Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
202/19.6GCVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: CRIME DE INJÚRIA
ELEMENTO INTELECTUAL
COGNITIVO DO DOLO
Nº do Documento: RP20201028202/19.6GVFR.P1
Data do Acordão: 10/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A alegação pelo assistente na acusação de que «o arguido lhe chamou com uma frequência diária puta, filha da puta, badalhoca e vaca» e ainda que «com as condutas supra descritas o arguido agiu com intenção de ofender a honra e dignidade da assistente (…) viu-se ser vexada e insultada e gravemente lesada na sua dignidade, honra e bom-nome», corresponde ao elemento intelectual ou cognitivo do dolo de injúria, na medida em que se afirma o conhecimento, por parte do arguido, de que as imputações formuladas têm caráter ofensivo da honra e bom nome da ofendida e contêm ainda o respetivo elemento emocional ou volitivo por afirmarem a vontade do arguido de agir em conformidade com tal conhecimento, ou seja, querendo a imputação ou a formulação de juízo correspondente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 202/19.6GCVFR.P1
1ª secção
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO
Nos autos de Inquérito que correram termos na 2ª secção do DIAP de Santa Maria da Feira, Comarca de Aveiro, com o nº 202/19.6GCVFR a assistente B… deduziu acusação particular e pedido de indemnização cível contra C….
Nos termos do artº 285º nº 4 do C.P.P., o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido por parte dos factos constantes da acusação particular, imputando-lhe a prática de um crime de injúrias p. e p. no artº 181º nº 1 do Cód. Penal.
Remetidos os autos à distribuição, veio a Srª. Juiz a rejeitar a acusação particular, por entender, além do mais, que a mesma está ferida de nulidade por falta de adequada narração dos factos, rejeitando em consequência o pedido de indemnização civil por incompetência material do tribunal.

Inconformada com a decisão de rejeição, dela veio a assistente interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. A Assistente deduziu acusação particular contra o arguido imputando- lhe a prática de um crime de injúrias p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal.
2. Tendo o Ministério Público acompanhado o libelo acusatório pelos factos constantes dos pontos 8, 29, 35, 37, 41 e 42 da acusação particular deduzida pela assistente B….
3. Porém, a Meritíssima Juiz não recebeu as acusações, com fundamento em não ser feita uma descrição de factos que descrevam o elemento subjetivo - o dolo - inerente àquele tipo de ilícito criminal, isto é, que o Arguido atuou ciente de que a conduta empreendida era proibida e punida por lei, não pode reconhecer-se qualquer relevância criminal à sua atuação, pelo que, por falta de narração dos factos que determinam a aplicação de uma pena, terá a mesma de ser rejeitada.
4. É inquestionável que o crime de injúrias pressupõe que o agente saiba e queira que as suas palavras contenham imputação inverídica ou desonrosa, e que, com elas queira causar ignomínia e falta de consideração à Ofendida, mediante ato de vontade livre e consciente.
5. Mas a acusação em causa não é omissa ao relato daqueles factos que integram o dolo do agente; com efeito, por forma a integrar o elemento subjetivo da infração, resulta suficientemente descrita a atuação do arguido.
6. Concretizando, o que consta da Acusação Particular apresentada:
“5.º
Desde data não concretamente apurada, do mês Junho de 2019, o Arguido e a Assistente passaram a dormir separados, dormindo o Arguido na sala e a Assistente no quarto.
6. º
O Arguido começou desde então adoptar uma postura de "quero, posso e mando" e a chegar com frequência a casa alcoolizado.
7. º
A partir daquela data, o Arguido passou a dizer à Assistente, com uma frequência diária, “Mulher minha é para o que eu quero e para a hora que eu quiser! Mulher minha não me rejeita! Mulher minha é minha propriedade! Não sabes fazer nada, não sabes cozinhar! O comer da Júlia é que é bom!".
8. º
Bem como lhe chamou, com uma frequência igualmente diária de "puta", "filha da puta", "badalhoca" e "vaca".
29.º
O Arguido diariamente e sempre que não conseguiu os seus intentos de ter relações sexuais com a Assistente chamava-lhe de “puta”, “filha da puta”, “vaca, “badalhoca” e a “Júlia cozinha melhor que tu!”.
31. º
O Arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.
32. º
Sabia que com a sua atuação causava sofrimento psicológico à Assistente, traduzido em angústia, medo, desconforto e humilhação, que a diminuía na sua auto-estima e na imagem que ela e os outros tinham de si, e que pelo facto de ser sua companheira lhe devia respeito e consideração, que o fazia inclusive no interior da residência que partilhavam e, ainda assim, não se coibiu de a maltratar e magoar verbal e psicologicamente, de lhe dirigir aquelas considerações de cariz depreciativo e ofensivo, querendo efectivamente atentar contra a sua saúde e bem-estar.
34. º Após consumar os factos dizia que: » “MULHER MINHA NÃO EM REJEITA”, “ É PARA TODA A HORA E QUANDO QUERO”.
35. º
Proferindo reiteradamente as seguintes expressões: “PUTA, FILHA DA PUTA, BADALHOCA”
37. º
Com as condutas supra descritas constata-se que o Arguido agiu com intenção de ofender a honra e dignidade da Assistente.
38. º
As afirmações feitas à Assistente foram proferidas em voz alta, de modo a serem ouvidas, como o foram, por todas as pessoas que ali se encontravam nas festas e pelos vizinhos e filha da Assistente, como igualmente o foram.
39. º
Tais afirmações atentam gravemente contra a sua honra e consideração, contra a sua dignidade pessoal, uma vez que denigrem a sua imagem pessoal, atento o facto de terem ocorrido nas festas da terra e, de os vizinhos, amigos terem assistido a tudo e ainda na sua casa tendo os vizinhos e a sua filha também presenciado.
40. º
A Assistente é pessoa pacifica, respeitadora e bem-educada, a quem atitudes como a dos Arguido repugnam, habituada que está a tratar os outros e a ser tratada de forma civilizada.
41. º
Ora, viu-se ser vexada e insultada e gravemente lesada na sua dignidade, honra e bom- nome. ( cfl. Factos que constam da Acusação particular a fls.).
7. Deste modo, a acusação só poderá considerar-se manifestamente infundada se se verificarem os vícios estruturais graves enunciados no n° 3 do citado art. 311.º (assim, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição atualizada, 2009, p. 789), se for apta para servir de base a uma sentença condenatória, o que desde logo afasta a possibilidade de rejeição liminar da acusação por manifestamente infundados os vícios de que eventualmente padeça terão que ser estruturais e graves (vide, neste sentido, entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa de 04/10/2011, proc. 1062/10.8TACSC, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/07/2012, proc. 1087/11.6PCMT, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/12/2009, proc. 734/07. TAPDL, disponíveis em www.dgsi.pt, vide, também neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23/02/2016, relatado pelo Exmo. Senhor Desembargador Luís Gominho, todos disponíveis em www.dgsi.pt, que seguimos textualmente).
8. Ora, a acusação infundada, está refletida na conjugação dos Art.°s 283.°, n.° 3, e 311.°, n.° 3 (ex vi Art.° 395.°, n.° 1, alínea b)), na medida em que se o vício cominado quanto à falta de requisitos da acusação é de nulidade sanável (Art.°s 119.° a contrario e 120.°, ambos do CPP), não se compreenderia que, na prolação desse despacho, se cominasse alguma deficiência, desde que manifestamente suprível, com a imediata rejeição da mesma.
9. Assim, não se aceita, por excessiva e desproporcional, a posição defendida no despacho recorrido que rejeita a acusação deduzida pelo Ministério Público e pela Assistente por omissão da narração dos factos, sendo que, objetivamente, essa descrição é realizada com uma descrição considerada suficiente.
Senão vejamos,
10. O Tribunal só pode rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada e tal só pode suceder quando "não contenha a identificação do arguido", "não contenha a narração dos factos", "se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam" e "se os factos não constituírem crime".
11. Contendo a acusação todos os elementos, não pode ser recusada.
12. O art. 283.°, n.° 3, alíneas a) e b), do CPP, estipula que a acusação deduzida pelo Ministério Público deverá conter "sob pena de nulidade", as indicações tendentes à identificação do arguido e a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
13. Todos os factos afiguram-se-nos estar suficientemente descritos na acusação por forma a permitir que o arguido se possa defender dos mesmos, estando proficientemente concretizados.
14. É imputado ao arguido, a prática de um crime de Injúria, previsto e punido pelo art. 181.° , n.º 1 do Código Penal.
15. São elementos constitutivos deste tipo de crime: objetivo (i) - Injuriar outrem; (ii) Dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração; e subjetivo (i) o dolo que cobre a conduta do agente (dolo do tipo), isto é, o conhecer (elemento cognoscitivo) e o querer (elemento volitivo) dos elementos que constituem o tipo objetivo.
16. Dos pontos 8, 29, 35, 37 da acusação particular, resulta expresso que o arguido, ao atuar do modo descrito, quis atingir a honra e a consideração da assistente, o que logrou conseguir; bem sabia o arguido que a sua conduta era punida e proibida por lei.
17. No entanto, não se coibiu de levá-la a cabo, agindo de forma dolosa, livre e consciente.
18. Na acusação, o elemento subjetivo está abundantemente descrito e concretizado.
19. A consciência da ilicitude não tem de constar da acusação, pois não respeita ao tipo objetivo ou subjetivo.
20. Isto porque, nos "crimes do chamado direito penal clássico, como sucede no caso, a mesma não tem que constar da acusação e da sentença por respeitar à imputabilidade e à consciência da ilicitude, de cuja verificação positiva em cada caso não cumpre fazer prova, ainda que indireta, por estar a mesma implícita no preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito.".
21. O conhecimento da ilicitude não integra o elemento subjetivo do tipo, mas sim a culpa e como tal, não tem de ser alegado.
22. Pretende o direito criminal assegurar a proteção da honra e consideração, o que se coaduna com a proteção constitucional do direito ao bom nome, à reputação e à imagem (art. 26.°/1, da CRP) e, nos arts. 25.° e 70.°, do CC, a tutela geral da personalidade.
23. A honra traduz-se num conjunto de valores éticos que cada pessoa possui, tais como a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja, a dignidade de cada um. A consideração concretiza-se no merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom-nome, o crédito, a confiança, a estima a reputação, ou seja, a dignidade objetiva.
24. No que respeita ao tipo subjetivo, não é necessário que haja dolo específico de ofender a hora ou consideração, basta aqui o dolo genérico, enquanto conhecimento e consciência por parte do agente de que as expressões ou palavras que utiliza podem ofender a honra ou consideração da pessoa visada e de que tal conduta é proibida por lei. - Neste sentido, Manuel Lopes mais Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, Almedina, 17° Ed. — 2005, Anotação ao art.° 181°, ponto 5.
25. O tipo legal de crime é conformado pelos elementos constitutivos objetivos e subjetivos. Integram os primeiros os factos concretos naturalísticos imputados aos arguidos e preenchem os segundos o conhecimento e vontade de realização do tipo de crime.
26. Quanto a estes últimos, citando o Professor Doutor Figueiredo Dias: "O dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo, e a negligência enquanto violação de um dever de cuidado, são elementos constitutivos do tipo-de-ilícito. Mas o dolo é também e ainda expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente, e a negligência expressão de uma atitude pessoal descuidada ou leviana, perante o dever-ser jurídico-penal; e nesta parte são elementos constitutivos, respetivamente do tipo-de-culpa doloso e do tipo-de-culpa negligente. É a dupla valoração da ilicitude e da culpa que concorre na completa modelação do dolo e da negligência."
27. O modelo processual penal vigente em Portugal desde 1987 estrutura- se no princípio do acusatório, mitigado pelo princípio da acusação (artigo 2º n.º 2 ponto 4 da Lei 43/86 de 26 de Setembro, Lei de Autorização legislativa em matéria de processo penal) refletido na clara separação entre acusação e julgamento, entre a função de acusar e a de julgar, com incidência constitucional, com nítida indicação da entidade que tem a seu cargo a fase investigatória eventualmente a culminar numa acusação e da entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objeto de tal acusação.
28. O art. 283.º, n.º 3 prevê, de forma genérica, as nulidades da acusação - as quais, na falta de preceito que as regule especificamente, deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.
29. O art. 311.º, n.º 3 prevê apenas os casos extremos pois a rejeição liminar só se justifica em casos limite insuscetíveis de correção sem prejudicar o direito de defesa fundamental, que a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria.
30. Trata-se de um tipo de nulidade sui generis, extrema, insuperável ou insanável, ainda que suscetível de correção pelo Ministério Público, a ponto de permitir ao juiz de julgamento a intromissão na acusação, de forma a evitar um julgamento sem objeto fáctico e probatório [al. b) e segunda parte da al. c) - provas], sem acusado [al. a)], sem incriminação [al c)], ou sem objeto legal [al. d)].
31. Assim, o n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal, - ainda que o legislador não o diga de forma expressa, - veio consagrar um específico regime de nulidades da acusação que, face à gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na Constituição da República Portuguesa, são insuperáveis/insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.
32. Daí que a rejeição liminar apenas possa ter lugar naquelas situações típicas extremas e não relativamente a outros vícios de menor densidade.
33. A irrelevância penal dos factos imputados ao arguido, tem de ser manifesta, indiscutível, evidente, inequívoca, não bastando que seja meramente discutível por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência, cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 10-07-2018, Processo n.º 282/16.6GAACB.C1, in www.dgsi.pt.
34. O crime de injúrias, como crime de mera atividade e doloso que é, tem como elementos constitutivos, objetivamente, a ação adequada a produzir um resultado consubstanciado na ofensa à honra ou consideração de outrem, e, subjetivamente, o dolo, constituído pelo conhecimento dos elementos objetivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los - cfr. art. 13º e 14º do CP.
35. Quanto ao elemento subjetivo deste tipo de crime, cimentou-se agora a orientação de que basta o dolo genérico, em qualquer uma das suas formas (cfr. art. 14.º do CP), para integrar o elemento subjetivo da infração, i. é., não se exige especial propósito de ofender (animus injuriandi vel diffamandi), bastando a consciência por parte do agente de que a sua conduta é suscetível de produzir ofensa da honra e considerações alheias. Não é, portanto, exigível qualquer dolo dito específico ou especial, cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 17.12.2008, in www.dgsi.pt
36. O dolo, ou elemento volitivo da ação desvalorativa e do ato injusto, não se evidencia ou manifesta senão através dos atos exteriores ou factos demonstrativos de que o agente pretendeu e quis com a execução de uma determinada factologia atingir um fim ou resultado lesivo da honra e consideração de alguém.
37. Não se torna necessário que o agente apregoe ou deixe anunciada a sua vontade de ofender alguém, mas tão só que dos factos que praticou resultou, objetivamente, que subjetivamente quem agiu do modo evidenciado não poderia, de acordo com padrões de normalidade e à compreensão da maioria das pessoas, querer outra coisa que não doestar aquela concreta pessoa, conforme é entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra no referido Acórdão.
38. No mesmo sentido é o Acórdão da Relação de Évora, de 06.02.2018, in www.dgsi.pt. “ (…) Relativamente ao elemento subjetivo dos crimes de difamação e injúria é hoje pacífico não ser exigido um qualquer dolo específico ou elemento especial do tipo que se traduzisse no especial propósito de atingir o visado na sua honra e consideração. Não distinguindo nem especificando, os respetivos tipos legais admitem qualquer das formas de dolo previstas no art. 14º do C. Penal, incluindo o dolo eventual. Basta, pois, que, grosso modo, o arguido admita o teor ofensivo da imputação ou juízo formulados e atue conformando-se com ele (dolo eventual), para que se tenha por preenchido o elemento subjetivo do tipo, sem prejuízo, obviamente, de o agente praticar o facto com dolo necessário, ou seja, conhecendo o teor ofensivo, a idoneidade da imputação ou juízo para lesar a honra, e atuando em conformidade ou mesmo com dolo direto, agindo com o propósito deliberado, com o intuito ou intenção, de atingir o ofendido na sua honra e consideração, indo para além do mínimo da exigência típica mas contendo esta necessariamente.”
39. Acrescentando ainda que “Posto isto, importa decidir ainda se a articulação dos factos integradores do dolo sempre estará incompleta por ser a acusação “… omissa no que concerne à atuação da arguida, designadamente se livre, deliberada e consciente da ilicitude da sua conduta», tal como se considerou no despacho recorrido.
d) Ora, a este respeito entendemos que apenas a expressão agiu deliberada (ou deliberadamente) usada na prática judiciária respeita ao elemento volitivo do dolo (geralmente acompanhada da expressão “conscientemente” que se refere genericamente ao elemento cognitivo do dolo), mas que não tem que ser utilizada nos casos em que se afirma especificamente, de forma mais precisa e rigorosa, a intenção de realizar o facto concreto que preenche o tipo legal como sucede no caso concreto (a arguida quis ofender a honra e consideração da ofendida), sendo mesmo redundante.
e) Quanto à locução “agir livremente” é expressão que se reportará antes á afirmação de uma suposta “capacidade de culpa” genérica, cuja articulação e prova em todo e cada caso não é exigida, desde logo porque a imputabilidade em razão da idade decorre direta e automaticamente da lei (art. 19º do C. Penal) e porque o agente imputável é em princípio “capaz de culpa”, havendo lugar a alegação, discussão e prova sobre a questão apenas nos casos em que o problema se coloque em concreto, quer nas hipóteses de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica (art. 20º do C. Penal), quer nas situações de exclusão da culpa.
f) No que concerne, por último, à locução “consciente da ilicitude da sua conduta” ou “bem saber ser proibida por lei a sua conduta”, ou equivalente, entendemos não nos encontrarmos perante facto que deva constar autonomamente da acusação nos termos do art. 283º nº3 do CPP, pois relativamente aos crimes do chamado direito penal clássico, como sucede no caso presente, não cumpre articular e demonstrar positivamente a consciência da ilicitude em cada caso, uma vez que esta decorre ou está implícita no preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (maxime o dolo do tipo), assumindo autonomia apenas nos casos em que se discuta a “falta de consciência da ilicitude”, enquanto causa de exclusão da culpa, nos termos do art. 17º do C.Penal.
40. Isto é, quando estejamos perante crime doloso do chamado direito penal clássico, como no caso presente (injúria), a consciência da ilicitude do facto decorre da representação e vontade de praticar factos que preenchem um tipo de crime, sem que acresça autónoma articulação e prova que o arguido estava consciente da ilicitude da sua conduta ou que “sabia ser proibida por lei a sua conduta”, ou expressões equivalentes. Nas palavras de Wessels, “quem realiza intencional e voluntariamente um tipo de ilícito sem admitir a verificação de uma situação que justifique o facto (qualquer causa de exclusão da ilicitude), sabe comummente, como pessoa capaz de culpa, que comete uma injustiça. (…) Se não ocorrem circunstâncias que assinalem a sua ausência, a consciência da ilicitude deve presumir-se.” (Wessels, Derecho Penal. Parte General, Buenos Aires, Ediciones Depalma-1980, p. 118).
41. Na verdade, tal como foi decidido pela mesma Relação de Évora, no acórdão de 05.03.2013, proferido no processo 5689-11.2TDLSB.E1(acessível em www.dgsi.pt), de acordo com a concepção tripartida do crime (facto típico, ilícito e culposo), o “conhecimento da ilicitude” não integra a tipicidade no código penal atual, pois não se encontra abrangido pelo dolo, respeitando antes à culpa, tal como na concepção bipartida o crime que distingue essencialmente entre ilicitude e culpa, não integra o dolo do tipo.
42. Na verdade, a acusação pública e particular apresentadas incluem a identificação do arguido, a narração dos factos, as normas incriminadoras e as provas que a fundamentam, sendo que os factos descritos constituem crime, pelo que, em nosso entendimento, nenhum fundamento existe para que se proceda à rejeição da acusação.
43. Nesta conformidade, o despacho recorrido, ao rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada por não conter narração dos factos, não efetuou, na verdade, uma correta e adequada análise e apreciação da estrutura formal e do conteúdo do libelo acusatório, tendo violado o disposto nos Art.°s 395.°, n.° 1, alínea b); 311.°, n.°s 2, alíneas a) e n.° 3, alínea b), 285.º, n.º 3 e 283.°, n.° 3, alínea b), todos do Código de Processo Penal, impondo-se a sua revogação e a substituição por outro que cuide do recebimento da acusação para julgamento em processo singular comum.
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Na 1ª instância o Mº Público respondeu às motivações do recurso, concluindo pela respetiva procedência.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da concessão de provimento ao recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A decisão recorrida, na parte que aqui interessa, é do seguinte teor: (transcrição)
« ... Da nulidade da acusação particular por falta de adequada narração dos factos:
A acusação (artigo 283º) constitui a charneira entre o inquérito e o julgamento.
Trata-se duma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo: a atividade do tribunal só pode ser exercida se um determinado conjunto de factos lhe for submetido por um órgão independente do julgador. Acusação e defesa são, assim, dois polos dialécticos que não podem subsistir um sem o outro (Cunha Rodrigues). A defesa tem de estar, pois, numa situação de paridade relativamente à acusação. Nomeadamente, o processo não pode ser remetido para julgamento sem que o seu objeto tenha sido delimitado num documento (a acusação ou requerimento acusatório) que indique taxativamente os factos que o tribunal pode apreciar; e o arguido deve ter também a oportunidade de produzir um documento (a contestação) que contrarie o anterior. O arguido pode em julgamento questionar toda a matéria acusatória, sendo aí que o princípio do contraditório ganha a sua maior expressão, traduzindo-se no direito que o arguido tem de ser ouvido, de se defender e, designadamente, de se pronunciar sobre as alegações, as provas, os atos ou quaisquer iniciativas processuais da acusação. O princípio acusatório protege o arguido na medida em que lhe assegura que uma condenação só poderá ter sucesso se dois órgãos da administração da justiça - o acusador e o tribunal -, independentemente um do outro, chegarem ao convencimento de que ele é culpado (Roxin).
O artigo 283º impõe (nº 3) que a acusação contenha, sob pena de nulidade: a) as indicações tendentes à identificação do arguido; b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) a indicação das disposições legais aplicáveis ( ... ).
ln casu, é a acusação particular que vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial. Como tal, deve conter todos os elementos de uma acusação, de sobremaneira a matéria de facto que consubstancie o ilícito que se pretende imputar aos arguidos.
Com efeito, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos, - um inerente ao objetivo imediato do julgamento: a comprovação judicial dos factos acusados (que, para que se possa demarcar o âmbito do objeto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados) e - outro implícito a uma finalidade mediata mas essencial: a demarcação do próprio objeto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objeto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a este a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.
No julgamento o juiz encontra-se limitado pelos factos descritos na acusação: o juiz não decide nunca os termos da acusação, decide unicamente sobre a acusação já deduzida; está vinculado aos termos da acusação, tal como ela foi deduzida ou ao despacho de pronúncia. Existindo duas ou mais acusações, como por vezes acontece, por ex., a do Ministério Público acompanhado pelo assistente, «( ... ) o juiz pode apenas acolher uma delas, quando entre si sejam incompatíveis, ou ambas, quando sejam complementares, mas não pode pronunciar o arguido por factos que sejam substancialmente distintos dos constantes numa daquelas acusações sob pena de nulidade da decisão instrutória ( ... ).» (Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", III, p. 154).
Vistos em traços largos o respetivo enquadramento jurídico importa agora analisar a acusação particular à luz de tais princípios.
Conforme é descrito na acusação particular no que ao elemento subjetivo respeita:
31º
O Arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.
37º
Com as condutas supra descritas constata-se que o Arguido agiu com intenção de ofender a honra e dignidade da Assistente.
38º
As afirmações feitas à Assistente foram proferidas em voz alta, de modo a serem ouvidas, como o foram, por todas as pessoas que ali se encontravam nas festas e pelos vizinhos e filha da Assistente, como igualmente o foram.
39º
Tais afirmações atentam gravemente contra a sua honra e consideração, contra a sua dignidade pessoal, uma vez que denigrem a sua imagem pessoal, atento o facto de terem ocorrido nas festas da terra e, de os vizinhos, amigos terem assistido a tudo e ainda na sua casa tendo os vizinhos e a sua filha também presenciado.
Ora, tendo por referência o imputado crime de injúria, este, no seu momento subjetivo, suporá, naquele que atua, a intencional vontade de atingir a honra do ofendido, conhecendo a aptidão vexatória dos vocábulos que profere e encontra-se efetivamente inserta na acusação em análise.
Todavia, já no que respeita à consciência da ilicitude e punibilidade da conduta alegadamente empreendida pelo arguido, o mesmo não se verifica.
Na realidade, dos factos vertidos na acusação particular não consta que o arguido tivesse atuado com tal conhecimento e consciência.
Por conseguinte, os factos alegados são penalmente irrelevantes ou atípicos.
Neste sentido e muito embora decidindo questão diversa - a inaplicabilidade do mecanismo previsto nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, a situações como a agora em apreço -, pronunciou-se já o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de fixação de jurisprudência nº 1/2015, de 20 de Novembro de 2014, publicado no Diário da República nº 18, Série I, de 27 de Janeiro de 2015, fixando-se o seguinte: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal».
Na fundamentação de tal aresto, escreve-se o seguinte:
( ... ) Ora, a acusação deve conter com a máxima precisão a descrição dos factos da vida real, os que configuram o acontecimento histórico que teve lugar e que correspondam aos elementos constitutivos do tipo legal de crime, tanto os do tipo objetivo do ilícito, como os do tipo subjetivo.[3]
Na verdade, os factos da vida real, os que se traduzem no recorte de um determinado pedaço de vida, ditos também "naturalísticos ", só têm interesse enquanto reportados a uma ação relevante do ponto de vista jurídico-penal, isto é, consubstanciando um crime. Este, na definição de FREDERICO ISASCA, vem a traduzir-se, precisamente, num «comportamento socialmente relevante tipificado pela ordem jurídica - portanto um comportamento formal e materialmente ilícito suscetível de um juízo de culpa, isto é, de uma reprovação jurídico-penal, que se traduz na imposição de uma sanção, sempre e em última instância privativa de liberdade» (ob. cit., p. 117).
Entre os elementos relevantes que dão um sentido a uma determinada conduta ou ação emergentes num dado contexto social e histórico, ou a uma omissão que se traduza num desvalor, uma e outra enquanto referidas a uma ação ou omissão abstratamente tipificadas como crime, estão os que configuram os aspectos objetivos do tipo de ilícito e os que consubstanciam os seus aspectos subjetivos.
Com efeito, enquanto os elementos do tipo objetivo de ilícito definem o conteúdo ou objecto da ação ou omissão tipificadas como crime, os elementos subjetivos definem a relação do agente ou omitente com essa ação ou omissão, a sua particular ligação com elas, com o facto objetivo praticado ou omitido.
( ... )
Tendo a acusação passado no crivo do art. 311º nº 2, alínea a) e 3, alínea b), o tribunal não pode socorrer-se do disposto no art. 358º do CPP para colmatar a deficiência encontrada. É que tal integração não consubstancia uma alteração não substancial dos factos.
Com efeito, a latitude do princípio do acusatório, na sua conjugação com o princípio da investigação da verdade material, ou, por outras palavras, a flexibilidade do objeto do processo, encontra como limite a alteração substancial dos factos.
Alteração substancial dos factos, na definição legal, é «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» (art. 1º alínea f) do CPP).
No caso, o acrescento dos elementos constitutivos do tipo subjetivo do ilícito, compreendendo aqui também o tipo de culpa, corresponde a uma alteração fundamental, de tal forma que alguma da jurisprudência inventariada (supra, ponto 9.2.2.) considera que tal alteração equivale a transformar uma conduta atípica numa conduta típica e que essa operação configura uma alteração substancial dos factos. O mecanismo adequado a uma tal alteração não seria, pois, o do art. 358º mas o do art. 359º nºs 1 e 2 do CPP, implicando o acordo entre o Ministério Público, o assistente e o arguido para o prosseguimento da audiência por esses factos, como única forma de evitar a anulação do princípio do acusatório, ou, na falta desse acordo, a comunicação ao Ministério Público para procedimento criminal pelos novos factos, se eles fossem autonomizáveis. Na circunstância, sendo o crime de natureza particular, não se imporia a comunicação ao Mº Pº e, por outro lado, não sendo os factos autonomizáveis, o procedimento criminal ficaria dependente do acordo referido e, principalmente, da boa vontade do arguido, o que seria grave se o crime fosse, por exemplo, um crime de homicídio.
Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art. 358º do CPP, também não será caso de aplicação do art. 359º pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exatos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais.
( ... )
Ora, a consabida razão de ser do regime que decorre das normas dos artigos 1º alínea f), 358º e 359º situa-se num plano diverso, que tem como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontravam devidamente descritos os factos que integravam, quer todos os elementos do tipo objetivo de ilícito, quer todos os elementos do tipo subjetivo de ilícito, respeitantes ao tipo de ilícito incriminador pelo qual o arguido fora sujeito a julgamento.
Por isso, a ausência ou deficiência de descrição na acusação dos factos integradores do respetivo tipo de ilícito incriminador - no caso, descrição dos factos atinentes aos elementos do tipo subjetivo de ilícito - conduz, se conhecida em audiência, à absolvição do arguido».
Concluindo, não constando da acusação particular que a arguida atuou ciente de que a conduta empreendida era proibida e punida por lei, não pode reconhecer-se qualquer relevância criminal à sua atuação, pelo que, por falta de narração dos factos que determinam a aplicação de uma pena, terá a mesma de ser rejeitada.
Com efeito, de acordo com o artigo 311º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal: «Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.», por sua vez o nº 3 do mesmo preceito legal dispõe que: «(..) a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime».
Assim sendo, de todo o exposto, resulta claro que terá de ser rejeitada a acusação particular por falta de narração dos factos que integrariam a descrição do tipo de ilícito.
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Do pedido de indemnização civil:
Nos termos do artigo 71º do Código de Processo Penal e em conformidade com o princípio da adesão que aí se consagra, deve o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime ser deduzido no âmbito do processo penal em que se aprecia a responsabilidade criminal emergente da infração cometida.
Pressuposto da possibilidade de apreciação do pedido cível deduzido em processo penal é que o facto constitutivo da sentença condenatória em matéria de responsabilidade civil se possa incluir no âmbito do facto criminoso que é imputado ao arguido, de tal forma que, se não existirem ou simplesmente não se provarem os pressupostos da punição penal, a condenação em indemnização civil possa ainda subsistir sustentada na verificação dos pressupostos da ilicitude civil permitida pela apreciação da realidade factual em causa.
Em síntese: a dedução do pedido de indemnização civil pressupõe que no respetivo processo penal seja exercida ação penal com dedução de acusação com imputação de qualquer crime ao arguido que seja suporte do pedido cível, pois só assim este pode aderir à ação penal (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 02.12.93, Cl, T.V, pg.63 a 66).
Achando-se o pedido de indemnização civil tematicamente condicionado pelo objeto do processo, em face da rejeição da acusação particular deduzida, vedada se encontra à demandante a possibilidade de, nesta sede, obter do demandado compensação pelos danos alegadamente sofridos em virtude da atuação do arguido.
Sendo, assim, o Tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido de indemnização civil formulado.
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Pelo exposto, nos termos que conjugadamente resultam do preceituado na alínea a) do nº 2 e na alínea b) do nº 3, ambos do artigo 311.° do Código de Processo Penal, decido rejeitar a acusação particular deduzida pela assistente B… contra ao arguido C….
Mais decido, julgar este Tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido de indemnização civil formulado, o que, em conformidade se decide. ...»
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
De acordo com as conclusões de recurso, a única questão que a recorrente pretende ver reapreciada, respeita à rejeição da acusação particular por se ter entendido que na mesma não se mostra alegado que o arguido tenha atuado com consciência da ilicitude.
De harmonia com o disposto no artº 283º nº3 do CPP (aplicável por força do artº 285º nº3 do CPP), a acusação particular contém, “sob pena de nulidade” (no que ora releva):
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
Nos termos do artº 311º nº 2 do C.P.P. “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacho no sentido:
a) de rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada;
[…]
3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
[…]
d) se os factos não constituírem crime.”
Entendeu-se na decisão recorrida que “não constando da acusação particular que o arguido atuou ciente de que a conduta empreendida era proibida e punida por lei, não pode reconhecer-se qualquer relevância criminal à sua atuação”.
Sem necessidade de grandes explanações sobre a teoria do crime e dos seus elementos típicos[3] essenciais, tem-se por assente que qualquer tipo legal é composto de elementos objetivos e subjetivos. Traduzem os primeiros as condutas que encarnam a negação de valores jurídico-criminais e os segundos a censura subjetiva ao agente.
Quanto à falta de factos integradores do elemento subjetivo do tipo que a decisão recorrida refere como sendo a “consciência da ilicitude”, parece-nos manifesta a falta de fundamento legal do entendimento espelhado na decisão recorrida, que encerra duas questões autonomizáveis.
Em primeiro lugar, a de saber se o “conhecimento ou consciência da ilicitude” integra o elemento subjetivo do tipo.
Em segundo lugar se, respondida a primeira questão, a acusação particular contém – ou não - a narração dos factos que integram o elemento subjetivo do crime de injúria imputado ao arguido.
Quanto à primeira questão, antecipamos a conclusão de que a “consciência da ilicitude” não integra o tipo, não se encontrando abrangido pelo dolo, respeitando antes à culpa.
Na verdade, o atual Código Penal parece ter-se afastado claramente do causalismo clássico e das teorias do dolo, desde logo porque, optando por definir o dolo nas alíneas do art. 14º, fá-lo corresponder, basicamente, ao conhecimento e vontade de realização do facto que preenche os elementos típicos objetivos do crime, omitindo qualquer alusão à consciência da ilicitude. A estrutura do “dolo” compreende dois elementos: inteletual e volitivo, os quais não são em si separáveis, “pois que nada pode ser querido sem que seja previamente conhecido”[4].
Em segundo lugar, a solução acolhida no art. 17º do C.Penal para o erro de proibição ou erro sobre a ilicitude, confirma a sua autonomia face ao dolo, ao mesmo tempo que situa a consciência da ilicitude na culpa.
Daí poder afirmar-se que as teorias do dolo, próprias do causalismo clássico, não são compatíveis com o direito penal português atual, que terá acolhido solução identificada com as teorias da culpa, sustentadas no finalismo, precisamente ao colocar o dolo na tipicidade (art. 14º) e ao deixar na culpa o conhecimento da ilicitude (art. 17º)[5].
Como se refere no aresto citado e que aqui seguimos de perto, “é com este entendimento que se harmoniza quer a disciplina do art. 17º do C. Penal, quer a noção legal de dolo contida no seu art. 14º pois o doutrinariamente chamado erro sobre a proibição ou erro sobre a licitude (designação acolhida na epígrafe do art. 17º do C.Penal) não podia excluir o dolo, contrariamente à conclusão lógica a que chegava o causalismo clássico, mas antes a culpa, como é próprio das teorias da culpa aludidas”.
Por último, o art. 16º não permite retirar conclusões sobre o enquadramento da falta de consciência da ilicitude no dolo, pois o erro sobre a ilicitude encontra-se previsto no art. 17º e implica a exclusão da culpa (e não do dolo) como vimos, não sendo confundível com o erro sobre proibições legais de que trata o art 16º nº1, 1ª parte, que tem por efeito a exclusão do dolo.
Como distingue, por todos, José António Veloso[6], o art. 17º e o art. 16º nº1, 2ª parte, incidem sobre objeto ou incriminações diferentes. Enquanto o art. 17º se refere aos crimes cuja punibilidade se pode presumir conhecida, e não é desculpável que não seja conhecida de todos os cidadãos normalmente socializados (“crimes naturais”, “crimes em si” ou “mala in se”), a 2ª parte do nº 1 do art. 16º reporta-se aos crimes relativamente aos quais não pode falar-se daquela presunção, nomeadamente por respeitarem a áreas em que os tipos legais se referem a condutas de pouca relevância axiológica, como sucede em muitos casos do chamado direito penal secundário, mas também em casos de novas incriminações, enquanto for aceitável o desconhecimento das novas normas.
Como ensina o Prof. F. Dias, “Excecionalmente, à afirmação do dolo do tipo torna-se ainda indispensável que o agente tenha atuado com conhecimento da proibição legal (…) Nos delicta mere prohibita existe entre os elementos pertencentes ao tipo objetivo de ilícito e a proibição legal uma conexão de tal modo inextricável que não pode fazer-se entre eles qualquer distinção normativa e teleológica para afirmação do dolo do tipo”[7].
Daí que a consciência da ilicitude enquanto facto psicológico de conteúdo positivo não tenha que ser alegada e provada em cada caso, pelo menos nos chamados “crimes em si” do direito penal clássico onde se inserem os crimes de difamação e injúria aqui em causa, contrariamente ao que sucede com os factos que correspondem ao dolo e, eventualmente, a outros elementos subjetivos do tipo[8].
Como realça Maia Gonçalves em anotação ao artº 17º do Cód. Penal, “a falta da consciência da ilicitude só exclui a culpa se o erro não for censurável. Isso apenas se verifica quando “o engano ou o erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamente em qualidade desvaliosa e juridicamente censurável da personalidade do agente”. Se o erro radicar numa “deficiência da própria consciência ética do agente, que não lhe permite apreender corretamente os valores jurídico-penais e que por isso revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal”, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respetivo (art. 17 nº 2)[9].
É o caso que nos ocupa. Na nossa sociedade, se existir alguém que, sendo imputável, não souber que é proibido atentar contra a honra de outrem, nomeadamente com imputações como a referida na acusação particular (repete-se, proferida com a intenção de ofender, como vem alegado), então é porque possui uma personalidade desvaliosa que deve ser atribuída a deficiência da sua própria consciência ética. No atual patamar de civilização e de vivência da nossa comunidade não é admissível outro juízo. Não se descortina como se poderá colocar a hipótese de tal falta de consciência ser compatível com uma “atitude geral de fidelidade ao direito só frustrada no caso por circunstâncias especiais que o fizeram errar sobre a ilicitude do seu ato…” – ac. do STJ de 13.10.99, citado por Maia Gonçalves, em anotação ao art. 17 do Cod. Penal.
Já quanto à factualidade relativa ao dolo propriamente dito, parece não se verificarem atualmente divergências significativas na doutrina e jurisprudência sobre a necessidade da sua alegação e prova, tanto na acusação como na sentença, na medida em que os factos respetivos, integrando indiscutivelmente o objeto do processo, devem ser cabalmente provados para que o arguido possa ser penalmente responsabilizado, sob pena de violação do princípio da culpa. Daí que, sendo os factos psicológicos que traduzem o dolo do tipo factos típicos, contam-se necessariamente entre os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança a que se reporta a al. b) do nº3 do art. 283º do CPP-
Assim, os factos psicológicos que traduzem o dolo do tipo carecem de articulação e prova, pois apesar de os mesmos serem, em regra, objeto de prova indireta, ou seja, serem provados com base em inferências sobre factos materiais e objetivos analisados à luz das regras da experiência comum, os princípios da culpa, do contraditório, da acusação e da vinculação temática, impõem a sua articulação, permitindo, nomeadamente, que o arguido possa defender-se cabalmente de tais factos e que a investigação do tribunal para além deles apenas tenha lugar com o cumprimento das normas processuais que regulam a alteração de factos.
Nos crimes de difamação e injúria é hoje pacífico não ser exigido um qualquer dolo específico ou elemento especial do tipo subjetivo que se traduza no especial propósito de atingir o visado na sua honra e consideração. Não distinguindo nem especificando, os respetivos tipos legais admitem qualquer das formas de dolo previstas no art. 14º do C. Penal, incluindo o dolo eventual. Basta, pois, que, grosso modo, o agente admita o teor ofensivo da imputação ou juízo formulados e atue conformando-se com ele (dolo eventual), para que se tenha por preenchido o elemento subjetivo do tipo, sem prejuízo, obviamente, de o agente praticar o facto com dolo direto ou necessário, ou seja, conhecendo e querendo o teor ofensivo da imputação ou juízo ou mesmo com o intuito ou propósito de atingir o ofendido na sua honra e consideração, indo para além da exigência típica mas contendo esta necessariamente.
Como se escreveu no acórdão desta Relação do Porto de 02.02.2005[10] «À afirmação do dolo do tipo – apesar de aconselhável... - nem sempre é indispensável que se verta na acusação – por desnecessário – que o agente atuou com conhecimento da proibição legal. Se isso é indispensável sempre que o tipo de ilícito objetivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quanto também pela proibição legal. Já assim não é relativamente aos tipos de ilícito velhos de séculos, cuja ilicitude de todos é conhecida, como v.g. o homicídio, as ofensas corporais, o furto, as injúrias, em que é contrário à experiência e à realidade da vida, pôr em duvida se o agente sabe que é proibido, matar, ofender corporalmente, desapropriar, injuriar, etc. Ninguém duvidará que a arguida ao dirigir-se, de viva-voz, em tom agressivo, com clara intenção de ofender a honra, o bom nome e a consideração da ofendida e na presença desta, e ao proferir contra a mesma as expressões (...) não desconhecia a proibição desse comportamento. É que não é exigível o conhecimento do preceito, do artigo do Código Penal, a sua pena concreta! etc. Basta que o agente saiba que o seu comportamento viola as exigências da vida comunitária, que é proibido pelo direito [Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, parte general, vol. I pág.624]. Neste contexto, estando em causa uma conduta violadora de um direito fundamental clássico, quase tão velho quanto a humanidade, não releva, não pode relevar, o erro sobre a proibição, art.º 17º do Código Penal. Mesmo a relevar esse hipotético desconhecimento, porque censurável, o resultado não é a impunibilidade da conduta, mas apenas a punição com a pena aplicável ao crime doloso respetivo, a qual pode ser especialmente atenuada, art.º 17º n.º 2 do Código Penal. Conforme ensina F. Dias [Direito Penal, parte geral, tomo I, 2004, pág. 489] para justificar a punição a título de dolo, o facto deve revelar que, ao praticá-lo, o agente sobrepôs conscientemente os seus interesses ao desvalor do ilícito, o que conduziu a que a questão, durante muito tempo, se considerasse incindivelmente ligada ao problema da consciência do ilícito: uma punição a título de dolo suporia que, para além de o agente representar e querer a realização do tipo objetivo de ilícito, atuasse com consciência do ilícito, isto é, representasse por alguma forma que o facto intentado era proibido pelo direito. E o referido autor remata dizendo que uma tal concepção hoje não é necessária, nem sequer exata. Neste sentido tem decidido também a jurisprudência, Acórdão desta Relação 23.2.83, BMJ 324º, 620, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.9.97 [Citado por S. Santos e Leal Henriques, Código Penal anotado, 3ª ed. pág. 224.]».
No caso em apreço, a assistente alegou nos artºs 8º, 29º e 35º da acusação que deduziu que o arguido “lhe chamou com uma frequência diária de puta, filha da puta, badalhoca e vaca”. Alegou ainda nos artºs 37º e 41º que “com as condutas supra descritas o Arguido agiu com intenção de ofender a honra e dignidade da Assistente” que “viu-se ser vexada e insultada e gravemente lesada na sua dignidade, honra e bom-nome”.
Ora, estas últimas alegações factuais correspondem inequivocamente ao elemento intelectual ou cognitivo do dolo de injúria, na medida em que afirmam necessariamente o conhecimento por parte do arguido de que as imputações formuladas têm caráter ofensivo da honra e bom nome da ofendida e contêm ainda o respetivo elemento emocional ou volitivo por afirmarem a vontade do arguido de agir em conformidade com tal conhecimento, ou seja, querendo a imputação ou a formulação de juízo correspondente.
Conclui-se, assim, que a acusação particular contém a alegação dos factos que correspondem ao elemento subjetivo, o dolo, correspondente ao crime de injúria que imputa ao arguido. Aliás, as formulações usadas pela assistente têm mesmo a vantagem de constituir a alegação concreta dos factos psicológicos que integram o dolo de injúria, a partir da definição do art. 14º do C.Penal, em vez da fórmula genérica vulgarmente usada – agiu voluntária e conscientemente – cuja concretização tem que pressupor-se ou realizar-se em cada caso concreto por referência à factualidade objetiva, para poder considerar-se devidamente alegada a factualidade do dolo.
O que o legislador pretende é que ao submeter-se uma pessoa a julgamento se defina aquilo que ela “fez” e a postura subjetiva com que agiu e não que se utilizem expressões sedimentadas pela prática que se aplicam a todos os casos.
Quando alguém se queixa de que outrem lhe chamou determinado nome ou lhe dirigiu certas expressões ou gestos vulgarmente tidos por injuriosos ou difamatórios, não está simplesmente a fazer uma narração dos factos mas, implicitamente, a dizer que tal nome, expressão ou gesto foram praticados com a intenção correspondente ao seu significado objetivo e que essa pessoa cometeu um crime.
Ora, em rigor, só a falta de narração de factos suficientes para preencher os elementos objetivos e subjetivos do crime de injúria poderá fundamentar a rejeição da acusação nos termos do art. 311º nº 3 al. b) do CPP, o que, como vimos, não é o caso.
Tendo em conta, pois, os factos que foram imputados ao arguido na acusação particular entende-se que a declarada nulidade e consequente rejeição da acusação particular, não é a solução que melhor se harmoniza com os interesses da realização da Justiça e posição diferente tem perfeito assento na conjugação dos preceitos legais indicados e sua ponderação à luz dos princípios do acusatório e do contraditório, sem bulir, por um lado, com a proteção devida à assistente e, por outro, com as garantias de defesa do arguido, no equilíbrio que a essas vertentes deve ser conferido.
Delimitado o objeto do processo pela plenitude da acusação deduzida, a omissão detetada na acusação particular não tem virtualidade para que se considere como manifestamente infundada.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pela assistente B… e, em consequência, revogam a decisão recorrida por não se verificar causa de rejeição da acusação particular, o que implica o conhecimento das demais questões a que se reporta o art. 311º do CPP cujo conhecimento ficou prejudicado pela decisão revogada, incluindo o que respeita à admissibilidade do pedido cível deduzido.
Sem custas.
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Porto, 28 de outubro de 2020
(Elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários)
Eduarda Lobo
Castela Rio
_________
[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Cfr, por todos, Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 1971, pág. 273 e ss. e Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, 1981, págs. 201 e ss.
[4] Cfr. Cavaleiro de Ferreira, ob.cit., pág. 457.
[5] Cfr. Ac. R. Évora de 05.03.2013, Proc. nº 5689/11.2TDLSB.E1, Des. António João Latas, disponível em www.dgsi.pt.
[6] In Erro em Direito penal, 2ª ed.,1999, p. 23.
[7] In Direito Penal, Parte Geral I, 2ª ed. pp. 363 e 365.
[8] Em sentido contrário, ou seja, de que a acusação deve conter a alegação de que o agente atuou com consciência da ilicitude do facto, v., entre outros, Ac. R.Porto de 06.06.2012, Proc. nº 414/09.0PAMAI-B.P1, Des. Melo Lima e Ac. R. Porto de 20.10.2010, Proc. nº 872/09.3PBVLG.P1, Des. Élia São Pedro.
[9] V. Figueiredo Dias, Direito Penal, ed. 2004, pag. 503.
[10] Proferido no Proc. nº 0445385, Des. António Gama, disponível em www.dgsi.pt.