de levar em conta um princípio de maior fidedignidade da apreciação da prova em primeira instância, decorrente da regra da imediação, que garante a relação de contacto pessoal e directo entre o julgador e os meios de prova. O juiz que intervém na decisão assiste pessoalmente à recolha de toda a prova na audiência – salvo situações excepcionais em que mesmo assim se estabelecem mecanismos de garantia da imediação (artigo 328º-A do CPP); tem o poder de analisar provas diferentes daquelas que lhe foram apresentadas se isso for necessário para a boa decisão (artigo 340º do CPP); pode examinar directa e pessoalmente os depoimentos das testemunhas (artigo 348º nº 5 do CPP) e, salvo casos excepcionais, só pode formar a sua convicção em provas que foram produzidas ou analisadas diante de si em audiência (artigo 355º do CPP). Ao contrário, em segunda instância, a reapreciação da matéria de facto faz-se, em regra, sem imediação, com a audição e visualização do registo das provas sugeridas no recurso e apenas se renovando provas sob impulso dos sujeitos processuais (artigos 412º nºs 3 a 6 e 417º nº 7 al. b) do CPP).
É pois claro que a forma de procedimento da avaliação da prova em primeira instância, com imediação e completude, dá mais garantias de fidedignidade na descoberta da verdade, quando posta em confronto com a avaliação indirecta, fragmentada e mediata a que procede o tribunal de recurso. Daí que a reapreciação da prova em recurso não equivalha a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes. Apenas garante que a parte vencida pode obter do tribunal superior a fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto, através do reexame parcial da prova.
Por outro lado, agora já no que respeita ao modo como a prova se estabelece, é determinante entender que o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação estabelecido no artigo 127º do CPP. Esta regra significa que o julgador tem uma ampla margem de discricionariedade para valorar as provas, através de um exame crítico vinculado a critérios objectivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum. Na fundamentação da sentença, o tribunal tem de explicitar o percurso desse exame crítico e as razões das conclusões a que chegou, explicitando os motivos porque considerou demonstrado ou não um certo facto e demonstrado ou não o seu contrário.
A regra da livre apreciação da prova está porém limitada por um critério positivo que decorre do princípio in dubio pro reo. A formação da convicção positiva sobre a veracidade do facto controvertido com base numa operação de racionalidade discricionária só é admissível se não existirem factores de dúvida séria intransponível. Essa dúvida não é a dúvida subjectiva do julgador sobre o facto, mas sim a dúvida objectiva resultante da avaliação das provas. E aqui afastamo-nos já do entendimento do Ministério Público, que considera não ter sido violado esse princípio por, em suma, não resultar da sentença recorrida que o tribunal tivesse ficado com dúvidas. Não é esse o critério para aferir se houve ou não violação do princípio de apreciação de prova in dubio pro reo, resultante da regra constitucional da presunção de inocência. Se fosse assim, se fosse necessário que o tribunal manifestasse na decisão dúvidas sobre a culpabilidade para se dar como violada a regra da presunção de inocência, essa regra seria simplesmente insindicável, na medida em que nessas situações o tribunal proferiria decisão absolutória.
O critério da dúvida razoável, como factor de análise da prova limitador do princípio da livre apreciação, significa que a convicção sobre a veracidade do facto incriminatório só é admissível se não existir uma situação intransponível de dúvida fundada e motivada na razão; isto é, uma dúvida que seja compreensível de acordo com uma avaliação racional e sensata. Para vencer essa dúvida não basta que a prova da culpabilidade seja preponderante sobre a prova da inocência. A culpabilidade não pode ser determinada com base apenas numa plausibilidade do facto, entre outras possíveis; tem de ser determinada com base num juízo de certeza. Se o tribunal der como provados factos desfavoráveis ao arguido que sejam razoavelmente duvidosos, haverá violação do princípio in dubio pro reo e dos parâmetros da livre apreciação da prova – mesmo que subjectivamente o julgador da decisão posta em crise não tenha tido essa dúvida.
Portanto, à luz destas regras, a possibilidade de sindicar em recurso o erro de julgamento da matéria de facto por violação do princípio in dúbio pro reo ocorrerá nas situações em que se verifique que a convicção extraída da prova não teve em conta a existência de uma plausibilidade razoável de o arguido se encontrar inocente.
Vejamos então à luz destes princípios se o Ministério Público tem razão.
Os segmentos dos factos provados impugnados são os seguintes:
- A arguida detinha o supradito objecto, cujas características conhecia perfeitamente, nomeadamente a sua idoneidade para ser utilizado como meio de agressão e de causar lesões físicas.
- A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, e detinha o referido objecto para agredir terceiros, caso fosse necessário, sendo ainda certo que o mencionado objecto apenas serve para ser utilizado como arma de agressão.
- Sabia ainda ser sua conduta proibida e punida por lei.
Vamos analisar separadamente os dois primeiros e o terceiro, porque a solução é diferente.
O que está em causa num primeiro momento é saber se a arguida conhecia as características do objecto que detinha e a sua idoneidade para ser utilizado como meio de agressão e de causar lesões físicas, se o detinha para agredir terceiros em caso de necessidade e se, ao detê-lo, agiu de forma livre, voluntária e consciente.
O tribunal considerou estes factos como provados com base nas declarações da arguida, no depoimento da testemunha C…, polícia que fez a apreensão do objecto, e na perícia técnica feita, que determinou as suas características. No essencial a arguida admitiu a sua posse há sensivelmente 8 anos, que por vezes o tinha usado quando saía à noite para a eventualidade de ter de defender e que, no dia em que foi apreendido, na sequência de uma agressão do seu namorado, o usou contra ele. A testemunha explicou as circunstâncias em que foi ao local e apreendeu o spray.
Daqui resulta ser claro que a arguida não podia deixar de conhecer a aptidão agressiva do spray, visto que o detinha precisamente com essa finalidade e até o utilizou contra o seu namorado. Também parece evidente que o deteve durante um longo período, chegando a levá-lo consigo quando mudou de residência, o que leva a concluir que o fez de forma livre voluntária e consciente. Foi este o sentido da decisão do tribunal, que está explicada com suficiente clareza na fundamentação da sentença.
Toda a argumentação do recurso do Ministério Público contra a prova dos factos referidos assenta no equívoco de confundir a voluntariedade da detenção e conhecimento das características e aptidão do objecto com o conhecimento da ilicitude dessa detenção. São factos distintos. Uma pessoa pode estar na posse de um objecto proibido, com plena intenção de o possuir, sem no entanto saber que a lei proíbe essa posse. O que verdadeiramente se pretende no recurso não é contestar a detenção voluntária e conhecimento das qualidades do objecto, mas sim dizer que não se provou que a arguida soubesse que essa detenção lhe estava legalmente vedada o spray ser uma arma proibida.
Portanto, sem necessidade de argumentação mais desenvolvida, é óbvia a improcedência desta parte da impugnação dos factos provados. A convicção do tribunal fundou-se em provas que suportam plenamente aqueles factos e está motivada na sentença de forma clara, com argumentos racionais e adequados às regras da lógica e da experiência comum.
No outro segmento dos factos, o Ministério Público impugnou a prova de que a arguida sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei.
Vejamos, então se a apreciação da prova se fez dentro dos parâmetros da regra da livre apreciação e se respeitou o princípio in dubio pro reo.
A arguida disse a este propósito que não sabia que a posse do spray era proibida. Tinha-lhe sido dado pelo padrasto aos 15 anos de idade para se defender em caso de necessidade, quando andasse sozinha na rua, uma vez que já tinha sido assaltada. Não lhe passou pela cabeça que o padrasto lhe fosse dar uma coisa proibida e ao longo dos anos nunca ouviu dizer que fosse ilegal. Está convencida de que a maioria das pessoas também não sabe que é ilegal.
A testemunha C… disse que no exercício das suas funções foi chamado à residência pela arguida, que se queixava de agressões do namorado. No local, o namorado da arguida disse que esta o tinha atingido nas costas com o conteúdo daquele spray, o que ela confirmou de imediato. A testemunha afirmou ter ficado convencido, pela reacção da arguida e pelo contexto da intervenção policial, que ela não teria a consciência de que a posse do spray era ilícita.
A linha argumentativa expressa na motivação da sentença para se dar como provado o contrário do que foi dito pela arguida e pela testemunha é, no essencial, esta:
- A versão da arguida não foi persuasória. Não se revelou minimamente convincente, face às regras da experiência e aos critérios da normalidade;
- Teve o aerossol na sua posse durante cerca de 8 anos. Tinha-o para defesa, usava-o para esse efeito e guardava-o perto de si. Portanto, a intenção de possuir o objecto foi renovada com frequência ao longo do tempo. Mesmo que aos 15 anos não conhecesse a ilicitude da posse, o referido hiato temporal é suficiente para a ter adquirido;
- Tinha acabado há pouco o curso de enfermagem. É uma pessoa com inteligência e capacidade autocrítica relevante, apesar dos seus 22 anos de idade. Por isso, não podia deixar de estar inteirada da composição química do aerossol, que, de resto, consta no respectivo rótulo;
- O comportamento da arguida perante o polícia nada tem de relevante para respaldar o aleado desconhecimento da proibição;
- Em julgamento, quando questionada sobre isso, limitou-se a chorar. A certo ponto revelou querer assumir a totalidade dos factos, mas depois voltou à posição inicial, de forma não convincente.
O Ministério Público contrapõe no recurso os seguintes argumentos:
- O depoimento da arguida, de que não conhecia a ilicitude da detenção do objecto, foi corroborado pela impressão causada na testemunha (polícia);
- À data em que o objecto veio à posse da arguida, aos 15 anos de idade, ela não tinha maturidade suficiente para avaliar a sua ilicitude;
- Não é óbvio que uma pessoa recém-licenciada em enfermagem tenha a noção exacta dos tipos de objectos qualificados na lei como armas e das condições legais para a sua detenção;
- Tendo sido a arguida a chamar a polícia, que lhe veio a apreender o objecto, isso leva a crer que não sabia que estava a incorrer na prática de um crime.
Há agora que encontrar a solução para esta controvérsia, de saber se a prova de que a arguida actuou com consciência da ilicitude resiste ou não à dúvida razoável e intransponível sobre a veracidade desse facto.
Procedemos à audição integral dos depoimentos e não apenas dos segmentos indicados no recurso.
O primeiro aspecto que temos de salientar é que na sentença recorrida há aspectos da motivação que não nos parecem correctos.
Afigura-se-nos que o tribunal poderá ter abordado a questão um pouco ao contrário do que deve ser, isto é, como se tivesse de ser a defesa a convencer da sua inocência e não a acusação a provar inequivocamente a sua culpabilidade. Depois da descrição geral da prova oral analisada e do quadro em que a arguida procurou, nas suas declarações, afastar a sua responsabilidade, lê-se na sentença: “trata-se, contudo, ubi infra se destacará, de uma versão que não foi de nenhuma forma persuasória”; e mais adiante: “a tese/versão da arguida não prospera de nenhuma forma, porquanto infringe/colide frontalmente com as regras da experiência e os critérios da normalidade e conforma-se, ipso facto, insensata/inconsistente – dessume-se, assim, com solidez, que os factos ocorreram nos termos assentados”. A redacção inculca assim a ideia de que das teses em confronto, aquela sujeita ao teste da validação pelas regras da experiência não foi a da acusação mas sim a da defesa.
Por outro lado, julgamos que a descredibilização das declarações da arguida foi influenciada por uma forma irregular de interrogatório, não integralmente respeitadora da regra do artigo 343º nº 2 do CPP, segundo a qual o tribunal não deve “manifestar qualquer opinião ou tecer quaisquer comentários donde possa inferir-se um juízo sobre a culpabilidade”. Dizemos isto não para manifestar dúvida sobre a imparcialidade do julgador ou para criticar a técnica de interrogatório – porque não é nem deve ser essa a finalidade do recurso – mas apenas na exacta medida em que é necessário analisar este aspecto para verificar de que forma o interrogatório foi influenciado e prejudicou a percepção da sua credibilidade.
Por exemplo, quando a arguida explicava que julgava ser legal a posse do aerossol, o tribunal respondeu: “é algo que seja…, que tem apenas efeitos ofensivos, porque é que acha que há-de ser legal? Não faz sentido! Porque razão é que havia de ser legal?”; mais adiante, de novo a argumentar em contrário ao que a arguida dizia, responde: “uma pessoa pode dizer o que quer, não é? As coisas são o que são, a vida é feita destas coisas”; e acrescenta o tribunal: “A senhora há-de ver que a finalidade é apenas agressiva! Até por aí se consegue alcançar assim a valorização…, o valioso, em termos negativos, que a coisa tem. Está a perceber? É apenas isso!”, e finaliza: “Custa-me a crer que a B…, nesse hiato, que é um hiato relevante, nunca se tenha falado nisso a propósito de qualquer coisa, desta substância”. Noutro ponto: “Pelo menos quando entrou no curso de enfermagem, quando começou a desenvolver o curso de enfermagem, não acredito que não soubesse, está a perceber? Eu não estou a dizer que aos 15 anos soubesse, o problema é que a senhora deteve durante um tempo e enquanto deteve manteve-se a situação de ilicitude, está a perceber? É só isso! Eu percebo perfeitamente que no início até pudesse não saber, mas mais à frente sabia com certeza. Ou não é assim, B…?” E logo a seguir: “Se a senhora me dissesse assim: eu não percebo nada desta coisa – está a perceber? – destes materiais, ainda assim seria difícil, diante da natureza, que esta natureza é só uma natureza agressiva, poder explicar isto. Agora assim, parece-me mais difícil. Mas adiante-me algum elemento novo, se tiver assim alguma coisa de relevante”.
É evidente que o tribunal não estava a acreditar no depoimento da arguida – que em si nada tem de especial, pois o julgador forma a sua convicção livremente, de acordo com a impressão subjectiva que a prova lhe provoca. O problema é que ao deixar isso claro para a arguida, acabou por influenciar a forma como esta prestou as suas declarações. Daí que não nos parecer aceitável a conclusão retirada da reacção de choro da arguida, como se daí, no contexto do interrogatório, tivesse resultado como que uma conformação implícita com a veracidade da acusação.
Há também outros aspectos em que a motivação da prova não nos parece convincente.
A posse ilícita de um objecto durante cerca de 8 anos não é um argumento decisivo para se concluir que daí advém necessariamente a consciência da ilicitude. O argumento é reversível e pode indiciar precisamente o contrário. Se uma pessoa bem formada e com comportamento normativo – como parece ser o caso da arguida – adquiriu um objecto proibido sem consciência dessa proibição, mais tarde, ao ter essa consciência, deveria desfazer-se dele. Portanto, a posse tão prolongada pode significar apenas que a arguida desconhecia mesmo que fosse ilícito deter o aerossol.
Também não consideramos linear o argumento de que, se a arguida tinha de estar inteirada da composição do aerossol por causa da recém licenciatura em enfermagem, então também tinha de estar ciente da proibição. Não podem confundir-se os planos. Uma coisa é o facto de arguida saber que o aerossol tinha produtos químicos que provocam reacções quando usado contra outra pessoa – e é evidente que sabia, não só por ser enfermeira mas porque era precisamente para isso que o tinha – outra diferente, que constitui um facto autónomo, é saber se ela conhecia ou não a proibição de possuir tal objecto.
Disse ainda o tribunal que o comportamento da arguida perante o polícia nada tem de relevante para respaldar o desconhecimento da proibição. Não podemos concordar. Em primeiro lugar, a impressão que ela causou no polícia não é despicienda. Se o próprio polícia, com a sua experiência de lidar com situações semelhantes, pelas reacções e pelo contexto, se convenceu de que ela não tinha conhecimento da ilicitude da posse do objecto, isso não pode ser desvalorizado como elemento de ponderação da prova. Por outro lado, há um aspecto no qual o tribunal não atentou e que é relevante. Se foi a arguida quem chamou a polícia, depois de usar o aerossol para se defender da agressão do namorado, e se não teve qualquer preocupação em esconder esse objecto nem em disfarçar o seu uso – fez o contrário – isso parece corroborar as suas palavras e a impressão que causou no polícia, de que desconhecia a ilicitude. Não é normal que a arguida soubesse que estava a praticar um crime e chamasse a polícia para a surpreender na posse do objecto proibido.
Como acabámos de ver, a única prova oral a que o tribunal teve acesso (declarações da arguida e depoimento da testemunha) inculca a ideia de que a arguida efectivamente desconhecia que era proibido possuir aquele aerossol. Essa convicção é corroborada pelas circunstâncias em que a posse foi adquirida (dado pelo padrasto aos 15 anos de idade), pela admissão espontânea, pela arguida, do uso do objecto em ocasiões anteriores (levava-o quando saia à noite para se defender), pelo prolongamento da posse por 8 anos (pouco adequado à personalidade normativa revelada pela arguida, caso conhecesse a proibição), pelas condições em que chamou a polícia (depois de usar o aerossol e não o tendo escondido) e pela admissão espontânea do seu uso ao polícia. Os argumentos em que o tribunal fundamentou a convicção contrária não são razoáveis ou não têm um significado inequívoco. E por fim, o princípio de raciocínio de que o tribunal parece ter partido, de que a tese da acusação é plausível e a versão da arguida não a infirmou suficientemente, não é aquele que resulta da aplicação das regras da apreciação da prova.
Depois de reavaliada a prova, pensamos que existem razões para se dizer que não é possível chegar a uma conclusão segura sobre a prova da consciência da ilicitude da posse do aerossol pela arguida. Portanto, à questão de saber se há ou não uma dúvida razoável sobre a prova do facto incriminatório em questão, a nossa resposta é afirmativa. A prova incriminatória não assenta num juízo que afaste cabalmente a possibilidade de inocência. A hipótese de culpabilidade é apenas plausível e razoável, mas não tem o grau de certeza necessário para vencer a regra da presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo.
Chegamos assim à conclusão de que o tribunal recorrido não ponderou devidamente as provas que analisou, de acordo com os parâmetros da livre apreciação.
Por estas razões, ao abrigo do disposto no artigo 431º al. b) do CPP, há que alterar a matéria de facto, dando como não provado que soubesse que a sua conduta, de deter o aerossol, era proibida e punida por lei.

3.3 Aplicação do direito ao novo quadro factual fixado
Em consequência da preconizada modificação dos factos provados – que apenas atendemos em parte – o Ministério Público pediu a absolvição da arguida por falta de prova dos elementos objectivos do tipo, isto é, do dolo. Sem qualificar juridicamente, é também essa a pretensão expressa pela arguida no seu recurso.
Como vimos, a prova dos factos que permitem caracterizar o comportamento da arguida como doloso não é questionável. Ela efectivamente estava na posse intencional do aerossol em questão, conhecendo as suas características e a sua idoneidade como instrumento de agressão e para causar lesões físicas, com a finalidade de o usar para agredir terceiros, caso fosse necessário, o que fez livre, voluntária e conscientemente.
A consciência da ilicitude da acção típica coloca-se no plano da dogmática a um nível diferente da avaliação do dolo na realização do facto típico, porque tem a ver com a questão da relevância do erro sobre a ilicitude ou sobre a proibição. Sem entrarmos aqui numa desnecessária dissecação das teorias dogmáticas da infracção penal, não podemos deixar de chamar a atenção para o facto de as doutrinas finalistas da acção separarem os conceitos de culpa e dolo e retirarem o elemento culpa do tipo subjectivo de ilícito. A culpa será um pressuposto da infracção mas não um elemento do tipo. De acordo com a teoria finalista da acção, a tipicidade subjectiva inclui o dolo ou a negligência, isto é a representação e vontade do agente quando actua de modo a preencher os elementos objectivos típicos, sendo a culpabilidade uma questão puramente normativa, que tem a ver com as questões da imputabilidade, da consciência da ilicitude e da exigibilidade de conduta diversa.
Aliás, o nosso código penal não deixa de conter elementos que suportam a teoria finalista da acção que separa a culpa da tipicidade. Da conjugação dos artigos 20º nº 1 e 91º nº 1 resulta que pode haver prática de factos típicos (incluindo naturalmente o tipo objecto e subjectivo) sem consciência da ilicitude ou capacidade de avaliação ou actuação de acordo com essa avaliação. Do mesmo modo o artigo 17º, ao determinar que a falta de consciência da ilicitude exclui a culpa mas não o dolo, mostra que a culpa não faz parte do tipo subjectivo de ilícito.
Face ao disposto no artigo 16º nº 1, 2ª parte, do CP, a falta de conhecimento da proibição só relevaria no plano da verificação da tipicidade se estivesse em causa crime relativamente ao qual fosse necessário conhecer a norma de proibição para que o agente representasse o desvalor do acto; um comportamento de escassa relevância axiológica, cujo conhecimento da punibilidade não se pudesse presumir conhecido de todas as pessoas (como sucede amiúde no chamado direito penal secundário ou em incriminações recentes).
Não é essa a situação em apreço. A proibição de detenção de substâncias químicas agressivas não surgiu recentemente. O Decreto-Lei nº 207-A/75, de 17 de Abril, que antecedeu o actual regime legal das armas, já considerava proibida o uso ou detenção de substâncias sólidas, líquidas ou gasosas que fossem intoxicantes, asfixiantes ou vesicantes (artigo 3º nº 2 al. a)). Por outro lado, o uso de objectos com potencialidade agressiva não constitui um comportamento axiologicamente neutro ou de difícil percepção, dado que a consciência social dominante conhece o desvalor da ofensa à vida e integridade física, que é, afinal, o perigo que a incriminação visa proteger. Não é necessário conhecer a norma proibitiva para ter consciência do desvalor jurídico do acto.
Portanto, a falta de prova sobre a consciência da ilicitude do facto não releva no plano da tipicidade mas sim da verificação do pressuposto da culpa, o que nos remete para a questão do regime legal do erro, previsto no artigo 17º do CP. Aqui, o que está em causa já não é a exclusão do dolo mas sim da culpa, se o erro não for censurável.
A censurabilidade do desconhecimento da ilicitude não se refere à falta de diligência resultante da omissão do dever de se informar sobre a proibição legal (isso teria a ver com a ressalva do artigo 16º nº 3, aplicável aos casos do seu nº 1), mas sim à verificação de uma eventual desconformidade entre a consciência ética da arguida e os valores fundamentais da ordem jurídica. Do que se trata, assim, não é de saber se a arguida foi negligente ao não se informar sobre uma proibição que era necessário conhecer para saber que deter um aerossol era ilícito, mas sim de saber se a sua acção é censurável por a sua consciência ético-jurídica ser deficiente, ao ponto de não conhecer a ilicitude de um acto que a generalidade da sociedade reputa como tal.
Nesta medida, nos termos do artigo 17º nº 1 referido, o erro da arguida só excluirá a culpa se for possível identificar uma “recta consciência ético-jurídica”, isto é, se não resultar de uma atitude interna de infidelidade à conformação com os valores jurídico-penais (ver Jorge de Figueiredo Dias, “O problema da consciência da ilicitude em Direito Penal, Coimbra, 1969, pag. 586). Ou, nas palavras do acórdão do TRP, de 25FEV2015 (processo 120/08.3GCBGC.A.G1.P1, em www.dgsi.pt), se o erro não for consequência de “uma atitude pessoal juridicamente desvaliosa que impede a consciência ética de decidir correctamente a questão do desvalor jurídico do facto”.
Aplicando estes conceitos ao caso em análise, a questão a que temos de dar resposta é esta: a falta de consciência da ilicitude da detenção de um aerossol, que a lei qualifica há pelo menos mais de 40 anos como arma proibida, resulta ou não de uma atitude reprovável da consciência ética da arguida, que a impediu de discernir correctamente o desvalor jurídico consagrado na lei?
Pensamos que sim. A única explicação que encontramos para o facto de a arguida ter na sua posse um objecto proibido durante 8 anos, sabendo que se trata de instrumento de agressão, de o ter usado várias vezes e de inclusivamente o ter usado contra o seu namorado, e ainda assim desconhecer a ilicitude dessa posse, que a generalidade das pessoas deve conhecer, é a de não ter uma consciência ética conformada com os valores normativos vigentes. Naquelas circunstâncias, uma pessoa normalmente socializada discerniria que a posse de um instrumento de agressão não pode ser lícita, precisamente porque o único uso que lhe pode ser dado, ainda que em atitude de defesa, é o de provocar danos físicos noutras pessoas.
Em conclusão, não estamos na presença de um caso de exclusão de culpa por erro não censurável, ao abrigo do disposto no artigo 17º nº 1, mas sim de erro censurável, que pode levar à atenuação especial da pena, nos termos do seu nº 2.
A atenuação especial da pena, não sendo embora de aplicação automática, justifica-se neste caso, tendo em conta a particularidade, para nós decisiva, de a detenção da arma proibida se ter iniciado num contexto que confere, ainda assim, alguma compreensibilidade ao acto, por ter sido dada pelo padrasto aos 15 anos de idade.

3.4 Reajustamento da pena
Em consequência do que acabámos de referir, é preciso ver em que medida isso se reflecte na pena.
Não vem questionada a opção do tribunal por uma pena de multa.
No recurso da arguida apenas se alega, em termos gerais, sem qualquer aproximação ao caso concreto, que a pena violou os artigos 40º e 71º do CP. Não se diz porquê nem tão pouco que regras de determinação não terão sido observadas – a limitação da culpa? A adequação às exigências de prevenção? A proporcionalidade? Tudo isso ao mesmo tempo? Não se sabe. E também não compete ao tribunal de recurso “adivinhar” em que medida é que a pena não é adequada, se o recorrente não o diz.
Deste modo pensamos não ser admissível seguir a sugestão do parecer do Ministério Público na Relação, no sentido de a arguida ser antes condenada na pena de admoestação.
O único reajuste à pena que temos de fazer resulta do facto de a multa ter de ser graduada nos limites abstractos, agora reduzidos nos termos do artigo 73º nº 1 al. c) – entre 10 e 320 dias – e não nos limites abstractos em que o tribunal a calculou – entre 10 e 480 dias.
Temos de aplicar os mesmos critérios da sentença recorrida que, como vimos, não estão impugnados. Sendo assim, como a pena foi fixada em 90 dias, que corresponde a 18,75% do limite máximo admissível, há agora que reduzi-la exactamente na mesma proporção, tendo em conta o novo limite máximo. Sendo assim, a pena de multa tem de ser fixada em 60 dias.
O quantitativo diário mantém-se porque também não vem questionado no recurso.

4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em conceder provimento parcial aos recursos do Ministério Público e da arguida e em modificar a sentença recorrida, tanto nos factos provados, nos termos acima expostos, como na pena de multa, que é reduzida a sessenta dias, à taxa diária de sete euros.

Isento de custas.

Porto, 26 de Outubro de 2017
Manuel Soares
João Pedro Nunes Maldonado