Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
755/04.3TAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: CRIME DE DESCAMINHO
ELEMENTOS DO TIPO OBJECTIVO
Nº do Documento: RP20141105755/04.3TAVFR.P1
Data do Acordão: 11/05/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A ação típica do crime de Descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público, do art. 355.º, do Cód. Penal, consiste em destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer forma, subtrair a coisa arrestada, apreendida ou objeto de providência cautelar.
II – A destruição, a danificação ou a inutilização, total ou parcial, abrange todos os atentados à substância ou à integridade física da coisa que a tornem inútil do ponto de vista que justificava a sua custódia oficial.
III – No conceito “subtração ao poder público” cabem tão só as condutas que sonegam a coisa ao poder público sem que, no entanto, seja exigida uma intenção de apropriação.
IV – A subtração traduz-se na apropriação da coisa, com o reverso do poder público dela ficar desapossado, nomeadamente, através de atos em que o agente extravia a coisa, a esconde ou a entrega a terceiro.
V – A acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo e dos poderes de cognição do tribunal, deve precisar a factualidade integradora da conduta típica do crime imputado.
VI – “Desfazer-se dos bens” não equivale a afirmar que houve destruição, danificação inutilização ou subtração dos referidos bens, sendo certo que a prova de qualquer dessas modalidades da ação é indispensável para se considerar preenchido o tipo objetivo do crime.
VII – Da mera não entrega, da falta de apresentação dos bens ou não resultando provado o destino dado pelo arguido aos bens não pode deduzir-se que houve descaminho.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 755/04.3TAVFR.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira com o nº 755/04.3TAVFR, foi submetida a julgamento a arguida B…, tendo a final sido proferida sentença, depositada em 23.01.2014, que condenou a arguida, pela prática de um crime de descaminho p. e p. no artº 355º do Cód. Penal, na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 dias de multa à taxa diária de € 6,00.
Inconformada com a sentença condenatória, dela veio a arguida interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. Na presente data já decorreram 9 anos e 9 meses sobre o dia em que o facto criminoso se consumou. A prescrição é assim de aplicar, o que se requer expressamente e que obsta à apreciação de mérito do recurso e determina a absolvição. O Tribunal a quo, que deve conhecer oficiosamente da matéria, violou os artºs. 118º a c), 119º nº 1 e 121º nº 3 do CP. Ora, salvo douta decisão melhor fundamentada, estamos perante uma exceção – prescrição – que aqui se argui e cujo instituto fulmina o processo;
2. A sentença recorrida violou o artº 355º e o artº 14º nº 3 do Código Penal;
3. No entendimento da recorrente, o tribunal recorrido interpretou o artº 355º do Código Penal no sentido de que preenche o conceito de “subtração ao poder público” qualquer ação ou omissão, intencional ou não, do depositário que não seja a entrega do bem, quando o mesmo lhe for solicitado. Contudo, não integra o crime de descaminho previsto e punido no artº 355º do Código Penal a não entrega dos bens penhorados ao encarregado da venda. Tal crime exige uma ação direta sobre a coisa, isto é, uma atuação que a destrua, inutiliza ou impeça a sua entrega em definitivo;
4. E igualmente não integra o crime de descaminho, na forma de dolo eventual, prevista no nº 3 do artº 14º do Código Penal, deixar os bens penhorados na casa de um filho, em local diverso da morada primária, a qual foi entregue ao senhorio por denúncia do contrato de arrendamento. Para preencher tal previsão legal exige-se uma ação direta sobre os bens, ainda que não intencional, que conduzisse à destruição, inutilização ou impedimento de sua entrega em definitivo;
5. Os factos provados na sentença recorrida não permitem concluir que a arguida cometeu um crime de descaminho pelo qual vinha acusada. Nem podem fundamentar a aplicação à arguida da pena de prisão na qual foi condenada, substituída por multa;
6. Ressalta do teor da decisão condenatória a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão;
7. Por outro lado, devia o tribunal a quo ter-se pronunciado (o que não fez) sobre o alegado pela arguida na prova/contestação que apresentou, quanto à situação dos bens penhorados e ao facto, necessário, que teve de mudar os bens para outro local, em virtude de ter ido residir para Espanha, em esforço de apoio ao marido que aí se encontrava doente, com doença cancerosa, pois tal reveste interesse decisivo quer para o sentido da decisão, quer para a medida concreta da pena;
8. Pelo que a sentença proferida é nula, nos termos do artº 379º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal;
9. Sem condescender, acresce que a arguida não foi notificada para apresentar os bens penhorados, tanto pelo tribunal como pelo encarregado da venda, o qual aliás não é funcionário judicial; a arguida não se recusou em tempo algum a entregá-los; muito menos foi advertida de que a não apresentação dos bens fosse cominada com o crime de descaminho; o tribunal a quo ao não relevar tais factos essenciais para o cumprimento dos requisitos formais, materiais e subjetivos do crime, errou na apreciação da prova, violou o artº 410º nº 2 al. c) do CPP. Deve, por isso, a arguida ser absolvida;
10. O Tribunal a quo optou pela pena única de 120 dias de multa. Atentas as circunstâncias do crime e o facto de se tratar de arguida sem antecedentes criminais, bem integrada em Espanha, onde reside, com uma condição financeira muito débil (beneficia do apoio judiciário), além de que nunca respondeu em Tribunal – vide certificado do registo criminal –, considera-se que foram violados os determinativos da medida da pena (artº. 71º do CP), os quais deveriam ter sido levados mais em conta, ou seja, mais brandamente, pelo tribunal singular. A pena deverá ser alterada para uma pena única de 50 dias de multa, à taxa diária mínima exigível por lei. O Juiz a quo violou o artº 71º do CP.
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Na 1ª instância, o Mº Público respondeu às motivações de recurso concluindo pela sua improcedência.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer concordante com a resposta do MºPº na 1ª instância.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
1. No dia 18 de Março de 2003, no âmbito da Carta Precatória nº 1344/03, que correu termos no 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da feira e que havia sido extraída do processo de execução por custas nº 455-D/95, que correu os seus termos na 3ª Vara Cível – 3ª secção de Lisboa, foram apreendidos vários bens móveis, tendo a arguida sido nomeada fiel depositária dos mesmos e informada das obrigações que isso implicava.
2. Tais bens móveis ficaram guardados na residência da arguida sita na Rua …, nº .., r/c …, Santa Maria da Feira.
3. Em data que não foi possível determinar concretamente, mas anterior a 4 de Maio de 2004, a arguida desfez-se desses bens móveis, de forma que também não foi possível averiguar, ausentando-se de seguida para parte incerta.
4. Por essa razão, quando se procurou proceder à venda dos mesmos, não foi possível alcançar tal desiderato.
5. A arguida sabia que tinha sido nomeada fiel depositária dos bens móveis que tinham sido penhorados no processo supra identificado e que, por esse motivo, era sua obrigação guardá-los e apresentá-los quando tal lhe fosse exigido.
6. A arguida sabia também que, ao desfazer-se desses bens móveis estava a impedir os seus credores de obter o pagamento das dívidas que tinham originado a sua penhora.
7. Por último, a arguida sabia perfeitamente que essa sua conduta era proibida e punida por lei.
8. Apesar disso, a arguida atuou sempre de forma livre, deliberada e consciente com intenção de se desfazer dos bens móveis que tinham sido penhorados e de que era fiel depositária.
9. O encarregado da venda nomeado nos autos executivos identificados em 1, contactou pessoalmente a arguida a fim de ver os móveis que haviam sido penhorados no identificado processo executivo, bens esses que lhe foram exibidos prontamente por aquela.
10. Quando regressou a casa da arguida, em data não concretamente apurada, já a mesma se encontrava encerrada, tendo os vizinhos dado a informação que a arguida tinha ido para o estrangeiro.
11. Para além disso, tentou estabelecer contacto telefónico com a arguida, que nunca lhe chegou a atender o telefone.
12. Por tal motivo, apresentou requerimento no identificado processo executivo, datado de 04 de Maio de 2004, junto a fls. 5, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
13. Por motivos de saúde do marido que se encontrava a trabalhar e a viver em Espanha, em data não concretamente apurada, a arguida foi para junto dele.
14. Nessa sequência, porque teve que entregar ao senhorio a casa onde vivia à data e identificada em 2, a arguida guardou os bens móveis que possuía, entre eles, os bens penhorados nos identificados autos executivos em casa de familiares.
15. Não tendo comunicado esse facto nem ao encarregado da venda, nem ao processo executivo.
16. Tais bens, encontram-se nos dias de hoje em casa do filho.
17. A arguida encontra-se a residir em Espanha.
18. À arguida são desconhecidos antecedentes criminais, constando do seu CRC de fls. 123 que os não tem.
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Foram considerados não provados os seguintes factos: (transcrição)
1. Quaisquer circunstâncias da vida pessoal, social e económica da arguida.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
O tribunal formou a sua convicção com base na análise, crítica e global, de toda a prova produzida em audiência, bem como da que consta dos autos e que infra se discriminará, com recurso a juízos de experiência comum, nos termos do artº 127º do Código de Processo Penal.
Alicerçou-se o Tribunal, no que concerne aos factos dados como provados na análise e teor dos documentos juntos aos autos, designadamente na certidão do auto de penhora de fls. 4, no requerimento apresentado pelo encarregado da venda de fls. 5, bem como as diligências que posteriormente foram encetadas nesses autos executivos com vista à localização do paradeiro da arguida, de fls. 6 a 8.
Conjugadamente com tais elementos, levou ainda o tribunal em consideração o depoimento da testemunha C…, que foi nomeado encarregado da venda nos autos de processo executivo identificado nos autos competindo-lhe, nessa qualidade, proceder à venda dos bens móveis que haviam sido penhorados à arguida.
Segundo esclareceu esta testemunha, de forma objetiva e espontânea, contactou pessoalmente com a arguida, designadamente na casa desta, tendo visto os bens móveis que se encontravam penhorados, bens esses que a arguida sem qualquer resistência exibiu.
Contudo, posteriormente quando regressou a casa da arguida, verificou que a mesma estava encerrada, tendo sido informado pelos vizinhos que a arguida tinha ido para o estrangeiro.
Por tal motivo, porque não conseguia aceder à casa e como não conseguia entrar em contacto telefónico com a arguida, uma vez que a mesma não lhe atendia o telefone, não logrou mais ver os bens móveis em questão, nem sequer logrou saber para onde os mesmos haviam sido levados, uma vez que tal não lhe foi comunicado nem pela arguida nem por qualquer outra pessoa.
Por esse motivo, apresentou um requerimento no aludido processo, requerimento esse datado de 04 de Março de 2013, que se mostra junto a fls. 5, dando conta que a arguida/fiel depositária havia abandonado o local onde residia desconhecendo o seu paradeiro, bem como o paradeiro dos bens móveis, encontrando-se assim impossibilitado de proceder à venda daqueles.
No que diz respeito aos factos que se deram como provados sob os pontos 13, 14 e 15, atendeu o tribunal ao depoimento das testemunhas arroladas pela arguida, D… e E…, respetivamente cunhada e irmã daquela que referiram que em virtude dos problemas de saúde do marido da arguida que trabalhava e vivia em Espanha, esta foi para junto de si, procedendo à entrega da casa ao senhorio e colocando os móveis que constituíam o recheio dessa habitação, entre os quais os bens móveis que foram penhorados nos autos executivos em casa de familiares, sendo que, posteriormente foram os mesmos para casa do filho.
Quanto ao facto que se deu como provado, sob o 16, a convicção positiva quanto ao mesmo, assentou no depoimento da testemunha C…, encarregado da venda que, de forma espontânea referiu ao tribunal que, em momento algum a arguida lhe comunicou o que quer que fosse.
Aliás, do seu depoimento decorre que terá sido apanhado de surpresa da segunda vez que se dirigiu a casa da arguida encontrando-a fechada, tendo sido informado pelos vizinhos que aquela tinha ido para o estrangeiro.
Por outro lado, essa a falta de informação da nova localidade dos bens do processo, resultou igualmente da análise da certidão de fls. 6 a 8, da qual resulta claramente que nos referidos autos executivos se efetuaram diligências com vista à descoberta do paradeiro da arguida.
Relativamente ao desconhecimento de antecedentes criminais à arguida, atendeu-se ao respetivo certificado do registo criminal junto aos autos a fls. 123.
Por fim, a factualidade que se deu como não provada, resultou da ausência de prova produzida acerca da respetiva verificação, logrando-se apenas apurar que a arguida se encontra atualmente a residir em Espanha (atento até os requerimentos que recentemente fez chegar ao processo (cfr. fls. 125 e 144).
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso resulta que as questões que a recorrente pretende ver apreciadas resumem-se a saber:
- se o procedimento criminal se encontra extinto por prescrição;
- se os factos provados integram todos os elementos do tipo de crime de descaminho pelo qual a arguida foi condenada;
- se a sentença recorrida é nula por não se ter pronunciado sobre factos alegadas pela arguida na contestação;
- se na determinação da medida da pena foi violado o disposto no artº 71º do Cód. Penal.
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Vejamos:
Quanto à prescrição do procedimento criminal:
Alega a recorrente que o procedimento criminal se encontra prescrito por terem já decorrido 9 anos e 9 meses sobre o dia em que o facto se consumou.
Não sendo possível apurar a data em que a arguida “ se desfez” dos bens penhorados, por tal não constar da acusação, impõe-se tomar como referência o dia 04 de Maio de 2004, como data da consumação dos factos imputados à arguida, dies a quo para efeitos de contagem do prazo de prescrição – artº 119º nº 1 do Cód. Penal.
Considerando que o crime de descaminho imputado à arguida na acusação é punível com pena de prisão até cinco anos (artº 355º do C.Penal), o prazo de prescrição do procedimento criminal corresponde a dez anos – artº 118º nº 1 al. b) do C.P.
Contudo, em 11.03.1013, antes de se completar o prazo de prescrição, a arguida foi declarada contumaz [cfr. fls. 87 e 88], o que constitui causa de suspensão e de interrupção da prescrição – artºs. 120º nº 1 al. c) e 121º nº 1 al. c) do C.P.
A prescrição manteve-se suspensa até 08.08.2013, data em que a arguida se apresentou em juízo e prestou termo de identidade e residência, tendo então sido notificada da acusação [cfr. fls. 97 a 99], cessando então a situação de contumácia – artº 120º nº 6 do Cód. Penal.
Considerando, porém, que a declaração de contumácia constitui também causa de interrupção da prescrição, com a apresentação da arguida em juízo, começou a correr novo prazo de prescrição de dez anos – artº 121º nº 2 do C.P., já que o prazo anteriormente decorrido fica sem efeito, dando lugar a nova contagem do prazo integral de prescrição.
No entanto, de acordo com o disposto no nº 3 do artº 121º do C.P., a prescrição tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. No caso em apreço, a prescrição só ocorrerá quando desde 04.05.2004, tiverem decorrido 15 anos + 4 meses e 28 dias [10 anos – prazo normal de prescrição; 5 anos – metade daquele prazo; 4 meses e 28 dias – correspondente ao período de tempo em que a prescrição esteve suspensa]. Assim sendo, a prescrição do procedimento criminal apenas ocorrerá em 02.10.2019, pelo que improcede este fundamento do recurso.
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Da verificação dos elementos objetivos e subjetivos do tipo:
A recorrente foi condenada pela prática de um crime de descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público p. e p. no artº 355º do Cód. Penal.
Dispõe este preceito que: «Quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objeto móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objeto de providência cautelar, é punido com pena de prisão até cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».
O delito em apreço “configura um crime de lesão do bem jurídico (…), consumando-se tão-só quando o agente frustra – total ou parcialmente – a finalidade da custódia, através de uma ação direta sobre a coisa: inutilizando-a ou descaminhando-a. Neste caso, o “dano” coincide com o resultado material previsto no tipo: a “modificação” ou a deslocação definitiva da coisa para fora da custódia. Afinal, o tornar a coisa imprestável para o fim em causa; desviá-la do destino que lhe fora oficialmente traçado (…)”[3].
Por isso, o crime pode ser cometido por quem não seja depositário dos bens, consumando-se quando o agente, exercendo ação direta sobre a coisa, inutilizando-a ou desencaminhando-a, obtém, movido por qualquer modalidade de dolo, a frustração definitiva da custódia da coisa[4].
A ação típica consiste em destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer forma, subtrair.
As três primeiras modalidades de ação configuram-se em termos semelhantes à descrição típica do crime de dano. A destruição determina a perda total da utilidade da coisa e implica, normalmente, o sacrifício da sua substância. Neste sentido “destruir” consiste em deitar abaixo, demolir, devastar, derrubar, arrasar, fazer desaparecer, arruinar, ou seja, traduz o ato que acarreta a completa imprestabilidade da coisa.
Quanto à danificação, abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição, podendo concretizar-se pela produção de uma lesão nova ou pelo agravamento de uma lesão preexistente. Configura, deste modo, um ato que causa uma “destruição parcial” da coisa[5]. Por seu lado, “inutilizar” abarca as ações que reduzem a utilidade da coisa segundo a sua função. O que se exige sempre é a referência à corporeidade da coisa. Esta conduta típica pode consubstanciar uma lesão da substância ou da integridade física (neste caso, confunde-se com a ação “danificar”), ou em retirar uma parte ou peça da coisa ou acrescentar uma coisa ou substância perturbadora. Em síntese conclusiva, a destruição, a danificação ou a inutilização, total ou parcial, abrangem todos os atentados à substância ou à integridade física da coisa (como no dano) que a tornam inútil do ponto de vista que justificava a sua custódia oficial. Por isso, como salienta Cristina Líbano Monteiro[6], deve considerar-se a inutilização como o conceito chave dos outros tipos de ação sobre a coisa.
Por sua vez, no conceito “subtração ao poder público”, cabem tão só as condutas que sonegam a coisa ao poder público, sem que, no entanto, seja exigida uma intenção de apropriação. É um dos casos excecionais em que a subtração da coisa sem intenção de apropriação é punida, no âmbito do conceito «por qualquer forma subtrair ao poder público a que está sujeito»[7].
Efetivamente, como salienta Cristina Líbano Monteiro[8], deve entender-se por subtrair o mesmo que no crime de dano, com a seguinte precisão: caso a “subtração” seja levada a cabo pela pessoa oficialmente encarregada da guarda da coisa, o verbo mais apropriado não será esse (subtrair), na medida em que não se verifica a quebra do domínio do facto de outrem para constituir um domínio próprio. Melhor se falaria nestes casos de “descaminho”. De todo o modo, a ação terá de traduzir-se numa conduta de apropriação da coisa, com o reverso do poder público dela ficar desapossado, nomeadamente, através de atos em que o agente, por exemplo, extravia a coisa, a esconde ou a entrega a terceiro[9].
Sendo um tipo de crime doloso, é ainda exigível que qualquer das condutas supra referidas seja praticada com dolo, cobrindo todos os elementos objetivos do tipo, sob qualquer das formas previstas pelo artigo 14.º do Código Penal.
No caso em apreço, constava já da acusação pública deduzida e foi transposto para a sentença recorrida que a arguida se desfez dos bens móveis penhorados, ausentando-se em seguida para parte incerta.
A acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo e dos poderes de cognição do tribunal, deve precisar a factualidade integradora da conduta típica, atrás enunciada, do crime de descaminho.
Ora, “desfazer-se dos bens” não equivale a afirmar que “houve destruição, danificação, inutilização ou subtração” dos referidos bens, sendo a prova de qualquer dessas modalidades da ação indispensável para se considerar preenchido o tipo objetivo do crime aqui em análise (por expressivas, eis as considerações tecidas no Ac. de S. T. J., de 30 de Junho de 1999: «... quer os conceitos de destruição, danificação, inutilização, subtração, estes efetivamente incluídos na definição do referido tipo legal, são matéria de direito, porque conclusivos ou envolvendo sentido especificamente jurídico; e resulta manifesto que da descrição no douto acórdão do elenco do factualismo provado não constam factos concretos que os integrem, nada resultando de concreto sobre o destino dado pelo arguido aos bens penhorados de que fora nomeado fiel depositário»).
Por outro lado, da mera não entrega ou falta de apresentação dos bens também não se pode deduzir que tivesse havido descaminho.
Acresce que não foi alegado (na acusação), nem se provou (na sentença), que a arguida tivesse, por exemplo, feito desaparecer ou tivesse dissimulado, vendido ou cedido a outrem os referidos bens penhorados. E o certo é que a modalidade típica (subtração) pode ter-se por preenchida não só com o mero ocultar ou extraviar da coisa, mas também com a sua venda, troca, cedência, etc., todas elas podendo ser abrangidas no conceito amplo de “desfazer-se”.
A acusação não concretiza a conduta da arguida através da qual ela se tenha desfeito dos bens penhorados. Com a alusão genérica a “desfez-se dos bens” e “ausentando-se em seguida para parte incerta” e “sabia que era sua obrigação guardá-los e apresentá-los quando tal lhe fosse exigido”, fica-se sem saber se a arguida destruiu, vendeu, trocou ou, simplesmente, subtraiu os bens e se alguma vez foi notificada para os apresentar ao encarregado da venda.
Nos factos provados (e que já assim constavam da acusação) não se encontra matéria suscetível de preencher o conceito de “subtracção ao poder público”.
Por outro lado, dos factos dados como provados nos pontos 3 e 6 da sentença recorrida, onde se refere que a arguida se desfez dos bens, não se pode deduzir que a arguida tivesse frustrado definitivamente a finalidade da custódia dos bens penhorados, ou que tivesse agido com essa intenção. Aliás, da matéria de facto provada constante dos pontos 13, 14 e 16, resultado da prova produzida em audiência de julgamento, o que se pode concluir é precisamente o contrário. De tais factos resulta que, não obstante se tivesse ausentado da sua residência por motivos de doença do seu cônjuge, a arguida teve o cuidado de deixar os bens penhorados entregues a familiares, por ter necessidade de entregar a casa ao senhorio, bens esses que ainda hoje se encontram em casa do filho. Fê-lo naturalmente no cumprimento das suas obrigações como fiel depositária. Se a arguida pretendesse “desfazer-se” de tais bens, bastaria que os tivesse abandonado na casa devoluta que entregou ao senhorio.
Ora, como se refere no Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 11/10/2006[10], “para que se realize a subtração ao poder público de coisa penhorada não basta a prova de que o agente a entregou a terceiro, que a transportou para local diferente ou que a deixou ficar em determinado local. É ainda necessário que também se prove que essa entrega a terceiro, deslocalização ou abandono foi feito com a intenção de a desviar da finalidade da penhora”.
Da matéria de facto provada não resulta que, ao entregar os bens penhorados ao filho, a arguida tivesse atuado com intenção de frustrar as finalidades da penhora, ou seja, que visasse desse modo frustrar definitivamente a finalidade da custódia dos bens penhorados.
É que o crime de descaminho, p. e p. pelo artigo 355.º do Código Penal não visa punir as infidelidades do depositário dos bens quanto aos deveres de guarda e conservação, não sendo, por isso, um crime específico dos depositários dos bens. Visa, antes, punir os atos praticados por qualquer pessoa que se destinem a impedir ou descaminhar a coisa do fim que justificou a sua colocação sob a custódia da autoridade pública, exercida através do depositário.
No caso dos bens penhorados, visa-se punir todas as condutas que, dolosamente, impeçam ou frustrem a venda desses bens, seja por via da sua inutilização ou destruição, seja por via do seu descaminho.
Como já se decidiu no Ac. desta Relação de 20.06.2007 [Recurso n.º 1135/07-1], muito embora seja censurável, atento os deveres gerais do depositário e, em particular, de prevenir situações de frustração de contactos para venda do bem penhorado, a conduta do fiel depositário que muda de residência sem comunicar essa ocorrência não é, só por si, suficiente para se concluir que houve extravio do bem penhorado.
É que ao proceder-se desse modo não ficou frustrado, total ou parcialmente e de forma definitiva, a finalidade da custódia pública do Estado, que é o que se pretende tutelar com o crime de descaminho da previsão do art. 355.º”.
Do exposto se conclui que os factos provados não preenchem o tipo objetivo do artº 355º do Cód. Penal, impondo-se, por isso, a absolvição da recorrente.
Acrescente-se que, faltando o preenchimento do tipo objetivo é evidente que não se pode afirmar o dolo (ou se afirmado, como sucedeu, é o mesmo irrelevante).
Por isso é indiferente, que, “na caracterização do tipo subjetivo”, o tribunal tivesse considerado provada uma intenção: que “ao desfazer-se desses bens móveis, a arguida sabia que estava a impedir os seus credores de obter o pagamento das dívidas que tinham originado a sua penhora” e que “agiu com intenção de se desfazer dos bens móveis que tinham sido penhorados e de que era fiel depositária”. Já que tal intenção não decorre dos factos objetivos provados.
Aliás, verifica-se erro de julgamento da matéria de facto ao nível da, dada por provada, intenção com que a recorrente atuou. Trata-se, com efeito, de um facto íntimo, subjetivo, sobre o qual não foi, como é normal, produzida prova e que não se pode inferir da materialidade objetiva dada por provada. Neste caso, o tribunal supriu uma lacuna de conhecimento através de uma presunção judicial, mas sem que tivesse factos que, pelas regras da lógica e da experiência, permitissem com razoável segurança a afirmação dessa intenção[11].
Fica assim prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam a sentença recorrida e absolvem a arguida B… do crime de descaminho p. e p. no artº 355º do Cód. Penal, por que fora condenada.
Sem tributação.
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Porto, 05 de Novembro de 2014
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 419.
[4] Cfr. Ac. desta Relação do Porto de 07.02.2007, Proc. n.º 0615753, Relator Des. Guerra Banha.
[5] Cfr. Manual da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 222.
[6] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pág. 423.
[7] V. Ac. desta Relação do Porto de 09.11.2005, in CJ, tomo V, pág. 219.
[8] Ob. cit., págs. 422/423.
[9] Cfr. Ac. da Relação de Lisboa de 28.11.2007, in CJ, tomo V, pág. 131.
[10] Proferido no Proc. nº. 0511368, relator Des. Guerra Banha, disponível em www.dgsi.pt
[11] Cfr., neste sentido, Ac. deste Tribunal da Relação do Porto de 14.06.2006, Proc. nº 0641179, relatora Des. Isabel Pais Martins, disponível em www.dgsi.pt.