Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
78/20.0PHVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: CRIME DE EXPOSIÇÃO OU ABANDONO
REQUISITOS
DOLO
DOLO EVENTUAL
CRIME PRETERINTENCIONAL
NEGLIGÊNCIA
Nº do Documento: RP2023010478/20.0PHVNG.P1
Data do Acordão: 01/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO)
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Para o preenchimento do tipo objetivo do crime de exposição ou abandono o agente tem de colocar em perigo a vida de uma pessoa através de exposição ou abandono, o que consubstancia um crime de perigo concreto.
II - Enquanto a exposição pressupõe a deslocação espacial da vítima levada a cabo pelo agente, o abandono consiste em o agente abandonar a vítima sem defesa sempre que tenha um dever de a guardar, vigiar ou assistir.
III - No entanto, o abandono ocorre não só quando o agente abandone o local, mas também quando, mantendo-se junto à vítima, omita qualquer acto de auxílio para com aquela.
IV - O tipo subjetivo só se preenche com o dolo, bastando, porém, o dolo eventual, o qual tem evidentemente de abarcar a criação de perigo para a vida da vítima, bem como a ausência de capacidade para se defender por parte desta.
V - A agravação da pena decorrente da ocorrência de um resultado mais grave, morte da vítima ou ofensa à integridade física grave, pressupõe a possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência, embora decisivo para a verificação do crime preterintencional é que o resultado produzido seja imputável à situação de perigo criada e diretamente conexionada com a ausência de capacidade de defesa por parte da vítima.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 78/20.0PHVNG.P1
Recurso Penal
Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 4


Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.


I. Relatório
No âmbito do processo comum coletivo que, sob o nº 78/20.0PHVNG, corre termos pelo Juízo Central Criminal do Porto, foi proferido acórdão após realização da audiência de discussão e julgamento, com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, julga-se improcedente, por não provada, na sua totalidade, a douta acusação pública, pelo que as Juízas que constituem o Tribunal Coletivo decidem:
- absolver AA, como autor de um crime de exposição ou abandono, p. p. pelo artigo 138.º, n.º 1, alínea a) e 2 e n.º 3, alínea b), do Código Penal.
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Sem custas crime.
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Notifique e deposite o presente acórdão (arts. 372º, nºs. 4 e 5 e 373º, nº2, do C.P.P.).”.
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Inconformado com a decisão absolutória, dela interpôs recurso o Ministério Público para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem [1]:
“1º - O tribunal “a quo” absolveu AA, da prática de um crime de exposição ou abandono, p. e. p., pelo art.º 138, n.º 1, alínea a) e 2 e n.º 3 alínea b) do Código Penal.
2º- Foram incorretamente julgados os seguintes pontos:
a) ao ponto 5 da matéria de facto dada como provada na parte “Até ao dia 19.02.2020, (…)”.
b) aos seguintes pontos da matéria de facto dada como não provada:
1) - apenas até finais do mês de janeiro/início do mês de fevereiro do ano de 2020, a ofendida BB vivesse sozinha na sua residência.
2) - que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 7 dos factos provados, o arguido AA, estava ciente que a sua mãe, a ofendida BB não conseguia locomover-se pelos seus próprios meios, não estava capaz de movimentar os seus braços ou pernas, por modo a que pudesse, por si só, alimentar-se ou cuidar da sua higiene pessoal ou providenciar pela sua assistência médica.
3) e que, pelo menos até ao dia 19 de fevereiro de 2020, o arguido AA deixou a sua progenitora sozinha na aludida residência, sem prestar à mesma os cuidados de alimentação, água e sem cuidar da sua higiene pessoal, ficando a ofendida, desidratada, vestida com roupas molhadas e semi-nua, com hematomas que não foram tratados e rodeada de fezes e urina, pelo menos por mais de 24 horas.
4) que nas circunstâncias referidas no ponto 10 dos factos provados a ofendida BB tenha sido encontrada com dejetos de animal (ratos) circundando-lhe o corpo.
5) que no quarto referido no ponto 11 dos factos provados tivessem sido encontradas várias ratoeiras, com ratos mortos.
6) que todas as divisões da casa apresentassem sujidade, um cheiro intenso a fezes e urina, com restos de comida no chão.
7) que o arguido AA conhecia as limitações físicas da sua progenitora decorrentes da queda ocorrida entre 15 e 17 de fevereiro de 2020, no interior da sua residência, nomeadamente, de locomoção e de cuidar da sua alimentação e higiene pessoal, situação da qual tinha perfeito conhecimento na sequência de ter sido este a encontra-la caída no quarto de dormir.
8) que, ainda assim, o arguido AA deixou a sua progenitora, por mais de 24 horas, sem providenciar pelo seu socorro e assistência, o que contribuiu para a degradação do seu estado de saúde e para a potenciação do agravamento do seu estado geral de saúde, designadamente por não ter sido prestado cuidados médicos atempadamente à sepsis e pneumonia, e consequentemente a sua morte.
9) que o arguido AA admitiu, representando como possível e conformou-se com tal possibilidade, de que ao deixar a sua mãe, a ofendida BB sozinha por mais de 24 horas, sem esta se conseguir locomover e sem se alimentar, estando deitada em sítio húmido e cheio de dejetos de animal, e sem qualquer assistência médica, colocava em perigo concreto a sua vida, como efetivamente se veio a verificar, tendo a sua progenitora vindo a falecer, resultado morte que como único garante do dever de assistência nas circunstâncias concretas lhe incumbia evitar.
10) que o arguido AA agiu sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.
3º - A prova produzida nos autos nomeadamente os depoimentos:
a) do arguido AA (gravadas no sistema Citius Media Studio, por reporte à data de 27/04/2022, tendo por referência as horas 09:56:03 a 10:51:45 e entre 12:11:05 a 12:13:24);
b) da testemunha CC (gravadas no sistema Citius Media Studio, por reporte à data de 27/04/2022, tendo por referência as horas 10:51:46 a 10:59:17 e entre 11:04:21 a 11:34:15);
c) da testemunha DD (gravadas no sistema Citius Media Studio, por reporte à data de 27/04/2022, tendo por referência as horas 11:34:17 a 12:11:04;
d) da testemunha EE (gravadas no sistema Citius Media Studio, por reporte à data de 27/04/2022, tendo por referência as horas 12:30:04 a 12:36:47);
e) da testemunha FF (gravadas no sistema Citius Media Studio, por reporte à data de 04/05/2022, tendo por referência as horas 14:35:39 a 15:10:27);
f) da testemunha GG (gravadas no sistema Citius Media Studio, por reporte à data de 04/05/2022, tendo por referência as horas 15:18:42 a 15:43:08);
g) da testemunha HH (gravadas no sistema Citius Media Studio, por reporte à data de 04/05/2022, tendo por referência as horas 15:43:09 a 16:05:11);
h) da testemunha II (gravadas no sistema Citius Media Studio, por reporte à data de 22/06/2022, tendo por referência as horas 10:26:24 a 11:07:26);
prestados em audiência de julgamento, conjuntamente com os elementos clínicos de fls. 13 a 21 e do atestado de óbito de fls. 22 permite concluir, com grau de certeza, que o arguido AA praticou um crime de abandono, p. e p., pelo art.º 138, n.º 1, alínea b) e 2 e n.º 3 alínea b) do Código Penal.
4º - No caso dos autos argumentam as M.ª Juízas “a quo” não ter o tribunal encontrado acervo probatório para concluir de que mercê da queda ocorrida no dia 17/02/2022 “(…), a ofendida não conseguia locomover-se pelos seus próprios meios, não estava capaz de movimentar os seus braços ou pernas, por modo a que pudesse, por si só, alimentar-se ou cuidar da sua higiene pessoal ou providenciar pela sua assistência médica, assim como de que, pelo menos até ao dia 19 de fevereiro de 2020, o arguido AA deixou a sua progenitora sozinha na aludida residência, sem prestar à mesmos cuidados de alimentação, água e sem cuidar da sua higiene pessoal, ficando a ofendida, desidratada, vestida com roupas molhadas e semi-nua, com hematomas que não foram tratados e rodeada de fezes e urina, pelo menos por mais de 24 horas, (…)”.
5º - Secundam-se, nomeadamente, na circunstância de relativamente a esse período, ou seja, aquele que medeia entre 17/02/2020 e 19/02/2020 apenas termos a versão do arguido.
6º - Versão à qual as M.ªs Juízes “a quo” atribuíram credibilidade, e que consideraram não contraditada por qualquer outro tipo de prova, seja ela de natureza testemunhal, seja ela de qualquer outro tipo.
7º - Ao inverso, quanto ao depoimento prestado por parte da testemunha DD, bombeira que ocorreu ao local no seguimento da chamada efetuada para o 112, consideraram-no: descredibilizado, em face do depoimento da Dr.ª II e colocado em crise em face do depoimento prestado por parte do chefe de P.S.P. CC.
8.º – Desde logo e quanto a este ponto de forma manifesta e objetiva se diz que não se concorda e isto por duas ordens de fatores:
a) primeiro porque não damos, como de seguida iremos demonstrar, aquele grau de credibilidade às declarações do arguido;
b) segundo porquanto consideramos credível a versão dos factos apresentada por parte da testemunha DD dado que secundada pelo depoimento prestado por outras testemunhas e analisado não por si só, mas conjugado com os depoimentos das demais, tudo à luz das mais elementares regras da experiência.
9º - Caso contrário, teríamos de aceitar que todo o quadro clínico e sobretudo o enquadramento vivencial da ofendida BB - condições em que viveu desde o dia .../.../2022 – apenas se verificou depois do arguido ter ido ter com aquela no dia 19/02/2022 pela manhã até ao momento em que depois, da parte da tarde, pelas 14 h e 00 min lá voltou.
10º - Raciocínio esse que, na nossa modesta opinião, não pode ser efetuado, porquanto foi produzida prova em sentido contrário.
11º - Por essa razão consideramos que as M.ªs Juízes “a quo” apreciaram de forma errada a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, não atentando às regras da experiência comum, relativamente aos pontos da matéria de facto provada e não provada a que supra fizemos referência.
12º - Como podemos considerar o depoimento prestado pelo arguido como credível se: por um lado se contradiz a si mesmo e por outro lado é contraditado pelo depoimento de outras testemunhas e ainda porque nega factos que foram dados como provados.
Vejamos pois de onde tal se pode concluir:
13º - Resulta das suas declarações ser filho único da ofendida BB e apresentar aquela à data da prática dos factos 93 anos e de que o arguido estaria inteirado do estado de saúde da sua mãe, nomeadamente quanto às suas dificuldades de locomoção.
14º – Mais, disse o arguido ser quem religiosamente todos os dias ia às oito da manhã abrir a casa, dar o pequeno almoço à ofendida e à noite ia fechar a casa, aduzindo ainda que que lá ia no mínimo duas vezes por dia, mas normalmente ia três.
15º – Ora, isto é desde logo contraditado pela testemunha Dr.ª II que refere ter-lhe sido dito não só pela ofendida, como pelo próprio arguido que este último não ia a casa da ofendida todos os dias.
16º – Por outro lado, quanto há existência de ratoeiras e um rato morto é contraditado pelo depoimento prestado por parte da testemunha da DD que alude à efetiva existência de ratoeiras e de um rato morto.
17º – Ademais, é contraditado pela matéria de facto dada como provada tendo em conta o preceituado no art.º 11.º daquela onde se pode ler que “No quarto onde BB se encontrava existiam várias ratoeiras, e um rato morto entre a cama e a cómoda.”.
18º – Quanto à queda ocorrida no dia 17/02/2020 refere o arguido que quando foi a casa da sua mãe depois do almoço encontrou-a aninhada entre a cama e a cómoda, que aquela não lhe terá dito nada, que a colocou na cama, sentada, perguntando-lhe se estava bem, tendo-lhe aquela dito que sim, que aquela lhe disse que não tinha nada, que lhe perguntou se queria ir ao hospital, ao que aquela referiu que não e o que se passou a seguir foi que ela recuperou como das outras vezes.
19º - Mais referiu que lá voltou ao fim da tarde, e que aquela estava perfeitamente bem. Questionado Minuto: 19.52 – “O que quer dizer com estava perfeitamente bem?” respondeu não acusou nada e que chegou a dizer que era melhor ir ao hospital, mas que a ofendida tinha relutância em ir ao hospital.
20º - Ora, que sentido faz, em face das regras da experiência, esta afirmação do arguido de ser melhor ir ao hospital.
21º - Se estava tudo bem, não havia necessidade dessa consideração.
22º – Depois existiu a queda do dia 19/02/2020 relativamente à qual o arguido da parte da tarde, pelas 14 h e 00 min, se deparou com a ofendida novamente caída entre a cama e a cómoda, verificou que a cama estava completamente molhada com urina e que teria feito na cama as suas necessidades fisiológicas.
23º - mporta contudo atentar ao que terá ocorrido entre a data em que o arguido encontrou a sua mãe caída no dia 17/02/2020 e as 14 h e 00 min do dia 19/02/2020 em que voltou a encontrá-la novamente caída.
24º - Sobre isso refere que que no dia 17/02/2020 a ofendida, após a queda, ficou na cama, que no dia 18/02/2022 aquela levantou-se e veio cá para baixo (note-se que a casa da ofendida tem 1.º andar e r|ch, sendo o quarto no 1.º andar e a cozinha, onde podia fazer o pequeno almoço ou cozinhar, no r\ch), e que no dia 19/02/2020 foi lá às oito da manhã levar-lhe como de costume o pequeno-almoço, que tomava a medicação juntamente com o leite e sentava-se na cama.
25º - Assim sendo, nesta versão tudo estaria normal.
26º – Na realidade, não o cremos em face da prova produzida. Uma vez que se estava tudo bem, se não existisse nenhum problema porque é que a esposa do arguido teve necessidade no dia 18/02/2020 de fazer ou a levar comida para a ofendida.
27º – Não faz sentido, em face das regras da experiência de que se tendo a ofendida levantado no dia 18/02/2020, como alega o arguido, ser necessário ir ajudá-la ou levar-lhe comida?
28º – De igual forma não se apresenta credível a versão do arguido relativamente à roupa que a ofendida no dia 19/02/2020 tinha vestida.
Do depoimento da testemunha DD resulta que a ofendida na roupa de cama tinha apenas um cobertor e estava vestida na parte debaixo com um pano preso com um gancho tipo bebé.
E a testemunha HH referiu que aquela para a parte de cima tinha uma camisola.
Ora, em face de tais depoimentos o que se impõe questionar é. Encontrando-se a ofendida no dia 19/02/2020 pelas 14h00m quando o arguido a encontrou no estado, que tais depoimentos retratam, quanto a roupa de cama e roupa vestida, tendo o arguido lá ido da parte da manhã. Quando existiria mais frio, em face da hora e do mês do ano, numa casa já de si fria, não teria o arguido curado por questionar a sua mãe por vestir mais roupa e colocar mais roupa na cama?
29º - Por todos os pontos a que supra referimos não cremos pois ser de atribuir credibilidade à versão dos factos apresentada por parte do arguido.
30º - Por outro lado, relativamente ao depoimento prestado por parte de DD, bombeira que ocorreu ao local no seguimento da chamada efetuada para o 112, as M. Juízes “a quo” consideraram-no: descredibilizado, em face do depoimento da Dr.ª II e colocado em crise em face do depoimento prestado por parte do chefe de P.S.P. CC.
31º - No ponto relativo ao depoimento prestado por parte da Dr.ª II referem as M.ªs Juízas “a quo” que “E não o pode fazer dado o depoimento da Dr.ª II descredibilizar, em parte, o depoimento da bombeira DD. Senão vejamos: refere esta última que quando chegou ao local deparou-se com fezes de rato no colchão, cama e cómoda do quarto, sendo visíveis mordeduras de ratos nas pernas da ofendida. No entanto, decorre do depoimento da Dr.ª II que o corpo da ofendida não apresentava qualquer sinal de mordedura de rato e que as análises à leptospirose apresentaram um resultado negativo.”
32º – Ora, e quanto a este ponto em concreto a testemunha DD referiu que nas pernas a ofendida D.ª BB tinha género mordidas de rato.
33º - É certo que fala de tipo de dois dentinhos. Mas também não deixa de ser certo que de acordo com o depoimento prestado por parte do chefe da P.S.P. CC o mesmo faz alusão a que nos tornozelos a D. BB dava indícios de ter sido mordida por animais.
34º - Mais, na própria fundamentação da matéria de facto e relativamente ao depoimento prestado por JJ e KK, filhas do arguido, referiram que a sua avó, aqui ofendida, aparentava algumas feridas na pele que associavam às bicadas de galinhas e às urtigas do campo.
35º - Ademais a Dr.ª II no seu depoimento não disse que a requerida não tinha mordedura de rato, mas que não podia afirmar que tivesse pois como disse não tinha conhecimentos suficientes para o atestar ou dizer.
36º - É ainda aduzido em sede da fundamentação da matéria de facto por parte das M.ª Juízas “a quo” que o depoimento de DD no que toca à apreciação quanto ao grau de gravidade da sujidade e cheiro encontrado, alegadamente “nauseabundo” fica também comprometido e é colocado em crise pelo depoimento do chefe da P.S.P. o qual refere não ter presenciado a existência de ratoeiras e não ter qualquer memória de ter visto ratoeiras ou ratos mortos.
37º - Mas colocado em crise como?
38º - Quanto ao número de ratoeiras e ratos mortos?
39º - É o próprio Tribunal que no art.º 11.º dos factos provados dá como provado “No quarto onde BB se encontrava existiam várias ratoeiras, e um rato morto entre a cama e a cómoda.”.
40º - Mas é por isso que o depoimento daquela é colocado em crise.
41º - Quando não há dúvidas que o tribunal considerou existirem várias ratoeiras, caso contrário não dava esse facto como provado.
42º - Quanto ao grau de gravidade da sujidade e cheiro encontrado, alegadamente “nauseabundo” não só a testemunha DD adjetivou o cheiro sentido quando entrou na casa onde se encontra a ofendida BB como igual adjetivo foi utlizado por parte do Sr.º Chefe da P.S.P. CC, tal como resulta das declarações de ambos.
43º - Assim deve concluir-se que o depoimento prestado por parte da testemunha DD é credível, não se apresentando inquinado e ao invés essencial e relevante em face de ter sido das primeiras pessoas a chegar à casa da D.ª BB.
44º - Consta dos factos não provados que a ofendida BB tenha sido encontrada com dejetos de animal (ratos) circundando-lhe o corpo.
45.º - Todavia, é referido por aquela testemunha a existência de fezes de rato no colchão, chão e cómoda.
46º - Ora, tal tem de ser considerado em face do depoimento daquela e porque perante as regras da experiência, e face ao estado da D.ª BB, tal se apresenta verosímil.
Note-se que foram encontradas ratoeiras e um rato morto. Sendo este tipo de animal que em vida produz aquele tipo de dejetos.
47.º Em face de tudo o exposto considerarmos que a versão apresentada pelo arguido não merece credibilidade quanto à situação vivencial da sua mãe BB entre os dias 17 de Fevereiro de 2020 e 19 de Fevereiro de 2020 pelo que não podia o Douto Acórdão, como o fez considerar em sede de fundamentação que sobre aquele período apenas temos a versão do arguido.
48.º - Isso seria como, já dissemos supra, aceitar que todo o quadro clínico, incluindo ferimentos nas pernas e sobretudo o enquadramento vivencial da ofendida BB - condições em que viveu desde o dia 17/02/2020 apenas se verificou depois do arguido ter ido ter com aquela no dia 19/02/2020 pela manhã até ao momento em que depois, da parte da tarde, pelas 14 h e 00 min lá voltou.
49.º - Não só porque aquele não é credível como consideramos já ter demonstrado, como o estado em que a ofendida BB foi encontrada não é compatível com uma situação que tivesse ocorrido em poucas horas.
50.º - Não pode pois deixar de ser o resultado de uma situação em que BB foi deixada sozinha na sua residência pelo arguido, sem lhe prestar cuidados de alimentação, água e sem cuidar da sua higiene pessoal tendo aquela ficado desidratada, vestida com roupas molhadas e semi-nua, com hematomas e ferimentos que não foram tratados e sem, quem com a obrigação, lhe prestasse o devido auxílio que ela, pelo seu estado de saúde, por si só não conseguia prover.
51º - E porque é que dizemos isso?
52 º - Porque a D.ª BB viveu naquele período e foi encontrada num estado de insalubridade tal que, em face das regras da experiência, não se podia ter desenvolvido em tão pouco tempo.
53º - E o que nos permite fundamentar tal raciocínio?
54.º - O depoimento das testemunhas que foram ao local e que junto dela estiveram e o das que nos momentos anteriores à sua morte ainda privaram com ela.
55.º - Na realidade, em função dos depoimentos prestados por essas testemunhas, e que foram transcritos em sede de fundamentação da presente peça recursiva, mais uma vez se reitera que o estado vivencial em que a ofendida BB esteve sujeita não resulta de um quadro que apenas se tenha desenvolvido entre as 08 h do dia 19/02/2020 e as 14 h desse mesmo dia, altura em que o arguido junto de si voltou.
56.º - Essa conclusão não se apresenta verossímil em face das regras da experiência.
57.º Concluir dessa forma não se apresenta lógico.
Isto porque, são por demais as ordens de razão que importa atentar.
58º - Desde logo, a falta de credibilidade da versão do arguido pelos fundamentos que se expôs.
59.º - Por outro lado, o facto de ter sido encontrada uma ratoeira com um rato morto no quarto da ofendida.
60º - A isso acresce a circunstância da ofendida ter sido encontrada urinada e com fezes.
Mas se relativamente a este ponto se poderia questionar se não seria possível que tivesse resultado da mesma ter feito necessidades fisiológicas nessa manhã.
Essa possibilidade, é afastada pelo depoimento da testemunha DD referiu que a sujidade era antiga, que já não era um cheiro da hora adjetivando-o de intenso.
Mas mesmo que isso não bastasse, importa ainda ter em consideração o que foi referido pela testemunha FF, enfermeira que esteve com a ofendida no hospital, que referiu que mesmo após terem limpo a ofendida em casa (segundo o que lhe foi dito) ainda assim havia vestígios no corpo da mesma tais como urina e fezes mais ressequidas. Mais acrescentou não obstante o banho dado em casa era difícil respirar muito tempo no espaço pequeno em que se encontravam, dado ter ficado um cheiro desagradável.
Daqui resulta evidente o elevado grau de falta de higiene em que a ofendida se encontrava.
61º - Mais, a testemunha chefe da P.S.P. CC que percorreu mais do que uma divisão da casa, pelo menos o quarto, corredor e cozinha referiu que o cheiro era nauseabundo e que o sentiu logo que acabou de subir as escadas e entrou na porta de acesso à residência.
62º - Acresce ainda o facto desta testemunha ter referido em declarações em inquérito que foram lidas na audiência que “De início a Sr.ª embora estivesse consciente não conseguia pronunciar as palavras, mas ao fim de algum tempo acabou por dizer que não se conseguia mexer, que ultimamente já não conseguia fazer algumas tarefas, nomeadamente fazer a sua higiene pessoal ou fazer a sua alimentação.”.
63º - Mais referiu ainda esta testemunha que a D. BB não conseguia sair da cama para fazer as suas necessidades fisiológicas, porque quando a levantaram apercebeu-se que ela não tinha qualquer mobilidade.
64.º Como outra ordem de razão importa atender ao facto de na cama, em face do depoimento da testemunha DD, existirem dejetos de rato.
65.º - Ainda outra, a circunstância de estar apenas com uma camisola e uma espécie de saiote.
66.º - Ora, caso o arguido tivesse estado com a sua mãe na manhã do dia 19/02/2020, como referiu ter estado, numa casa já por si fria e a uma hora em que o tempo estaria mais frio, não lhe teria dito para vestir mais roupa e ela o teria feito, caso para tal se encontrasse capaz, o que já nos parece estar manifestamente demonstrado que não estava.
67.º - Mais, o estado de hipotermia em que a ofendida se encontrava.
68.º - O facto de se encontrar muito desidratada e com ferimentos nas pernas.
69º - Conjugando todos estes elementos como se pode aceitar, em face das regras da experiência, que o grau de insalubridade que se apresentou a quem socorreu a ofendida apenas podia resultar de condições ocorridas após as 08 h do dia 19/02/2020?
70º - Claramente que não se pode.
71º - A D. BB após o dia 17/02/2020 ficou numa situação de risco grave para a sua saúde e vida necessitando o auxílio de terceiros para suprir às suas necessidades mais básicas, incumbindo ao arguido enquanto seu filho, garantir o auxílio para situação de risco em que incorria a vítima, tanto mais que já apresentava ferimentos nas pernas.
72.º A situação de falta de auxílio por aquela vivida a partir daquele dia 17/02/2020 até ao momento em que foi conduzida ao hospital relativamente ao quadro de infeção de que a mesma padecia a agravaram a aceleraram e conduziram a morte.
73.º - Do conjunto da prova produzida, já exaustivamente e longamente enunciada, analisada, criticada e avaliada, consideramos que a factualidade que consideramos como erradamente julgada deve ser alterada e:
a) quanto ao ponto 5 da matéria de facto dada como provada deve ser alterado e aí passar a constar “Até ao dia 17.02.2020, (…)”. deverá ser dado como provado, nesses termos, por estar provado pelas declarações do arguido e das testemunhas CC, DD, EE, FF, HH e II.
b) aos seguintes pontos da matéria de facto dada como não provada passem para a matéria de facto provada:
1 - que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 7 dos factos provados, o arguido AA, estava ciente que a sua mãe, a ofendida BB não conseguia locomover-se pelos seus próprios meios, não estava capaz de movimentar os seus braços ou pernas, por modo a que pudesse, por si só, alimentar-se ou cuidar da sua higiene pessoal ou providenciar pela sua assistência médica.
deverá ser dado como provado, por estar provado pelas declarações do arguido e das testemunhas CC, DD, EE, FF, HH e II.
2 - que, pelo menos até ao dia 19 de fevereiro de 2020, o arguido AA deixou a sua progenitora sozinha na aludida residência, sem prestar à mesma cuidados de alimentação, água e sem cuidar da sua higiene pessoal, ficando a ofendida, desidratada, vestida com roupas molhadas e semi-nua, com hematomas que não foram tratados e rodeada de fezes e urina, pelo menos por mais de 24 horas.
deverá ser dado como provado, por estar provado pelas declarações do arguido e das testemunhas CC, DD, EE, FF, HH e II.
3 que nas circunstâncias referidas no ponto 10 dos factos provados a ofendida BB foi encontrada com dejetos de animal (ratos) circundando-lhe o corpo.
deverá ser dado como provado, por estar provado pelas declarações da testemunha DD.
4 que algumas divisões da casa apresentavam sujidade e um cheiro intenso a fezes e urina.
deverá ser dado como provado, por estar provado pelas declarações do arguido da testemunha CC e DD.
5 - O arguido AA conhecia as limitações físicas da sua progenitora decorrentes da queda ocorrida entre 15 e 17 de fevereiro de 2020, no interior da sua residência, nomeadamente, de locomoção e de cuidar da sua alimentação e higiene pessoal, situação da qual tinha perfeito conhecimento na sequência de ter sido este a encontra-la caída no quarto de dormir.
deverá ser dado como provado por estar provado pelas declarações do arguido e das testemunhas CC, DD, EE, FF, HH.
6 - que, ainda assim, o arguido AA deixou a sua progenitora, por mais de 24 horas, sem providenciar pelo seu socorro e assistência, o que contribuiu para a degradação do seu estado de saúde e para a potenciação do agravamento do seu estado geral de saúde, designadamente por não ter sido prestado cuidados médicos atempadamente à sepsis e pneumonia, e consequentemente a sua morte.
deverá ser dado como provado, nesses termos, por estar provado pelas declarações do arguido e das testemunhas CC, DD, EE, FF, HH e II.
7 - que o arguido AA admitiu, representando como possível e conformou-se com tal possibilidade, de que ao deixar a sua mãe, a ofendida BB sozinha por mais de 24 horas, sem esta se conseguir locomover e sem se alimentar, estando deitada em sitio húmido e cheio de dejetos de animal, e sem qualquer assistência médica, colocava em perigo concreto a sua vida, como efetivamente se veio a verificar, tendo a sua progenitora vindo a falecer, resultado morte que como único garante do dever de assistência nas circunstâncias concretas lhe incumbia evitar.
deverá ser dado como provado, por estar provado e face da matéria de facto que consideramos provada dado tratar-se do elemento subjetivo.
8 que o arguido AA agiu sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.”.
deverá ser dado como provado, por estar provado e face da matéria de facto que consideramos provada dado tratar-se do elemento subjetivo.
74º - Os factos dados como provados fazem incorrer o arguido AA na prática de um crime de abandono, p. e p., pelo art.º 138, n.º 1, al. b), n.º 2 e 3 al. b) do C. Penal uma vez que também se pugna pela alteração da situação de exposição para a de abandono prevista no mesmo tipo legal uma vez que a ofendida BB se manteve no mesmo sítio e não foi deslocada para um outro local.
75.º- Quanto à medida da pena tendo em conta o dolo eventual, a ilicitude dos factos e a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais tal como resulta do ponto 20 da matéria de facto dada como provada deve o arguido ser condenado em pena de prisão não inferior quatro (4) anos e dois (2) meses, suspensa por igual período, nos termos do art.º 50 do C. Penal.
76.º O Douto Acórdão violou o princípio da livre apreciação da prova, p. e p., pelo art.º 127 do C.P.P e o art.º 138, n.º 1 al b), n.º 2 e 3 al. b) do C. Penal.
Termos em que, e nos mais de direito, deve ser revogado o Douto Acórdão recorrido e condenado o arguido AA da prática de um crime de abandono, p. e p., pelo art.º 138, n.º 1, al. b), n.º 2 e 3 al. b) do C. Penal numa de prisão não inferior quatro (4) anos e dois (2) meses, suspensa na sua execução, assim se fazendo a já costumada justiça.”.
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O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
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O arguido/recorrido não apresentou resposta ao recurso.
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O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos do recurso interposto pelo Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se pelo provimento do recurso e consequente revogação do acórdão recorrido.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta ao parecer.
Procedeu-se a exame preliminar, tendo sido colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal:
- a de saber se houve errada apreciação e valoração da prova produzida na audiência de julgamento, e se terá sido violado o princípio da livre apreciação da prova, com a consequência de que foram incorretamente julgados os factos indicados pelo recorrente, particularmente os que foram incluídos na matéria de facto não provada, devendo estes transitar para o elenco da factualidade provada;
- se, por essa via, está preenchido o tipo de ilícito objetivo e subjetivo do crime de abandono, p. e p. pelo art.º 138, n.º 1, al. b), n.º 2 e n.º 3, al. b) do C. Penal, para além do respetivo tipo de culpa, devendo o arguido ser condenado pela sua prática.
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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a decisão proferida.
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Factos provados e não provados (transcrição):
“Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:
1.º O arguido AA, é filho de BB, nascida a .../.../1927 e falecida a .../.../2020, com 93 anos.
2.º Até ao seu falecimento, ocorrido em .../.../2020, a ofendida BB viveu na Rua ..., em ..., Vila Nova de Gaia.
3.º O arguido AA reside e residia à data da prática dos factos com a sua esposa e o seu filho, na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, num imóvel anexo à residência de BB.
4.º Dessa forma, atenta a idade da sua progenitora, 93 anos à data do seu falecimento, e sendo o arguido AA o seu único filho e morador a poucos metros da residência daquela, nas suas rotinas diárias habituais, visitava a ofendida BB na sua habitação, estando inteirado do estado de saúde da mesma, designadamente dos seus problemas de hipertensão e dificuldade de locomoção, usando já bengala para tal, sendo o seu único apoio familiar efetivo.
5.º Até ao dia 19.02.2020, a ofendida BB vivia sozinha na sua residência, cuidando da sua própria alimentação, da sua higiene pessoal, da limpeza da casa, realizando com frequência diária trabalhos agrícolas num terreno nas traseiras da sua residência.
6.º Em dia não concretamente apurado, mas entre o dia 15 e 17 de fevereiro de 2020, em hora não determinada, o arguido AA deslocou-se à residência da sua progenitora, a ofendida BB, e dirigindo-se ao seu quarto veio a encontrá-la caída no chão, entre a cómoda e a cama do seu quarto de dormir.
7.º Nestas circunstâncias, o arguido AA levantou a sua progenitora, a ofendida BB, e colocou-a na sua cama, não providenciando por qualquer tipo de socorro ou observação médica.
(…)
9.º No dia 19 de fevereiro de 2020, cerca das 16h.00m, após a deslocação que o arguido AA realizou à residência da sua mãe, a ofendida BB, vendo-a nessa altura sem qualquer reação, foi acionado pelo mesmo o 112, a fim daquela ser transportada para o hospital.
10.º Assim, e depois da chamada do INEM, a ofendida BB foi encontrada pela equipa de bombeiros voluntários de ..., que se deslocou ao local, deitada lateralmente à esquerda sobre a cama, vestida com roupa húmida e suja, mictada, apresentando equimoses nos membros inferiores e superiores e coluna dorso-lombar, em estado de hipotermia.
11.º No quarto onde BB se encontrava existiam várias ratoeiras, e um rato morto entre a cama e a cómoda.
12.º O quarto onde se encontrava BB apresentava um cheiro intenso a fezes e urina, estava sujo, encontrando-se ainda restos de comida na cozinha.
13.º No dia 19 de fevereiro de 2020, pelas 17 horas e 48m, quando deu entrada nos serviços de urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, a ofendida BB apresentava uma situação clínica de hipotermia, sepsis generalizada e pneumonia extensa, com alterações de consciência, vindo a mesma a falecer no dia .../.../2020, em resultado do choque séptico com disfunção multiorgânica, pneumonia adquirida na comunidade e hipertensão arterial.
14.º O arguido AA como filho e o único apoio familiar da sua progenitora, a Ofendida BB, era o único garante da assistência e socorro devidos à ofendida BB, de 93 anos.
15.º O arguido AA conhecia a situação pessoal de BB, sua mãe, de grande vulnerabilidade atenta a sua idade.
(…)
19.º
Condição Pessoal do arguido -
AA apresenta um trajeto desenvolvimental decorrido na freguesia ..., pertencente ao concelho de VN Gaia e junto da família de origem. Filho único, cresceu junto dos pais em ambiente normativo, com afetividade e com base na transmissão de regras e valores consentâneos com a norma sociojurídica vigente. Beneficiou de condições socioeconómicas adequadas para um crescimento salutar e prossecução da vida académica. A mãe era doméstica e o pai trabalhava na área comercial. Iniciou o percurso escolar na idade regulamentar e o mesmo decorreu sem problemáticas comportamentais. Completou o ensino secundário, ingressou no ensino superior e no ano de 1975 concluiu a licenciatura em economia pela Faculdade de Economia .... Nesse mesmo ano principiou a vida profissional, como professor de matemática do ensino secundário.
Lecionou durante cinco anos consecutivos, em diferentes escolas, mormente na zona do grande Porto e grande Lisboa, além do Algarve. Em 1980 ingressou na Divisão de Finanças ..., pertencente à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
AA contraiu matrimónio nos anos 80 e ficou a viver na casa anexa à dos pais. Entretanto, nasceram os seus três filhos. A cônjuge dedicava-se aos afazeres domésticos, sem exercer atividade profissional, e AA foi progredindo na carreira, como funcionário público, da inspeção tributária. Pese embora tenha iniciado e terminado a sua vida labutar nos serviços da AT no Porto, chegou a trabalhar também em Lisboa e em Faro, inerente a concurso para progressão na carreira.
À data dos factos, em fevereiro/2020, AA mantinha, tal como ainda preserva, residência na Rua ..., .../VN Gaia. Vivia com o cônjuge e com o filho mais velho do casal. Na casa contígua, nº 821, vivia a sua mãe com quem convivia diariamente. O pai faleceu em 2002. E numa outra casa, igualmente adjacente, residia um inquilino. Na zona sócia residencial, o arguido é identificado como morador e descrito como uma pessoa reservada, sem estabelecimento de relações sociais de relevo com os residentes. Aparentemente é desconhecida a presente situação jurídico-penal.
O agregado de AA é constituído pelo cônjuge, com 72 anos e com expressivo grau de surdez, e pelo filho mais velho do casal, com 38 anos, que apresenta situação de desemprego. As outras duas filhas do arguido já estão autonomizadas, subsistindo uma relação de proximidade. AA encontra-se reformado, pela Caixa Geral de Aposentações, desde março/2013. Aufere de valor de reforma cerca de 2.320€/mês. Indica uma situação financeira estável, presentemente e ao longo da sua vida, sem preocupações a salientar. A casa é própria, de herança familiar. Não especifica despesas mensais, mas estarão correlacionados somente com os consumíveis domésticos. Detém um quotidiano sem ocupação estruturada e de revelo, passando os dias sobretudo na habitação familiar. Refere ter alguns problemas de saúde, com acompanhamento médico privado, e tomar necessária medicação, sem impacto de maior no seu dia-a-dia.
20.º
O arguido não tem antecedentes criminais.
2.2. Os factos não provados
Não se fez prova de que:
- apenas até finais do mês de janeiro/início do mês de fevereiro do ano de 2020, a ofendida BB vivesse sozinha na sua residência.
- que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 7 dos factos provados, o arguido AA, estava ciente que a sua mãe, a ofendida BB não conseguia locomover-se pelos seus próprios meios, não estava capaz de movimentar os seus braços ou pernas, por modo a que pudesse, por si só, alimentar-se ou cuidar da sua higiene pessoal ou providenciar pela sua assistência médica.
- e que, pelo menos até ao dia 19 de fevereiro de 2020, o arguido AA deixou a sua progenitora sozinha na aludida residência, sem prestar à mesmos cuidados de alimentação, água e sem cuidar da sua higiene pessoal, ficando a ofendida, desidratada, vestida com roupas molhadas e semi-nua, com hematomas que não foram tratados e rodeada de fezes e urina, pelo menos por mais de 24 horas.
- que nas circunstancias referidas no ponto 10 dos factos provados a ofendida BB tenha sido encontrada com dejetos de animal (ratos) circundando-lhe o corpo.
- que no quarto referido no ponto 11 dos factos provados tivessem sido encontradas várias ratoeiras, com ratos mortos
- que todas as divisões da casa apresentassem sujidade, um cheiro intenso a fezes e urina, com restos de comida no chão.
- que o arguido AA conhecia as limitações físicas da sua progenitora decorrentes da queda ocorrida entre 15 e 17 de fevereiro de 2020, no interior da sua residência, nomeadamente, de locomoção e de cuidar da sua alimentação e higiene pessoal, situação da qual tinha perfeito conhecimento na sequência de ter sido este a encontra-la caída no quarto de dormir.
- que, ainda assim, o arguido AA deixou a sua progenitora, por mais de 24 horas, sem providenciar pelo seu socorro e assistência, o que contribuiu para a degradação do seu estado de saúde e para a potenciação do agravamento do seu estado geral de saúde, designadamente por não terem sido prestados cuidados médicos atempadamente à sepsis e pneumonia, e consequentemente a sua morte.
- que o arguido AA admitiu, representando como possível e conformou-se com tal possibilidade, de que ao deixar a sua mãe, a ofendida BB, sozinha por mais de 24 horas, sem esta se conseguir locomover e sem se alimentar, estando deitada em sítio húmido e cheio de dejetos de animal, e sem qualquer assistência médica, colocava em perigo concreto a sua vida, como efetivamente se veio a verificar, tendo a sua progenitora vindo a falecer, resultado morte que como único garante do dever de assistência nas circunstâncias concretas lhe incumbia evitar.
- que o arguido AA agiu sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.”.
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Apreciando os fundamentos do recurso.

Sustenta o Ministério Público/recorrente que o ponto 5) da factualidade provada e a generalidade da matéria de facto constante do elenco dos factos não provados foi incorretamente julgada, com violação do princípio da livre apreciação da prova – sobrevalorizando injustificadamente o tribunal a quo as declarações prestadas na audiência de julgamento pelo arguido e desconsiderando, sem razão, a demais prova produzida, de natureza documental e testemunhal -, impondo a prova produzida na audiência de julgamento decisão diversa, coincidente com a demonstração dos factos que integram os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime por que o arguido havia sido acusado, na modalidade de “abandono”.
Vejamos se lhe assiste razão.
A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:
- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- na impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
Quanto a esta última modalidade de impugnação (a ampla) o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão [2].
Todavia, este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto.
Com efeito, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art.º 430º do Código de Processo Penal), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que sejam especificados e indicados como não corretamente julgados [sem prejuízo da audição da totalidade da prova para contextualização do alegado – cfr. nº 6 do art.º 412º do Código de Processo Penal].
Ora, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida [3].
Na verdade, dispõe o art.º 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [4]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [5].
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva.
A este propósito refere Germano Marques da Silva [6] que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.
Vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de primeira instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados. Com efeito, no processo de formação da convicção do juiz "desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (cfr, no sentido apontado, o acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss).
Contudo, e como observa António Gama [7], a imediação não pode funcionar como desculpa de menor rigor na elaboração da fundamentação, nem torna, em regra, inatacável a decisão do tribunal de 1ª instância.
Como fez notar o STJ, no acórdão de 30/11/2006 [8], “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efetivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento”. Nesta linha, o acórdão n.º 116/07 do TC julgou inconstitucional a norma do artigo 428.º, n.º, 1 “quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objetivos indicados na fundamentação da sentença objeto de recurso foram colhidos da prova produzida”.
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Delineados os princípios gerais da apreciação crítica da prova e decisão da matéria de facto, analisemos os pontos da matéria de facto impugnados pelo recorrente.
Assim:
Ponto 5) da matéria de facto provada, com a seguinte redação: “Até ao dia 19.02.2020, a ofendida BB vivia sozinha na sua residência, cuidando da sua própria alimentação, da sua higiene pessoal, da limpeza da casa, realizando com frequência diária trabalhos agrícolas num terreno nas traseiras da sua residência.” – propondo o recorrente que seja alterada a respetiva redação, ficando nele a constar a expressão “Até ao dia 17/2/2020”.
Factos incluídos no elenco da factualidade não provada, que o recorrente considera deverem transitar para o conjunto dos factos provados:
- que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 7 dos factos provados, o arguido AA estava ciente que a sua mãe, a ofendida BB, não conseguia locomover-se pelos seus próprios meios, não estava capaz de movimentar os seus braços ou pernas, por modo a que pudesse, por si só, alimentar-se ou cuidar da sua higiene pessoal ou providenciar pela sua assistência médica.
- e que, pelo menos até ao dia 19 de fevereiro de 2020, o arguido AA deixou a sua progenitora sozinha na aludida residência, sem prestar à mesma cuidados de alimentação, água e sem cuidar da sua higiene pessoal, ficando a ofendida desidratada, vestida com roupas molhadas e semi-nua, com hematomas que não foram tratados e rodeada de fezes e urina, pelo menos por mais de 24 horas.
- que nas circunstâncias referidas no ponto 10 dos factos provados a ofendida BB tenha sido encontrada com dejetos de animal (ratos) circundando-lhe o corpo.
- que todas as divisões da casa apresentassem sujidade, um cheiro intenso a fezes e urina, com restos de comida no chão – propondo o recorrente que este ponto, transitando para o elenco dos factos provados, fique com a seguinte redação: “que algumas divisões da casa apresentavam sujidade e um cheiro intenso a fezes e urina.”
- que o arguido AA conhecia as limitações físicas da sua progenitora decorrentes da queda ocorrida entre 15 e 17 de fevereiro de 2020, no interior da sua residência, nomeadamente, de locomoção e de cuidar da sua alimentação e higiene pessoal, situação da qual tinha perfeito conhecimento na sequência de ter sido este a encontra-la caída no quarto de dormir.
- que, ainda assim, o arguido AA deixou a sua progenitora, por mais de 24 horas, sem providenciar pelo seu socorro e assistência, o que contribuiu para a degradação do seu estado de saúde e para a potenciação do agravamento do seu estado geral de saúde, designadamente por não terem sido prestados cuidados médicos atempadamente à sepsis e pneumonia, e consequentemente a sua morte.
- que o arguido AA admitiu, representando como possível e conformou-se com tal possibilidade, de que ao deixar a sua mãe, a ofendida BB, sozinha por mais de 24 horas, sem esta se conseguir locomover e sem se alimentar, estando deitada em sitio húmido e cheio de dejetos de animal, e sem qualquer assistência médica, colocava em perigo concreto a sua vida, como efetivamente se veio a verificar, tendo a sua progenitora vindo a falecer, resultado morte que como único garante do dever de assistência nas circunstâncias concretas lhe incumbia evitar.
- que o arguido AA agiu sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.

No acórdão recorrido, o Tribunal a quo fundamentou nos seguintes moldes a sua convicção quanto à decisão sobre a matéria de facto e, em particular, no que concerne à falta de demonstração da factualidade atrás transcrita, suscetível de integrar o tipo de ilícito por que o arguido foi acusado:
“2.3. Motivação dos factos provados
Como dispõe o art.127º do C.P.P., a prova é apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, tendo o julgador liberdade para formar a sua convicção com base em juízo o qual procura a sua fonte no mérito objetivo e concreto do caso, tal como ele foi exposto e representado no processo. Dadas as circunstâncias que rodeiam a prática dos crimes que ocorrem no seio familiar, usualmente cobertas pelo manto que oculta o quotidiano da vida familiar e que ocorrem no interior da residência, a prova do ilícito passa sempre pelo peso da credibilidade da versão da eventual testemunha ou da vítima, quando esta apresenta uma faixa etária, saúde ou estado clínico que lhe permite verbalizar os factos, podendo (e devendo) ser utilizados como pesos da balança os demais elementos objetivos como, por exemplo, os exames médico-legais. Exames médico-legais estes que, no caso em apreço, face ao óbito da vítima, ganham especial relevo e preponderância. Por outro lado, assume especial relevo, quando existente, a chamada prova indireta.
No nosso direito processual penal português, a prova dos factos pode resultar quer de declaração confessória, quer de testemunho ou outro meio de certificação imediata e direta do acervo factual, como também de um raciocínio lógico e indutivo com base em factos ou acontecimentos “instrumentais” ou “circunstanciais”, com a aplicação de regras gerais empíricas ou resultante da experiência (artigos 124º a 127º do Código de Processo Penal /presunções como meios lógicos ou mentais para a descoberta dos factos, os artigos 349º e 351º do Código Civil).
Tendo como quadro de fundo o acima referenciado, e no que se reporta à factualidade alegadamente ocorrida entre 15 e 17 de fevereiro de 2020, o tribunal sopesou a circunstância de que a queda da ofendida, nesse período, apenas foi constatada e relatada pelo arguido. Na verdade, nenhuma testemunha o presenciou ou visitou a ofendida após essa primeira queda, assim como, aquando do seu posterior internamento, nada foi clinicamente detetado que pudesse ser atribuído a qualquer ocorrência anterior a 19.02.2020. Assim, no que se reporta ao circunstancialismo descrito na acusação pública, de que, mercê dessa queda, a ofendida não conseguia locomover-se pelos seus próprios meios, não estava capaz de movimentar os seus braços ou pernas, por modo a que pudesse, por si só, alimentar-se ou cuidar da sua higiene pessoal ou providenciar pela sua assistência médica, assim como de que, pelo menos até ao dia 19 de fevereiro de 2020, o arguido AA deixou a sua progenitora sozinha na aludida residência, sem prestar à mesmos cuidados de alimentação, água e sem cuidar da sua higiene pessoal, ficando a ofendida, desidratada, vestida com roupas molhadas e semi-nua, com hematomas que não foram tratados e rodeada de fezes e urina, pelo menos por mais de 24 horas, não encontra o tribunal acervo probatório que sustente tal factualidade.
Na verdade, quanto ao ocorrido nesse período, apenas temos a versão do arguido que referiu ter encontrado a sua mãe caída entre a cama e a cómoda quando lhe foi levar o pequeno almoço; segundo o mesmo, nessa altura a progenitora não apresentava sintomas ou lesões que reclamassem intervenção médica (não obstante, refere ter sugerido levá-la ao hospital, por precaução, o que a mesma, perfeitamente lúcida, recusou); esclareceu que voltou a estar com a sua progenitora nesse mesmo dia, ao final da tarde, a qual aparentava estar no seu normal estado anímico e entretida a ver televisão.
De acordo com as declarações do arguido, as quais não contraditadas por prova testemunhal ou outra, o mesmo visitava diariamente a sua mãe, a qual era autónoma no seu quotidiano. Apesar da sua autonomia, referiu o arguido que era habitual levar-lhe o pequeno almoço. Esclareceu que a residência da mãe apresenta cerca de 10 dependências das quais aquela apenas utilizava o quarto onde dormia (que não o de casal partilhado com o falecido viúvo), a cozinha e o quarto de banho; negou a existência de ratoeiras sendo que a sua mãe recorria-se do uso de pastilhas para matar ratos, os quais existentes mercê de se tratar de uma casa antiga e com terreno; a mesma ainda cultivava um pequeno jardim e cuidava das galinhas; confirmou que era conhecedor das patologias e acompanhamento médico que a mesma usufruía junto da unidade de saúde familiar de ..., em consulta com a Dr.ª LL, a quem, aliás, telefonou quando deparou com a sua mãe novamente caída entre a cama e a cómoda, no referido dia 19 de fevereiro, solicitando ajuda; foi no seguimento deste contacto telefónico que chamou o 112.
Cumpre aferir se a demais provas produzidas em audiência de julgamento permite afastar a versão do arguido no que se reporta à primeira queda acima reportada. Ora, compulsados os autos, nomeadamente, o relatório de urgência de fls.13 a 18, verificamos que foi efetivamente o arguido que referiu a queda no dia 17 de fevereiro, dando então informação de que após a mesma a progenitora, perfeitamente lúcida, aparentava estar assintomática; referiu ainda o mesmo que foi o agravamento do estado geral e alteração de comportamento nos dias seguintes que o alarmou, tendo aquele decidido levá-la ao SU, após ter constatado que a mesma havia defecado na cama. Sendo certo que é o próprio arguido que reporta o facto de ter assistido a um agravamento do estado de saúde de sua mãe, não ficou registado no referido relatório em que consistiu tal agravamento, desde quando e em que circunstâncias concretas, razão pela qual o tribunal não pode dar como provado o circunstancialismo descrito no ponto 7 (este apenas parcialmente) e 8 da acusação pública.
No que se reporta aos factos ocorridos no dia 19.02.2020, importa atender ao teor do relatório de urgência acima referenciado e demais elementos clínicos, o qual deve ser sopesado com o depoimento da Dr.ª II, médica de serviço nas Urgências e que atendeu a ofendida. Segundo esta, a ofendida não apresentava um quadro de sintomas que incluísse tosse ou queixa de dor, sintomas estes que, normalmente, podem funcionar como um alerta para os cuidadores. O que vai de encontro ao relato do arguido segundo o qual, nos dias anteriores ao dia 19 de fevereiro, a ofendida não aparentava qualquer declínio na sua saúde. Confirmou também que o quadro clínico desenvolvido pela ofendida pode ocorrer de modo rápido, nomeadamente “da noite para o dia”, inclusive, no que se reporta à diminuição do débito renal (podendo este último ocorrer por força da infeção ou por défice na ingestão de líquidos) e ao desenvolvimento de extremidades sinusitadas (fazendo notar que estas nunca se devem a condições atmosféricas ou ambientais mas são unicamente a resposta do organismo a uma situação infeciosa); a testemunha, remetendo-se para o teor dos registos clínicos, referiu que o óbito da ofendida ocorreu num quadro de disfunção multiorgânica causada por uma infeção causada por um patogénico que se encontra na água e no solo, traduzindo-se este agente numa bactéria que pode penetrar no corpo humano através de lesões existentes na pele. Esclareceu que os exames realizados para aferir da existência de infeção causada por mordedura de ratos deram negativo. De acordo com as declarações desta testemunha, a idade avançada torna o ser humano mais vulnerável a um quadro infeccioso. Esta testemunha esclareceu ainda o tribunal no que toca à causa da morte, que, segundo a mesma, nada teve a ver com as patologias que a ofendida já era anteriormente portadora. Segundo a mesma, as hipotéticas más condições de vida não foram a CAUSA da infeção ou do óbito. Sublinhou igualmente que, após análise e visualização do corpo da ofendida, não encontrou qualquer lesão compatível com mordeduras de rato, o que foi de encontro ao resultado negativo das análises efetuadas para aferir da presença da infeção causada por aquelas, a Leptospirose.
Não pode o tribunal abstrair-se do teor das declarações de ciência prestadas pela testemunha e médica do S.U. acima referenciadas aquando da análise que faz do depoimento prestado pela testemunha DD, bombeira que acorre ao local no seguimento da chamada efetuada pelo arguido para o 112. E não o pode fazer dado o depoimento da Dr.ª II descredibilizar, em parte, o depoimento da bombeira DD. Senão vejamos: refere esta última que quando chegou ao local deparou-se com fezes de rato no colchão, cama e cómoda do quarto, sendo visíveis mordeduras de ratos nas pernas da ofendida. No entanto, decorre do depoimento da Dr.ª II que o corpo da ofendida não apresentava qualquer sinal de mordedura de rato e que as análises à leptospirose apresentaram um resultado negativo. Da confrontação destes dois depoimentos o tribunal pode apenas retirar a conclusão de que a apreciação realizada pela bombeira DD às condições em que encontrou a ofendida pode ter sido influenciada pelo desentendimento ocorrido entre a mesma e o arguido no que toca à prévia higienização da paciente para o transporte na ambulância. E se a análise realizada por esta testemunha no que concerne às mordeduras de ratos está inquinada, certo é que a sua apreciação quanto ao grau de gravidade da sujidade e cheiro a fezes e urina encontrado, alegadamente “nauseabundo”, fica também comprometida. Não porque tal sujidade e cheiro não existisse, mas porque, tendo encontrado a ofendida urinada e suja, a sua causa poderá ter estado associada á evolução do estado de saúde da idosa, o que é compatível com os esclarecimentos prestados pela Dr.ª II, a qual afirmou que o quadro clínico encontrado pode-se ter desenvolvido num curto espaço de tempo, nomeadamente, em poucas horas. E se a existência de mordeduras de ratos é afastada pelo depoimento da Dr.ª II, também o depoimento do Sr. Chefe da P.S.P. CC põe em crise o depoimento da testemunha DD, o qual disse em audiência de julgamento não ter presenciado a existência de ratoeiras e não ter qualquer memória de ter visto ratoeiras ou ratos mortos. Porém, ainda assim, esta testemunha e agente policial esclareceu o tribunal que foi até à cozinha da moradia da qual inalava um cheiro a lixo e a louça por lavar, aparentado lá estar há vários dias. No que se reporta às demais condições do quarto onde dormia a ofendida constatou que a parede já apresentava buracos por onde era viável a entrada de raios solares e a janela do quarto não fechava na totalidade. Foi referido também que se tratava de uma casa antiga, típica casa de lavrador.
Não obstante as fragilidades encontradas no depoimento da bombeira e testemunha DD, o mesmo não deixa de ser relevante no que concerne ao cheiro, sujidade e da presença de um rato morto com que se deparou no quarto (apesar de não ter ido a outras dependências da moradia) e ao posicionamento da ofendida; segundo esta testemunha era necessário lavar a D. BB, a qual estava urinada e com fezes (algumas das quais já secas), o que foi providenciado pela nora daquela com ajuda de vizinhas, tendo a nora da vítima providenciado por um pijama; a ofendida estava consciente, ainda que desorientada e reagia à dor apesar de não existir fratura aparente ou marcas de queda; a mesma apresentava-se em hipotermia; verificou que a janela do quarto não fechava corretamente. Confirmou ainda o teor do desentendimento ocorrido entre a mesma e o arguido sobre a higienização da ofendida
A testemunha EE, vizinho há cerca de 60 anos, quer do arguido, quer da ofendida, esclareceu que, ainda que não diariamente, costumava ver esta última a tratar das galinhas; considerava-a uma senhora reservada; também via o filho com a mãe em várias ocasiões;
FF, testemunha nos autos e enfermeira de profissão, confirma que rececionou a chegada da ofendida ao serviço de urgência, tendo-a limpo de urina e fezes secas; verificou o estado de cianose, a qual tanto pode resultar tanto do frio como da má circulação venosa do paciente; confirmou os demais sintomas encontrados e descritos no relatório de urgência, do qual consta a referência aos comentários da colega MM e os bombeiros realizaram às condições de higiene encontradas;
NN, vizinha da ofendida assim como do arguido, referiu que conhecia bem a D. BB, pois que conversavam muitas vezes junto do muro que divide as respetivas propriedades; retratou-a como uma pessoa de bom trato, ainda lúcida e autónoma nos seus afazeres.
GG, biscateiro, confirmou em audiência que era quem lavrava o terreno afeto à moradia do arguido assim como residia em casa aí existente; esclareceu que era usual encontrar diariamente a ofendida no campo, nomeadamente na segunda-feira anterior à ida do 112, altura em que a acompanhou à cozinha, aparentando a mesma estar no seu estado habitual. Nessa altura, não constatou qualquer sujidade ou mau-cheiro na cozinha. Esta testemunha caracterizou a moradia da ofendida como uma casa típica de lavrador, normalmente mais fria que as casas modernas. No entanto era uma casa com esquentador e água corrente. A ofendida gostava de andar no campo, nomeadamente a tratar das galinhas; nessas alturas ajudou-a, por diversas vezes, a levantar-se do chão uma vez que era propensa a quedas; nessas alturas perguntava-lhe porque não ia residir com o filho ao que a mesma respondia que ela é que mandava na casa dela. Esta testemunha confirmou que era o arguido que, na sua maior parte, assegurava a alimentação da mãe, inclusive, o pequeno almoço.
HH, auxiliar de ação educativa e inquilina do arguido há cerca de 19 anos, confirmou que era usual encetar conversação com a D. BB quando a mesma se encontrava no campo e que na semana em que ocorreu o óbito ainda a viu no dito local a tratar do jardim. Confirmou que prestou auxílio para que a mesma fosse transportada pelo 112, reparando então que a mesma apenas tinha uma camisola vestida, que a janela estava aberta e que os pés estavam muito frios. Segundo esta testemunha, a ofendida ia sempre bem arranjada quando saia à rua e a mesma confidenciava-lhe que, às vezes, ia almoçar com o filho; no geral, era uma senhora muito reservada.
OO, filho do arguido e neto da ofendida, informou que no fim-de semana, cerca de uma semana antes do óbito, esteve em casa da avó com as suas irmãs e sobrinha, aparentando a mesma estar no seu estado anímico habitual; costumava falar com a avó quase todos os dia e costumava acompanhá-la ao supermercado e centro de saúde; tratava-se de uma senhora muito lúcida e independente; confirmou que era a ofendida que insistia em se manter a viver na parte mais antiga da casa e de modo autónomo; apesar disso o seu pai costumava levar-lhe o pequeno almoço todos os dias; segundo esta testemunha, a sua avó nunca recusava qualquer proposta de ajuda, sendo que também não era evidente que a mesma estivesse daquela necessitada;
LL, médica de família na U.S. Familiar ..., confirmou que acompanhou clinicamente a ofendida durante vários anos; a mesma era uma senhora de idade lúcida, consciente e autónoma, ainda que com algumas deficiências ao nível da higiene e locomoção; sofria de dermatites atópicas decorrentes da idade avançada; atendeu-a em consulta cerca de um mês antes do óbito constatando alguma falta de higiene mas que se caracteriza como uma situação recorrente em pessoas de idade; nunca a viu com mordeduras de ratos ; em sede de consulta a mesma apresentava-se sozinha, embora tivesse verificado uma vez, que a mesma ia acompanhada do neto; a própria referenciava-lhe a ajuda que os familiares lhe prestavam e o facto do neto a acompanhar várias vezes.
As testemunhas JJ e KK, filhas do arguido e netas da ofendida, esclareceram que visitavam a sua avó todas as semanas, nomeadamente no fim-de semana anterior ao seu óbito, e que aquela aparentava estar no seu normal estado de saúde; caracterizaram a sua avó como uma pessoa que não valorizava a aparência, usando roupa antiga e desbotada, mas sempre limpa; a mesma assegurava a sua higiene; a avó padecia de fungos e aparentava algumas feridas na pele que associavam às bicadas das galinhas e às urtigas do campo; confirmou ainda que o seu pai estava com a progenitora todos os dias. A família almoçava junta regularmente e nesses encontros a avó estava sempre presente.
Da análise crítica de toda a prova produzida, não se logrou apurar nenhum facto relevante relativo à queda ocorrida entre o dia 17 e 19 de fevereiro de 2020; nada se logrou apurar no que toca à evolução da situação clínica da ofendida entre o dia 17 de fevereiro e o dia 19 de fevereiro, ambos de 2020, não podendo este tribunal concluir pela existência de um nexo causal entre aquela queda e a ocorrida cerca de dois dias depois, nem pela existência de uma prévia situação de deterioração do estado de saúde da ofendida, deterioração esta causada pela primeira ocorrência, a qual determinante para o ocorrido no dia 19 de fevereiro e consequente óbito da D. BB.
Também no que toca ás condições de falta de higiene e cheiros encontrados, não ficou provado que tal situação ocorresse mercê de uma intenção consciente por parte do arguido em sujeitar a sua progenitora a más condições de higiene e saúde, de modo a causar-lhe dano. Na verdade, sendo a intenção um elemento incorpóreo o mesmo tem que resultar da constatação de um circunstancialismo que redunde naquela; ora, os depoimentos prestados por parte de quem conhecia o quadro familiar da ofendida e arguido não referiram a existência de qualquer clima de conflituosidade ou desentendimento entre mãe e filho; não foram encontrados factos (que, aliás, nunca foram alegados pela acusação) que revelassem um motivo para que o arguido, de modo previsto, querido e desejado, quisesse abandonar ou expor a sua progenitora à sua sorte, apesar de saber da sua avançada idade e patologias associadas. Razão pela qual foi dado como não provados os factos integradores do elemento doloso do crime imputado ao arguido.
Quanto às demais condições habitacionais, o facto da casa da ofendida ser antiga e típica de pessoa que trabalha no campo, com muitas dependências, as quais, na sua maioria, sem uso, de acordo com as regras da experiência comum, poderão explicar alguma da sujidade encontrada, assim como a adoção de práticas de exterminação de roedores. As mesmas regras poderão explicar a pouca roupa encontrada a cobrir a ofendida, o que poderá estar associado ao facto do esqueleto das pessoas de idade suportar pouco peso quando deitadas, assim como a revelarem menor sensação térmica, o que as leva a prescindir das mesmas. Na realização da análise crítica acima elaborada atendeu-se também ao teor da prova documental, a qual articulada com a prova testemunhal, a saber:
- Auto de notícia, a fls. 2-3;
- Assento de nascimento de BB, a fls. 7-8;
- Assento de nascimento de AA, a fls. 10-11;
- Relatório de urgência, a fls. 13-22;
- Certificado de óbito, a fls. 23;
- Registos clínicos de BB, a fls. 42-53;
- Relatório da ocorrência, a fls. 56-57;
- Relatório de ensaio, a fls. 72-92;
- Certificado de Registo Criminal de AA, a fls. 98, 169;
- Reportagem fotográfica, a fls. 131- 146;
- Folha de marcações e presença, a fls. 194-195;
- Esclarecimento por escrito, a fls. 199 e 204;
- fatura emitida pela empresa Águas de Gaia referente ao período de faturação de 17.02.2019 a 20.01.2020, apresentada na audiência de 27.04.2022, conforme consta da respetiva ata.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal valorou o seu C.R.C. (referência 31922654 de 08.04.20223), e ainda ao teor do relatório social, quanto às suas condições socioeconómicas (referência n. º 32099154 de 26.04.2022).
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Os demais factos não provados resultaram da inexistência de prova.”.
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Analisada a motivação da decisão de facto contida no acórdão recorrido, verificamos que o tribunal de primeira instância invoca dúvidas inultrapassáveis quanto à verificação dos factos descritos na acusação, suscetíveis de integrarem os tipos de ilícito objetivo e subjetivo do crime de exposição ou abandono imputado ao arguido.
Essas dúvidas fundadas e inultrapassáveis resultariam, na perspetiva do tribunal a quo, da circunstância de se poder contar unicamente com o relato do arguido quanto ao circunstancialismo em que ocorreu a primeira queda da sua progenitora e respetivas consequências, inexistindo quaisquer meios de prova suficientemente seguros e concludentes suscetíveis de a contraditar e, em particular, de comprovar a tese da acusação: ou seja, a de que o arguido, embora se tivesse apercebido de que a sua mãe estava incapaz de se movimentar, deixou-a sozinha pelo menos por mais de 24 horas, colocando em perigo a sua vida, resultado que previu e com o qual se conformou.
Das conclusões obtidas pelo tribunal a quo a partir da análise da prova discorda o Ministério Público/recorrente. Com efeito, este entende que a prova dos factos enunciados na acusação decorre claramente, sem margem para qualquer dúvida razoável, da conjugação da prova documental (elementos clínicos e atestado de óbito) com a correta valoração dos depoimentos prestados pelas testemunhas II (médica do serviço de urgência do CH Vila Nova de Gaia, que assistiu a vítima), FF (enfermeira na mesma unidade hospitalar), CC (chefe da PSP da esquadra ...), DD (bombeira), para além de EE e HH (vizinhos da ofendida), transcrevendo, na motivação do recurso, os respetivos segmentos que, na sua perspetiva, impõem decisão diversa da recorrida.
Por razões fundamentalmente coincidentes com aquelas que foram invocadas pelo recorrente, importa desde já assinalar a nossa divergência relativamente à decisão tomada pelo tribunal a quo no sentido da falta de prova suficientemente consistente e credível da verificação dos factos impugnados.
Na verdade, consideramos que a análise conjugada da prova testemunhal produzida na audiência de julgamento, indicada pelo recorrente, com a prova documental constante do processo permite afirmar, com a segurança exigível à superação da presunção de inocência ínsita no princípio in dubio pro reo, [9] que os factos terão ocorrido, no essencial, nos moldes descritos na acusação.
Reconhece-se que o arguido negou as acusações que lhe foram dirigidas, mas é evidente que o tribunal não podia deixar de manter distanciamento quanto à posição por ele manifestada, naturalmente interessada num desfecho favorável do processo.
Desde logo, o relato efetuado pelas testemunhas CC (chefe da PSP da esquadra ...) e DD (bombeira),[10] que se deslocaram à residência da ofendida BB na tarde do dia 19/2/2020, atestam, sem margem para dúvidas, que a vítima não tinha qualquer mobilidade física e foi encontrada num estado de sujidade e degradação indescritível: parcialmente despida, toda mictada e suja de fezes, sujidade que se estendia à própria cama onde estava deitada.
A bombeira DD explicou que não se tratava de fezes recentes, uma vez que já estavam ressequidas.[11]
A enfermeira FF, que assistiu a vítima no hospital, também descreveu que a vítima exalava um cheiro intenso a fezes e urina e tinha resíduos de fezes ressequidas agarrados ao corpo, apesar de ter sido previamente lavada.
Portanto, se não podemos afirmar, com toda a certeza, que o arguido deixou a sua mãe sozinha entre o dia em que ocorreu a primeira queda, situado entre 15 e 17 de fevereiro, e o dia 19 de fevereiro, já que alega que lá se deslocou – e, quanto a este aspeto, nenhuma outra prova, suscetível de infirmar a versão do arguido, foi produzida – podemos ter por certo que a ofendida não conseguia locomover-se pelos seus próprios meios, por forma a que pudesse, por si só, alimentar-se ou cuidar da sua higiene pessoal ou, ainda, providenciar pela sua assistência médica.
Se assim não fosse, a ofendida ter-se-ia levantado para usar o “pote”, como habitualmente sucedia, segundo declarou o arguido, e não haveria necessidade de a sua esposa ter levado uma refeição cozinhada à sua casa, no dia 18. Na verdade, é o próprio arguido que admite, nas suas declarações, que depois da primeira queda (que o arguido situa no dia 17), a mãe ficou na cama, já que não podia levantar-se.
Ora, se assim é, tanto não podia alimentar-se pelos seus próprios meios, como não podia cuidar da sua higiene pessoal ou providenciar pela sua assistência médica, como se encontra descrito no ponto 7.º da acusação e deverá ser considerado provado.
Temos, assim, de concluir que o arguido deixou a progenitora na sua residência sem lhe prestar os necessários cuidados, designadamente sem cuidar da sua higiene pessoal, ficando a ofendida desidratada, vestida com roupas molhadas e semi-nua, com hematomas que não foram tratados e rodeada de fezes e urina, pelo menos por mais de 24 horas – como descrito no ponto 8.º da acusação, e que nestes termos resulta provado.
Relativamente aos pontos 10.º e 11.º da acusação, não há efetivamente prova concludente de que foram encontrados ratos mortos dentro das ratoeiras e de que os dejetos encontrados fossem produzidos por estes animais, pelo não se impõe, nesta parte, qualquer alteração à decisão da matéria de facto.
Quanto ao ponto 12.º, a prova produzida demonstra que o estado de sujidade e degradação da casa era geral, tendo sido notada sujidade não só na cozinha, mas também nos corredores de acesso ao quarto e um cheiro intenso a fezes e lixo, detetável logo à entrada da casa, como fizeram notar as testemunhas DD e CC.
Relativamente aos factos descritos no ponto 16.º, que o tribunal de primeira instância considerou não terem ficado provados, importa ainda atentar no depoimento prestado pela testemunha II, médica do serviço de urgência que assistiu a ofendida, do qual é possível extrair as seguintes conclusões:
- a vítima deu entrada no SU com um quadro clínico de extrema gravidade, caraterizado por pneumonia muito extensa e sepsis - disfunção multiorgânica (no caso concreto, renal, hepática e cardiovascular) causada por infeção bacteriana;
- a bactéria encontrada no sangue da vítima, causadora da infeção generalizada do seu organismo, vive no nosso ambiente, incluindo na nossa pele, não podendo ser descartada a possibilidade de ter entrado na corrente sanguínea através dos ferimentos que a vítima apresentava nas pernas, aproveitando uma fragilidade do sistema imunitário;
- os idosos com mais de 90 anos são muito propensos a este tipo de infeções;
- se não é possível afirmar, com rigor, que o ambiente insalubre onde a vítima foi encontrada foi a causa determinante da infeção/septicemia, naturalmente terá contribuído para o seu agravamento, determinante da sua morte.
Podemos, assim, concluir pela demonstração dos factos enunciados no ponto 16.º da acusação, já que a totalidade da prova produzida, analisada em conjugação com critérios de normalidade decorrentes das regras da experiência comum, evidencia que o arguido deixou a sua progenitora por mais de 24 horas sem providenciar pelo seu socorro e assistência, mantendo-a num ambiente insalubre, mictada e suja de fezes, que não cuidou de limpar – sendo certo que nem o cuidado houve de colocar uma fralda à idosa, apesar de esta não poder sair da cama, como era do conhecimento do arguido -, o que, se não causou de forma direta o quadro clínico de pneumonia e septicemia, determinante da sua morte, pelo menos potenciou o agravamento do seu estado geral de saúde.[12]
Já a prova do dolo eventual enunciado na acusação, na ausência de confissão, assenta naturalmente em prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do arguido, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum [13].
Com efeito, o arguido não podia deixar de saber que a sua mãe, dada a sua idade avançada, era mais propensa a infeções, razão pela qual, tendo-a deixado sozinha em casa, sem lhe prestar os necessários cuidados, designadamente de higiene e de assistência médica, durante mais de 24 horas, depois de a ter encontrado caída no chão e sem capacidade para cuidar de si própria, num ambiente insalubre, deitada numa cama molhada de urina e cheia de dejetos [14], colocava em perigo a sua vida, resultado que lhe incumbia evitar e que necessariamente representou como possível, conformando-se com tal possibilidade.
Deste modo, importa corrigir os pontos 5.º, 7.º, 12.º e 15.º da factualidade provada, alterando o respetivo texto, e incluir neste segmento os factos da acusação que o tribunal erradamente considerou não terem ficado provados, os quais transitam para a factualidade provada, com a seguinte redação:
Ponto 5º da factualidade provada:
A ofendida BB vivia sozinha na sua residência e, até data não concretamente apurada, anterior ou coincidente com o dia 17/2/2020, cuidava da sua própria alimentação, da sua higiene pessoal, da limpeza da casa, realizando com frequência diária trabalhos agrícolas num terreno nas traseiras da sua residência.
Ponto 7.º da factualidade provada:
Nestas circunstâncias, o arguido AA levantou a sua progenitora, a ofendida BB, e colocou-a na sua cama, não providenciando por qualquer tipo de socorro ou observação médica, apesar de ciente que a sua mãe, a ofendida BB, não conseguia locomover-se pelos seus próprios meios, por modo a que pudesse, por si só, alimentar-se ou cuidar da sua higiene pessoal ou providenciar pela assistência médica.
Ponto 12.º da factualidade provada:
O quarto onde se encontrava BB apresentava um cheiro intenso a fezes e urina, estava sujo, tal como outras divisões da casa, encontrando-se ainda restos de comida na cozinha, o que propiciava o aparecimento de ratos.
Ponto 15.º da factualidade provada:
O arguido AA conhecia a situação pessoal de BB, sua mãe, de grande vulnerabilidade atenta a sua idade, e as suas limitações físicas, nomeadamente de locomoção e de cuidar da sua alimentação e higiene pessoal, após a queda ocorrida entre 15 e 17 de fevereiro de 2020, no interior da sua residência, situação da qual tinha perfeito conhecimento na sequência de ter sido este a encontrá-la caída no quarto de dormir.

Pontos considerados não provados pelo tribunal de primeira instância e que transitam para a matéria de facto provada:
- Com efeito, até ao dia 19 de fevereiro de 2020, o arguido AA deixou a sua progenitora sozinha na aludida residência, sem prestar à mesma os necessários cuidados, designadamente sem cuidar da sua higiene pessoal, ficando a ofendida desidratada, vestida com roupas molhadas e semi-nua, com hematomas que não foram tratados e rodeada de fezes e urina, pelo menos por mais de 24 horas. (ponto 8.º da acusação, devidamente adaptado).
- Ainda assim, o arguido AA deixou a sua progenitora, por mais de 24 horas, sem providenciar pelo seu socorro e assistência, o que contribuiu para a degradação do seu estado de saúde e para a potenciação do agravamento do seu estado geral de saúde, designadamente por não terem sido prestados cuidados médicos atempadamente à sepsis e pneumonia, e, consequentemente, para a sua morte. (ponto 16.º da acusação).
- O arguido AA admitiu, representando como possível, e conformou-se com tal possibilidade, que ao deixar a sua mãe, a ofendida BB, sozinha por mais de 24 horas, sem esta se conseguir locomover, estando deitada em sítio húmido e cheio de dejetos, e sem qualquer assistência médica, colocava em perigo concreto a sua vida, como efetivamente se veio a verificar, tendo a sua progenitora vindo a falecer, resultado morte que, como único garante do dever de assistência nas circunstâncias concretas, lhe incumbia evitar. (ponto 17.º da acusação, devidamente adaptado).
- O arguido AA agiu sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida. (ponto 18.º da acusação).
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Considerando as alterações agora introduzidas na matéria de facto, incumbe a este Tribunal da Relação aplicar o direito em substituição do Tribunal de primeira instância.
Analisemos, em primeiro lugar, se a factualidade que consideramos demonstrada preenche os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito do crime de exposição ou abandono, imputado ao arguido.
Dispõe o art.º 138.º do Código Penal:
“1 - Quem colocar em perigo a vida de outra pessoa:
a) Expondo-a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender-se; ou
b) Abandonando-a sem defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir; é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
2 - Se o facto for praticado por ascendente ou descendente, adotante ou adotado da vítima, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.
3 - Se do facto resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.”

Para o preenchimento do tipo objetivo, o agente tem de colocar em perigo a vida de uma pessoa através de uma das duas modalidades de conduta descritas. Trata-se, assim, de um crime de perigo concreto: o elemento típico implica que, por ato do agente, se crie um perigo ou se potencie um perigo para a vida de outra pessoa.
Uma vez que a primeira modalidade típica (a exposição) pressupõe a deslocação espacial da vítima levada a cabo pelo agente, hipótese que não se verificava no caso concreto, o tribunal a quo centrou a sua análise, corretamente, na segunda modalidade de conduta descrita no tipo legal: o abandono.
Esta segunda modalidade de conduta consiste em o agente abandonar a vítima sem defesa, sempre que tenha um dever de a guardar, vigiar ou assistir.
O abandono ocorre não só quando o agente abandone o local, mas também quando, mantendo-se junto à vítima, omita qualquer ato de auxílio para com aquela.[15]
O tipo subjetivo só se preenche com o dolo, bastando, porém, o dolo eventual. Este dolo tem evidentemente de abarcar a criação de perigo para a vida da vítima, bem como a ausência de capacidade para se defender por parte desta.
Por fim, a agravação da pena decorrente da ocorrência de um resultado mais grave (morte da vítima ou ofensa à integridade física grave) pressupõe a possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência (art.º 18.º do Código Penal).
De qualquer modo, e como salienta J. M. Damião da Cunha, decisivo para a verificação do crime preterintencional é que o resultado produzido seja imputável à situação de perigo criada e diretamente conexionada com a ausência de capacidade de defesa por parte da vítima.
No presente caso, ficou demonstrado que o arguido AA admitiu, representando como possível e conformando-se com tal possibilidade, que ao deixar a sua mãe, a ofendida BB, sozinha por mais de 24 horas, sem esta se conseguir locomover, estando deitada em sítio húmido e cheio de dejetos, e sem qualquer assistência médica, colocava em perigo concreto a sua vida, como efetivamente se veio a verificar, tendo a sua progenitora vindo a falecer, resultado morte que, como único garante do dever de assistência nas circunstâncias concretas, lhe incumbia evitar.
Encontram-se, assim, preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito em apreço, tendo o arguido atuado com dolo eventual relativamente ao perigo concreto para a vida da sua progenitora que, com a sua conduta gravemente omissiva de prestação dos cuidados necessários de que esta carecia, causou ou, pelo menos, potenciou e agravou.
Já a morte da vítima, decorrente da situação de perigo criada ou exponenciada pelo comportamento do arguido, deveria ser-lhe imputada pelo menos a título de negligência, afigurando-se muito censurável, no concreto circunstancialismo verificado, a omissão dos mais elementares deveres de cuidado a que estava obrigado e que poderia ter observado, como o de assegurar que a vítima, sua progenitora, tivesse sido vista por um médico e mantida em condições de higiene e conforto adequadas – limpa, quente e seca -, tanto mais que era perfeitamente previsível a possibilidade de rápida degradação da sua saúde, nas condições em que foi deixada, dada a sua fragilidade e estando impossibilitada de se valer a si mesma.
Sucede, porém, que não encontramos na acusação – e, consequentemente, no elenco dos factos provados e não provados considerados na decisão recorrida – a necessária descrição da imputação da morte da vítima ao arguido a título de negligência (consciente ou inconsciente) e que pressupunha, não só a violação de deveres objetivos de cuidado adequados a evitar aquele resultado, mas também a sua concreta previsibilidade pelo arguido.[16]
Ora, por força do princípio do acusatório (art.º 32º n.º 5, da CRP) e consequente vinculação temática, o tribunal está substancial e formalmente limitado ao conhecimento dos factos que constituam o objeto da acusação, sendo a sua alteração cominada com a sanção da nulidade pelos artigos 309.º e 379.º, n.º 1, al. b), do CPP.
Com efeito, a acusação fixa o objeto do processo, desempenhando uma dupla função:
• Delimita os poderes de cognição do tribunal; e,
• Consubstancia o direito de defesa do arguido que, assim (e só assim), fica ciente dos factos que lhe são imputados e de que carece defender-se – art.º 61.º, n.º 1, al. c), do CPP.[17]

Impõe-se, assim, a condenação do arguido pela prática do crime que lhe foi imputado, na modalidade prevista na alínea b), do n.º 1 do art.º 138.º do Código Penal e unicamente com a agravação da pena abstratamente aplicável decorrente da previsão constante do n.º 2. Na verdade, no que se refere ao crime preterintencional previsto no n.º 3, alínea b), do mesmo dispositivo legal, não pode este tribunal de recurso – tal como estava vedado ao tribunal de julgamento em primeira instância fazê-lo – suprir a lacuna verificada na acusação quanto à descrição fáctica do elemento subjetivo do tipo de ilícito, na decorrência, aliás, da jurisprudência firmada pelo STJ no acórdão n.º 1/2015.[18]
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Importa, agora, determinar a espécie e medida da pena a aplicar ao arguido, sendo certo que o crime de exposição ou abandono por ele praticado é punido com pena de dois a cinco anos de prisão.
Como é sabido, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", imponham a pena de prisão.
Por outro lado, e como lapidarmente se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/10/2009 (disponível para consulta em www.dgsi.pt), em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral.
Relativamente à questão da determinação do quantum da pena, importa salientar que no nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” [19].
Deste modo, o parâmetro primordial do «modelo» de determinação da pena judicial é primariamente fornecido pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados estabelecendo, em concreto, o limiar mínimo abaixo do qual se perde aquela função tutelar – ou seja, o limiar abaixo do qual a pena não satisfaz a necessidade de reafirmação contrafática da validade das normas junto da comunidade.
Parâmetro co-determinante do modelo de determinação da medida da pena judicial é também a culpa na execução do facto, estabelecendo o limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando a dignidade pessoal do agente à «paz» comunitária.
Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de determinação da medida da pena completa-se com a finalidade de reintegração do agente na sociedade, ou finalidade de prevenção especial de socialização [20].
Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.
Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [21].
Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
No presente caso, importa sobretudo ponderar os seguintes fatores:
- a elevada ilicitude do facto, atendendo ao modo de execução do crime em apreço e suas consequências, o que se repercute negativamente ao nível da culpa do arguido e das exigências de prevenção especial de socialização e geral de integração;
- as elevadas exigências de prevenção geral decorrentes da frequência com que, lamentavelmente, fenómenos deste tipo vêm ocorrendo na nossa sociedade, e que, por isso, importa reprimir eficazmente, reforçando a crença comunitária na validade da norma violada;
- favoravelmente ao arguido, anotamos apenas a circunstância de não apresentar antecedentes criminais e de se mostrar inserido familiar e socialmente, com reflexos positivos ao nível da prevenção especial de socialização.
Julgamos, assim, adequada à culpa acentuada do arguido e necessária para responder às exigências de prevenção especial de socialização e geral de integração atrás assinaladas a pena de três anos de prisão.
Considerando que o arguido é primário e encontra-se socialmente inserido, decidimos suspender a execução da pena de prisão aplicada pelo período de dois anos, na medida em que a pena de substituição, não privativa da liberdade, para além de promover a socialização do arguido, ainda se mostra suficiente para assegurar a confiança comunitária na validade da norma violada. Contudo, e por forma a incrementar a eficácia preventiva da pena não detentiva, a suspensão fica condicionada à obrigação de o arguido entregar a quantia de €2.500,00, no prazo máximo de um ano, á APAV – Associação Portuguesa de Apoio á Vítima, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 50.º e 51.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, do Código Penal.
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III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, como consequência, determinam:
a) A alteração da decisão recorrida em matéria de facto, procedendo-se à correção e ao aditamento da matéria factual atrás mencionada ao elenco dos factos provados.
b) A condenação do arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de exposição ou abandono, p. p. pelo artigo 138.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal, na pena de três anos de prisão, cuja execução se suspende pelo período de dois anos, com a obrigação de o arguido entregar, no prazo máximo de um ano, devendo disso fazer prova nos autos, a quantia de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) à APAV, nos termos previstos nos artigos 50.º e 51.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, do mesmo diploma legal.

Sem custas do presente recurso pelo arguido (cf. o art.º 513.º, n.º 1, “a contrario sensu”, do CPP).
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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente)
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Porto, 4 de janeiro de 2023.

Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
João Pedro Pereira Cardoso
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[1] Mantendo-se a ortografia original do texto, sem prejuízo da correção de manifestos erros de escrita, caso existam.
[2] Mas mesmo essa reapreciação ampla, como assinala o STJ, no acórdão de 2/6/2008, (no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt.) sofre as limitações que decorrem e resultam dos seguintes fatores:
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;
- de a análise e ponderação a efetuar pelo Tribunal da Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art.º 412º), e não apenas a permitirem.
[3] Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Como é sublinhado no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 (relatado pelo Desembargador Brízida Martins e disponível em www.dgsi.pt), “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Veja-se também o acórdão deste TRP, de 2/6/2019 (relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt), “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.”
Ou na síntese do acórdão do TRP, de 6/3/2002, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, igualmente disponível em www.dgsi.pt: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”.
[4] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (www.dgsi.pt), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[5] Cf., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[6] In “Curso de Processo Penal”, Verbo, vol. II, pág. 111.
[7] In “A NECESSIDADE DE REFORMAR O SISTEMA DE RECURSOS NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA. O SISTEMA DE RECURSOS EXIGE REFORMAS?”, Reforma do Sistema de Recursos – Setembro 2019 - Ebook do Cej, acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Reforma_Recursos.pdf.
[8] Relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira e disponível em www.dgsi.pt.
[9] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[10] A cuja audição procedemos, através do citius media studio, assim como dos restantes depoimentos invocados no recurso, incluindo as declarações prestadas pelo arguido.
[11] Inverosímil, por isso, a versão do arguido de que a mãe apenas fez as necessidades fisiológicas na cama no período que decorreu entre o pequeno-almoço e as duas da tarde, quando se deslocou a casa desta.
[12] É de notar que a vítima deu entrada no hospital em estado de hipotermia e as testemunhas DD e HH referiram que estava unicamente vestida com uma camisola, tendo pedido à testemunha HH que a tapasse com o único cobertor que tinha na cama, queixando-se de frio, de acordo com o relato efetuado por esta testemunha na audiência de julgamento.
[13] Como é assinalado no acórdão do TRP de 27/1/2021 (disponível em www.dgsi.pt), a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico da pessoa e só a ela se chega através de factos externos ao agente e, assim, através de prova indireta.
[14] Como não podia deixar de suceder, já que o arguido deixou a sua mãe sem fralda, apesar de saber que ela ficou de cama, sem mobilidade para cuidar de si própria e fazer as necessidades no bacio ou na casa de banho, após a queda ocorrida entre os dias 15 e 17 de fevereiro.
[15] Cf., neste sentido, J. M. Damião da Cunha, in “Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial. Tomo I”, em anotação art.º 138.º do CP.
[16] De acordo o disposto no art.º 15.º do Código Penal, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
[17] A este propósito assinala-se no acórdão do TRG, de 3/12/2018 (relatado pela Desembargadora Ausenda Gonçalves, consultável em www.dgsi.pt), o seguinte: “I - «A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados». II - Donde, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art.º 32º, nº 5, da CRP), os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao objeto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não podendo o juiz formular convites ou recomendações, e muito menos ordens, ao Órgão Titular da ação penal, para aperfeiçoamento, retificação, complemento, ou dedução de nova acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais. III - Por outro lado, os “factos” que constituem o “objeto do processo” têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea [art. 283º nº 3 b) do CPP]. IV - Perante a insuficiência dos factos para o preenchimento do tipo legal do crime imputado numa acusação, se o processo for remetido para a fase de julgamento, deve o juiz rejeitar a acusação, por manifestamente infundada [cf. art. 311º nºs 2, a) e 3, d)], e, se assim não for e o processo chegar a julgamento, o julgador deverá absolver o arguido da acusação, em conformidade, aliás, com a jurisprudência já fixada pelo AUJ do STJ nº 1/2015, publicado no Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de Janeiro de 2015”.
[18] Com efeito, o STJ, no referido acórdão n.º 1/2015, fixou jurisprudência no sentido de que «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.».
[19] J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227.
[20] Cf. o mencionado acórdão do STJ, de 9/5/2019, e, ainda, para maiores desenvolvimentos, o acórdão do STJ, de 18/2/2016, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e proferido no processo 118/08.1GBAND.P1.S2, in www.dgsi.pt.
[21] Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.