Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3299/14.1TAMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HORÁCIO CORREIA PINTO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
NAMORO
RELAÇÃO ANÁLOGA À DOS CÔNJUGES
Nº do Documento: RP201509303299/14.1TAMTS.P1
Data do Acordão: 09/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Sendo elemento do crime de violência doméstica o namoro tal como a relação análoga à dos cônjuges deve ser caracterizada por sólidos e indesmentíveis elementos fácticos que a comprovem.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO Nº 3299/14.1TAMTS

Nos presentes autos de recurso acordam, em conferência, os juízes que integram a 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I – RELATÓRIO

O Ministério Público acusou, para julgamento em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular:
B…, divorciado, operador gráfico, nascido em 14/06/1968, em …, filho de C… e de D…, titular do Bilhete de Identidade n.º ……. e residente na …, n.º .., em ….

Imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. nos termos do artigo 152.°, n.° 1, alínea b), do Código Penal.


II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Factos Provados:

1) O arguido e a ofendida E… mantiveram uma relação análoga aos dos cônjuges, com coabitação, entre Setembro de 2010 e Março de 2011, posto o que e até 3 de Julho de 2014 mantiveram uma relação de namoro “intermitente”.
2) O arguido começou a maltratar fisicamente e psicologicamente a ofendida, desde Março de 2011, tendo sido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples na pessoa daquela, na pena de prisão de 10 meses, cuja execução ficou suspensa pelo período de um ano, com sujeição do arguido a regime de prova, tendo a sentença transitado em julgado em 29/11/2013.
3) Não obstante esta condenação, o arguido, no dia 16/06/2014, entre as 15h00 e as 16h00, dirigiu-se à residência da ofendida, na Rua …, n.º .., casa ., em …, Matosinhos, tocou à campainha da porta e como a ofendida não a abriu, o arguido nela adentrou pela janela da cozinha.
4) No interior da habitação, o arguido dirigiu-se à ofendida e apodou-a de “puta, filha da puta”.
5) Em resposta a ofendida ordenou-lhe que abandonasse aquele local e se não o fizesse chamaria a GNR, o arguido, insatisfeito com esta atitude da ofendida, disse-lhe: “já chamaste a Guarda, sua filha da puta? Eu posso ir preso, mas tu hoje morres, sua puta”.
6) De imediato, o arguido agarrou a ofendida pelos cabelos, arrastou-a até ao quarto de dormir, atirou-a para cima da cama e desferiu-lhe vários murros e pontapés por todo o corpo, apertou-lhe o pescoço com as duas mãos e tentou com ela manter relações sexuais.
7) O arguido só fugiu daquele local porque, entretanto, uma vizinha da ofendida, ao ouvir os gritos desta, apercebeu-se da presença do arguido naquele local e solicitou a presença da GNR que ali se deslocou.
8) Com tal conduta, o arguido causou a E… cefaleias generalizadas, cervicalgia e dorsalgia em relação com os movimentos e dor na face anterior do pescoço, necessitando de medicação analgésica para a deglutição, sendo que, quando examinada no IML em 17/06/2014 apresentava as seguintes lesões:
Tórax: quatro escoriações lineares eritematosas com 5, 4, 4 e 2 cm de comprimento, dispersas na face anterior do tórax;
Membro superior direito: duas equimoses arroxeadas com 0,5 cm de diâmetro cada uma, localizadas no terço médio da face externa do braço; duas equimoses localizadas no terço médio da face interna do braço, uma amarelada com 0,5 cm de diâmetro e outra arroxeada com 1 cm de diâmetro; duas escoriações lineares eritematosas localizadas no terço inferior da face interna do braço, uma com 4 cm e outra com 3 cm de comprimento; duas escoriações milimétricas na face dorsal do 3º dedo;
Membro superior esquerdo: conjunto de cinco equimoses arroxeadas, uma linear com 4 cm de comprimento, outra com 3 por 0,5 cm, duas com 5 por 0,5 cm e outra com 3 por 0,5 cm de maiores dimensões, todas dispostas horizontalmente e paralelas entre si, localizadas no terço superior da face posterior do braço e face posterior do ombro; escoriação linear eritematosa com 5 cm de comprimento localizada inferiormente às equimoses atrás descritas; equimose arroxeada com 2 cm de diâmetro no dorso da mão e três escoriações milimétricas na face dorsal do 4º dedo;
Membro inferior esquerdo: três escoriações lineares eritematosas, uma com 6 cm, outra com 4 cm e outra com 2 cm de comprimento, localizadas no terço superior da face ântero-externa da perna.
9) As lesões a que vem de aludir-se determinam, em condições normais, 8 dias para a cura sem afectação da capacidade de trabalho geral.
10) No dia 3 de Julho de 2014, o arguido ligou à ofendida e pediu-lhe para se encontrar com ela pois queria reatar a relação.
11) Para evitar mais uma cena em frente à sua casa, a ofendida aceitou encontrar-se com o arguido em local público, que ambos acordaram ser no “F…”.
12) Ali, o arguido convidou a ofendida a entrar no seu automóvel com a desculpa de que “ninguém precisava de ouvir a conversa”, ao que esta acedeu.
13) Logo que a ofendida entrou no veículo, o arguido pô-lo em marcha e rumou para o …, junto ao parque temático G…, atualmente desativado, onde o parou e, de imediato, pôs-se sobre a ofendida, pedindo-lhe perdão e para reatar a relação íntima que entre eles existiu.
14) Como a ofendida não acedeu a tal, o arguido apodou-a de “galdéria, vaca, puta, cabra, filha da puta” e disse-lhe que “se não aceitares reatar o namoro comigo, vou-te fazer a tua vida num inferno, se não és minha não és de mais ninguém, eu mato-te” e só se acalmou com a intervenção da GNR, que fora ao local em patrulhamento de rotina e se aproximou do carro do arguido, atraída pelos gritos da ofendida.
15) O ambiente causado pela atuação do arguido é de permanente terror, provocando na ofendida receio de novas ameaças e violências físicas e psíquicas; perturbação e ansiedade, agravadas pelo modo arbitrário do arguido decidir insultá-la, ameaçá-la e ofendê-la física e psiquicamente em qualquer local público e pela consequente imprevisibilidade do momento em que tais comportamentos surgiam, num quadro de violência permanente praticada pelo arguido na pessoa da ofendida.
16) Ao agir da forma descrita, o arguido fê-lo, sempre movido por sentimentos de menosprezo e egoísmo, deliberada, consciente e livremente, sendo sua intenção vexar, humilhar, perturbar o bem estar físico e psíquico da ofendida e de criar nesta a convicção de que, quando bem entendesse, a molestaria física e psicologicamente, o que sempre conseguiu, e de que atentaria contra a sua vida e integridade física, quando muito bem entendesse; bem sabendo que tal conduta é proibida e punida por lei.
Quanto às condições pessoais e antecedentes criminais do arguido provou-se ainda que:
17) O arguido cresceu no agregado familiar de origem, constituído pelos progenitores e por três irmãos mais velhos, em casa térrea arrendada situada na morada descrita nos autos.
18) O pai do arguido trabalhava como taxista e a mãe como empregada de limpeza num estabelecimento escolar próximo da residência do agregado, sendo a situação económica descrita como modesta.
19) Apesar do arguido ter uma relação de proximidade afectiva com a mãe, descreve uma dinâmica familiar pautada pela conflitualidade, descrevendo episódios de violência conjugal do pai sobre a mãe, comportamento que associa aos consumos alcoólicos excessivos do progenitor.
20) O arguido ingressou no sistema formal de ensino na idade regulamentar e concluiu o 6º, registando duas retenções no segundo ciclo do ensino básico.
21) Com 13 anos o arguido iniciou a sua trajetória profissional como gráfico, atividade que manteve de forma regular.
22) Com 18 anos o arguido iniciou a primeira relação afetiva de namoro que evoluiu para casamento quando o arguido tinha 24 anos de idade, tendo nascido no seio desse casamento uma descendente, atualmente com 18 anos de idade.
23) A dinâmica conjugal era instável, instabilidade que acabaria por levar à rutura conjugal em 2003 e que tinha origem nos consumos excessivos de bebidas alcoólicas por parte do arguido.
24) Desde o divórcio que o arguido se manteve afastado da filha, só muito recentemente tendo reatado o convívio, o que faz ocasionalmente.
25) Em 2010 iniciou relação afetiva com a ofendida que, apesar de terminado, o arguido ainda referencia como significativo em termos afetivos.
26) Durante o relacionamento com a ofendida, o arguido manteve os consumos excessivos de álcool.
27) À data dos factos, o arguido estava profissionalmente ativo, e trabalhava na empresa “H…, Lda.”, onde auferia o vencimento de € 580,00 mensais, dos quais entregava à progenitora, com quem vive, € 150,00 para ajudar nas despesas do agregado.
28) Para debelar a sua dependência do álcool, o arguido procurou apoio clínico, retomando acompanhamento junto da consulta de psiquiatria do Centro Hospitalar do Porto (Pólo do Porto) e mostrando-se disponível para continuar o tratamento.
29) Atualmente o arguido está desempregado, após processo de rescisão por mútuo acordo com a “H…, Lda.”, auferindo, a título de subsídio de desemprego, a quantia de € 439,00, da qual contribui com € 200,00 para as despesas mensais.
30) O arguido perspetiva iniciar em breve trabalho, como gráfico, numa empresa da Maia.
31) O arguido mantém a crença na possível reconciliação com a ofendida, razão pela qual vem tentando o contacto telefónico e pessoal com aquela.
32) Nos seus tempos livres, o arguido verbaliza interesse em assistir televisão.
33) No meio social em que se insere e apesar de não lhe serem conhecidas condutas transgressivas, o arguido é conhecido pelo seu temperamento nervoso e pelos seus consumos alcoólicos excessivos.
34) O arguido evidencia espírito crítico e de autocensura dos comportamentos que lhe são imputados, afirmando-se consciente de que os mesmos são exponenciados pelo consumo alcoólico excessivo.
35) A mãe do arguido mostra-se disponibilidade para o apoiar e motivar no que respeita à adesão terapêutica ao problema aditivo.
36) Já foi condenado:
- Por sentença transitada em julgado em 12/06/2012, no âmbito do Processo n.º 269/10.2PBMAI, que correu termos no extinto 2.º Juízo de Competência Criminal da Maia, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, num total de 480,00€, por factos praticados em 09/04/2010;
- Por sentença transitada em julgado em 29/11/2013, no âmbito do Processo n.º 725/12.8GBMTS, que correu termos no extinto 3.º Juízo Criminal do Tribunal de Matosinhos, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 1 ano, com sujeição a regime de prova, por factos praticados em 06/10/2012; e
- Por sentença transitada em julgado em 30/10/2014, no âmbito do Processo n.º 1264/13.5PIPRT, que correu termos na Comarca do Porto, Instância Local, Secção Criminal, J7, pela prática de um crime de sequestro, 1 crime de ameaça agravada e 1 crime de ofensa à integridade física qualificadas, na pena única de 2 anos de prisão, suspensa na execução por igual período e com sujeição a regime de prova, por factos praticados em 09/09/2013.

Factos Não Provados
Não se demonstrou que, desde o início da relação, o arguido tenha maltratado física e psicologicamente a ofendida.

III – MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

No apuramento da factualidade julgada provada, o Tribunal formou a sua convicção com base na valoração crítica e conjugada dos meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento, atentas as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador. O tribunal teve em conta, designadamente, os documentos juntos aos autos:
- Auto de notícia de fls. 3-6 do apenso aos presentes autos;
- Ficha de Urgência de fls. 23;
- Certidão Judicial extraída do processo que correu termos sob o n.º 725/12.8GBMTS, do extinto 3º Juízo Criminal de Matosinhos, de fls. 42-65;
- Relatório da Perícia de Avaliação de Dano Corporal em Direito Penal de fls. 81-83;
- CRC de fls. 189-192;e
- Relatório Social de fls. 203-208.
O Tribunal considerou, ainda, o depoimento sério, isento e credível da ofendida E…, e das testemunhas I…, vizinha da ofendida e que descreveu com detalhe a chegada do arguido a casa da E… no dia 16/06/2014, o modo como entrou e o estado de exaltação em que o fez e os gritos que ouviu até à saída do arguido, e J…, guarda principal da GNR e que acorreu em auxílio da ofendida nos factos ocorridos em 03/07/2014.
O arguido igualmente prestou depoimento, mas fê-lo em moldes algo ambíguos: ora confessava os factos constantes da acusação, ora afirmava não se recordar dos mesmos, ora admitia como possível tê-los praticado.
Concretizando.
Para prova da factualidade vertida em 1) a 9) o Tribunal considerou o depoimento da ofendida E…, conjugado com o teor dos documentos de fls. 23, 42-65 e 81-83 e, bem assim com o depoimento da testemunha I… que assistiu a parte dos factos.
Com efeito, a ofendida referiu que coabitou com o arguido durante 6 meses, entre Setembro/Outubro de 2010 e Março de 2011, explicando que conheceu o arguido em final de Agosto e pouco depois terão começado a viver em condições análogas às dos cônjuges.
Inicialmente a relação correu bem – a ofendida afirma ter conseguido “tirar os vícios” ao arguido (o que foi determinante para a consideração do facto não provado) –, mas a certa altura o arguido começou a beber e quando a ofendida foi operada, o que aconteceu em Março de 2011, ao regressar a casa, o arguido bateu-lhe, “quase me matou”, razão pela qual o pôs fora de casa e denunciou, acabando o arguido por ser condenado no âmbito do processo n.º 725/12.8GBMTS.
Apesar da condenação, o arguido continuou a procurar a ofendida, com promessas de que mudaria a conduta, mas depois, “era a loucura”, insultava-a, batia-lhe, ameaçava-a. A este propósito, a ofendida admitiu que, entre Março de 2011 e o episódio de 03/07/2014 (pese embora tivesse a ideia de que o último episódio ocorreu na noite de São João), mantiveram uma relação de namoro, que ora retomavam, ora terminavam.
No dia 16/06/2014, o arguido telefonou-lhe dizendo que ia ter com ela e encontraram-se na rua. O arguido pediu-lhe dinheiro. Ela recusou-se e ele disse-lhe que fosse buscar o anel que lhe oferecera, tendo a ofendida aproveitado para se fechar em casa.
Ele entrou no corredor de acesso à casa da ofendida (que vive numa ilha) e, como aquela não lhe abriu a porta, entrou pela janela da cozinha, apesar da vizinha I… e a ofendida o terem tentado impedir.
O arguido já no interior da sua casa, apertou o pescoço da ofendida e arrastando-a pelos cabelos para o quarto, atirou-a para a cama, batendo-lhe e tentou mesmo tirar-lhe os calções para com ela manter relações sexuais, o que ela não permitiu.
Enquanto isto chamava-lhe “puta” e “cabra” e dizia-lhe que a ia matar.
Como percebeu que haviam chamado a GNR, o arguido saiu de casa da ofendida quando a GNR estava a chegar.
Como fica dito, este depoimento foi integralmente corroborado pela testemunha I…, que descreveu o modo como tentou impedir a entrada do arguido em casa da vizinha (segurou-lhe numa perna), mais relatando ter chamado a GNR, que chegou pouco depois, cruzando-se com o arguido no portão de saída do corredor de acesso às casas.
Afirmou também ter tido a preocupação de auxiliar a ofendida, por vê-la muito alterada e magoada e por saber que aquela sofre de diabetes, tendo chamado o INEM para que recebesse tratamento médico.
O depoimento da ofendida foi ainda determinante para que o Tribunal julgasse como provada a factualidade vertida em 10) a 14), tendo aquela explicado que acedeu a encontrar-se com o arguido no F… para evitar mais cenas à porta de casa (que tanto a envergonham) e que, ali chegada, aceitou conversar dentro do carro, porque o arguido lhe pareceu calmo (não lhe pareceu que tivesse estado a beber antes).
Contudo, mal entrou no carro, o arguido pô-lo em movimento e foram para o …, onde o arguido começou a pedir-lhe que reatassem. Quando lhe disse que não, o arguido começou a exaltar-se, foi para cima de cima, pôs-lhe a mão no pescoço sem apertar e começou a gritar insultando-a e ameaçando-a de morte se não reatasse o relacionamento consigo.
Os gritos do arguido terão atraído a atenção da GNR que se aproximou e pôs fim à situação, levando a ofendida a casa.
A este propósito, o arguido negou ter insultado ou ameaçado a testemunha, afirmando que apenas lhe declarava o seu amor e pedia que reconsiderasse, mais afirmando ter sido o próprio a levar a ofendida a casa e não a GNR.
Contudo, a testemunha J…, que estava no carro patrulha que acorreu ao local, desmentiu esta versão do arguido, dizendo que se aproximaram por ouvir gritos e que viu o arguido tombado para cima da ofendida, gesticulando e discutindo com violência.
Descreveu o alívio com que a ofendida encarou a sua presença e que a aquela estava muito assustada como o que se passou no interior do veículo, chorando e tremendo.
A testemunha foi perentória ao afirmar que levaram a ofendida a casa, não permitindo que o arguido o fizesse e, bem assim, que foi o próprio quem elaborou o auto de notícia (de fls. 3 a 6 do apenso), fazendo contar do mesmo a data e hora dos factos.
No que concerne aos factos vertidos em 15) a 16), O Tribunal considerou essencialmente o depoimento da ofendida, conjugado com o depoimento das testemunhas I… e J… e, bem assim, com as regras da experiência que evidenciam a verosimilhança da factualidade ali vertida.
No que concerne às condições pessoais do arguido [factos 17) a 35)], o Tribunal considerou essencialmente o teor do Relatório Social de fls. 203-208.
Finalmente, e quanto aos seus antecedentes criminais, o tribunal formou a sua convicção tendo em conta o teor do Certificado do Registo Criminal, junto aos autos a fls. 189 a 192.
No que respeita aos factos não provados a decisão do Tribunal resulta da existência de prova em sentido contrário.

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1- Quanto ao crime de Violência Doméstica:
Vem o arguido acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. nos termos do artigo 152.°, n.°1, alínea b) do Código Penal, tendo-se procedido, após a audiência de julgamento, à alteração da qualificação jurídica, passando ao arguido a ser imputada a prática de um crime de violência doméstica com a agravação do artigo 152º, n.º1, al. b) e n.º 2 do Código Penal.
O artigo 152.º, n.º1 alínea b) do Código Penal dispõe: “ 1 — Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: (…) b) a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.” Por sua vez, o artigo 152.º, n.º2 refere “no caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”
O bem jurídico que se visa proteger com tal incriminação é a saúde física, psíquica e mental.
Como elementos objetivos necessários à ocorrência do tipo em análise temos: 1) os maus tratos físicos; 2) os maus tratos psíquicos.

Desta forma, podemos concluir que o arguido com as suas condutas preencheu os elementos objetivos e subjetivos do tipo previsto no art.º 152º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do C.P, pelo que vai condenado.

3. Determinação da medida da pena:
Aqui chegados, resta determinar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido.
O crime de violência doméstica agravado é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.
Nos termos do disposto no art. 40.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa do agente.
No que concerne à determinação da medida da pena concretamente a aplicar ao arguido, nos termos do disposto no art. 71.º, n.º1 do Código Penal, será feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Assim, constituindo a culpa o limite inultrapassável da medida da pena (art.40.º, n.º2 do Código Penal), e decorrendo o seu limite mínimo de considerações ligadas à prevenção geral, a medida exacta da pena será fruto das exigências de prevenção especial.
No mais, a medida da pena, além de determinada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção geral e especial, deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra aquele, devendo o Tribunal atender, nomeadamente, ao grau de ilicitude do facto, à culpa do agente, à intensidade do dolo ou negligência, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, aos fins ou aos motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente e à sua situação económica, à conduta posterior e anterior ao facto e à falta de preparação, revelada através dos factos, para manter uma conduta conforme às prescrições ético-jurídicas.
Assim, a pena concreta a aplicar ao arguido, será encontrada dentro da moldura abstrata de 2 a 5 anos de prisão, ponderadas as circunstâncias atenuantes e agravantes que no caso devam ser consideradas.

Cotejando os factos do caso sub judice, e tendo em conta os princípios supra referidos, verificamos que:
- No que respeita à ilicitude, a mesma revela-se de intensidade elevada, atendendo às circunstâncias que rodearam a prática dos factos, a violência empregue e o facto de parte das agressões, injúrias e ameaças foram praticadas em casa desta e foram percecionadas pelos vizinhos da ofendida.
- No que concerne à culpa, o arguido agiu sempre da forma que representa um maior desvalor jurídico-social, isto é, com dolo direto, querendo molestar física e psicologicamente a ofendida, não se importando com as consequências que os seus actos pudessem ter, tanto assim é que, apesar de se dizer arrependia, repetia a sua conduta uma e outra vez.
- No que respeita à prevenção geral, entende-se que a mesma é elevada, na medida em que se trata de um tipo praticado com frequência, sendo por isso, necessário o reforço da consciência jurídica comunitária e do sentimento de segurança face à violação das normas em causa.
- Já as necessidades de prevenção especial, revelam-se, in casu, de intensidade média/alta, uma vez que apesar do arguido contar com três condenação anteriores, relativa a crimes contra as pessoas e contra a liberdade, alguns dos quais, com prolação de sentença pouco antes dos factos em causa nos presentes autos, parecer estar familiar e socialmente inserido, ao que acresce a circunstância de, de Julho de 2014 a esta parte, apesar do arguido ter encontrado a ofendida, não mais a perturbou. Contudo há que assinalar que a sua personalidade, expressada nos factos considerados provados, é reveladora de uma violência assinalável, tudo indica que motivada pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas, e de um total desprezo pela integridade física e moral da ofendida, E…, de tudo fazendo para levar avante os seus intentos criminógenos, não se importando com quem estivesse a assistir, com as consequências que adviessem dos seus actos.
Assim, não pode deixar de concluir-se realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de prevenção geral e especial da punição, considerando-se justa, adequada e proporcional, à conduta do arguido, a pena de 2 anos e 4 meses de prisão.

Cumpre ainda ponderar, de harmonia com o artigo 50.º/ 1 do Código Penal, a suspensão da execução daquela pena de prisão, uma vez que a mesma se cifra em número de anos inferior a cinco.
Dispõe o art. 50.º, n.º1 do CP, que “o tribunal suspende a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Este é, pois, um poder-dever do tribunal, o qual suspenderá a execução da pena de prisão sempre que, atentos os fatores preceituados por aquele normativo, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente, ou seja, sempre que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarem para afastar o delinquente da criminalidade.
Revertendo ao caso que ora se cura, verifica-se que o arguido tem antecedentes criminais, tendo sido condenado em duas penas de prisão suspensas na execução, uma das quais, aplicada já após a prática dos factos em causa nos presentes autos.
Atendendo às finalidades da punição previstas no artigo 40.º do Código Penal, nomeadamente a importância de assegurar com as penas a reintegração do agente na sociedade, acredita-se ser ainda de conceder uma oportunidade – a derradeira – ao arguido de repensar a sua conduta em liberdade (cabendo ao arguido, que vivenciou a violência conjugal entre os seu progenitores motivada pelo consumo alcoólico do pai, arrepiar caminho para trilhar um caminho diferente do que vem percorrendo), na tentativa, até, de não fazer perigar a sua integração social e familiar.
Pelo exposto, considerando em particular a reduzida pena de prisão aplicada, o facto de o arguido estar social e familiarmente inserido e a circunstância de não mais ter perturbado a ofendida, tudo apontando para a baixa probabilidade de o mesmo voltar a reincidir na conduta delituosa, desde que cerceado o problema de base que é a dependência alcoólica, o Tribunal considera que a simples censura dos factos e a ameaça de execução da pena de prisão afasta-lo-á da prática de futuros crimes e constituirá um incentivo para que não volte a praticar estes factos.
Assim, entende-se por adequado suspender a execução da pena de prisão pelo período de 2 anos e 4 meses.
Esta suspensão deverá ser acompanhada de regime de prova, nos termos dos artigos 50.º, n.º 2, 53.º, n.1 e 2 e 54.º do C.P., de forma a assegurar melhor a ressocialização, reeducação e reintegração do arguido na sociedade.
O plano individual de readaptação social deverá ser delineado pela DGRS, tendo em consideração o disposto no artigo 54.º do Código Penal, determinando designadamente a frequência de programas de prevenção de violência doméstica e, bem assim, de tratar a sua adição alcoólica, com a sujeição ao acompanhamento psiquiátrico e psicológico que sejam determinados.
A suspensão fica, ainda, sujeita à obrigação de o arguido não se aproximar, nem contactar, por qualquer meio, a ofendida E… pelo período de 1 (um) ano (artigo 152º, n.º 4 e 5 do CP).

VI – DISPOSITIVO

Pelo exposto, o Tribunal julga a acusação parcialmente procedente por provada e, consequentemente, decide:
● Condenar o arguido B…, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. nos termos dos artigos 152.º, n.º1, b) e n.º2 do Código Penal, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, cumprindo os programas e objetivos que venham a ser determinados pela DGRS, designadamente a frequência de programas de prevenção da violência doméstica, e com a obrigação de o arguido se sujeitar a tratamento da sua dependência alcoólica e não se aproximar, nem contactar, por qualquer meio, a ofendida E… pelo período de um ano.

(transcrição parcial da sentença)

Recurso do MP


I – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso incide exclusivamente sobre matéria de Direito, circunscrita à questão da determinação (escolha) da sanção, quanto à suspensão da execução da pena de dois anos e quatro meses de prisão aplicada ao arguido B…, aceitando a determinação da medida concreta da pena.

(…)

II – DA SUSPENSÃO DA PENA
(…)
III – CONCLUSÕES
1 - Por sentença proferida a 27 de Abril de 2015, foi o arguido B…, condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. nos termos dos artigos 152.º, n.º1, b) e n.º 2 do Código Penal, na pena de dois anos e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, cumprindo os programas e objetivos que venham a ser determinados pela DGRS, designadamente a frequência de programas de prevenção da violência doméstica, e com a obrigação de o arguido se sujeitar a tratamento da sua dependência alcoólica e não se aproximar, nem contactar, por qualquer meio, a ofendida E… pelo período de um ano.
2 - Nos termos do artigo 50.º, do Código Penal a suspensão da pena de prisão, acautelada a proteção dos bens jurídicos violados, e da sociedade em relação ao agente do crime, apenas pode ser equacionada quando, assegurada a responsabilização daquele, seja possível juízo de prognose positiva de que o agente não venha a adotar novas condutas desviantes, termos que não foram respeitados na sentença em crise.
3 – Face aos factos dados como provados, designadamente aqueles tidos pelo Tribunal a quo como fundamentadores da suspensão da pena, e equacionados na motivação supra, não se revelam os mesmos como adequados para a suspensão da pena privativa da liberdade que veio a ser determinada, não tendo sido avaliados com prudência e aferidos no global, antes – face a estes - se impondo a determinação de efetivo cumprimento da pena de prisão.
4 – O medo (terror permanente) não apontam, como enunciado na sentença em crise, para uma “baixa probabilidade de o mesmo voltar a reincidir na conduta delituosa”, mas, ao invés, o fundado receio de que a pena, - ao não ser de facto sentida pelo condenado, pois, de outro modo, integrando forma de “absolvição encapotada”, - não surta os efeitos devidos, seja na pessoa do arguido, seja na pessoa da ofendida, mas ainda e também, na comunidade.
5 - O arguido, e como se revelou nas suas declarações ambíguas e contraditórias, regista antecedentes de condenações, que, pela sua natureza, cronologia e mesmo com referência a uma condenação tendo por sujeito ofendido a sua companheira, aqui ofendida, não permitem valorar favoravelmente a sua personalidade, ou sustentar um juízo de prognose lógico, com base nas condutas objeto dos autos, e na personalidade evidenciada nestes e nas aludidas condenações.
6 – O arguido, mau grado condenado por sentença transitada em julgado em 29/11/2013, no âmbito do Processo n.º 725/12.8GBMTS, que correu termos no extinto 3.º Juízo Criminal do Tribunal de Matosinhos, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pessoa de E…, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 1 ano, com sujeição a regime de prova, por factos praticados em 06/10/2012, praticou os factos objeto dos presentes autos a, designadamente, 16-06-2014, ou seja, ainda no período de suspensão de execução da pena de prisão a que fora condenado nos aludidos autos.
7 – O tribunal a quo considerou na intensidade elevada da ilicitude, o dolo direto das condutas e a intensidade média alta das exigências de prevenção especial. Em concreto apenas encontrou, como facto tido como relevante e abonatório do condenado, a circunstância de se ter encontrado uma pena de prisão reduzida (dois anos e quatro meses, próxima assim do limite mínimo), a inserção social e familiar bem como não mais ter perturbado a ofendida.
8 - Esta última consideração não encontra porém qualquer suporte na matéria de facto dada como provada, mas antes infirmada nos pontos 15), 31) e 33), dos factos dados como provados em sentença, os quais se não põem em causa.
9 - Fundamentou-se o Tribunal a quo, ainda que de um modo sem suporte factual, na declaração de que o arguido não tem perturbado a ofendida. Tal consideração, revelando-se francamente sobrevalorizada pelo tribunal a quo, encerra um manifesto erro de julgamento notório, não permitindo extrair, como foi extraído como fundamento da suspensão de execução da pena de prisão, uma conclusão contrária a factos dados como provados.
10 - A pena de Dois Anos e Quatro Meses de prisão aplicada ao arguido pela prática do crime não deve nem pode ser suspensa na sua execução, condenando-se o mesmo na pena de prisão efetiva, que só desta forma satisfaz de forma adequada e justa as finalidades da punição.
11 – Ao determinar, como determinou a suspensão da pena de prisão, o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação, o preceituado nos artigos 40.º, 42.º, 50.º, 70.º, 71.º, todos do Código Penal.

(transcrição parcial do recurso)

A fls 256 e sgs o arguido B… respondeu e, pelos motivos aí expostos e pediu que seja negado provimento ao recurso.

A fls 270 e sgs a Sra PGA emitiu parecer reiterando a argumentação do MP em primeira instância, promovendo a procedência do recurso.

Deu-se cumprimento ao disposto no artº 417 nº2 do CPP.

Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

FUNDAMENTAÇÃO e DIREITO

A presente sentença apresenta vários vícios, não obstante o recorrente, ab inicio, a reconduzir quase exclusivamente à matéria de direito. Dizemos de início por que depois o MP lá vai dizendo que há um erro notório na apreciação da prova e, já neste tribunal, no parecer emitido pela Sra PGA menciona-se uma contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Temos efetivamente três vícios que, de uma forma ou de outra, se encontram alegados pelo recorrente, sendo certo que o conhecimento dos vícios indicados no artº410, nº2 do CPP é de conhecimento oficioso.
É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artº 410, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.
(Ac do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19 de Outubro de 1995, proc nº 46 580/3, DR, I Série de 28 de Dezembro do mesmo ano)
Erro notório na apreciação da prova;
Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e
Determinação da medida da pena – erro de direito – porquanto a pena concreta não deveria ter sido suspensa na sua execução mas tão só aplicada uma pena privativa de liberdade.

O tribunal a quo diz-nos que a ofendida e arguido tiveram uma relação análoga à dos cônjuges, entre Setembro de 2010 e Março de 2011 mas, mesmo a partir dessa data, de forma intermitente, continuaram a namorar até ao dia 3 de Julho de 2014. Podemos dizer, com segurança, segundo os factos dados como provados, que a relação cai no âmbito do artº 152, nº1, alª a) do CP. Relação análoga à dos cônjuges e namoro, ainda que sem coabitar. Temos um espaço temporal que vai desde Setembro de 2010 a 3 de Julho de 2014.
Até aqui tudo bem. Depois o tribunal a quo faz referência a um facto irrelevante para o objeto desta ação: em Março de 2011 o arguido foi condenado, por ofensas corporais simples, na pessoa da ofendida, numa pena de 10 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa e com regime de prova, transitando a sentença em 29/11/2013. Esta matéria já foi objeto de caso julgado e apenas tem relevância neste processo para a determinação da medida da pena, ou seja tomando em linha de conta os seus antecedentes criminais.
Logo de seguida, o tribunal a quo, no facto com o nº 3 diz: …” o arguido, no dia 16/06/2014… dirigiu-se à residência da fendida … e injuriou-a,” com as expressões constantes dos artºs 4 e 5 da sentença, causando-lhe ainda as lesões narradas nos factos subsequentes da sentença.
É bom não esquecer que a relação de namoro, segundo os autos, havia terminado em 3 de Julho de 2014 e a sentença tem como objeto factual central a descrição de uma ocorrência a 16/06/2014, que melhor se relata nos factos descritos com os números 3 a 9 da sentença. É de facto curioso que se pretenda encaixar este acontecimento, no âmbito de um crime de violência doméstica, que é uma tipologia agravada para aqueles que vivem em comum, designadamente em termos análogos aos dos cônjuges. Esta afirmação é corroborada pelo facto de o arguido, não obstante a sua personalidade delinquente, ter sido condenado, por crimes praticados sobre a ofendida, de forma a apenas preencher crimes de ofensas à integridade física… De facto o arguido foi julgado em 12/06/2012, no âmbito do processo nº 269/10.2PBMAI, por crime de ofensa à integridade física simples, na pena de … por factos ocorridos em 09/04/2010. Foi também julgado em 29/11/2013, no âmbito do processo nº 725/12.8GBMTS, por crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de …por factos ocorridos em 06/10/2012 e ainda por sentença transitada em julgado em 30/10/2014, no âmbito do processo nº1264/13.5PIPRT, pela prática de crimes de sequestro, ameaça agravada e ofensa à integridade física qualificada, na pena de … por factos praticados em 09/09/2013. Daqui concluímos que o arguido, durante o período em que namorou para a ofendida foi julgado, não por crimes praticados no seio da família, ou em condições análogas, e por isso de forma específica e qualificada, mas tão só como um delinquente que não tinha qualquer relação especial afetiva com a ofendida. Esta forma errática de proceder é preocupante, por que umas vezes opta-se pelo crime de ofensas à integridade física e outras pelo crime de violência doméstica, deixando o destinatário um pouco ao sabor das apetências. É necessário caracterizar o namoro com elementos fácticos sólidos e indesmentíveis, já que a relação análoga à dos cônjuges implica um conjunto de deveres típicos da relação conjugal. Esta ambiguidade é preocupante e coloca o arguido um pouco ao sabor da orientação da ação penal, pois o arguido no crime de violência doméstica é julgado por um comportamento reiterado que se verifica ao longo de um determinado lapso de tempo, que em regra é mais ou menos longo, enquanto nos crimes de ofensas à integridade física o mesmo é avaliado pela prática de uma conduta concreta, que se esgota naquela ação. Esta imprecisão deixa-nos confusos pois verificamos que nos presentes autos há três estados: relação análoga à dos cônjuges; namoro e relações ocasionais com a ofendida.
Esta caracterização jurídica, embora não integre qualquer vício, nem por isso nos deixa de colocar em causa a bondade da decisão, precisamente pela interpretação casuística que vai sendo feita.
Nos factos que o tribunal a quo descreve no nº 10 e seguintes, da sentença, a referência ao limite temporal parece correta, pois aí fala de factos ocorridos no dia 3 de Julho de 2014, ou seja no limite da relação de namoro, de acordo com o que se disse no facto inscrito com o nº1. Se bem observarmos, os factos que podem ser aproveitados do elenco dos factos dados como provados, são os ocorridos no dia 16/06/2014 e aquele que põe fim a uma relação de namoro – 3 de Julho de 2014 - só que o tribunal acaba por deitar tudo por terra ao consagrar um facto, na rubrica dos factos não provados, dizendo: não se demonstrou que desde o início da relação o arguido tenha maltratado física e psicologicamente a ofendida. É que se demonstrou precisamente o contrário, não só nos processos já julgados, como também neste, agora, em análise, só que com tamanha confusão a sorte desta ação está irremediavelmente votada ao insucesso.
O tribunal a quo ao dar como provados factos integradores do crime de violência doméstica, como aqueles que se relatam nos números 3 e sgs e 10 e sgs do texto da sentença, e ao dizer que não se demonstrou que desde o início da relação o arguido tenha maltratado física e psicologicamente a ofendida, cai numa contradição insanável de fundamentação. De facto ao olharmos para o texto da decisão recorrida, sobre a mesma questão há posições antagónicas ou irreconciliáveis, pois verificamos que um conjunto de factos são dados como provados para depois serem dados como não provados, com um facto generalista negativo.
AC do STJ de 22 de Maio de 1996, processo nº 306/96, onde se demonstra o carácter inultrapassável destas situações.
Esta atuação configura um vício previsto no artº 410, nº2, alªb) do CPP.
O tribunal a quo, a fls 224, quando faz a fundamentação de direito afirma que o arguido “ parece estar familiar e socialmente inserido” e que desde Julho de 2014, apesar de ter encontrado a ofendida, “não mais a perturbou”. Mas logo de imediato, ao caracterizar a personalidade do arguido, diz-nos que “é reveladora de uma violência assinalável”… diga-se, em abono da verdade, que estas afirmações estão em flagrante contradição com as considerações expendidas nos factos descritos a fls 216 com os números 15 e 16 da rubrica de factos provados.
Também aqui há uma contradição insanável na fundamentação. Temos um naipe de factos provados que nos remetem para uma flagrante integração de condutas no crime de violência doméstica, enquanto na motivação e fundamentação jurídica se diz que o arguido parece estar familiar e socialmente inserido, além de outras apreciações, como não mais perturbou a ofendida, mas logo de seguida refere que a personalidade do arguido é reveladora de uma violência assinalável.
O mesmo se diga deste comportamento ao ser elaborada a sentença na primeira instância, configurando-se também aqui um vício de contradição insanável no domínio da fundamentação, que aliás comporta uma evidente falta no domínio da livre apreciação da prova, porque os factos positivos conduzem a apreciação diversa.
O recorrente fala de erro de julgamento notório por não se permitir uma conclusão, como a que acima retratamos, com base nos factos que foram dados como provados na sentença. O erro de julgamento pressupõe que a prova produzida não podia conduzir à fixação daquela matéria de facto dada como provada. É um erro de valoração ao passo que aqui, o que há, é somente uma contradição entre aquilo que se provou – factos positivos – e a conclusão diversa a que se chegou, em sede de motivação e fundamentação jurídica, ao afirmar-se que o arguido parece estar inserido familiar e socialmente para logo se dizer que é portador de personalidade controversa e de uma violência assinalável.
O vício patente é o previsto no artº410 nº2, alªb) do CPP.
O vício da contradição insanável da fundamentação tanto se pode reportar à fundamentação da matéria de facto, como à contradição na matéria de facto com o consequente reflexo no fundamento da decisão de direito, como também aos meios de prova que serviram para formar a convicção do juiz.
Ac da RP de 11/02/1998 – Marques Salgueiro.
Estas contradições sucessivas são graves e levam o processo ao insucesso, uma vez que existem vários vícios do artº 410, nº2, do CPP, não sendo possível decidir a causa.
Não sendo possível decidir a causa, a questão do quantum da pena – sem dúvida controversa - é, obviamente, supérflua e por isso não a vamos analisar. O tribunal a quo tem que se debruçar sobre o objeto da acusação, pois só essa matéria interessa para a boa decisão da causa. Ao lançar um conjunto de contradições que integram vícios previstos no artº 410 nº2 do CPP, como os que acima analisamos, o tribunal a quo leva a ação ao insucesso, por impossibilidade de decisão.
Efetivamente por existirem os vícios referidos no artº 412 nº2 do CPP não é possível decidir a causa, decretando-se o reenvio do processo para novo julgamento em primeira instância. Se a questão fosse apenas de direito – quantum da pena – não haveria lugar a reenvio mas como contende com vícios insupríveis, há que repetir o julgamento. A repetição do novo julgamento diz respeito à totalidade do processo, porquanto a contradição insanável inviabiliza a compreensão dos factos provados por contraposição aos não provados.
O novo julgamento deve obedecer ao disposto no artº 426 – A – do CPP ou seja, o novo julgamento compete ao tribunal que tiver efetuado o julgamento anterior ou, no caso de não ser possível, ao tribunal que se encontre mais próximo, de categoria e composição idênticas à do tribunal que proferiu a decisão.
O julgamento é nulo e determina o reenvio do processo para novo julgamento – artº 426 do CPP.

Assim acordam os juízes que integram esta 4ª Secção Criminal da Relação do Porto em dar provimento ao recurso, interposto pelo MP, por violação do disposto no artº 410 nº 2 do CPP, ordenando-se o reenvio dos autos para novo julgamento (artº 426 nº1 e 426 – A – ambos do CPP).

Sem custas por não serem devidas.
Notifique nos termos legais.

Porto, 30 de Setembro de 2015.
Horácio Correia Pinto
Álvaro Melo