Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
335/14.5T8OVR-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
APLICAÇÃO DO NCPC
Nº do Documento: RP20150915335/14.5T8OVR-C.P1
Data do Acordão: 09/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O artigo 703.º CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que estabelece o catálogo taxativo dos títulos executivos, omitiu aquela disposição, retirando aos documentos particulares a força executiva que dispunham face à lei antiga.
II - No domínio do direito processual vigora a regra da aplicação imediata da lei nova, atento o seu carácter instrumental: não atribui nem retira direitos; destina-se tão só a permitir a realização efectiva do direito substantivo, regulando os termos em que as pessoas podem fazer valer o direito que a lei substantiva lhes reconhece.
III - O artigo 6.º, n.º 3, do diploma preambular, ao estabelecer que o disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor, não consagra a retroactividade da lei processual.
IV - Um documento particular, que importou a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, e que constituía título executivo à luz do artigo 46.º, alínea c), CPC 1961, não pode suportar uma execução instaurada após a entrada em vigor do novo CPC, que descaracterizou aquele documento, retirando-lhe a qualidade de título executivo.
V - Esta solução não padece de inconstitucionalidade.
VI - A garantia de acesso ao direito não abarca o direito a um determinado tipo de processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 335/14.5T8OVR-C.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório

B… instaurou execução, em 2014.10.29, contra C…, apresentando como título executivo uma declaração de confissão de dívida, datada de 2010.09.25, onde a executada reconhece ser devedora da quantia de € 75.000,00.
Antes de ordenar a citação, o Mm.º Juiz a quo proferiu despacho, a fls. 11-18, assim concluindo:
Para além dos fundamentos jurídicos invocados nos arestos citados dos tribunais de Relação, também pelos motivos agora expostos considero materialmente inconstitucional a medida que eliminou os documentos particulares do elenco dos títulos executivos, pelo que recuso a aplicação do artigo 703.º do Novo Código de Processo Civil conjugado artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, quando interpretados no sentido de que aquele primeiro normativo se aplica a documentos particulares constituídos em data anterior a da vigência do novo código, mas que eram exequíveis no momento da sua subscrição pelo devedor, face ao disposto artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, e que não haviam sido dados à execução no momento em que aquela lei entrou em vigor, por violar o princípio da tutela jurisdicional efectiva e o princípio da proibição da indefesa enquanto aceção do direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrados no artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, respectivamente, da Constituição da República Portuguesa, bem como o princípio do contraditório consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da mesma lei fundamental, extensivo, por identidade de razão a todas as formas de processo (cfr. Acórdão n.º 104/2006, do Tribunal Constitucional, datado de 07.02.2006, publicado no DR-II Serie, n.º 54, de 16·03.2006 (págs. 3857 a 3862).
Aquela interpretação já foi objecto de declaração de inconstitucionalidade no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 847/2014, de 3 de dezembro, proferido no âmbito do processo de fiscalização sucessiva concreta n.º 537/14 (1.ª secção, Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros).
O título dado à execução (declaração de confissão de dívida) foi emitido na vigência do Código de Processo Civil de 1961, e gozava de força executiva ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º desse Código.
Em resultado do juízo de inconstitucionalidade por nós expresso, é de admitir a exequibilidade do documento em que se baseia a presente execução.
Inconformada, apelou a executada, assim concluindo:
1- A execução ora em causa tem como título executivo um documento particular de confissão de dívida;
2- Tal documento foi emitido em 25 de Setembro de 2010, na vigência do Código de Processo Civil de 1961, gozando, nessa data, de força executiva ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º desse código;
3- Porém, o artigo 703º do Novo Código de Processo Civil deixou de reconhecer natureza de título executivo aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações;
4- Os acórdãos de 19/06/2014, proc. n.º 138/14.7TCFUN.L1-6; de 24/09/2014, processo n.º 3275/14.4YYLSB.L1-2 do Tribunal da Relação de Lisboa e o acórdão de 07/10/2014, processo n.º 61/14.5TBSBG.C1 do Tribunal da Relação de Coimbra são claros ao considerar que a aplicação do art. 703º do Novo CPC a todas as execuções interpostas posteriormente a 1 de Setembro de 2013, recusando a exequibilidade aos documentos particulares ainda que constituídos validamente em data anterior, não implica uma aplicação retroactiva da lei nova, nem é de considerar inconstitucional por violação do princípio da segurança e da protecção da confiança.
5- Em consequência, as execuções instauradas posteriormente a 1 de Setembro de 2013, não poderão basear-se em documento particular constituído em data anterior e a que fosse atribuída exequibilidade pelo regime vigente à data da sua constituição.
6- As críticas à permissividade legal na formação de títulos executivos, em particular no que concerne aos títulos particulares, já vêm de longe, pelo que não se poderá dizer que os credores tinham razões para crer que o status quo a este respeito não sofreria alterações.
7- Sendo a força executiva de um documento um pressuposto processual da acção executiva, ou seja, um requisito de admissibilidade desse meio de recurso aos tribunais, em princípio deverá ser aferida pela lei processual vigente à data da instauração da acção executiva;
8- A mutação legislativa operada não beliscou a força probatória dos documentos em questão, os quais continuarão, assim, a proporcionar aos credores a mesma credibilidade, perante a ordem jurídica, de que dispunham anteriormente, tão só com o acréscimo da exigência de que, em caso de incumprimento da obrigação titulada, o credor obtenha o reconhecimento do seu crédito em sede de acção declarativa ou de procedimento de injunção.
9- À luz do regime anterior o credor poderia ser igualmente confrontado, na acção executiva, com a necessidade de fazer valer a sua posição no âmbito de acção declarativa aí desencadeada pelo executado.
10- Mesmo que se entendesse, como o Tribunal “a quo” defende, que o procedimento de injunção não é uma alternativa adequada à eliminação da exequibilidade dos documentos particulares negociais, tal não implicava que se tivesse de reconhecer exequibilidade aos documentos particulares anteriores ao novo CPC, mas dados à execução posteriormente a 1 de Setembro de 2013, uma vez que o credor mantinha a possibilidade de recorrer à acção declarativa.
11- As razões subjacentes à aplicação do novo regime aos documentos anteriormente constituídos são constitucionalmente relevantes, pois visa-se, conforme decorre da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, potenciar o rápido descongestionamento do sistema de justiça ao nível das execuções (nos termos do art.º 20.º n.º 4 da CRP, todos têm direito a que a sua causa seja objecto de decisão em prazo razoável) e impulsionar a imediata aplicação de um regime que se considera obviar ao risco de execuções injustas e melhor acautelar o exercício do contraditório (nos termos do n.º 4 do art.º 20.º da CRP, todos têm direito a que a sua causa seja objecto de decisão mediante processo equitativo).
12- O art.º 703.º do NCPC é uma típica norma processual, que não interfere com a validade e força probatória do documento particular em causa, nem com o seu conteúdo ou substância dos direitos subjectivos por ele conferidos, matéria que é regulada pelo direito substantivo, mas apenas com o modo de realização ou tutela desses direitos, o que é próprio da lei processual. Assim, a lei processual civil ao não atribuir força executiva a esses documentos, não está a regular ou interferir com o acto de constituição ou de reconhecimento da obrigação, nem a regular ou modificar os seus efeitos jurídicos, mas a regular unicamente o seu aspecto de natureza processual, o modo de realização judicial de um direito de crédito, caso se mostre necessário, isto é, haja incumprimento da obrigação assumida.
13- A alteração processual operada no elenco do artigo 703.º do CPC é irrelevante quanto à validade ou força probatória do documento particular em causa, não interfere com o conteúdo do acto de constituição da obrigação, nem com o direito subjectivo por ele conferido, matéria que tem a sua disciplina no direito substantivo, interferindo apenas com o modo de realização ou tutela desse direito, ou seja, alterando o modo processual de exercer judicialmente o seu direito.
14- Não se verifica qualquer violação intolerável e arbitrária do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança do Exequente/Recorrido, afectando a legítima expectativa que depositava na exequibilidade desse documento, uma vez que a alteração meramente processual não atinge de forma inadmissível e arbitrária o direito ou expectativas conferidas pela força executiva ao documento, ou seja, da alteração das normas processuais identificadas não decorre qualquer efeito substantivo.
15- O Recorrido continua a ter assegurado o acesso à administração da justiça para exigir o pagamento do seu crédito através de instrumento processual mais adequado, não se afectando minimamente os pressupostos legais (substantivos) do reconhecimento dessa dívida.
16- Esta alteração legislativa é justificada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, nomeadamente que um cidadão não possa ver penhorados os seus bens sem ter tido previamente oportunidade de se defender (inobservância do princípio do contraditório), relativamente a um crédito invocado e suportado por meros documentos particulares, sem controlo judicial prévio que o reconheça, sem garantias de autenticidade e que prevalecem sobre as legítimas expectativas dos particulares na manutenção da força executiva desses documentos.
17- A única onerosidade imposta ao Recorrido consubstancia-se na utilização prévia da injunção para obtenção do título executivo, transferindo para este procedimento a possibilidade do devedor provar a não existência da dívida ou outros factos extintivos ou modificativos do invocado direito de crédito, quando essa defesa podia ser exercida na acção declarativa subsequente à execução.
18- A partir da publicação da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que entraria em vigor em 1 de Setembro de 2013, o Recorrido sabia, ou não podia ignorar, que não podia servir-se desse documento como título executivo, pelo que deveria ter instaurado a acção executiva pelo menos até 31 de Agosto de 2013, isto é, não sacrificava essa expectativa se intentasse, como devia, a acção executiva durante o período da vacatio legis .
19- Sempre se dirá que a mera declaração de inconstitucionalidade feita pelo Tribunal “a quo” levante um problema de maior dimensão, que se prende com o saber qual o regime normativo a aplicar-se a estas execuções. É que do elenco dos títulos executivos constantes no actual CPC foram afastados como títulos executivos os documentos particulares. Ora, considerando até a unidade do sistema normativo todo o processo executivo está pensado e moldado exclusivamente para aqueles títulos que actualmente se reconhecem na lei, sendo manifestamente inadequado para o processamento daqueles documentos particulares.
20- O art. 703º do Novo CPC, na parte em que elimina os documentos particulares do elenco dos títulos executivos, quando conjugado com o art. 6º, nº3 da Lei nº 41/2013, e interpretado no sentido de se aplicar aos documentos particulares anteriormente dotados de exequibilidade pela al. c), do nº1 do art. 46º, do anterior CPC, não é de considerar inconstitucional por violação do princípio da segurança e da protecção da confiança.
21- A douta Decisão em referência violou, desta forma, os artigos 703.º e 726.º, n.º 2, al. a) do C.P.C.

NESTES TERMOS, e com o douto suprimento deste Venerando Tribunal:
- revogando a douta decisão em recurso e indeferindo liminarmente o requerimento executivo por manifesta falta de título executivo
Vªs. Exªs. farão, como sempre, a habitual J U S T I Ç A»

3. Do mérito do recurso

O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º
4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigo 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se unicamente em saber se um documento particular consistente num reconhecimento unilateral de dívida, constituído na vigência do CPC 1961 (artigo 46.º, alínea c), pode suportar uma execução instaurada após a entrada em vigor do novo CPC, que suprimiu aquele tipo de documento particular do elenco dos títulos executivos (cfr. artigo 703.º).

Trata-se de questão de particular importância, atenta a relevância do título executivo na economia da execução: sem título executivo não há execução que possa subsistir. O título executivo é pressuposto processual específico da acção executiva, a chave que abre as portas da acção executiva, nas palavras de Castro Mendes (cfr. Abrantes Geraldes, Título Executivo, em A Reforma da Acção Executiva, Themis, ano IV, n.º 7, pg. 35).

Com efeito, o artigo 10.º, n.º 5, CPC, reitera que toda a execução tem por base um título pelo qual se determinam os fins e os limites da acção executiva.

Da aplicação da lei processual no tempo

Nos termos da alínea c) do CPC 1961, podiam servir de base à acção executiva os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.
O artigo 703.º CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que estabelece o catálogo taxativo dos títulos executivos, omitiu aquela disposição, retirando aos documentos particulares a força executiva que dispunham face à lei antiga.
No domínio do direito processual vigora a regra da aplicação imediata da lei nova, atento o seu carácter instrumental: não atribui nem retira direitos; destina-se tão só a permitir a realização efectiva do direito substantivo, regulando os termos em que as pessoas podem fazer valer o direito que a lei substantiva lhes reconhece (Antunes Varela, et al., Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pg. 42 e ss., e Pais Amaral, Direito Processual Civil, Almedina, 12.ª edição, pg. 30).
A aplicação imediata da lei nova justifica-se ainda por, pelo menos no plano dos princípios, traduzir um melhor direito, a concepção actual do legislador, a quem é reconhecida uma ampla margem de conformação do sistema jurídico.
No mesmo sentido se pronunciou o Assento n.º 9/99, José Martins da Costa. Estava em causa a redacção atribuída ao artigo 51.°, n.° 1, do CPC, pelo Decreto-Lei n.° 242/85, de 7 de Julho, que dispensou o reconhecimento notarial da assinatura do devedor nas letras, livranças e cheques, como títulos executivos, que era de aplicação imediata, mesmo em execução instaurada no domínio da anterior à redacção dessa norma. O assento respondeu afirmativamente a esta questão, ponderando que
«O citado artigo 51.°, n.° 1, é uma típica norma de direito processual. Para além de incluída no Código de Processo Civil, ela não interfere com a validade e força probatória dos títulos de crédito nem com o conteúdo ou substância dos direitos subjectivos por eles conferidos, o que é regulado pela lei substantiva, mas apenas com o modo de realização ou tutela desses direitos, o que é próprio da lei processual.
Na verdade, a definição dos requisitos de um documento, para que possa valer como título executivo, está directamente relacionada com esse segundo aspecto, ou seja, com o meio processual adequado à defesa do direito material (cf. A. Castro, Acção Executiva..., p. 52).»
Não deixou o legislador, contudo, de consagrar norma transitória relativamente às acções executivas.
Assim, nos termos do artigo 6.º, n.º 3, do diploma preambular, o disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor.

Da não retroactividade da lei nova
Contrariamente ao que parece resultar do despacho recorrido, não estamos aqui perante uma situação de retroactividade da lei processual, como explica Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, de 2014.03.25,
«Para que se pudesse falar de retroactividade seria necessário que o art. 6.º, n.º 3, L 41/2013 tivesse retirado carácter executivo a títulos que já tinham produzido a sua eficácia executiva no passado, isto é, teria sido necessário que o preceito tivesse atingido execuções baseadas em títulos que deixaram de o ser de acordo com o nCPC. Não é evidentemente isto que resulta do art. 6.º, n.º 3, L 41/2013: o que decorre deste preceito é uma aplicação imediata e para o futuro do novo elenco dos títulos executivos, deixando intocados todos os efeitos que os agora ex-títulos produziram no passado. A seguir-se a concepção de retroactividade utilizada no acórdão, haveria que qualificar como retroactiva toda a lei que afectasse qualquer situação duradoura que transitasse do domínio da lei antiga para o da lei nova (como, por exemplo, uma nova lei sobre o regime do arrendamento urbano que fosse aplicável aos contratos subsistentes no momento da sua entrada em vigor)».
Esta solução se coaduna com o princípio de que a exequibilidade dos documentos deve ser aferida de acordo com a lei vigente à data da instauração da execução., como afirmou Lebre de Freitas, Blog do IPPC, de 2014.03.26, sublinhando que
«não se trata da produção de efeitos dum ato jurídico, mas da opção do legislador sobre a suficiência de documento que permita prescindir da ação declarativa (ou, como bem nota o Prof. Teixeira de Sousa, da injunção). Também quando se alarga o elenco dos títulos é a nova lei – e sempre se considerou ser – de aplicação imediata (a não confundir com retroatividade)»
Se o artigo 6.º, n.º 3 do diploma preambular ao CPC afastou a aplicação retroactiva da lei nova, não se pronunciou, contudo, sobre a questão que nos ocupa: se um documento particular, que importou a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, e que constituía título executivo à luz do artigo 46.º, alínea c), CPC 1961, pode suportar uma execução instaurada após a entrada em vigor do novo CPC, que descaracterizou aquele documento, enquanto título executivo.
Trata-se de uma situação de retrospectividade ou retroactividade inautêntica, que ocorre «quando a lei nova só reclama vigência ex nunc, ainda que com virtualidade de afectar direitos, situações ou posições que, embora constituídos no passado por força ou com a cobertura da lei anterior, prolongam os seus efeitos no presente» (Jorge Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, pgs. 265-6).
Mais adiante refere este autor que «Nessas circunstâncias, a resistência à retroactividade apresenta uma menor intensidade normativa: o juízo de inconstitucionalidade dependerá essencialmente de uma ponderação de bens ou interesses em confronto».

Da (des)conformidade do novo regime com a Constituição
A justificação da solução legal encontra-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, onde se lê:
«É conhecida a tendência verificada nas últimas décadas, com especial destaque para a reforma de 1995/1996, no sentido de reduzir os requisitos de exequibilidade dos documentos particulares e, com isso, permitir ao respetivo portador o imediato acesso à ação executiva. Se é certo que tal solução teve por efeito reduzir significativamente a instauração de ações declarativas, a experiência mostra que também implicou o aumento do risco das execuções injustas, risco este potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório. Associando-se a isto uma realidade que, embora estranha ao processo civil, não pode ser ignorada, como seja o funcionamento um tanto desregrado do crédito ao consumo, suportado em documentos vários cuja conjugação é invocada para suportar a instauração de acções executivas, é fácil perceber que a discussão não havida na acção declarativa (dispensada a pretexto da existência de título executivo) acabará por eclodir mais à frente, em sede de oposição à execução. Afigura-se controverso o progressivo aumento do elenco de títulos executivos e o aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório.
Considerando-se que, neste momento, funciona adequadamente o procedimento de injunção, entende-se que os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base no título assim formado. Como é evidente, se houver oposição do requerido, isto implicará a conversão do procedimento de injunção numa ação declarativa, que culminará numa sentença, nos termos gerais. Deste modo, relativamente ao regime que tem vigorado, opta-se por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem. Ressalvam-se os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respetivo credor poder aceder logo á via executiva. Ainda dentro dos títulos de crédito, consagra-se a sua exequibilidade como meros quirógrafos, desde que sejam alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente.»
Por outras palavras, com a restrição do elenco dos títulos executivos o legislador pretendeu pôr cobro à proliferação dos embargos de executado com a finalidade de discutir o documento particular e o crédito subjacente.
O Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 847/2014, de 2014.12.03, Maria de Fátima Mata-Mouros, (e no acórdão n.º 162/2015, de 2014.12.03, que praticamente reproduziu aquele), julgou inconstitucional a norma resultante dos artigos 703.º CPC e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Julho, na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46º, nº 1, alínea c), CPC 1961.
Este Tribunal considera ter ocorrido uma mudança inesperada da ordem jurídica com a qual os destinatários das normas não podiam contar face ao alargamento do elenco dos títulos executivos a que se vinha assistindo através da diminuição das formalidades a que estavam sujeitos os documentos particulares, abrindo a porta da acção executiva sem a intermediação da acção declarativa.
Aceitando que o legislador tem a liberdade de alterar os regimes jurídicos, reconhece que a opção legislativa em apreço assenta num interesse legítimo e relevante, porque potencia a segurança jurídica e tem a virtualidade de evitar situações injustas, afirma que a garantia de acesso aos tribunais consagrada no artigo 20.º da CRP não garante o direito a um determinado tipo de processo, in casu , a acção executiva sem necessidade de recurso à acção declarativa prévia a fim de obter o título executivo.
No entanto, desloca a problemática da constitucionalidade da restrição dos títulos executivos para a da aplicação desse regime aos títulos constituídos ao abrigo da lei antiga, contrapondo o interesse público em evitar execuções injustas e o interesse particular do credor em manter a força executiva do documento que titula o crédito.
Lê-se no acórdão do Tribunal Constitucional:
Nesta ponderação importa reter que o risco de instauração de execuções injustas por parte do credor munido de simples documento constitutivo de dívida assinado pelo devedor pode ser - e tem efetivamente sido –, contrabalançado por variadas soluções legislativas. Desde logo, a previsão da possibilidade de deduzir oposição à execução (embargos de executado) a garantir o pleno exercício do contraditório por parte do executado (artigo 816.º do CPC antigo e artigo 731.º do CPC novo). Ou a faculdade concedida ao juiz de, na sequência de dedução de oposição à execução com simples fundamento na falta de autenticidade da assinatura imputada ao executado, ordenar a suspensão da execução caso seja apresentado documento que constitua indício de prova revelador da viabilidade da oposição (artigo 818.º do CPC antigo e artigo 733.º do CPC novo) ou ainda a penalização do exequente que atue sem a prudência exigível (artigo 819.º do CPC antigo).
Diferentemente, a imprevista eliminação de exequibilidade a um documento que anteriormente era dotado de força executiva pode deixar o credor em sérias dificuldades (senão mesmo privado de meios) para ver satisfeito o seu direito de crédito.
Ainda que subsistam outras vias de acesso ao direito, como o processo de injunção ou a ação declarativa, o credor deixa de poder contar com a presunção de prova da dívida que lhe oferecia o documento munido de força executiva.
(…)
Se em si mesma esta perda do benefício de uma presunção da prova de um direito se contém na liberdade de conformação do legislador, a incidência do novo regime jurídico sobre situações jurídicas constituídas no passado exige, todavia, uma ponderação de interesses contrapostos, constituídos, por um lado, pelas expetativas dos particulares na continuidade do quadro legislativo vigente e, por outro, pelas razões de interesse público que justificam a alteração das soluções legislativas. Nessa ponderação assume especial relevância a lesão ao interesse particular legítimo, na medida em que esta constitui uma ablação do valor de título executivo do documento particular que possui. A esta relevância da lesão do interesse particular contrapõe-se a prossecução de um interesse público de particular relevância que pode ser alcançado com um nível similar de eficácia através de meios menos lesivos ou numa escala temporal maior.
Assim, no juízo de ponderação que é imposto pela proteção da confiança, confronta-se e valora-se o efeito negativo sobre o interesse do credor particular (que pode ficar sem possibilidade de fazer valer o seu crédito), com um interesse público, que pode ser alcançado por outras medidas legislativas e seguramente também num horizonte temporal mais alargado. Ora, neste caso, a solução justa desta ponderação feita à luz do princípio da tutela da confiança impõe que a implementação da medida se faça de forma diferida no tempo. Aplicá-la de imediato, é ultrapassar, de forma excessiva, a medida de sacrifício imposto aos interesses particulares atingidos, uma vez que bastaria a previsão de um regime transitório adequado para acautelar as expetativas legítimas dos titulares de títulos executivos que perderam essa natureza, sem descurar o interesse público que reside na eliminação de execuções injustas».

Miguel Teixeira de Sousa, Títulos executivos perpétuos?, in Cadernos de Direito Privado, n.º 48, pg. 13 e ss., questiona o entendimento do Tribunal Constitucional, que entende enfermar de unilateralidade, sustentando que a ponderação tem ser feita entre o interesse do credor e o interesse do devedor : o interesse do credor em conservar a exequibilidade do título, que lhe dá acesso directo à via executiva, e o interesse do devedor em não ser sujeito a uma execução injusta.
Para este processualista o que se pode questionar é se se pode fundamentar a sobrevigência de um título executivo com o argumento de que, se a execução nele baseada for injusta, há soluções legais para obviar à procedência dessa execução.
Na sua óptica, a resposta tem de ser negativa, pois isso implica desconsiderar em absoluto os interesses do devedor, o outro sujeito do título executivo. No limite, seguindo-se o entendimento do Tribunal Constitucional, seria conforme a Constituição atribuir força executiva a qualquer documento, por mais duvidoso que fosse, já que o sistema jurídico contém instrumentos que permitem obviar às execuções injustas.
Levanta mesmo a questão da inconstitucionalidade da fundamentação do acórdão do Tribunal Constitucional, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º CRP.
Afigura-se, na sequência do exposto, ser mais curial confrontar os interesses contrapostos do credor e do devedor, para se aferir da (des)conformidade com a Constituição da alteração legislativa em causa, sendo certo que subjacente ao interesse público de evitar execuções injustas se pode descortinar o interesse do executado em não ser submetido a essa execução.
Existe acordo quanto à liberdade de conformação do legislador, e que a alteração legislativa em causa é susceptível de comprometer as expectativas dos credores.
No entanto, só haverá inconstitucionalidade se a medida desse sacrifício for desproporcionada, excessiva («inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa»).
Não podemos acompanhar o Tribunal Constitucional na apreciação que faz do interesse do credor.
Com efeito, e contrariamente ao que resulta do acórdão sob análise, o credor não fica privado da presunção de prova do direito de crédito, pois a alteração legislativa não belisca o regime substantivo: a força probatória dos documentos particulares encontra assento nos artigos 373.º e ss., maxime, 376.º CC).
Acresce que o reconhecimento de dívida enquanto fonte de obrigações tem um regime especial constante do artigo 458.º, n.º 1, CC: Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
Significa isto que o credor, mesmo no âmbito da acção declarativa a que terá de recorrer a fim de obter título exequível, goza da presunção de existência do seu direito, cabendo ao réu ilidir a presunção.
O credor não perde a possibilidade de fazer valer o seu crédito — apenas não poderá avançar directamente para a acção executiva. Não se trata de sacrifício insuportável, pois como o próprio Tribunal Constitucional reconhece, a garantia de acesso ao direito não abarca o direito a um determinado tipo de processo.
Na sentença recorrida faz-se assentar o juízo de inconstitucionalidade no deficiente regime da injunção. Sem questionar o acerto das considerações tecidas a este propósito, elas não logram aplicação no caso dos autos, pois uma confissão de dívida nunca poderá dar lugar a uma injunção, instrumento reservado aos contratos.
Tanto basta para salvaguardar a conformidade com a Constituição da alteração legislativa em causa: a necessidade de recurso à acção declarativa para obtenção de um título executivo não é excessivamente onerosa para o credor.

4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação procedente, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se a extinção da execução.
Custas pelo apelado.

Porto, 15 de Setembro de 2015
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
José Igreja Matos