Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
326/11.8GDVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: ARMA PROIBIDA
BASTÃO
Nº do Documento: RP20150114326/11.8GDVFR.P1
Data do Acordão: 01/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Não integra o conceito de “bastão” previsto no artº 86º 1 d) L 5/2006 de 23/2 o tradicional bastão de madeira com 42,5 cm de comprimento vendido em feiras tradicionais.
2- Naquele conceito cabem apenas os bastões tradicionalmente usados pelas forças policiais para serem usados quando é necessário o uso da força para manutenção da ordem.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 326/11.8GDVFR.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira com o nº 326/11.8GDVFR, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferida sentença, depositada em 11.04.2014, que condenou o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. no artº 86º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006 de 23.02, na redação introduzida pela Lei nº 17/2009 de 06.05 e artºs. 17º nº 2 e 73º ambos do Código Penal, na pena de 30 trinta dias de multa à taxa diária de € 15,00.
Inconformado com a sentença condenatória, dela veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. Tendo em conta que a versão dos factos dada pelo arguido relativamente à questão da detenção e posse do bastão foi considerável credível pelo Tribunal, com exceção da versão pelo mesmo dada a propósito da razão pela qual mantinha dentro do veículo o mesmo bastão, ainda se deveria dar como provado que “O bastão foi oferecido ao arguido, por amigos, nas C…”;
2. O bastão apreendido ao arguido, atentas as suas características conhecidas, não permite se conclua com o grau de certeza exigível, poder ser usado como arma. Bem pelo contrário,
3. Tudo indica se deva tratar de um objeto puramente decorativo, uma prenda ou recordação de um casamento;
4. A provada ignorância do arguido relativa à circunstância de a posse do “bastão” ser ilícita, afigura-se-nos ser desculpável;
5. Nada justificando que a mera circunstância de ser titular de uma licenciatura torne tal ignorância indesculpável, desde logo porque o referido bastão foi adquirido e oferecido ao arguido num local público, onde qualquer cidadão bem informado sempre presumirá que tudo quanto lá puder comprar é inteiramente lícito;
6. Bem pelo contrário, a sua juventude torna tal ignorância bem mais aceitável e compreensível, dada a inexperiência que sempre lhe é associada;
7. A juventude do arguido, o seu bom comportamento anterior e até a sua formação académica, desaconselham de todo em todo o estigma da condenação de que ora se recorre;
8. Como última ratio que é, o direito penal não deve intervir em tais circunstâncias, estigmatizando um jovem cujo comportamento anterior é absolutamente impoluto.
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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo pela respetiva improcedência.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta limitou-se a apor o seu visto.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
a) No dia 5 de Abril de 2011, pelas 14,45 horas, na Estrada nacional nº ., em …, Santa Maria da Feira, o arguido B… conduzia o veículo com a matrícula ..-JP-.., quando foi embatido pelo veículo com a matrícula ..-DB-.., este conduzido pelo ofendido D….
b) Porque os mesmos não se entenderam quanto às diligências a adotar na sequência do acidente, pretendendo o arguido chamar a polícia para tomar conta da ocorrência, o ofendido decidiu abandonar o local ao volante da sua viatura e, nesse momento, ao passar pelo arguido, este último, de modo não apurado, desferiu uma pancada na porta traseira direita do veículo daquele.
c) De imediato, o ofendido imobilizou a sua viatura e saiu do seu veículo a fim de confrontá-lo com o que acabara de fazer.
d) Então, o arguido retirou do interior da sua viatura um bastão em madeira, com 42,5 cm de comprimento, que exibiu ao ofendido, e este último de imediato voltou a entrar na sua viatura e abandonou aquele local.
e) O arguido, ao agir da forma acima descrita, usando o aludido bastão para se defender de uma potencial agressão do queixoso, não obstante estar perfeitamente ciente das suas concretas características e de que o mesmo se trata de um instrumento de agressão, atuou de forma livre, deliberada e consciente.
f) O bastão supra descrito tinha a inscrição “regalo de boda” e é um objeto tradicionalmente vendido nas “C…”, festividade que ocorre em … no mês de Setembro.
g) Quando exibiu o dito bastão ao queixoso, o arguido estava convencido que aquele vinha no seu encalço para o agredir.
h) À data dos factos o arguido não tinha antecedentes criminais.
i) O arguido é licenciado em engenharia informática pelo ISMAI, no regime pós-Bolonha e, atualmente, exerce as funções de consultor de sistemas, auferindo um vencimento de € 711 mensais.
j) Vive com os seus progenitores não contribuindo para a economia doméstica.
k) É proprietário de uma viatura automóvel, da marca “Audi”, modelo “..”.
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Foram considerados não provados os seguintes factos: (transcrição)
1. O arguido agiu ciente que a detenção e uso de tal instrumento não é permitida e que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
A decisão teve por base a prova produzida em audiência, nomeadamente:
As declarações do arguido, o qual, sem embargo ter assumido um discurso desculpabilizante, acabou por assumir que efetivamente transportava no interior da referida viatura automóvel o descrito bastão de madeira, no qual pegou quando se viu na iminência de ser agredido pelo queixoso. Todavia, o arguido aduziu que nem sequer se lembrava que tinha tal objeto no interior do veículo por si conduzido, tendo-lhe sido oferecido por uns amigos por ocasião das C…, referindo ainda que não tinha consciência de que tal objeto se tratava de uma arma de agressão e desconhecer que era proibida a sua detenção. Ora, diga-se que quanto ao “esquecimento” de tal objeto no interior do veículo automóvel não se teve por inteiramente credível a versão do arguido, já que não se crê que alguém se esqueça de um objeto como o descrito no interior de uma viatura automóvel utilizada diariamente no desenvolvimento da atividade profissional, de todo o modo, o que se veio a dar como provado restringiu-se à utilização em si mesma do dito objeto pelo que, nessa altura, seguramente que o arguido se recordou da existência do bastão no interior do seu veículo. Para além do mais, necessariamente tomou também consciência de que o bastão podia ser utilizado como uma arma quando lhe pegou com o fito de se defender, isto é, para o utilizar como arma de defesa (factualidade que o próprio reconheceu). No mais, como já se referiu, o arguido descreveu a factualidade dada como provada, designadamente o circunstancialismo em que ele utilizou o descrito objeto, mormente os seus antecedentes.
O arguido foi ainda ouvido quanto às suas condições pessoais.
A testemunha D…, muito embora tenha revelado algum distanciamento dos factos, desistindo da queixa que apresentara contra o arguido, o certo é que revelou ainda alguma incompatibilidade para com o mesmo, não se afigurando inteiramente sinceras as suas declarações, sendo, por outro lado, patente a tentativa de se eximir de qualquer responsabilidade (nomeadamente na explicação – não consistente – da razão pela qual teria abandonado o local do acidente de viação contra a vontade do arguido e na dinâmica em que tudo teria ocorrido).
Por seu turno, a testemunha E…, à data dos factos em funções no Destacamento de Trânsito da Guarda Nacional Republicana de São João da Madeira, confirmou que se deslocou ao local do acidente de viação em apreço, na sequência de ter sido chamado, atestando ainda que aí apenas encontrou o arguido que lhe transmitiu que o outro interveniente tinha fugido do local, tendo elaborado a participação de acidente constante de folhas 31 a 33.
Foi ainda considerado o teor do auto de busca e apreensão de folhas 53 a 57, das fotografias de folhas 58 a 59, e do auto de exame direto de folhas 72 a 73.
As testemunhas F…, colega de trabalho e amigo do arguido (há sensivelmente dois anos), e G…, superior hierárquico do arguido na sociedade onde ambos trabalham, foram ouvidas quanto às condições morais e pessoais do arguido, sendo que quanto à ausência de antecedentes foi sopesado o teor certificado de registo criminal de folhas 126.
Relativamente aos factos não provados assim o resultaram pela circunstância de em sede de audiência de julgamento não ter sido produzida prova suficientemente consistente e suscetível de fundar a convicção do Tribunal quanto à sua veracidade.
Com efeito, nas suas declarações, o arguido negou perentoriamente a consciência da proibição penal da detenção do descrito instrumento.
Ora, sem embargo se reconhecer pouca plausibilidade no relato do arguido, o certo é que, quanto a este ponto concreto não existem quaisquer elementos que possam sustentar uma convicção em sentido inverso, ou seja, que apontem para uma total falsidade do relato do arguido, tanto mais que efetivamente é do conhecimento geral que tal objeto é vendido nas aludidas festividades.
Concluindo. Perante uma insuficiência probatória que redundou numa intransponível incerteza a solução não poderia deixar de ser favorável ao arguido em obediência aos mais fundamentais princípios de processo penal.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Como resulta das motivações do recurso e das respetivas conclusões, o recorrente delimita o objeto do recurso à impugnação da matéria de facto, à qualificação jurídica do instrumento apreendido ao arguido e à falta de consciência da ilicitude por parte do recorrente.

Considerando que o recorrente questiona a qualificação jurídica dos factos efetuada na decisão sob recurso, iremos apreciar em primeiro lugar a referida questão, aderindo à posição que vem sendo defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça[3], de que o tribunal superior pode sempre conhecer da qualificação jurídica, estando em causa matéria de direito, pelas implicações que pode ter na medida da pena, ressalvada a proibição da “reformatio in pejus” e também, como afirmou o Ac. desta Relação do Porto de 06.05.2009[4], sem necessidade de qualquer comunicação prévia desde que tal alteração não prejudique a defesa do arguido.
Como resulta da matéria de facto provada, “o arguido retirou do interior da sua viatura um bastão em madeira, com 42,5 cm de comprimento, que exibiu ao ofendido […]” e “ao agir da forma descrita, usando o aludido bastão para se defender de uma potencial agressão do queixoso, não obstante estar perfeitamente ciente das suas concretas características e de que o mesmo se tratava de um instrumento de agressão, atuou de forma livre, deliberada e consciente”.
Perante estes factos entendeu o tribunal a quo que o objeto examinado a fls. 72, encontrado na posse do recorrente, se integrava na categoria das armas proibidas previstas na al. d) do artº 86º da Lei nº 5/2006 de 23.6, alterada pela Lei nº 17/2009 de 06.05 – bastão ou instrumento sem aplicação definida, que possa ser usado como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse.
Dispõe o artº 86º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006 de 23.02, na redação introduzida pela Lei nº 17/2009 de 06.05 e Lei nº 12/2011 de 27.04: «Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo: arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do nº 7 do artigo 3º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do nº 7 do artigo 3º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, munições, bem como munições com os respetivos projéteis expansivos, perfurantes, explosivos ou incendiários, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias».
Atenta a diversidade de objetos englobados no preceito, bem como a diversidade de modalidades de ação típica, importa determinar se o “bastão em madeira com 42,5 cm de comprimento” apreendido ao arguido/recorrente se integra nos objetos cuja detenção é criminalmente censurada.
Socorrendo-nos do significado corrente da palavra “bastão”, dir-se-á que segundo a definição da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, “bastão” é um “pau que se pode trazer na mão como arrimo ou arma de defesa”.
Já o Dicionário da Porto Editora define “bastão” como espécie de bengala para apoio ou para servir de arma ofensiva ou defensiva”, “bordão”, “báculo”. Segundo este dicionário, “bordão” é um “pau que serve para apoio de quem caminha”, “cajado”.
Para o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, “bastão” é “uma vara de madeira que se traz na mão e que serve de apoio ou de arma ofensiva ou defensiva”, o mesmo que bordão.
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa “bastão” é uma vara de madeira geralmente cilíndrica, que se leva na mão para auxiliar a marcha, para servir de arma, etc., pedaço de vara usado como suporte.
Contudo, como se refere no Ac. Rel. Guimarães de 19.05.2014[5] «violaria o princípio da legalidade, considerar o significado corrente da palavra para determinar o conceito de “bastão” usado na norma da al. d) do artº 86º da Lei nº 5/2006. A legalidade dos ilícitos é conseguida através da técnica da tipicidade, que consiste em descrever, de forma clara, precisa e rigorosa, a conduta ou o facto considerados criminalmente reprováveis. Esta descrição é aquilo que constitui o que se chama “tipo” e assim aquela conduta ou aquele facto são chamados “conduta típica” ou “facto típico” – Teresa Beleza, Direito Penal, 2ª ed., Volume I, pag. 73. Fazer coincidir o conceito usado na norma com o significado que o termo tem na linguagem comum, equivaleria a englobar no conceito um número indeterminado de objetos que, sendo indispensáveis para múltiplas atividades humanas lícitas, podem igualmente ser usados como instrumentos de agressão. É o caso de bengalas, varas, cajados, cabos de enxada, bordões dos peregrinos de Santiago, etc. etc.. Isso teria como consequência deixar à decisão subjetiva e arbitrária de cada aplicador da lei, o juízo, em cada caso concreto, sobre se determinado objeto deve ser considerado «bastão», para o efeito da lei penal, ou apenas um instrumento de uso comum, o que afrontaria o princípio da legalidade. “O critério decisivo para aferir do respeito pelo princípio da legalidade (…) residirá sempre em saber se (…) do conjunto da regulamentação típica deriva ou não uma área e um fim de proteção da norma claramente determinados” – Figueiredo Dias, Direito Penal, tomo I, ed. 2004, pag. 174».
Por outro lado, mesmo considerando o sentido vulgar da palavra, dificilmente se poderia considerar um objeto de madeira com 42,5 cm de comprimento como um “bastão” a que se atribui a função de arrimo, encosto, amparo, bengala para apoio. Um objeto tão curto apenas poderia ter tal utilidade para pessoas de estatura mutio inferior ao normal.
Concordamos com o significado defendido no aresto citado de que os objetos enquadráveis no conceito normativo em causa só poderão ser os vulgarmente transportados à cintura pelos membros das forças policiais, para serem usados quando é necessário o uso da força para manutenção da ordem. Trata-se de objetos que, tal como os “bastões elétricos ou extensíveis”, também previstos no mesmo segmento normativo, são de uso exclusivo das Forças Armadas ou forças e serviços de segurança – cfr. artº 3º nºs 1 e 2 al. i) da Lei nº 5/2006. Trata-se de objetos a que o legislador não reconhece outra utilidade socialmente admissível, tendo vedado aos particulares a sua detenção, criminalizando a conduta.
Se assim não for, poder-se-á cair no absurdo de considerar qualquer pedaço de madeira ou outro material com potencialidade ofensiva, independentemente do respetivo comprimento ou espessura, como um bastão, enquadrável na previsão da al. d) do artº 86º da Lei nº 5/2006, sendo por isso criminalmente punível a respetiva detenção. E, consequentemente, teria de se considerar que incorreria na prática do crime de tráfico de armas p. e p. no artº 87º da Lei nº 5/2006, quem se dedicasse à venda de tais objetos. E o certo é que, no caso sub judice, se considerou que o obejto apreendido ao arguido é tradicionalmente vendido nas “C…” festividade que ocorre em … no mês de Setembro.
É óbvio que o referido objeto pode ser usado como arma de agressão. E, como tal, poderá ser relevante para eventual “agravação” do facto ilícito típico com ele cometido. Como se sabe, um determinado objeto pode ser considerado uma arma para efeitos do Código Penal[6], mas não se enquadrar no conceito de “arma proibida”.
Conclui-se assim que, independentemente do formato e do comprimento do objeto apreendido ao arguido, o mesmo não se integra no conceito de “bastão” a que alude a al. d) do artº 86º da Lei nº 5/2006.

Poderá, porém, o objeto em causa ser considerado um instrumento sem aplicação definida que possa ser usado como arma de agressão e o portador não justifique a sua posse, para efeitos de integração no conceito de arma proibida do artº 86º al. d) da Lei nº 5/2006?
Para que um determinado objeto se enquadre na previsão legal, no referido segmento normativo, exige a lei a verificação cumulativa de três requisitos:
- que se trate de um instrumento sem aplicação definida;
- que possa ser usado como arma de agressão;
- e que o seu portador não justifique a sua posse.
Como se refere no Ac. Rel. Évora de 16.12.2008[7] «a amplitude do conceito de arma proibida impõe uma interpretação se não restritiva, pelo menos declarativa, sob pena de todo e qualquer objeto se poder transformar em arma. A caracterização de um objeto como arma terá, pois, a ver com as suas características e com a utilização ou afetação normal delas, com a idoneidade dessa utilização ou afetação normal como meio de agressão. Mas o uso desviado das propriedades do objeto não pode servir como critério para o definir como arma. Um cinto, podendo embora ser brandido de forma a com ele se infringirem danos físicos severos, decerto ninguém o considerará uma arma. Mesmo uma navalhinha de bolso, daquelas de descascar maçãs, não é “promovida” a arma por haver a possibilidade de ser utilizada como instrumento ofensivo. E um guarda-chuva, pode ser aproveitado como instrumento de agressão, quiçá mortal, se utilizada a sua ponteira metálica, sem que seguramente ninguém defenda que é uma arma. Também assim uma bengala, podendo embora servir para uma agressão (as famosas “bengaladas” dos romances de Eça), não é seguramente uma arma. A lei, no citado art. 4º do DL nº 48/95, admite, porém, uma extensão do conceito de arma a outro tipo de objetos, por meio da expressão “ainda que de aplicação definida”. Essa expressão parece contemplar objetos cuja “aplicação definida” não seja a de meio de agressão, mas que, subtraídos ao contexto normal da sua utilização, podem ser integrados no conceito de arma. Será esse o caso das facas de cozinha, por exemplo. Nestes casos, a perigosidade dos objetos é evidente e só a sua integração no contexto espacial da sua utilidade é que lhes retira as características de arma.
Poderemos então concluir que arma não é (talvez seja preferível, definir o conceito negativamente, por exclusão) o objeto que, podendo excecionalmente ser aproveitado para praticar uma agressão, não foi fabricado com essa finalidade nem é essa a sua utilidade normal.
Porém, a par desses objetos que, apesar de terem uma aplicação definida, podem ver o seu uso normal desviado para uma finalidade diversa, servindo como meios de agressão [constituem arma para efeitos do Código Penal, mas não se enquadram no conceito de arma proibida], existem outros instrumentos que não têm aplicação definida e podem igualmente ser utilizados como meio de agressão.
Relativamente a estes últimos o legislador faz depender a verificação do crime de um requisito acrescido, que consiste em o seu portador não justificar a sua posse.
No caso em apreço, a pág. 7 da sentença recorrida, na parte respeitante ao enquadramento jurídico-penal, diz-se que: “certo é também que o referido instrumento, se não for justificada a sua posse (eventualmente decorativa) é um objeto com apenas outra aplicação definida, a defesa pessoal, ou seja, é uma arma, certamente utilizável como arma de agressão”.
Trata-se, porém, de consideração que não tem suporte factual na matéria de facto provada, como se pode concluir pela simples leitura da mesma.
Sendo a falta de justificação para a posse um elemento constitutivo do tipo, que já nem sequer constava da acusação, não poderia ser conhecido em julgamento[8].
Conclui-se, assim que a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito proferida. Contudo, não se trata de vício da sentença a que alude o artº 410º nº 2 al. a) do C.P.P., uma vez que o facto supra referido nem sequer constava da acusação, como se disse.
Por força do princípio do acusatório e da vinculação temática, com consagração constitucional (artº 35º nº 2 da CRP), o tribunal só pode investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos pela acusação. É esta que define e fixa, perante o Tribunal o objeto do processo. É ela que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e é nela que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da consunção do objeto do processo penal.
Não constando da acusação todos os elementos objetivos do tipo (em especial a falta de justificação para a posse do instrumento), e não se tratando, como se disse, de vício da sentença suprível nos termos do artº 426º do C.P.P., embora por razões diferentes das invocadas pelo arguido, não pode a condenação pela prática do crime de detenção de arma proibida manter-se.
Fica assim prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, absolvem o arguido B… do crime de detenção de arma proibida que lhe era imputado.
Sem custas.
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Porto, 14 de Janeiro de 2015
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Cf., por todos, Ac. do STJ de 24.02.2010, Proc. nº 59/06.7GAPFR.P1.S1, Cons. Raul Borges e disponível em www.dgsi.pt.
[4] Proferido no Proc. nº 104/03.8GAVFR.P1, relator Manuel Braz, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Proferido no Proc. nº 464/11.7GBGMR.G2, Des. Fernando Monterroso, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Como dispõe o artº 4º do Dec-Lei nº 48/95 de 15.03 “Para efeito do disposto no Código Penal, considera-se arma qualquer instrumento, ainda que se aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado para tal fim”.
[7] Proferido no Proc. nº 1878/08-1, Des. Martinho Cardoso, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Cfr., neste sentido, Ac.Rel. Coimbra de 30.06.2010, Proc. nº 1229/08.9GBAGD.C1, Des. Paulo Valério e Ac. Rel. Coimbra de 28.09.2011, Proc. nº 234/09.2GBOBR.C1, Des. Olga Maurício, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.