Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1804/14.2TBGMR-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
MEDIDA DA INIBIÇÃO
DEFICIENTE GRAVAÇÃO DOS DEPOIMENTOS
REGIME DE ARGUIÇÃO DA NULIDADE
NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: RP201805301804/14.2TBGMR-C.P1
Data do Acordão: 05/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 675, FLS 359-373)
Área Temática: .
Sumário: I - A Lei 41/2013 de 26/06 (que aprovou o novo CPC) introduziu uma relevante alteração no regime de arguição da falta ou deficiência da gravação, expressamente determinando que esta tem de ser invocada no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada – vide artigo 155º nº 4 do CPC. Disponibilização que deve ocorrer no prazo de dois dias a contar do respectivo ato.
II - Porque a disponibilização da gravação deve ocorrer no prazo de dois dias [e salvo se esta disponibilização não respeitar este prazo, caso em que a parte deverá suscitar tal questão perante o tribunal a quo] recai sobre a parte o ónus de neste prazo e sempre até aos 10 dias subsequentes requerer a entrega da gravação e verificar a regularidade da mesma, para que e sendo o caso, no mencionado prazo de dez dias possa arguir a respetiva nulidade.
Assim não o fazendo violará o dever de diligência que sobre si recai, com a consequência de ver precludido o direito a arguir a nulidade decorrente deste vício.
III - Na medida em que esta falta cometida pode influir no exame da causa [como sempre o será quando a parte invocar que tal vício obsta ao exercício do seu direito de impugnação da matéria de facto que pretende exercer], configura a mesma uma nulidade secundária.
Nulidade que assim deverá ser arguida perante o tribunal a quo para que desde logo e sendo verificada, possa ser sanada mesmo antes de serem os autos remetidos em recurso.
IV - A nulidade das sentenças encontra-se prevista de forma taxativa no artigo 615º do CPC.
V - É entendimento uniforme na jurisprudência e com apoio na doutrina que a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito, e apenas esta e já não a sua deficiência, em que assenta a decisão são causa de nulidade da mesma.
VI - Resulta do disposto no artigo 607º n.º 4 do CPC que na sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que não julga provados.
A contrario se extraindo que da sentença e nomeadamente da decisão de facto não devem constar nem juízos conclusivos nem conceitos normativo-jurídicos.
Não obstante e no que respeita aos conceitos normativo-jurídicos, vem a ser entendido jurisprudencialmente ser admissível incluir na factualidade provada conceitos que podem ser tidos como de direito quando simultaneamente os mesmos “forem factualizados e usualmente utilizados na linguagem comum, possuindo um sentido apreensível”.
VII - A medida da inibição a que se reporta o artigo 189º nº 2 al. c) do CIRE deve atender à gravidade do comportamento do afetado pela mesma e à relevância do mesmo para a verificação da insolvência e suas consequências.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 1804/14.2TBGMR-C.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunto - Juiz Desembargador Oliveira Abreu
Adjunto - Juiz Desembargador António Eleutério
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Jz. Comércio de Oliveira de Azeméis
Apelante/B...
Apelada/Massa Insolvente de “C..., Lda.”

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
Por apenso aos autos em que foi declarada a insolvência de “C..., Lda.” veio a AI apresentar o parecer a que se reporta o artigo 188º do CIRE, concluindo serem os factos por si apurados subsumíveis ao previsto no artigo 186º nº 2 als. a) e i) e nº 3 al. a) e b) do CIRE, devendo como tal ser a insolvência qualificada como “culposa, devendo ser afetado com tal qualificação o sócio gerente B...”.
Declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência nos termos do artigo 188º nº 1 do CIRE, foi ordenado o cumprimento do disposto no artigo 188º nº 2 do CIRE e vista ao MºPº nos termos do nº 4 do mesmo artigo.
A fls. 38 o Ministério Público emitiu parecer concordante com o proposto pela Sra. administradora.
Determinado o cumprimento do disposto no artigo 188º n.º 6 do CIRE, atenta a impossibilidade de citação pessoal do gerente B... – indicado como pessoa a ser afetado pela qualificação da insolvência como culposa – foi determinada a sua citação edital (fls. 47).
Nomeado patrono oficioso e na sua pessoa citado o referido gerente, deduziu o mesmo oposição nos termos de fls. 58 a 61, pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita.
Foi proferido despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e elencados os temas da prova (fls. 65).
Realizada audiência de discussão e julgamento [as respetivas sessões tiveram lugar em 06/02/2017; 06/03/2017; 19/04/2017 e 03/05/2017] foi proferida sentença (a fls. 152/156 e datada de 10/07/2017), notificada às partes e nomeadamente ao patrono oficioso do afetado pela qualificação da insolvência como culposa, B... a 11/07/2017 (data da certificação citius) decidindo:
“a) Qualificar a insolvência da “C..., Lda.” como culposa;
b) Declarar afetado por tal qualificação o requerido B...;
c) Decretar a inibição do requerido para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 5 (cinco) anos;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo requerido e a sua condenação a restituir os bens ou direitos que haja recebido em pagamento desses créditos.
e) Condenar o requerido a indemnizar os credores da devedora no montante dos créditos não satisfeitos, até à força do seu património.”
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Na ata de 03/05/2017 (fls. 150/151), e por referência a registo fotográfico junto naquele ato processual pela testemunha D..., foi pelo ilustre patrono do requerido declarado pretender prazo para “analisar e eventualmente pronunciar-se em relação ao referido registo.”
Após o que foi proferido o seguinte despacho:
“Sem prejuízo do decurso do prazo estipulado no art.º 155.º do CPC e, da notificação com entrega de cópias do registo fotográfico, que faz parte do contrato, cuja cópia já se encontrava junta aos autos, concede-se ao ilustre patrono do requerido o prazo de 10 dias para se pronunciar.
Decorridos que estejam os prazos acima referidos, que correrão em simultâneo, conclua os autos para prolação de sentença.”
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Datada de 20/07/2017, foi lavrada cota no histórico dos autos do seguinte teor (sendo a certificação da respetiva elaboração citius datada de 21/07):
“Em 20-07-2017, consigno que entreguei ao ilustre mandatário Dr. L..., a sua solicitação, CD com a gravação das sessões de audiência de julgamento realizadas nos presentes autos, tendo para o efeito entregue cópia da procuração, que protestou juntar aos autos”.
Sendo que por requerimento datado do mesmo dia 20/07/2017 juntou B... procuração outorgada a favor do Exmo. Mandatário subscritor do respetivo requerimento (fls. 157/158 dos autos).
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Por requerimento apresentado pelo requerido B... a 08/08/2017, interpôs o mesmo recurso de apelação, oferecendo alegações e formulando as seguintes
CONCLUSÕES
“1 - Ocorrem manifestas e sérias deficiências na gravação do depoimento de uma testemunha prestado em audiência, concretamente quanto à testemunha D..., porquanto várias partes do respectivo depoimento se apresentam completamente impercetíveis.
2 - As falhas registadas na gravação impedem a cabal reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal superior, ao mesmo tempo que constituem um obstáculo intransponível para a parte impugnante quanto ao cumprimento do ónus de alegação especial previsto pelo art. 685º-B do CPC, que vê assim arredado o seu direito de recurso sobre a matéria de facto legalmente consagrado.
3 - Uma vez que as deficiências apontadas à gravação dos depoimentos referidos dizem diretamente respeito à matéria que se pretende impugnar e ver alterada, encontra-se impossibilitado o direito do recorrente à sua impugnação e a correspondente possibilidade de reexame da matéria de facto a efetuar pelo Tribunal ad quem em sede de recurso.
4 - O que constitui nulidade processual, nos termos do disposto no art. 201º, nº1 do CPC, uma vez que se trata de uma irregularidade suscetível de influir no exame e decisão da causa, sendo hoje pacificamente aceite que a mesma pode ser suscitada até ao termo do prazo para apresentação das alegações de recurso.
5 - Esta nulidade importa a anulação do ato viciado (art. 201º, nº 1 do CPC), na parte em que influencia a decisão da causa, bem como dos subsequentes atos daquele dependentes, designadamente, da decisão da matéria de facto e da douta sentença recorrida (art. 201º, nº 2 do CPC), o que se Requer.
6 - O Tribunal a quo não respeitou convenientemente o disposto no artigo 607º, n.º 3 e 4, e, por conseguinte a decisão é nula nos termos do disposto no art.º 615, n.º 1, alínea b) do Código Civil.
7 - Atento o texto da sentença, o Tribunal a quo faz de forma demasiado enérgica considerações pessoais à cerca do Requerido e de uma das testemunhas do processo.
Porém, nunca indica que declarações ou meios de prova foram preponderantes para formar a sua convicção.
8 - Face o exposto, e, por se verificar prejudicado o efetivo direito de impugnação das decisões judiciais, deve a sentença proferida ser declarada nula por violação do disposto no art.º 607º do CPC, e, consequentemente ser declarada a necessidade de ser proferida nova decisão com cumprimento integral das regras processuais omitidas.
9 - O Recorrente impugna concreta e especificamente a decisão de facto sobre os seguintes pontos:
13 - Pese embora a resolução, em benefício da MI, do referido contrato de c/v, a resolução veio a ser declarada ineficaz, por acórdão do TRP, já transitado em julgado.
14 – Com exclusão das máquinas vendidas à “E...”, o requerido B... fez desaparecer os demais equipamentos que adquiriu à “F...” e que são os referidos em 10.
15 – E pese embora se tenha furtado a todas as tentativas de citação a que nos autos de insolvência e no presente apenso se procedeu, tendo sido citado editalmente para os termos deste apenso, o certo é que se manteve a trabalhar junto de G..., no estabelecimento industrial sito na Rua ..., em Oliveira de Azeméis.
17 – E desconhece-se o destino dado à contabilidade da devedora já que a contabilista certificada que declarou o início da atividade da devedora, em 09/10/2012, nunca mais foi contactada pelo aqui requerido, acabando por renunciar em Julho de 2013.
10 - O que vem espelhado como factos provados nos pontos 13 e 17 são meras conclusões.
11 - Por algum motivo que não nos atiramos a adivinhar, o Tribunal falou mais que as próprias testemunhas. Não se limitando a questionar.
12 - Na inquirição da testemunha G..., o Tribunal de Julgamento trouxe à inquirição outros processos que nada tinham que ver com o objeto processual dos presentes autos, limitando em absoluto a liberdade de resposta da testemunha.
13 – Vejamos a inquirição da testemunha G..., no dia 06 de Março de 2017, entre as 11:19:23 e as 12:43:02 horas, concretamente entre os minutos 28:00 e os 59:00 da gravação do depoimento da referida testemunha.
14 - A mesma foi condicionada com constantes considerações e referencias à sua fé ou falta dela.
15 - O mesmo se diga relativamente ao ponto 17 dos factos provados.
16 - Mais grave que converter conclusões em factos provados é como foi possível ao Tribunal a quo criar a convicção de provado dos factos constantes dos pontos 14 e 15.
17- Não existe qualquer prova nos autos para os factos dados por provados.
18 - “fez desaparecer”, uma vez mais o Tribunal a quo estriba-se em conclusões ou comentários em vez da objetividade de factos provados ou não provados.
19 - Acresce, que o Tribunal a quo aflora que tal convicção foi criada com base nas declarações da Testemunha D....
20 - O que é falso.
21 - Vejamos, todo o seu depoimento (parte legível) e em nenhum momento ele afirma o que o Tribunal declara que afirma.
22 - Vejamos, depoimento da testemunha D..., no dia 19-04-2017, entre as 14:45:47 e as 15:03:25, e entre as 15:04:15 e 15:50:45 nomeadamente em todo o seu depoimento. Neste dia, a gravação está inaudível e não é possível perceber as declarações da testemunha.
23 - Mas o mesmo se diga relativamente ao seu depoimento proferido no dia 03 de Maio de 2017, entre as 10:31:41 e as 11:22:41 horas.
24 - Em nenhum momento do depoimento é afirmado pela testemunha que o requerido fez desaparecer as máquinas não alienadas à E....
25 - Aliás, a testemunha entre os 4:50 minutos do seu depoimento e os 8:50 minutos faz a explicação para o que ele acha que terá sucedido a uma parte das máquinas. Explica que foram entregues para pagar dívidas.
26 - Face o exposto, o ponto 14 deve ser declarado não provado e, assim, revogada a decisão de facto proferida.
27 - No ponto 15 dos factos provados o Tribunal a quo dá por provado que o requerido se manteve a trabalhar com a G..., no estabelecimento industrial sito na Rua ...o, em Oliveira de Azeméis.
28 - E na sua fundamentação, declara que criou essa convicção com base nas declarações da testemunha D....
29 - Uma vez mais, compulsadas todas as suas declarações, pelo menos as percetíveis, em nenhum momento aquele afirmou o que quer que fosse para o Tribunal criar a convicção e dar por provado o ponto 15 dos factos provados.
30 - E, nenhum outro meio de prova foi indicado pelo Tribunal a quo como sendo aquele no qual se estribou para dar o facto por provado.
31 - Assim, deve a decisão de facto proferida sobre o ponto 15 ser revogada e a mesma
ser dada por não provada.
32 - Assim, deve ser revogada a decisão de facto proferida sobre os pontos 13, 14, 15 e 17 dos factos provados e os mesmos passarem a não provados.
33 - O Tribunal a quo decidiu, decretar a inibição do requerido para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 5 (cinco) anos.
34 - O que é absolutamente desproporcional.
35 - O período de inibição fixado pelo Tribunal a quo assenta no fundamento de que o requerido fez desaparecer máquinas, o que não foi provado.
36 - Deve este ser revogado, e, ser substituído pelo período mínimo de 2 anos.
37 – Ao decidir nos termos em que decidiu o Tribunal a quo violou os dispositivos previstos no CIRE, nomeadamente o disposto no art.º 189, n.º 2 alínea c).
38 – Deve ser revogada a sentença de condenação do Requerido e substituída por outra que determine um período de inibição de 2 anos.
40 – Com as decisões que proferiu o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 604º, 607º do Código de Processo Civil e art.º 189º, n.º 2, alínea c) do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
Termos em que deve o Recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser declarada a nulidade do julgamento por violação do dever de gravar a audiência e tal irregularidade influir na decisão da causa. Se assim se não entender, deve ser revogada a sentença proferida nos termos do art.º 615º do CPC, e, se ainda assim se não entender deve ser revogada a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que alterando a matéria de facto e procedendo ao correto enquadramento jurídico desta, julgue a ação parcialmente procedente, nos termos expostos, com as legais consequências, nomeadamente com a diminuição do período de inabilitação.
Assim decidindo, farão V.ªs Ex.ª, Venerandos Desembargadores, a habitual Justiça.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Por despacho do tribunal a quo de 23/03/2018 (fls. 175) foi declarada a cessação de funções do patrono nomeado ao requerido B..., atenta a constituição de mandatário por parte do mesmo “por referência à data da junção a estes autos da procuração de fls. 157” [ou seja 20/07/17].
No mesmo ato e pronunciando-se sobre a pelo recorrente arguida nulidade decorrente da deficiente gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento e por via da mesma “requerendo a anulação dos atos praticados, da matéria de facto decidida com base nesses depoimentos e da sentença proferida”, concluiu o tribunal a quo “a ter ocorrido a nulidade invocada pelo recorrente, a mesma não foi arguida em tempo” o que fundamentou nos seguintes termos:
“De facto, a Lei nº 41/2013 de 26/06 impôs uma importante alteração ao regime de arguição da nulidade que decorre da irregular ou deficiente gravação dos depoimentos ao estabelecer, no artigo 155º do Código de Processo Civil, designadamente no seu nº 4, que tais faltas ou deficiências devem ser arguidas no prazo de 10 dias contados do momento em que a gravação é disponibilizada aos Il. Mandatários.
Ora, tendo ficado disponíveis para audição pelos Il. Mandatários e patrono do requerido os CD`s que continham a gravação do julgamento logo no dia 3 de Maio de 2017 e tendo sido determinado expressamente em ata que os autos aguardariam o decurso do prazo previsto no artigo 155º do Código de Processo Civil (cfr. fls. 151), o prazo de que dispunha o requerido/recorrente para arguir a deficiência das gravações terminou no dia 15/05/2017 (sendo que com o pagamento da multa pela prática do ato nos três dias úteis subsequentes poderia ter sido invocada tal desconformidade até 18/05/2017), o que justifica que os autos tenham sido conclusos para sentença no dia 22/05/2017.
Arguida como foi a referida nulidade no dia 08/08/2017, foi arguida fora de prazo, motivo pelo qual a mesma não será conhecida.”
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC [Código de Processo Civil] – resulta das formuladas pelos apelantes serem as seguintes as questões a apreciar:
1) Nulidade processual derivada de deficiente gravação dos depoimentos e suas consequência e como questão prévia, tempestividade de arguição da mesma;
2) Nulidade da sentença por não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (artigo 615º nº 1 al. b) do CPC);
3) Erro na decisão de facto [por referência aos pontos 13, 14, 15 e 17 dos factos provados. Quanto aos pontos 13 e 17 convocando o recorrente para o seu desacordo o depoimento da testemunha G... que no seu ver foi condicionado pelo tribunal a quo; quanto aos pontos 14 e 15 alegando o recorrente dos mesmos inexistir prova, alegando ainda ser falso que o depoimento de D... (“na parte legível” - entenda-se percetível) no qual o tribunal a quo aflora a sua convicção, tenha contribuído para o efeito].
4) erro na aplicação do direito [como consequência da alteração da matéria de facto pugnada], peticionando o recorrente a revogação parcial da sentença proferida por forma a ser reduzido o período de inibição “para o exercício do comércio (…)” de cinco para dois anos.
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III- Fundamentação
Na sentença sob recurso foram dados como provados os seguintes factos:
“1 – A insolvência da devedora foi requerida em juízo no dia 11/07/2014 por uma das suas trabalhadoras e, na ausência de oposição ao pedido de insolvência, foi esta declarada por sentença proferida no dia 24/03/2015 e já transitada em julgado.
2 – Por decisão proferida a 22/01/2017 foi o processo encerrado por insuficiência da MI.
3 – Foram reclamados e reconhecidos créditos no montante global de 24.670,25€, dos quais 15.658,45€ correspondem ao crédito da AT.
4 – A devedora foi constituída em 26/09/2012, tendo como objeto a fabricação de calçado e como gerente o aqui requerido B....
5 – Pese embora tenha a sua sede em Guimarães, a devedora exercia a sua atividade em estabelecimento na Rua ..., em ..., Oliveira de Azeméis
6 – No dia 21/10/2009 foi constituída a sociedade que gira sob a denominação “F..., Lda.”, a qual tem como sócio e gerente D..., primo do aqui requerido B..., e que teve como sua funcionária G...;
7 – A referida G.-.. constituiu, em 23/07/2013 a sociedade “E..., Lda.” a qual tem por objeto a fabricação de calçado e o agenciamento industrial de calçado e cuja sede coincide com o local onde a devedora manteve o seu estabelecimento, isto é, a Rua ..., em ..., Oliveira de Azeméis.
8 – A devedora produzia, praticamente em exclusivo, para a F... mas esta acumulou para com a devedora uma dívida no montante global de 142.401,80€.
9 - No dia 09/12/2013 a devedora, como forma de receber a quantia indicada em 8., aceitou receber da F... dois estabelecimentos industriais – um deles o sito na Rua ..., em Oliveira de Azeméis, com todo o equipamento neles instalado, tendo sido atribuído como valor global a ambos os estabelecimentos o de 160.000,00€.
10 – Nessa data, o aqui requerido tomou posse efetiva de todo o imobilizado que integrava cada um dos pavilhões industriais e que é o melhor descrito e identificado a fls. 109/149.
11 – No dia 01/01/2014, a “E...” tomou de arrendamento o pavilhão industrial sito na Rua ..., em ..., Oliveira de Azeméis.
12 – E no dia 06/01/2014 adquiriu à aqui insolvente diversas máquinas e equipamentos pelo montante global de 40.054,95€;
13 - Pese embora a resolução, em benefício da MI, do referido contrato de c/v, a resolução veio a ser declarada ineficaz, por acórdão do TRP, já transitado em julgado.
14 – Com exclusão das máquinas vendidas à “E...”, o requerido B... fez desaparecer os demais equipamentos que adquiriu à “F...” e que são os referidos em 10.
15 – E pese embora se tenha furtado a todas as tentativas de citação a que nos autos de insolvência e no presente apenso se procedeu, tendo sido citado editalmente para os termos deste apenso, o certo é que se manteve a trabalhar junto de G..., no estabelecimento industrial sito na Rua ..., em Oliveira de Azeméis.
16 – A devedora nunca cumpriu com a obrigação de apresentar as suas contas junto da conservatória do registo comercial.
17 – E desconhece-se o destino dado à contabilidade da devedora já que a contabilista certificada que declarou o início da atividade da devedora, em 09/10/2012, nunca mais foi contactada pelo aqui requerido, acabando por renunciar em Julho de 2013.
18 – Parte das trabalhadoras admitidas pela devedora passaram a trabalhar, em Fevereiro de 2014 para a E....”
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E no que concerne a factos não provados, foi declarado:
“Factos não provados:
Não se demonstrou qualquer outro facto que influa na decisão da causa”.
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Conhecendo.
1) Em função do supra elencado, cumpre apreciar em primeiro lugar da invocada nulidade decorrente da deficiente gravação dos depoimentos – sendo que em causa está em concreto o depoimento da testemunha D....
Nulidade esta que invocada (apenas) em sede de alegações de recurso, mereceu decisão do tribunal a quo, declarando não ser a mesma conhecida na medida em que foi arguida fora de prazo.
A tempestividade da arguição desta nulidade, é pois a primeira questão que importa dilucidar.
De facto e como bem notou o tribunal a quo, a Lei 41/2013 de 26/06 (que aprovou o novo CPC) introduziu uma relevante alteração no regime de arguição da falta ou deficiência da gravação, expressamente determinando que esta tem de ser invocada no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada – vide artigo 155º nº 4 do CPC (diploma legal a que faremos referência, salvo se em contrário for expressamente indicado).
Gravação esta que deve ser disponibilizada às partes no prazo de dois dias a contar do respetivo ato (nº 3 do mesmo artigo).
Na medida em que esta falta cometida pode influir no exame da causa [como sempre o será quando a parte invocar que tal vício obsta ao exercício do seu direito de impugnação da matéria de facto que pretende exercer], configura a mesma uma nulidade secundária.
Para o efeito dispondo a parte dos já referidos 10 dias (nº 4 já referido) quando logo no ato se não aperceba da deficiência de gravação. Dez dias contados desde a disponibilização da gravação [sendo disponibilização, diferente de entrega, já que esta pressupõe uma atuação do interessado que promove a entrega e aquela respeita a um ato da secretaria que coloca a gravação disponível à parte que na mesma esteja interessada para lha entregar se esta o requerer] esta a ocorrer no prazo máximo de dois dias, tal como decorre do já referido nº 3 do artigo 155º.
Ao remeter o legislador a arguição da falta ou deficiência da gravação para o regime das nulidades (nulidades secundárias, cujo regime está regulado nos artigos 195º e segs. do CPC) resulta do artigo 199º que a mesma deverá ser arguida logo no ato, se de tal se aperceber a parte. Ou então, a partir do momento em que tomou conhecimento da mesma, ou dela pudesse conhecer agindo com a devida diligência (vide nº 1 deste artigo 199º).
Porque a disponibilização da gravação deve ocorrer no prazo de dois dias [e salvo se esta disponibilização não respeitar este prazo, caso em que a parte deverá suscitar tal questão perante o tribunal a quo] recai sobre a parte o ónus de neste prazo e sempre até aos 10 dias subsequentes requerer a entrega da gravação e verificar a regularidade da mesma, para que e sendo o caso, no mencionado prazo de dez dias arguir a respetiva nulidade.
Assim não o fazendo violará o dever de diligência que sobre si recai, com a consequência de ver precludido o direito a arguir a nulidade decorrente deste vício.
Nulidade que assim deverá ser arguida perante o tribunal a quo para que desde logo e sendo verificada, possa ser sanada mesmo antes de serem os autos remetidos em recurso.
Preceitua o nº 3 do artigo 199º - artigo que regula as regras gerais da arguição destas nulidades secundárias – que se o processo for expedido em recurso antes de findar o prazo para a arguição da nulidade (o já referido de 10 dias), poderá a arguição ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição.
Porém e pela natureza da nulidade em causa, entende-se claramente afastada esta opção. Basta para tanto atentar no facto de após o encerramento da audiência de discussão e julgamento, ser o processo concluso para proferir sentença no prazo de 30 dias.
Só após esta e respetiva notificação, correndo o prazo para a interposição do recurso e subsequente prazo para as contra-alegações.
Tanto é quanto baste para concluir pela inviabilidade de a expedição do processo em recurso poder ocorrer antes do referido prazo ter decorrido.
A justificar o entendimento que cremos maioritário de ter sido afastada a possibilidade de a arguição da nulidade da gravação – ao contrário do que na vigência do anterior CPC chegou a ser defendido – ser invocada apenas em sede de recurso[1] .
Antes se defendendo que a mesma deve ser arguida perante o tribunal a quo para que desde logo e sendo verificada, possa ser sanada mesmo antes de serem os autos remetidos em recurso[2].
E não sendo o caso e de tal decisão pretendendo recorrer o interessado, da mesma interponha recurso a subir de forma autónoma, nos termos e ao abrigo do preceituado no artigo 630º nº 2.
Concluindo, a arguição de nulidade da gravação do depoimento de D... invocada pelo recorrente em sede de alegações de recurso da decisão final, quase três meses depois da última sessão da audiência de discussão e julgamento, foi-o de forma extemporânea.
A implicar o não conhecimento desta arguida nulidade.
Sobre as consequências do assim decidido para a reapreciação da decisão de facto, nos pronunciaremos infra.
2) Cumpre em segundo lugar conhecer da invocada nulidade da sentença por não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (artigo 615º nº 1 al. b) do CPC) – vide conclusões 7 e 8.
As causas de nulidade das sentenças, estão previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC.
Dispõe o nº 1 do artigo 615º do CPC
“1- É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.
De realçar, desde já, que nestas causas de nulidade se não inclui quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito [cfr. Ac. STJ de 30/05/2013, Relator Álvaro Rodrigues, in www.dgsi.pt/jstj sobre a distinção entre nulidade da sentença, no caso por oposição entre os fundamentos e decisão, versus erro de julgamento].
Por outro lado é entendimento uniforme na jurisprudência e com apoio na doutrina que a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito, e apenas esta e já não a sua deficiência, em que assenta a decisão são causa de nulidade da mesma [vide neste sentido Ac. TRP de 11/01/2018, Relator Filipe Caroço; Ac. TRL de 03/12/2015, Relator Olindo Geraldes; Ac. TRG de 21/05/2015, Relatora Ana Duarte in http://www.dgsi.pt ].
Conforme resulta das alegações de recurso o recorrente imputou à sentença recorrida o vício da nulidade por omissão, derivado do facto de na fundamentação de facto o tribunal a quo não indicar – “nunca indica”“que declarações ou meios de prova foram preponderantes para formar a sua convicção”.
Analisada a decisão recorrida, resulta claro não padecer a mesma do vício invocado.
Na fundamentação de facto o tribunal a quo fez menção à prova produzida, especificando os meios probatórios que considerou para a formação da sua convicção, referenciando de forma concreta os depoimentos que para o efeito valorou, bem como elementos documentais.
Como tal é claro que a decisão proferida não padece do invocado vício de falta de fundamentação.
Poderá o recorrente discordar da fundamentação na mesma aduzida, mas a mesma não é destituída de fundamentação.
Improcede como tal este fundamento de nulidade.
3) Em terceiro lugar cumpre analisar a pretendida reapreciação da decisão da matéria de facto.
Na reapreciação da matéria de facto – vide nº 1 do artigo 662ºdo CPC - a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente (admitido) impuser diversa decisão.
Tendo presente que o princípio da livre apreciação das provas continua a ser a base, nomeadamente quando em causa estão documentos sem valor probatório pleno; relatórios periciais; depoimentos das testemunhas e declarações de parte [vide art.os 341º. a 396º. do Código Civil (C.C.) e 607.º, n.os 4 e 5 e ainda 466.º, n.º 3 (quanto às declarações de parte) do C.P.C.], cabe ao tribunal da Relação formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis. Fazendo ainda [vide António S. Geraldes in “Recursos no Novo Código do Processo Civil, 2ª ed. 2014, anotação ao artigo 662º do CPC, págs. 229 e segs. que aqui seguimos como referência]:
- uso de presunções judiciais – “ilações que a lei ou julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido” (vide artigo 349º do CC), sem prejuízo do disposto no artigo 351º do CC, enquanto mecanismo valorativo de outros meios de prova;
- ou extraindo de factos apurados presunções legais impostas pelas regras da experiência em conformidade com o disposto no artigo 607º n.º 4 última parte (aqui sem que possa contrariar outros factos não objeto de impugnação e considerados como provados pela 1ª instância).
Importa ainda ter presente que é ónus dos recorrentes apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pedem a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC - na certeza de que estas têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC.
Analisadas as conclusões formuladas pelo recorrente, conclui-se que o mesmo cumpriu o ónus de impugnação e especificação que lhe é imposto pelo artigo 640º n.º 1 do CPC, das quais se extrai, tal como já supra referido, que este pugna pela mudança dos pontos 13, 14, 15 e 17 dos factos provados para os factos não provados.
Quanto a estes pontos 13 e 17 [sobre os quais disse ainda não serem factos] convocou o recorrente para o seu desacordo o depoimento da testemunha G... que no seu ver foi condicionado pelo tribunal a quo.
E quanto aos pontos 14 e 15 alegou o recorrente dos mesmos inexistir prova, alegando ainda ser falso que o depoimento de D... (“na parte legível” - entenda-se percetível), no qual o tribunal a quo aflora a sua convicção, tenha contribuído para o efeito.
Analisaremos em primeiro lugar as objeções apontadas aos pontos 13 e 17 dos factos provados.
Ora no que aos ponto 13 e 17 concerne, importa em primeiro lugar apreciar a crítica aos mesmos apontada de “não serem factos” e estarem eivados de apreciações ou considerações subjetivas.
Resulta do disposto no artigo 607º n.º 4 do CPC que na sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que não julga provados.
A contrario se extraindo que da sentença e nomeadamente da decisão de facto não devem constar nem juízos conclusivos nem conceitos normativo-jurídicos.
Não obstante e no que respeita aos conceitos normativo-jurídicos, vem a ser entendido jurisprudencialmente ser admissível incluir na factualidade provada conceitos que podem ser tidos como de direito quando simultaneamente os mesmos “forem factualizados e usualmente utilizados na linguagem comum, possuindo um sentido apreensível”. [vide nesse sentido Ac. STJ de 28/05/2015, Relator Granja da Fonseca in http://www.dgsi.pt/jstj].
Assim e fora deste circunstancialismo, deve a decisão da matéria de facto ser expurgada de conceitos de direito, bem como de asserções de natureza conclusiva, na medida em que estas devem resultar do raciocínio lógico dedutivo baseado nos concretos pontos de facto dados como provados, [cfr. Ac. STJ de 14/05/2014, Relator Melo Lima in http://www.dgsi.pt/jstj].
Seguindo este entendimento, justifica-se a alteração da redação dada ao ponto 13 dos factos provados, por forma a do mesmo excluir as asserções de natureza conclusiva no mesmo incluídas, eliminando a expressão “pese embora”.
Assim o ponto 13 dos factos provados passará a ter a seguinte redação
“13- A resolução, em benefício da MI, do referido contrato de c/v, veio a ser declarada ineficaz, por acórdão do TRP, já transitado em julgado.”
Sendo esta uma realidade factual documentada nos autos, porquanto respeita ao que decidido foi no apenso A, não merece a mesma em si qualquer censura e é independente da prova testemunhal produzida.
Analisando agora o ponto 17 dos factos provados, assiste igualmente razão ao recorrente quando alega que contém juízos conclusivos.
A realidade factual apurada, demonstrada pelas diversas vicissitudes processuais e que mereceram confirmação quer no depoimento da AI H... quer no depoimento da testemunha I... que foi TOC da “C...”, tendo o respetivo registo sido por nós ouvido, é que a insolvente não apresentou os elementos contabilísticos, nem os mesmos foram apreendidos pela AI apesar das diligências por si efetuadas nesse sentido [assim o disse a AI e os autos evidenciam as diligências nesse sentido – vide docs. de fls. 4 verso a 11 verso] e a testemunha I... confirmou (na sequência da sua identificação como TOC por parte das Finanças - doc. de fls. 10 destes autos) ter renunciado a tais funções em 26/07/2013 por não ter contacto com o cliente aqui insolvente, como aliás já o havia informado à AI por escrito (doc. de fls. 11 verso destes autos).
Não apresentação da contabilidade que o próprio recorrente reconhece.
A afirmação de “desconhece-se o destino dado à contabilidade” é uma asserção conclusiva que como tal deve ser expurgada deste ponto factual.
Tal como a justificação dada para o mencionado “desconhecimento” apenas deveria constar da fundamentação da decisão de facto, sendo em si irrelevante para o mérito dos autos.
O que efetivamente releva é a constatação factual de que os elementos contabilísticos da insolvente não foram apresentados, apesar das diligências feitas nesse sentido pela AI que igualmente não logrou concretizar a apreensão dos mesmos.
Assim de igual forma se impõe a alteração da redação dada ao ponto 17 dos factos provados, por forma a dos mesmo passar a constar o que releva e é aliás reconhecido pelo recorrente:
“17- A contabilidade da devedora não foi apresentada à AI nem esta logrou concretizar a sua apreensão”.
No que respeita a estes pontos da matéria de facto, são estas as alterações que se impõem e para os quais em nada altera o depoimento da testemunha G..., cuja registo gravado de igual forma foi por nós escutado.

Em segundo lugar, peticionou o recorrente a alteração dos factos provados 14 e 15, cuja transição para os factos não provados pugnou.
E neste ponto convocou em abono da sua dissensão o depoimento da testemunha D..., primo do requerido, cujo depoimento parcialmente é inaudível conforme o verificámos após a respetiva audição da gravação.
Depoimento longo e que efetivamente foi convocado pelo tribunal a quo para justificar o decidido.
Assim consta da fundamentação de facto:
«De facto, do conjunto de toda a prova produzida não nos restaram dúvidas quanto à censurabilidade do comportamentos do aqui requerido que não se coibindo de deixar de laborar (ou passando a laborar sob a égide da empresa de G...), fazendo desaparecer a maioria do equipamento que lhe foi dado pela F... para se fazer pagar da dívida que sobre a devedora havia acumulado, mas sem que tenha pago aos seus credores, onde se inclui o Estado.»
E justificando o assim afirmado e que grosso modo corresponde aos pontos 14 e 15 dos factos provados postos em causa, é convocado o depoimento da testemunha D..., primo do recorrente, dizendo-se que este (recorrente) teve o « “revés” de ver o seu próprio primo afirmar em Tribunal que o requerido sempre se manteve onde sempre laborou, isto é, na Rua ..., em ..., a trabalhar em parceria com G..., em moldes que não foi possível precisar qual sejam (…)», mais à frente prosseguindo «G..., testemunha que nitidamente teve o depoimento mais comprometido nestes autos, talvez porque bem sabia que “encobria” o requerido (como veio a declarar de forma clara a testemunha D...) (…).
Atendendo a que a testemunha D..., primo do requerido, confirmou que o requerido se mantinha a trabalhar com G..., no mesmo local onde a devedora laborava (…)»
Ainda do depoimento desta testemunha foi convocado o seguinte:
«D..., primo do requerido e gerente da F..., contou (nos dois depoimentos prestados em audiência de julgamento) que a devedora prestava serviços à F... e a G... era sua funcionária sendo certo que antes da devedora a empresa que lhe prestava serviços chamava-se “J...” e era do seu primo.
Relatou que tendo acumulado (a sua empresa) dívidas elevadas, acabou por celebrar o contrato com a devedora pelo qual deu ao requerido e à devedora os dois estabelecimentos industriais que detinha com todos os bens que os integravam, bens e estabelecimentos que tinham o valor de 100.000,00€.
Tais bens e máquinas são os que constam dos documentos de fls. 109/149 e cujo destino se desconhece.
Confirmou ainda que, pese embora se tenha zangado, entretanto, com o seu primo e deixado de “aparecer” nas instalações que haviam sido suas e que agora eram da devedora, a elas voltou no dia em que foi convocado para comparecer em juízo como testemunha, neste processo, tendo nessa altura falado com a G... e com o seu primo.
Foi aliás paradigmática de todo este depoimento as expressões usadas por esta testemunha quando afirmou que o “B... anda sempre a mudar de fábrica” e “o B... mudava o nome da empresa como quem muda de camisa”.
No segundo depoimento confirmou que grande parte dos equipamentos que foram transmitidos para o requerido desapareceram e que é o seu primo quem efetivamente explora a atividade, agora com o nome “E...” desconhecendo porém que tipo de acordo tem o requerido com a G... mas sabendo que ali se trabalha e que é o requerido quem lá está com autoridade»
Da fundamentação de facto na parte que assim extratamos resulta evidente o relevo que o tribunal a quo deu ao depoimento desta testemunha para a formação da sua convicção na decisão de facto, sem prejuízo dos demais elementos probatórios que na mesma são convocados.
Alegando o recorrente que as afirmações do tribunal a quo são “deturpadas” ou “bem diferentes da apreciação e conclusão que o tribunal a quo faz” quanto às declarações desta testemunha e sendo seu ónus de tal fazer prova, resulta que só a total percetibilidade do depoimento desta testemunha nos permitiria apreciar se a decisão recorrida neste segmento merece ou não crítica.
Com efeito e tal como afirmado e sumariado no já supra citado Ac. da TRL de 30/05/2017, “Sendo a inquirição (parcialmente impercetível) essencial para a apreciação do recurso na parte em que ocorre impugnação da decisão de facto, fica o Tribunal da Relação impossibilitado de efetuar a reapreciação da prova pretendida pelo apelante porquanto a reapreciação da prova tem de ser feita com os mesmos elementos com que o tribunal recorrido se defrontou.”
Consequentemente e nesta parte, uma vez que a nulidade da deficiente gravação não foi tempestivamente arguida para que pudesse ser conhecida e daí se retirarem as necessárias implicações processuais, é-nos vedado o conhecimento desta parte do objeto do recurso.
Pelo que e quanto a estes pontos da matéria de facto, nada se altera quanto ao decidido.

4) erro na aplicação do direito, como consequência da alteração da matéria de facto pugnada - nomeadamente quanto ao fundamento de ter o requerido feito desaparecer máquinas o que alegou ser falso - peticionou o recorrente a revogação parcial da sentença proferida por forma a ser reduzido o período de inibição “para o exercício do comércio (…)” de cinco para dois anos, porquanto entende desproporcional o período fixado.
Em função do acima já apreciado, resulta que a matéria de facto convocada pelo recorrente para a alteração do decidido, como consequência da pugnada alteração, manteve-se inalterada.
Ainda assim e perante o quadro factual apurado, com as alterações introduzidas supra quanto aos factos provados 13 e 17, importa aferir se o período de inibição fixado pelo tribunal a quo se mostra desproporcionado à gravidade dos factos e assim merece censura.
Certo sendo que da qualificação da insolvência como culposa, ao abrigo do artigo 189º do CIRE não recorreu o recorrente.
A redação atual deste normativo legal, introduzida pela Lei 16/2012 de 20/04 e como tal plenamente aplicável a estes autos, teve a virtualidade de:
- ter acomodado a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da al. b) do nº 2 proferida pelo Ac. do T.Constit. de 02/04, nº 173/2009 publicado in DRE de 04/05, 1ª S, assim e neste conspecto tendo de tal normativo eliminado a declaração de inabilitação impositiva que em tal alínea era prevista e que foi causa da declaração de inconstitucionalidade[3];
- acolher a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros que não estava prevista na versão original e se não podia considerar subsumida na então imperativa inabilitação delas;
- estatuir a responsabilidade pessoal e solidária das pessoas consideradas culpadas perante os credores do devedor pelo montante não satisfeito dos seus créditos[4].
In casu o tribunal a quo, apenas decretou a inibição para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa nos termos da al. c) do nº 2 do artigo 189º do CIRE em análise e por um período de cinco anos e é a esta sanção e mais concretamente quanto ao período de duração da mesma que se restringe o objeto do recurso e sobre a qual nos cumpre pronunciar.
O recorrente, qualificando-a de desproporcional, pugnou pela sua redução ao período mínimo de dois anos.
Tendo em conta que a sanção a que esta alínea se reporta tem na sua base uma pressuposta desconfiança quanto à “atuação na área económica em relação a quem no seu comportamento, com dolo ou culpa grave, de algum modo contribuiu para a insolvência”[5], deve-se para o efeito atender à gravidade do comportamento e à relevância do mesmo para a verificação da insolvência e suas consequências.
Tal como afirmado no Ac. TRP de 08/10/2015, Relator Aristides R. Almeida in www.dgsi.pt/jtrp que pelo seu acerto aqui se reproduz: “O fundamento material da inibição do insolvente que incorreu em insolvência culposa parece ser a defesa geral da credibilidade do comércio, servindo para afastar do comércio os agentes que incorreram em comportamentos censuráveis e cuja atividade pode gerar a desconfiança nos demais agentes e perturbar a atividade comercial. O interesse público do normal funcionamento da economia e do mercado concorrencial justifica, com efeito, a rejeição de comportamentos que além de serem lesivos dos direitos particulares dos credores, são igualmente prejudiciais para a sã concorrência e para o normal funcionamento do mercado. Daí que o fim último da inibição não seja sancionar o insolvente, mas estabelecer um período de tempo que possa ser dissuasor de comportamentos idênticos, seja do insolvente seja dos demais agentes que ficam prevenidos para as consequências de uma atuação similar.”
Tendo presentes estes pressupostos e revertendo à factualidade apurada, temos como assente que a devedora de que o requerido era gerente em 01/2014 [a insolvência da devedora foi requerida em 11/07/2014] vendeu parte dos seus bens à “E...” por € 40.054,95, tendo feito desaparecer os demais bens que em 09/12/2013 havia adquirido à “F...” e que integravam todo o imobilizado dos dois estabelecimentos comerciais recebidos daquela pelo valor atribuído de € 160.000,00 [vide factos provados 1, 9 e 10 e 14]; ainda incumpriu o mesmo o dever de depositar as contas anuais da devedora na conservatória do registo comercial (vide ponto 16 dos factos provados).
Condutas estas culposas (vide 186º do CIRE), prejudiciais aos interesses dos credores, bem como do interesse público no normal funcionamento da economia e do mercado concorrencial e como tal merecedoras da sanção aplicada.
No outro contraponto, das consequências da insolvência, há que considerar o valor dos créditos reclamados que sendo relevantes, não se podem considerar muito elevados no panorama da normal laboração de uma empresa, da qual e embora se desconhecendo o valor de faturação anual, atenta a não apresentação/apreensão dos elementos de contabilidade, acumulou créditos junto da sua cliente F... no valor de € 142.401,80 (vide ponto 8 dos factos provados).
Os créditos reclamados somaram o valor total de € 24.670,25 [correspondentes a € 978,45 à EDP; € 15.658,45 à Fazenda Nacional e € 8.033,35 à trabalhadora e requerente da insolvência K..., decorrente da declaração de ilicitude do despedimento por sentença – vide relação de créditos da AI junta ao apenso B de 27/05/2015].
Neste contexto há que reconhecer que a conduta do afetado pela qualificação da insolvência, embora merecedora de censura e gravosa foi geradora de consequências, do ponto de vista do interesse público e da economia moderadas, justificadoras de uma sanção que deverá ser situada próximo do limite inferior previsto pelo legislador, justificando como tal a redução da sanção para o período de 3 anos.
Nestes termos conclui-se pela parcial procedência do recurso apresentado.
***
IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto e consequentemente, revogando parcialmente a decisão recorrida, decide-se reduzir a inibição do requerido para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa ao período de 3 (três) anos.
Custas pelo recorrente e MI na proporção de 1/3 e 2/3 respetivamente.
Notifique.

Porto, 2018-05-30
Fátima Andrade
Oliveira Abreu
António Eleutério
_____________
[1] Vide neste sentido CPC Anot. Lebre de Freitas, edição Coimbra Editora, Vol. I, p. 311 em anotação ao artigo 155º; Abrantes Geraldes in Recursos no Novo CPC, ed. 2014, p. 136.
[2] Na jurisprudência, vários têm sido os arestos que sobre esta questão têm sido proferidos, dos quais faremos uma breve resenha, elucidando o que se nos afigura ser o entendimento maioritário quanto à posição por nós assumida:
- Assim no TRP, vide Ac. de 30/04/2015, Relator José Amaral; Ac. 17/12/2014, Relatora Judite Pires; Ac. de 13/02/2014, Relator Aristides Rodrigues de Almeida, no qual e fazendo uma análise comparativa entre o novo e o anterior regime, se pode ler no respetivo sumário:
“I - Na vigência do anterior CPC a irregularidade da gravação dos meios de prova prestados na audiência constituía uma nulidade processual secundária, que devia ser arguida no prazo de 10 dias a contar do dia em que a parte interveio no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, desde que, neste último caso, devesse presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou podia ter tomado conhecimento dela, agindo com a necessária diligência.
II - A parte goza da faculdade de minutar as suas alegações de recurso até à data limite para a sua apresentação e, como tal, pode aperceber-se da falha da gravação apenas nesse último momento, razão pela qual podia invocar a irregularidade apenas nas alegação de recurso, excepto se se demonstrasse que teve conhecimento do vício mais de dez dias antes do termo desse prazo.
III - O art. 155.º do novo CPC consigna agora de forma expressa que o prazo de arguição do vício da deficiência da gravação é de 10 dias a contar da disponibilização da gravação, a qual, por sua vez, deve ocorrer no prazo de 2 dias a contar da realização da gravação.”
- No TRL vide Ac. de 19/05/2016, Relator Jorge Leal e Ac. 30/05/2017, Relator Luís Filipe de Sousa em cujo sumário se pode ler: “I-A deficiência da gravação de inquirição de testemunha tem de ser arguida pela parte no tribunal a quo, no prazo de dez dias a partir do momento em que a gravação é disponibilizada (Artigo 155º, nº4, do Código de Processo Civil).
II-Decorrido esse prazo sem que seja arguido o vício em causa, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida nas alegações de recurso.”;
- no TRC, vide Ac. de 10/07/2014, Relator Teles Pereira;
- no TRG, vide Ac. de 12/03/2015, Relatora Helena Melo; Ac. 11/09/2014, Relator Heitor Gonçalves;
- No TRE vide Ac. de 12/10/2017, Relator Vítor Sequinho dos Santos.
Vide ainda Ac. de 05/05/2016, Relator Canela Brás (neste se fazendo também uma resenha histórica das posições antes assumidas no âmbito do anterior CPC) no qual e ainda que neste se tenha defendido ser de contar o prazo dos 10 dias apenas após a disponibilização – entendida a disponibilização como “entrega” da gravação ao interessado que invoca a nulidade da gravação - retirando à parte o ónus de requerer essa mesma entrega da gravação dentro do prazo do artigo 155º nºs 3 e 4 a contar do fim da audiência, do que discordamos, seguiu o entendimento de que a nulidade tem de ser arguida nos 10 dias subsequentes, afastando assim a possibilidade de tal nulidade ser arguida em sede de alegações de recurso da decisão final.
[3] O que se realça atendendo à desfasada menção por parte do tribunal a quo, certamente por lapso, da inconstitucionalidade da al. b), correta porém e apenas quando referida à redação deste normativo já não em vigor e não aplicável a estes autos.
[4] Vide CIRE Anot. de Luís Fernandes e João Labareda, 3ª edição, p. 693 em anotação ao artigo 189.
[5] Vide CIRE Anot. de Luís Fernandes e João Labareda já supra citado, p. 695, nota 9.