Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
164/22.2YRPRT
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: DECISÃO ARBITRAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ARBITRAL
TRIBUNAL ESTADUAL
PRAZO ORDENADOR
Nº do Documento: RP20221114164/22.2YRPRT
Data do Acordão: 11/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ACÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O controlo estadual da arbitragem, através da ação de impugnação da sentença arbitral prevista no artigo 46º da Lei nº 63/2011, de 14.12 (que aprovou a Lei da Arbitragem Voluntária), é a contrapartida necessária da atribuição de eficácia jurisdicional à decisão arbitral.
II - O referido diploma acolheu o denominado princípio “competência-competência”, quer no seu efeito positivo (isto é, confere-se aos árbitros a faculdade de se pronunciarem sobre a sua competência, não suspendendo a decisão sobre o fundo da causa, quando uma das partes questione que tenham competência para esse efeito), quer no seu efeito negativo, nos termos do qual os tribunais estaduais só podem conhecer plenamente da competência do tribunal arbitral depois de este se ter expressamente pronunciado sobre a questão.
III - No caso de ser proferida decisão interlocutória em que os árbitros afirmem a sua competência para conhecer do litígio que lhes foi submetido, a parte interessada, por mor do disposto no nº 9 do artigo 18º da Lei da Arbitragem Voluntária, deve impugná-la, perante o tribunal estadual competente, no prazo de trinta dias após a sua notificação. Estabelece-se, assim, um verdadeiro ónus de impugnação, assumindo esse prazo natureza preclusiva.
IV - Uma vez transitada, essa decisão tem força de caso julgado, com efeitos dentro e fora do processo arbitral, vinculando, portanto, os tribunais estaduais.
V - A partir da entrada em vigor da Lei nº 63/2019, de 16.08 (que alterou a redação dos nºs 2 e 3 do artigo 14º da Lei nº 24/96, de 31.07 - que aprovou a denominada Lei de Defesa do Consumidor), os conflitos de consumo cujo valor não exceda a alçada dos tribunais de 1ª instância (que, presentemente, se cifra em €5.000,00) passaram a estar sujeitos a arbitragem necessária (rectius, arbitragem potestativa) quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.
VI - Assumindo essas normas natureza processual, as mesmas serão de aplicação imediata, mesmo a situações de pretérito, posto que não regulam os conflitos de interesses dos sujeitos processuais, não atribuem nem extinguem direitos substantivos, apenas versando sobre o modo como os consumidores podem fazer valer em juízo arbitral as faculdades ou os direitos que lhes são concedidos pela lei substantiva.
VI I- Na arbitragem necessária/institucional os prazos para a prolação das respetivas decisões são meramente ordenadores, não inutilizando o seu decurso os julgados nem fazendo precludir a jurisdição do tribunal arbitral.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 164/22.2YRPRT
Origem: Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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SUMÁRIO
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I - RELATÓRIO

K... - Companhia de Seguros, S.A. intentou a presente ação de anulação da sentença proferida por tribunal arbitral constituído no âmbito do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto, na sequência de reclamação contra si apresentada por AA, a qual foi julgada procedente “condenando-se a requerida [a ora autora] no pagamento de todos os prejuízos verificados na esfera jurídica do requerente como resultado do sinistro dos autos, em montante a liquidar em execução de sentença”.
Filia a sua pretensão anulatória em dois fundamentos, concretamente: (i) ser o Tribunal Arbitral materialmente incompetente para o conhecimento do litígio que foi submetido à sua apreciação, por não estar em causa um conflito de consumo, mas antes um litígio decorrente de contrato de seguro; (ii) a decisão arbitral ter sido proferida e notificada já para além do prazo legalmente estabelecido para o efeito.
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Citado o réu apresentou contestação, sustentando, desde logo, que a questão da competência material do tribunal arbitral já havia sido decidida por despacho datado de 3 de fevereiro do corrente ano - onde se considerou ser o tribunal materialmente competente para o conhecimento do litígio -, o qual não foi objeto de oportuna impugnação, razão pela qual a autora não pode suscitar novamente essa questão; já no concernente ao prazo para proferir a decisão arbitral, advoga que o mesmo é meramente ordenador, sendo que o seu decurso não inutiliza o julgado.
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Cumpridos os vistos, cumpre decidir.
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II – DEFINIÇÃO DO OBJECTO DA AÇÃO

Face aos fundamentos em que a autora faz assentar o pedido de anulação da decisão arbitral, são as seguintes as questões solvendas:
- apurar se o tribunal arbitral que proferiu essa decisão é (ou não) materialmente competente para conhecer do ajuizado litígio;
- dilucidar se foi excedido o prazo para a prolação e notificação da sentença anulanda e, em caso afirmativo, quais as consequências desse facto.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

Para efeito de apreciação das questões acima enunciadas, é a seguinte a materialidade a considerar:
1º - A Autora é uma sociedade que se dedica à atividade seguradora.
2.º- No exercício da sua atividade, a Autora celebrou com a “Banco 1..., S.A.” o contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ..., nos termos do qual, aquela segurou a cobertura, entre outros, dos riscos de tempestades, inundações, pesquisas de avarias, furto ou roubo do prédio situado na Rua ..., no Porto.
3.º- Com fundamento no contrato de seguro referido em 2º, o Réu, em 5 de novembro de 2019, participou a ocorrência de um sinistro, descrevendo-o como uma infiltração de água no teto e parede no escritório, alegadamente resultantes de um “forte caudal das águas decorrentes da intempérie”.
4.º- A Autora não regularizou os danos reclamados pelo Réu, invocando a exclusão das garantias do contrato de seguro.
5.º- Nessa sequência, o Requerente/Réu, em 6 de julho de 2020, apresentou reclamação junto do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP), pedindo a condenação da Requerida/Autora no pagamento de uma indemnização no montante de €3.000,00 para reparação do sinistro referido em 3º.
6.º- Na reclamação referida em 5º o requerente declarou expressamente que pretendia “que o conflito objeto da presente reclamação seja submetido à arbitragem”.
7.º- Na contestação que apresentou no processo arbitral iniciado após a reclamação a que se alude em 5º, a Requerida (e ora Autora) defendeu-se invocando, desde logo, a incompetência absoluta do CICAP.
8.º- Por decisão proferida em 3 de fevereiro de 2021, considerou-se “improcedente a exceção invocada pela Requerida, pugnando-se pela competência material do presente Tribunal Arbitral”.
9º- A decisão referida em 8º foi notificada às partes, não tendo sido objeto de impugnação por qualquer delas.
10º- Realizou-se julgamento vindo a ser proferida, em 6 de fevereiro de 2022, a decisão anulanda, em cujo dispositivo se condenou “a requerida [a ora autora] no pagamento de todos os prejuízos verificados na esfera jurídica do requerente como resultado do sinistro dos autos, em montante a liquidar em execução de sentença”.
11º- A decisão referida em 10º foi notificada às partes no dia 24 de março de 2022.
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IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO

A autora intentou a presente ação de impugnação/anulação da ajuizada sentença arbitral[1] ao abrigo do artigo 46º da Lei nº 63/2011, de 14.12 (Lei da Arbitragem Voluntária - LAV), normativo que no seu nº 3 estabelece um elenco fechado ou taxativo de fundamentos de anulação, sendo certo que a competência atribuída a este Tribunal da Relação neste tipo de ação surge como forma de controlo estadual da arbitragem enquanto contrapartida necessária da atribuição de eficácia jurisdicional àquela decisão[2].
Dentre esses fundamentos contam-se, no que ao caso releva, os invocados pela demandante como causas invalidantes desse ato decisório, concretamente a incompetência material do tribunal arbitral para a apreciação do litígio surgido entre as partes e bem assim ter sido excedido o prazo para a prolação e notificação da decisão arbitral.
Começando pelo primeiro dos apontados vícios, dispõe a subalínea iii) da alínea a) do nº 3 do citado preceito legal que o mesmo ocorre quando “[a] sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta”.
Importa, assim, determinar se efetivamente o Tribunal Arbitral constituído no âmbito do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto detém competência material para conhecer do litígio que foi submetido à sua apreciação.
Como emerge do nº 1 do art. 18º da LAV, reconhece-se ao tribunal arbitral competência para decidir “[s]obre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção”.
O transcrito inciso normativo acolheu, pois, o denominado princípio “competência-competência” no seu efeito positivo, isto é, confere-se aos árbitros a faculdade de se pronunciarem sobre a sua (própria) competência, não suspendendo a decisão sobre o fundo da causa, quando uma das partes questione que tenham competência para esse efeito.
Como, a este respeito, tem sido sublinhado na doutrina[3], esta faculdade assenta em razões de caráter pragmático atinentes à necessidade, reconhecida pelo legislador, de se impedir atuações das partes tendentes a suster o desenrolar do processo arbitral, as quais, se pudessem vingar, destruiriam a eficácia da arbitragem com forma de jurisdição. Se assim não fosse careceria o tribunal arbitral de saber previamente por decisão do tribunal estadual se tinha ou não competência para dirimir o litígio.
Para além do referido efeito, a LAV – no nº 1 do seu art. 5º - consagrou, outrossim, o efeito negativo do mencionado princípio, nos termos do qual os tribunais estaduais só podem conhecer plenamente da competência do tribunal arbitral depois de este se ter expressamente pronunciado sobre a questão, seja em decisão interlocutória (art. 18º, nºs 8 e 9), seja na decisão final sobre o fundo da causa (art. 18º, nº 8). Entendido deste modo, o princípio da competência da competência dos árbitros faz destes, não os únicos juízes da sua competência, mas os primeiros juízes desta.
Isto posto, revertendo ao caso sub judicio, verifica-se que na contestação que apresentou no âmbito do processo arbitral a ora apelante suscitou a questão da incompetência material do tribunal arbitral para apreciação do ajuizado litígio, por, na sua perspetiva, não se estar em presença de um conflito de consumo, mas antes perante um conflito emergente de contrato de seguro.
Como se referiu, por decisão datada de 3 de fevereiro de 2021, o tribunal arbitral, em decisão interlocutória, tomou posição sobre a sua competência, afirmando-a positivamente. Essa decisão foi notificada às partes, não tendo sido alvo de impugnação por qualquer delas. Apesar disso, pretende agora a autora que este tribunal aprecie a questão da competência ratione materiae do tribunal arbitral.
Interrogação que, então, se coloca é a de saber em que momento a parte interessada pode impugnar, perante o tribunal estadual competente, a decisão interlocutória em que os árbitros declarem a sua competência para conhecer do litígio.
O problema foi especialmente discutido no domínio da pretérita Lei da Arbitragem Voluntária (Lei nº 31/86, de 29.08) face à ausência de expressa previsão normativa.
A favor da realização imediata do controlo dos tribunais estaduais sobre a decisão proferida pelo tribunal arbitral relativamente à sua competência, argumentava-se com a conveniência de poupar às partes tempo e dinheiro, evitando a continuação desnecessária do processo arbitral, sendo que este último desiderato só se atingiria se se entendesse que as estariam obrigadas a suscitar, sem demora, a questão da competência dos árbitros, devendo, também sem demora, impugnar perante o tribunal estadual competente a decisão que os árbitros sobre ela proferissem, caso com aquela não se conformassem. Contra essa solução, advogou-se, por seu turno, que esse controlo deveria ser realizado após a prolação da sentença arbitral, a fim de evitar a demora ou a obstrução do respetivo processo.
Ciente dessa discrepância interpretativa, afigura-se-nos que a atual LAV quis tomar posição sobre a enunciada questão no nº 9 do seu art. 18º, aí estabelecendo que, no caso de ser proferida decisão interlocutória em que os árbitros afirmem a sua competência para conhecer do litígio que lhes foi submetido, a parte interessada deve impugná-la[4], perante o tribunal estadual competente, no prazo de trinta dias após a sua notificação. Esse prazo é, assim, preclusivo, havendo um verdadeiro ónus de impugnação, nesse prazo, da decisão interlocutória dos árbitros sobre a sua competência. Uma vez transitada, essa decisão tem força de caso julgado, com efeitos dentro e fora do processo arbitral, vinculando, portanto, os tribunais estaduais[5].
Consequentemente, considerando que a ora autora não impugnou o referido ato decisório dentro do mencionado prazo, segue-se, pois, que lhe está vedada a possibilidade de invocar esse fundamento como causa invalidante da decisão arbitral.
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Resta, assim, dilucidar se a sentença arbitral sob análise é passível – tal como advoga a autora - de ser anulada por se mostrar preenchida a fattispecie normativa da subalínea vii) da alínea a) do nº 3 do art. 46º da LAV, porquanto a mesma apenas lhe foi notificada já depois de ter decorrido mais de um ano após se ter constituído o tribunal arbitral.
É certo que o referido preceito legal estabelece como causa (típica) de anulação da sentença arbitral o facto de esta ter sido “[n]otificada às partes depois de decorrido o prazo máximo para o efeito fixado de acordo com o artigo 43”.
Este último normativo, sob a epígrafe Prazo para proferir sentença, dispõe, no seu nº 1, que “[S]alvo se as partes, até à aceitação do primeiro árbitro, tiverem acordado prazo diferente, os árbitros devem notificar às partes a sentença final proferida sobre o litígio que por elas lhes foi submetido dentro do prazo de 12 meses a contar da data de aceitação do último árbitro”; por seu turno, preceitua o seu nº 2 que “[O]s prazos definidos de acordo com o n.º 1 podem ser livremente prorrogados por acordo das partes ou, em alternativa, por decisão do tribunal arbitral, por uma ou mais vezes, por sucessivos períodos de 12 meses, devendo tais prorrogações ser devidamente fundamentadas. Fica, porém, ressalvada a possibilidade de as partes, de comum acordo, se oporem à prorrogação”; já o seu nº 3 estatui que “[A] falta de notificação da sentença final dentro do prazo máximo determinado de acordo com os números anteriores do presente artigo, põe automaticamente termo ao processo arbitral, fazendo também extinguir a competência dos árbitros para julgarem o litígio que lhes fora submetido, sem prejuízo de a convenção de arbitragem manter a sua eficácia, nomeadamente para efeito de com base nela ser constituído novo tribunal arbitral e ter início nova arbitragem”.
Como emerge do transcrito artigo, a lei determina duas consequências para a falta de notificação da sentença final dentro do prazo máximo estabelecido para a conclusão do processo arbitral, concretamente: (i) o fim automático do processo; (ii) e a extinção da competência dos árbitros para julgarem o litígio. Significa isto, pois, que o decurso do aludido prazo máximo sem que a decisão arbitral seja proferida e notificada às partes, importa a caducidade[6] da arbitragem com a consequente extinção automática (ope legis) do processo e da competência dos árbitros, sem prejuízo da convenção de arbitragem manter a sua eficácia, podendo com base nela ser constituído novo tribunal arbitral e iniciar-se nova arbitragem.
Apelando aos elementos que podem ser colhidos nos autos verifica-se que o requerente (e ora réu) AA apresentou, em 6 de julho de 2020, reclamação junto do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP), sendo que em novembro desse ano foi designado o dia 9 de dezembro para “tentativa de conciliação seguida de imediata arbitragem com o respetivo julgamento caso aquela se frustre”. De igual modo, resulta dos autos que a sentença arbitral veio a ser proferida em 6 de fevereiro de 2022, tendo sido notificada às partes em 24 de março desse mesmo ano.
A descrita realidade apontaria, primo conspectu, no sentido da ocorrência da causa invalidante contemplada na subalínea vii) da alínea a) do nº 3 do art. 46º da LAV, em virtude de a ajuizada decisão arbitral ter sido notificada às partes mais de um ano depois de se ter constituído o tribunal arbitral.
Haverá, no entanto, que atentar que com a publicação da Lei nº 63/2019, de 16.08 foi alterada a redação do art. 14º da Lei nº 24/96, de 31.07 (que aprovou a denominada Lei de Defesa do Consumidor), em cujos nºs 2 e 3 se postula que os conflitos de consumo cujo valor não exceda a alçada dos tribunais de 1ª instância (que, presentemente, se cifra em €5.000,00[7]) estão sujeitos a arbitragem necessária (rectius, arbitragem potestativa) quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.
A este propósito tem sido objeto de controvérsia saber qual o momento a considerar para efeito de aplicação da aludida solução legislativa, discutindo-se, designadamente, se a mesma tem, ou não, o seu âmbito limitado aos conflitos de consumo surgidos após a sua entrada em vigor - o que, por mor do art. 3º da Lei nº 63/2019, ocorreu em 15 de setembro de 2019.
Dada a ratio essendi dos referidos nºs 2 e 3 do art. 14º (que, como se sublinhou, se destinam a permitir a submissão dos conflitos de consumo de reduzido valor económico à arbitragem necessária, contanto que o consumidor se manifestamente expressamente nesse sentido), afigura-se-nos que essas normas assumem natureza processual[8], razão pela qual, à luz do princípio de direito transitório que rege nesta matéria[9], as mesmas são de aplicação imediata, mesmo a situações de pretérito, posto que não regulam os conflitos de interesses dos sujeitos processuais, não atribuem nem extinguem direitos substantivos, apenas versando sobre o modo como os consumidores podem fazer valer em juízo arbitral – e, portanto, de forma mais acessível, económica[10] e tendencialmente mais expedita - as faculdades ou os direitos que lhes são concedidos pela lei substantiva. Como assim, o momento a considerar para a aplicação (ou não) da referida normatividade a um caso concreto será o da data da entrada do requerimento de arbitragem no tribunal adstrito a centro de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizado.
Em resultado do exposto, será de convocar o regime acolhido nos nºs 2 e 3 do art. 14º quando se esteja em presença de um conflito de consumo (no sentido definido pelo art. 3º da Lei nº 144/2015, de 8.09[11]), o valor da causa não seja superior a €5.000,00 e o requerimento de arbitragem seja apresentado pelo consumidor – no qual exerça o direito (potestativo) de opção pela submissão do litígio a arbitragem “necessária” – após 15 de setembro de 2019.
No caso vertente, como se referiu, o requerente AA, na reclamação que apresentou, em 6 de julho de 2020, junto do CICAP, pediu a condenação da requerida (e ora autora) no pagamento de uma indemnização no montante de €3.000,00 para reparação dos danos resultantes de sinistro ocorrido em novembro de 2019, tendo aí declarado expressamente que pretendia “que o conflito objeto da presente reclamação seja submetido à arbitragem”. Por seu turno, como já anteriormente se deu nota, por decisão proferida em 3 de fevereiro de 2021 foi afirmada a competência do tribunal arbitral por se estar em presença de um litígio aí configurado como “conflito de consumo”, decisão essa que não foi objeto de tempestiva impugnação, razão pela qual se formou caso julgado sobre essa questão para efeitos endoprocessuais.
Por conseguinte, na espécie, estamos perante um litígio submetido a arbitragem necessária, que se regerá, assim, pelo disposto nos arts. 1136º a 1139º, do Cód. Processo Civil, pela Lei nº 144/2015, de 8.09[12], pelo Regulamento do CICAP[13] e, subsidiariamente, pelas regras da LAV.
A respeito do prazo para a prolação e notificação da respetiva decisão arbitral, o referido Regulamento (depois de no art. 17º estabelecer que “os processos de reclamação não podem ter duração superior a 90 dias”[14]), no nº 2 do seu art. 15º, preceitua que “[a] sentença arbitral (…) é notificada às partes com o envio de cópia no prazo máximo de 15 dias seguidos a contar da data da realização da audiência”, estatuindo o nº 2 do art. 1138º, do Cód. Processo Civil que “[s]e a decisão não for proferida dentro do prazo, este é prorrogado por acordo das partes ou decisão do juiz, respondendo pelo prejuízo havido e incorrendo em multa os árbitros que injustificadamente tenham dado causa à falta; havendo nova falta, os limites da multa são elevados ao dobro”.
Portanto, ao invés do que sucede no domínio da arbitragem voluntária, na normação aplicável à arbitragem necessária não se estabelece um prazo perentório para a notificação da decisão arbitral às partes (a implicar, como se viu, o termo automático do processo, com a extinção da competência dos árbitros para julgarem o litígio), revestindo o prazo adrede fixado para esse efeito natureza de prazo meramente indicativo ou ordenador, à semelhança dos prazos estabelecidos no Código de Processo Civil para os atos dos juízes (cfr. art. 156º, nºs 4 e 5), podendo, embora, gerar uma consequência de cariz sancionatório.
E compreende-se que assim seja posto que, atenta a natureza jurídica deste tipo de arbitragem (enquanto arbitragem “forçada” ou “obrigatória”), a decisão do litígio a ela submetido terá, necessariamente, de ser feita através deste mecanismo de resolução alternativa de conflitos. Daí que não se compreenderia que, estando as partes vinculadas/obrigadas a recorrer ao juízo arbitral, tivessem sujeitas a um regime que lhes conferisse menos direitos, ou mais restrições, do que teriam na justiça estatal, quando esta lhes foi vedada ope legis, razão essa que legitima, pois, o afastamento da aplicação subsidiária da consequência prevista para a arbitragem voluntária no nº 3 do art. 43º da LAV, por inexistir identidade fundamental entre as duas situações.
Por via disso, a jurisprudência pátria[15] vem considerando (em moldes que merecem a nossa concordância) que na arbitragem necessária/institucional os prazos para a prolação das respetivas decisões são ordenadores, não inutilizando o seu decurso os julgados nem fazendo precludir a jurisdição do tribunal arbitral.
Nessa decorrência, inverifica-se igualmente o segundo fundamento que a autora convocou para anular a ajuizada decisão arbitral.
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V- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a presente ação de anulação.

Custas a cargo da autora, fixando-se o valor processual da ação em três mil euros.

Notifique e registe.


Porto, 14.11.2022
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Fátima Andrade
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[1] Ação essa que, dado o seu escopo, assume, assim, natureza de ação declarativa constitutiva.
[2] Isso mesmo é posto em evidência por LIMA PINHEIRO (in Arbitragem Transnacional. A determinação do estatuto da Arbitragem, 2005, Almedina, págs. 73 e seguintes), sustentando que as ordens jurídicas estaduais só estão dispostas a atribuir efeitos jurisdicionais a uma decisão proferida por particulares na condição de poderem exercer algum controlo sobre a arbitragem ou, pelo menos, sobre os efeitos jurisdicionais da decisão arbitral.
[3] Cfr., por todos, SAMPAIO CARAMELO, in Direito da Arbitragem, Almedina, 2017, pág. 45 e seguintes, e MANUEL PEREIRA BARROCAS, in Manual de Arbitragem, 2ª edição, Almedina, págs. 403 e seguinte, onde enfatiza que o princípio da competência-competência “consagra a autonomia da jurisdição arbitral relativamente à jurisdição dos tribunais estaduais”.
[4] Sendo que nessa hipótese, por mor do preceituado no nº 10 desse mesmo normativo, enquanto estiver endente a impugnação no tribunal estadual “o tribunal arbitral pode prosseguir o processo arbitral e proferir sentença sobre o fundo da causa”.
[5] Cfr., neste sentido, inter alia, SAMPAIO CARAMELO, ob. citada, págs. 63 e seguintes.
[6] Consequência essa que vem sendo recorrentemente afirmada quer pela doutrina (cfr. por todos, PEREIRA BARROCA, ob. citada, pág. 445), quer pela jurisprudência (cfr., entre outros, acórdãos da Relação de Lisboa de 16.03.2017 [processo nº 416/15.8YRLSB] e de 27.04.2017 [processo nº 1059/16.4YRLSB] e acórdão da Relação de Guimarães de 13.01.2022 [processo nº 177/21.1YRGMR], acessíveis em www.dgsi.pt).
[7] Cfr. art. 44º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26.08 – que aprovou a Organização do Sistema Judiciário.
[8] Cfr., neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 11.03.2021 (processo nº 2018/20.8YRLSB-2), acessível em www.dgsi.pt.
[9] Sobre as concretizações da aplicação no tempo da lei processual nova, vide, inter alia, CASTRO MENDES/TEIXEIRA DE SOUSA, in Manual de Processo Civil, vol. I, 2022, AAFDL Editora, págs. 74 e seguintes.
[10] Note-se que de acordo com o disposto no art. 14º, nº 5 da Lei nº 24/96 (na redação que lhe foi aportada pela Lei nº 63/2019), o consumidor fica dispensado do pagamento prévio de taxa de justiça.
[11] Que transpôs a Diretiva 2013/11/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, estabelecendo o enquadramento jurídico dos mecanismos de resolução extrajudicial de litígios de consumo.
[12] Na redação que lhe foi dada pelo DL nº 102/2017, de 23.08 e pela Lei nº 14/2019, de 12.02, em vigor à data da apresentação do requerimento de arbitragem.
[13] Acessível em https://www.cicap.pt/cicap/estatutos-e-regulamentos/.
[14] Em análogo sentido dispõe o nº 5 do art. 10º da Lei nº 144/2015, de 8.09, não fixando, contudo, qualquer consequência para a ultrapassagem desse prazo.
[15] Cfr., neste sentido, acórdãos da Relação de Lisboa de 24.04.2018 (processo nº 1333/17.2YRLSB.1) e de 16.03.2017 (processo nº 416/15.8YRLSB.L1-6), acessíveis em www.dgsi.pt.