Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
785/17.5T8OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
EXECUÇÃO
CERTIDÃO DE DÍVIDA
CONTRIBUÍÇÕES
CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS ADVOGADOS E SOLICITADORES
Nº do Documento: RP20180205785/17.5T8OVR.P1
Data do Acordão: 02/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º668, FLS.73-77)
Área Temática: .
Sumário: O tribunal comum é incompetente em razão da matéria para uma ação executiva para pagamento de quantia certa instaurada pela Caixa de Previdência B… contra um seu beneficiário, com base em certidão de dívida por si emitida e para obter o pagamento coercivo de contribuições alegadamente em dívida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc n.º 785/17.5T8OVR.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 785/17.5T8OVR.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório
Em 25 de abril de 2017, no Juízo de Execução, Comarca de Aveiro, a Caixa de Previdência B… instaurou acção executiva para pagamento de quantia certa, sob forma sumária, contra C…, alegando para o efeito o seguinte:
1.º A Executada, sendo advogada de profissão, encontra-se obrigatoriamente inscrita na Caixa de Previdência B…, doravante designada B1…, nos termos do disposto no art.º 29.º, n.º 1 do Regulamento da B1…, aprovado pelo D.L. n.º 119/2015, de 29 de Junho, e anteriormente nos termos do art.º 5.º, n.º 1 da Portaria n.º 487/83, de 27 de Abril.
2.º E estando inscrita na B1…, a Executada tem de pagar mensalmente as contribuições para a Caixa, a que se refere o art.º 79.º e seguintes do Regulamento da B1…, aprovado pelo D.L. n.º 119/2015, de 29 de Junho (e anteriormente art.º 72.º e seguintes da Portaria n.º 487/83, de 27 de Abril, com a redacção introduzida pela Portaria n.º 884/94, de 1 de Outubro).
3.º Sucede que a Executada não tem pago as contribuições para a B1…, a que está obrigada, devendo, neste momento, a quantia de 8.825,38€ (oito mil, oitocentos e vinte e cinco euros e trinta e oito cêntimos), sendo 7.353,36€ (sete mil, trezentos e cinquenta e três euros e trinta e seis cêntimos) de contribuições em dívida e 1.472,02€ (mil, quatrocentos e setenta e dois euros e dois cêntimos) a título de juros, conforme certidão de dívida emitida pela B1…, de 21 de março de 2017 (Doc. 1).
4.º A Executada devidamente interpelada pela B1… a efectuar o pagamento das contribuições em dívida, não o fez.
5.º Pelo que a B1… se viu forçada a recorrer aos meios judiciais para cobrar a dívida de contribuições.
6.º Assim, com a presente execução, a B1… pretende haver da Executada a quantia de 8.825,38€ (oito mil, oitocentos e vinte e cinco euros e trinta e oito cêntimos), acrescida dos juros moratórios, sobre o valor das contribuições em dívida, contados à taxa de 4,966% (em 2017), e nos anos subsequentes à taxa de juros que for fixada nos termos do disposto no art.º 81.º, n.º 4 do Regulamento da B1…, aprovado pelo D.L. n.º 119/2015, de 29 de Junho, até ao integral e efectivo pagamento.
7.º A certidão de dívida emitida pela Direcção da B1…, de 21 de março de 2017, constitui título executivo nos termos do disposto no art.º 703.º, n.º 1, alínea d) do C.P.C. e do art.º 81.º, n.º 5 do Regulamento da B1…, aprovado pelo D.L. n.º 119/2015, de 29 de Junho.
8.º Termos em que se requer a V. Exa se digne ordenar a citação da Executada para pagar à B1… a quantia exequenda de 8.825,38€ (oito mil, oitocentos e vinte e cinco euros e trinta e oito cêntimos), titulada pela certidão de dívida emitida pela B1… em 21 de março de 2017, acrescida dos juros moratórios vincendos, sobre o valor das contribuições em dívida, no ano de
2017, contados à taxa de 4,966%, e nos anos subsequentes à taxa de juro que for fixada nos termos do disposto no art.º 81.º, n.º 4 do Regulamento da B1…, aprovado pelo D.L. n.º 119/2015, de 29 de Junho, até ao integral e efectivo pagamento, acrescido ainda das despesas com a presente acção, nas quais se incluem as custas judiciais e as despesas com o B5…, sob pena do prosseguimento da execução, seguindo-se os ulteriores termos do processo até final.
Em 08 de setembro de 2017, foi proferido o seguinte despacho:
Ao abrigo dos deveres de advertência e de consulta, comunica-se ao exequente que se pretende conhecer e julgar procedente a exceção (dilatória) de incompetência em razão da matéria.
Com efeito, o n.º 3 do art. 212.º da Constituição da República estabelece como critério atributivo de competência aos tribunais administrativos e fiscais a natureza administrativa da relação jurídica controvertida. Este critério não coincide necessariamente com o da natureza administrativa do negócio jurídico subjacente. O litígio entre as partes até pode emergir de um contrato administrativo e a apreciação das questões relativas a esse litígio pertencer à competência dos tribunais judiciais, caso essas questões não se fundamentem numa relação jurídica administrativa.
Com efeito, os tribunais comuns podem ser competentes para apreciar questões emergentes de contratos de natureza administrativa. Basta pensar que os órgãos da Administração Pública tanto podem celebrar contratos administrativos sujeitos a um regime substantivo de direito público-administrativo, como contratos submetidos a um regime de direito privado (cf. art. 200.º, n.º 1, do novo CPA).
A determinação da competência dos tribunais em geral é feita com base em elementos objetivos e subjetivos, que CALAMANDREI designa como “índices de competência”[1]. Conforme ensina o Prof. MANUEL DE ANDRADE, “deve olhar-se aos termos em que foi posta a ação - seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes)”. Apoiando-se em REDENTI, prossegue o mesmo autor que “a competência do tribunal «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da ação está certo ainda para a pessoa dos litigantes” (Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra Editora, 1993, p. 91).
Na determinação do conteúdo do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal, tal como referem os Prof. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, deve ter-se presente que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal” (Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 2010, p. 566 e 567).
Deste modo, é a partir da análise da forma como o litígio se mostra estruturado no articulado inicial da ação que poderemos encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para julgar essa mesma ação. Será, portanto, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada nesse articulado, nomeadamente a partir da causa de pedir e do pedido, que teremos de encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da ação. Mas também é de exigir que um dos sujeitos da relação jurídica aja no exercício de poderes jurídico-administrativos ou a atividade por ele exercida esteja regulada de modo específico por disposições de direito administrativo, dado que só assim estaremos em face de uma relação jurídica administrativa (cf. arts. 2.º, n.º 1, e 148.º do CPA). Essas entidades são, essencialmente, as que se encontram identificadas no art. 2.º do Código dos Contratos Públicos.
Em suma, a competência material dos tribunais administrativos, como a dos tribunais em geral, afere-se pela natureza do objeto processual (pedido e fundamentos), atendendo à relação jurídica controvertida tal como a configura o demandante (quid disputatum), e pela identidade das partes.
A Caixa de Previdência B…, embora seja uma pessoa coletiva autónoma relativamente ao órgão associação, foi criada especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral dos respectivos associados, e a atividade que exerce está regulada de modo específico por disposições de direito administrativo; por modo que as relações entre aquela entidade e os seus associado relativamente ao pagamento de contribuições devidas à caixa de previdência rege-se por normas de direito administrativo.
Por conseguinte, é título emitido ou produzido no âmbito de relações jurídico-administrativas a certidão de dívida emitida pela Direção da Caixa de Previdência B… quanto à falta de pagamento voluntário das contribuições (art. 81.º, n.º 5 do Regulamento da B1…, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 119/2015, de 29 de Junho).
Quer dizer, se o litígio tem por objeto questões relacionadas com o pagamento de contribuições devidas ao sistema de previdência, que emergem das relações entre os associados e a caixa de previdência, então as questões que entre ambas as partes surjam são dirimidas com o recurso a regras de direito público. E porque o litígio é solucionado no quadro do direito público, a especificidade das matérias justifica a atribuição de competência aos tribunais administrativos, e não já aos tribunais comuns, por causa da competência residual destes últimos (cf. art. 211.º, n.º 1, da CRP).
Em suma: se a relação jurídica for disciplinada pelo direito administrativo e se é nos quadros deste ramo do Direito que o litígio terá de ser resolvido, tanto o elemento objetivo, como o subjetivo determinam a competência aos tribunais administrativos.
Ouça-se o exequente no prazo de 10 dias.
Dê conhecimento ao AE.
Em requerimento de 25 de setembro de 2017, a Caixa de Previdência B… pronunciou-se no sentido da competência material para a presente ação executiva competir aos tribunais comuns.
Em 06 de outubro de 2017, foi proferido o seguinte despacho[2];[3]:
A questão a solucionar consiste em saber como se determina a competência (material) executiva para cobrança das contribuições devidas ao sistema de previdência B….
Depois de consultada, a exequente (Caixa de Previdência B…[4]) mantém a posição de que este Juízo de Execução é competente em razão da matéria.
O n.º 3 do art. 212.º da Constituição da República estabelece como critério atributivo de competência aos tribunais administrativos e fiscais a natureza administrativa da relação jurídica controvertida. Este critério não coincide necessariamente com o da natureza administrativa do negócio jurídico subjacente. O litígio entre as partes até pode emergir de um contrato administrativo e a apreciação das questões relativas a esse litígio pertencer à competência dos tribunais judiciais, caso essas questões não se fundamentem numa relação jurídica administrativa.
Com efeito, os tribunais comuns podem ser competentes para apreciar questões emergentes de contratos de natureza administrativa. Basta pensar que os órgãos da Administração Pública tanto podem celebrar contratos administrativos sujeitos a um regime substantivo de direito público-administrativo, como contratos submetidos a um regime de direito privado (cf. art. 200.º, n.º 1, do novo CPA).
A determinação da competência dos tribunais em geral é feita com base em elementos objetivos e subjetivos, que CALAMANDREI designa como “índices de competência”[5]. Conforme ensina o Prof. MANUEL DE ANDRADE, “deve olhar-se aos termos em que foi posta a ação - seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes)”. Apoiando-se em REDENTI, prossegue o mesmo autor que “a competência do tribunal «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da ação está certo ainda para a pessoa dos litigantes” (Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra Editora, 1993, p. 91).
Na determinação do conteúdo do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal, tal como referem os Prof. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, deve ter-se presente que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal” (Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 2010, p. 566 e 567).
Deste modo, é a partir da análise da forma como o litígio se mostra estruturado no articulado inicial da ação que poderemos encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para julgar essa mesma ação.
Será, portanto, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada nesse articulado, nomeadamente a partir da causa de pedir e do pedido, que teremos de encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da ação. Mas também é de exigir que um dos sujeitos da relação jurídica aja no exercício de poderes jurídico-administrativos ou a atividade por ele exercida esteja regulada de modo específico por disposições de direito administrativo, dado que só assim estaremos em face de uma relação jurídica administrativa (cf. arts. 2.º, n.º 1, e 148.º do CPA). Essas entidades são, essencialmente, as que se encontram identificadas no art. 2.º do Código dos Contratos Públicos, entre as quais figuram as associações públicas profissionais (cf. art. 2.º, n.º 1, al. f), do Dec.-Lei n.º 18/2008, de 29/01).[6]
Em suma, a competência material dos tribunais administrativos, como a dos tribunais em geral, afere-se pela natureza do objeto processual (pedido e fundamentos), atendendo à relação jurídica controvertida tal como a configura o demandante (quid disputatum), e pela identidade das partes.
A Caixa de Previdência B… é uma pessoa colectiva autónoma, criada especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral dos respetivos beneficiários, que são fins de previdência e de proteção social. A atividade que exerce está regulada de modo específico pelo Regulamento da B1…, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 119/2015, de 29 de Junho, e, subsidiariamente, pelas bases gerais do sistema de segurança social (cf. art. 1.º, n.º 2 do Regulamento da B1…); por modo que as relações entre aquela entidade e os seus associados relativamente ao pagamento de contribuições devidas ao sistema de previdência regem-se por normas de direito administrativo.
Em reforço do que se afirma, a certidão da dívida de contribuições emitida pela direção da B1… só constitui título executivo se obedecer aos requisitos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário (art. 81.º, n.º 5 do Regulamento da B1…, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 119/2015, de 29 de Junho).
Por conseguinte, é título emitido ou produzido no âmbito de relações jurídico-administrativas a certidão de dívida emitida pela Direção da Caixa de Previdência B… quanto à falta de pagamento voluntário das contribuições.
Quer dizer, se o litígio tem por objeto questões relacionadas com o pagamento de contribuições devidas ao sistema de previdência, que emergem das relações entre os beneficiários e a caixa de previdência, então as questões que entre ambas as partes surjam são dirimidas com o recurso a regras de direito público. E porque o litígio é solucionado no quadro do direito público, a especificidade das matérias justifica a atribuição de competência aos tribunais administrativos, e não já aos tribunais comuns, por causa da competência residual destes últimos (cf. art. 211.º, n.º 1, da CRP).[7]
Aliás, nem se compreenderia que a certidão da dívida de contribuições emitida pela direção da B1…, na falta de pagamento voluntário, fosse executada nos tribunais judiciais, e se a decisão da direção da B1… que fixa essa dívida tivesse sido objeto de recurso contencioso e o tribunal administrativo mantivesse essa decisão, já seria competente para executar as contribuições devidas ao sistema de previdência o tribunal administrativo, conforme dispõe o art. 157.º, n.º 5 do CPTA.
Acresce que nos termos da al. o) do n.º 1 do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “relações jurídicas administrativas e fiscais” que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores do mesmo preceito legal. Disto resulta que estes tribunais têm competência residual, na falta de previsão expressa na lei sobre o tribunal competente, para solucionar qualquer outro litígio que seja emergente de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, atendendo à forma genérica como o conteúdo da disposição se encontra descrito.
Em suma: se a relação jurídica for disciplinada pelo direito administrativo e se é nos quadros deste ramo do Direito que o litígio terá de ser resolvido, tanto o elemento objetivo, como o subjetivo determinam a competência aos tribunais administrativos.
Admite-se que não seja líquida a questão de saber qual o sistema de cobrança aplicável em caso de falta de pagamento voluntário das contribuições. No entanto, existe base legal para considerar que a cobrança segue o processo de execução tributária. Com efeito, embora seja uma pessoa coletiva autónoma, a B1… foi criada especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral dos respetivos beneficiários, que são fins de previdência e de proteção social dos associados de duas ordens profissionais (Ordem dos B3… e Ordem dos B4… e B5…). À vista disso, parece dever aplicar-se o disposto no art. 43.º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 4, do diploma legal que estabelece o regime jurídico geral de organização e funcionamento das associações públicas profissionais, aprovado pela Lei n.º 2/2013, de 10/01.
De qualquer modo (e voltando um pouco ao início da nossa fundamentação), os critérios doutrinais que determinam a competência (material) dos tribunais em geral – elementos objetivos e subjetivos, que CALAMANDREI designa como “índices de competência” – não podem ser subvertidos apenas por causa de uma certa incoerência normativa quanto ao aspeto específico do regime processual de cobrança. Nos ordenamentos jurídicos modernos, são as normas-regras que se devem conformar às normas-princípios, e não o inverso.
A incompetência material conduz ao indeferimento liminar do requerimento executivo ou, quando conhecida numa fase mais adiantada do processo, à rejeição da execução (cf. arts. 726.º, n.º 2, al. b) e 734.º do nCPC).
Ao abrigo das disposições legais citadas, declaro a falta de competência em razão da matéria deste Juízo de Execução para conhecer e decidir a presente execução.
Notifique e dê conhecimento ao AE.
Em 30 de outubro de 2017, inconformada com o despacho que se acaba de transcrever, a Caixa de Previdência B… interpôs recurso de apelação terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1.ª O Tribunal a quo é o tribunal competente para a decisão e tramitação deste processo executivo.
2.ª Pois a B1…, não obstante prosseguir fins de interesse público, tem uma forte componente privatística. Com efeito,
3.ª A B1… «é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa…» (cf. Art.º 1.º, n.º 1 do regulamento aprovado pelo Dec.Lei n.º 119/2015, de 29/06) não fazendo parte do sistema público de segurança social (cf. Ilídio das Neves in “Direito da Segurança Social – Princípios Fundamentais Numa Análise Prospectiva”).
4.ª A B1… não está sujeita a um poder de superintendência do Governo, mas a um mero poder
de tutela (cf. Art.º 97.º do regulamento aprovado pelo Dec.Lei n.º 119/2015, de 29/06), sendo essa tutela meramente inspectiva.
5.ª A B1… não faz parte da administração directa ou indirecta do Estado.
6.ª Os seus membros directivos não são designados pelo Governo, mas eleitos «pelas assembleias dos B3… e dos associados da Câmara dos B4…».
7.ª Mas além disso a B1… não é financiada com dinheiros públicos, sejam oriundos do Orçamento do Estado ou do Orçamento da Segurança Social.
8.ª Pelo que a B1… não deve ser qualificada como uma mera “entidade pública”.
9.ª As contribuições para a B1… não têm natureza tributária, mais se assemelhando a contribuições para um fundo de pensões.
10.ª As contribuições para a B1… assentam numa verdadeira relação sinalagmática entre o montante das contribuições pagas e a futura pensão de reforma a ser percebida pelo beneficiário.
11.ª A este facto acresce que, nos termos do disposto no art.º 80.º, n.º 4 do regulamento aprovado pelo Dec.Lei n.º 119/2015, o montante das contribuições depende em exclusivo da opção e, portanto, da única vontade do beneficiário.
12.ª Nos termos da sentença recorrida, os tribunais administrativos e fiscais seriam os competentes para a tramitação e decisão de execução fundada em certidão de dívida reportada a contribuições para instituição de previdência.
13.ª Todavia, o n.º 2 do art.º 148.º do CPPT impõe, para que se possa fazer uso o processo de execução fiscal, no caso de «dívidas a pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo», que a lei estipule expressamente os casos e os termos em que o pode fazer.
14.ª No novo regulamento da B1…, aprovado pelo Dec.Lei n.º 119/2015, de 29/06, não existe norma que, de forma expressa, determine que as dívidas à B1… sejam cobradas através de processo de execução fiscal a correr nos serviços de finanças
15.ª O que foi confirmado, já depois da entrada em vigor do novo regulamento da B1…, pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) à Direcção da B1….
16.ª E porque “não há direito sem acção”, não resta à B1… outro caminho senão recorrer aos
Tribunais judiciais, como no presente caso, para cobrar as contribuições em dívida por parte dos seus beneficiários, isto sob pena de ficar sem tutela jurisdicional efectiva para o apontado propósito.
17.ª Assim a interpretação das referidas normas de modo a concluir pela incompetência do Tribunal a quo, acarretaria o incumprimento de preceito constitucional, constante do art.º 20.º, n.º 1 da CRP, que estipula que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…»
18.ª Tendo em conta o princípio constitucional previsto no art.º 20.º, n.º 1 da CRP que dispõe que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…», a interpretação conjugada da alínea o) do n.º 1 do art.º 4.º
do ETAF (aprovado pela Lei n.º 32/2002, de 19/02) e do n.º 2 do art.º 148.º do CPPT, perfilhada na sentença recorrida, ou seja, de que apenas os tribunais administrativos e fiscais seriam competentes para dirimir os litígios entre a B1… e os seus beneficiários, é inconstitucional por violação do disposto no art.º 20.º, n.º 1 da CRP, na medida em que, como vimos, levará a um verdadeiro “beco sem saída” pois a B1… ficaria, dessa forma, sem possibilidade de poder cobrar as contribuições em dívida pelos seus beneficiários.
19.ª Pois, as dívidas à B1… não poderão ser cobradas judicialmente nem nos tribunais administrativos e fiscais, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela AT, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela Segurança Social, por falta de norma habilitante para o efeito.
20.ª A sentença recorrida violou, assim, o art.º 2.º, n.º 2 do C.P.C.; o art.º 179.º, n.º 1 e 2 do NCPA e o art.º 148.º, n.º 2 do CPPT; o art.º 81.º, n.º 5 do RB1…; a alínea o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF e, além disso, a interpretação normativa extraída do referido conjunto de preceitos
legais é inconstitucional por violar o artigo o art.º 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa”.
Não foram oferecidas contra-alegações.
Atenta a natureza estritamente jurídica da questão decidenda, a existência de “precedentes” neste Tribunal da Relação[8], bem como uma decisão publicada do Tribunal de Conflitos sobre a matéria em apreço[9], com o acordo dos restantes membros do colectivo decide-se dispensar os vistos e ordenar a imediata inscrição dos autos em tabela.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil.
A única questão a decidir é a determinação do tribunal competente em razão da matéria para a ação executiva para pagamento de quantia certa instaurada nestes autos pela Caixa de Previdência B…, com base em certidão de dívida emitida pela exequente e com fundamento no não pagamento de contribuições por parte da executada.
3. Fundamentos de facto
Os fundamentos de facto necessários e pertinentes para a dilucidação da questão decidenda constam do relatório desta decisão e resultam do teor dos presentes autos, nesta parte com força probatória plena, não se reproduzindo nesta sede por evidentes razões de economia processual.
4. Fundamentos de direito
O tribunal a quo é competente em razão da matéria para a ação executiva para pagamento de quantia certa instaurada nestes autos pela Caixa de Previdência B…, com base em certidão de dívida emitida pela exequente e com fundamento no não pagamento de contribuições por parte da executada?
A recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida invocando para tanto, em síntese, que não faz parte do sistema de segurança social, que está sujeita apenas a tutela por parte do Governo, que não faz parte da administração direta ou indireta do Estado, que os seus órgãos são eleitos, que não é financiada por dinheiros dos Cofres do Estado, que as contribuições exequendas não têm natureza tributária, dependendo o seu montante da opção do beneficiário, que não existe norma a habilitar ao recurso à execução fiscal e que a interpretação do tribunal recorrido é violadora do direito fundamental de acesso ao direito, já que a jurisdição administrativa, por falta de norma habilitante, não tem competência para a execução objeto destes autos, ficando a recorrente sem instrumento processual para fazer valer a sua pretensão contra a executada.
Cumpre apreciar e decidir.
O tribunal recorrido declarou-se materialmente incompetente para a presente ação executiva fundando-se no disposto na alínea o), do nº 1, do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que prescreve que é da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios que tenham por objeto relações administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores. Como se vê esta previsão legal prevê uma competência residual dos tribunais administrativos e fiscais para todos os casos em que estejam em causa relações administrativas e fiscais não contempladas nas hipóteses tipificadas nas alíneas anteriores.
A qualificação feita pelo tribunal a quo da relação da recorrente com a recorrida como administrativa não é criticada pela recorrente.
A recorrente é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa, e visa fins de previdência e de proteção social dos B3… e dos associados da Câmara dos B4… (artigo 1º, nº 1, do decreto-lei nº 119/2015, de 29 de junho). Trata-se de uma pessoa coletiva pública[10], sujeita a tutela por parte do Governo (artigo 97º do decreto-lei nº 119/2015, de 29 de junho), integrando-se na administração autónoma[11].
Por se tratar de uma instituição de previdência, a recorrente está subsidiariamente sujeita às disposições da lei de bases da Segurança Social e à legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações (artigo 106º da Lei nº 4/2007, de 16 de janeiro). Entre a legislação que lhe é aplicável, consta o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (artigo 2º da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro).
A circunstância dos órgãos da recorrente não serem nomeados mas eleitos e de o seu financiamento não provir dos Cofres do Estado não lhe retira a natureza de instituição de previdência integrada na administração autónoma.
As contribuições exequendas são obrigatórias e apenas o seu montante está na relativa dependência da opção dos beneficiários (vejam-se os artigos 79º a 81º do decreto-lei nº 119/2015, de 29 de junho).
Por força da aplicação subsidiária das regras aplicáveis à Segurança Social, a dívida por quotizações à recorrente é uma dívida à Segurança Social (artigo 185º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social e artigo 2º da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro). Tais dívidas podem ser regularizadas mediante pagamento voluntário, nos termos previstos no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, no âmbito de execução cível (por força da convocação na fase do concurso de credores, por exemplo) ou no âmbito de execução fiscal (artigo 186º, nº 1, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social).
Assim, ao contrário do que afirma a recorrente, existe norma expressa, aplicável subsidiariamente à recorrente, que expressamente prevê o recurso à execução fiscal para regularização dos seus créditos.
Também da conjugação do artigo 81º, nº 5, do decreto-lei nº 119/2015, de 29 de junho, com a alínea a), do nº 2, do artigo 148º do Código de Procedimento e de Processo Tributário se chega à conclusão que é em execução fiscal que deve ser coercivamente realizada a pretensão da recorrente, pois que é inquestionável que a certidão que constitui o título exequendo é um ato administrativo.
Neste circunstancialismo, não se verifica a violação do direito fundamental de acesso ao direito, pois a recorrente tem um meio processual próprio para fazer valer a sua pretensão executiva.
Conclui-se assim pela total improcedência do recurso e pela confirmação da decisão recorrida, sendo as custas do recurso da responsabilidade da recorrente (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Caixa de Previdência B… e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida proferida em 06 de outubro de 2017.
Custas a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
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O presente acórdão compõe-se de dez páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.
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Porto, 05 de fevereiro de 2018
Carlos Gil
Carlos Querido
Correia Pinto
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[1] Apud Prof. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra Editora, 1993, p. 90 e 91.
[2] As notas de rodapé do despacho original iniciam-se na nota 1, iniciando-se nesta decisão na nota 4.
[3] Notificado mediante expediente electrónico elaborado em 10 de outubro de 2017.
[4] Doravante designada por B1….
[5] Apud Prof. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra Editora, 1993, p. 90 e 91.
[6] Aprova o Código dos Contratos Públicos, que estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo.
[7] Neste sentido, vide Acórdão do Tribunal dos Conflitos (STA) de 27/04/2017, proferido no processo n.º 037/16, bem como o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/06/2016, proferido na apelação n.º 6988/16.2T8PR.P1, em foi relator o Sr. Juiz (atualmente) Conselheiro, ALBERTO RUÇO.
[8] Referimo-nos ao acórdão desta Relação de 28 de junho de 2016, relatado por Alberto Ruço, no processo nº 6988/16.2PRT.P1 e acessível no site da DGSI, subscrito pelo segundo adjunto neste acórdão. Também o acórdão desta Relação de 23 de janeiro de 2006, relatado por Fernandes Isidoro, no processo nº 044941, ainda que recaindo sobre questão distinta, definia a jurisdição administrativa como a materialmente competente para conhecer dos litígios surgidos entre a Caixa de Previdência B… e os seus beneficiários. Na relação de Lisboa, encontram-se publicados na base de dados da DGSI dois acórdãos consonantes com o acórdão deste tribunal antes citado: acórdão de 09 de março de 2017, relatado por Maria Teresa Albuquerque, no processo nº 17398/15.9T8LRS.L1-2; acórdão de 02 de novembro de 2017, relatado por Teresa Prazeres Pais, no processo nº 9354-16.6T8LSB.L1-8.
[9] Referimo-nos ao acórdão do Tribunal de Conflitos de 27 de abril de 2017, relatado por Fonseca da Paz, no processo nº 037/16.
[10] Neste sentido veja-se o acórdão do Tribunal de Conflitos de 02 de outubro de 2008, proferido no processo nº 010/08, acessível na base de dados da DGSI.
[11] Neste sentido veja-se, Curso de Direito Administrativo, 3ª edição, Vol. I, Almedina 2006, Diogo Freitas do Amaral, com a colaboração de Luís Fábrica, Carla Amado Gomes e J. Pereira da Silva, página 900.