Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2886/17.0T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO
REMOÇÃO/EXONERAÇÃO DO ACOMPANHANTE
Nº do Documento: RP202210242886/17.0T8GDM.P1
Data do Acordão: 10/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O artigo 152.º do Código Civil manda aplicar à remoção e exoneração do acompanhante designado inicialmente as normas dos artigos 1948.º a 1950, com as necessárias adaptações;
II - O acompanhante pode ser exonerado das suas funções, a seu pedido, se sobrevier alguma das causas de escusa, previstas no artigo 1934.º (aplicável ex vi do artigo 144.º, n.º 3, do CC).
III – Apesar de ter manifestado indisponibilidade para exercer o cargo (então, de curadora), tendo a acompanhante, posteriormente, infletido a sua posição e, ouvida no âmbito do procedimento incidental, manifestado vontade e disponibilidade para continuar a exercer essas funções, fica, necessariamente, afastada a possibilidade de exoneração;
IV - O acompanhante que falte ao cumprimento dos seus deveres ou se revele inapto para o exercício das respectivas funções pode ser removido do cargo;
V - É o artigo 146.º, n.º 1, do CC, que concretiza os deveres de cuidado e diligência que, na «concreta situação», o acompanhante deve respeitar;
Deve o acompanhante pugnar pela defesa da auto-determinação do beneficiário, respeitando a sua vontade e desejos, tanto a nível pessoal, como patrimonial, que não foram judicialmente reservados ou restringidos; prestar, ou assegurar que lhe são prestados, os cuidados devidos, atento o respectivo contexto pessoal, social e ambiental; participar juridicamente na representação legal determinada pelo tribunal;
VI - Para que o acompanhante exerça, de forma plena e com respeito pela lei, a sua função, deverá manter contacto permanente com o beneficiário, tal como impõe o artigo 146.º, n.º 2, do CC, visitando-o, no mínimo, uma vez por mês;
VII - Não se tendo apurado qualquer facto susceptível de consubstanciar a violação daqueles deveres, não há motivo sério para a remoção da acompanhante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2886/17.0 T8GDM.P1
Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Gondomar (Juiz 2)


Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
Em acção de inabilitação intentada pelo Ministério Público contra AA, foi proferida sentença[1] que, além do mais, decidiu decretar a inabilitação deste por abuso de bebidas alcoólicas, determinando-se que ficariam sujeitos a autorização do curador os atos de disposição de bens entre vivos; os atos de administração de eventuais imóveis de que o requerido seja proprietário; a assunção de obrigações pecuniárias (contrair dívidas), que não se reportem a atos de vida corrente e, bem assim, que entregasse ao curador o rendimento que auferisse para ser administrado por este de acordo com as necessidades do requerido, por forma a evitar o seu desaparecimento com a aquisição de bebidas alcoólicas.
Foi nomeada curadora BB (que, com a entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, passou a ser acompanhante do beneficiário AA) e o conselho de família era constituído por CC (sub-curadora) e DD (vogal).
Tendo manifestado indisponibilidade para exercer o cargo, a curadora/acompanhante acabou por aceitar exercê-lo.
*
Em 15.11.2021, a referida CC, esposa do beneficiário, apresentou requerimento (manuscrito) em que alega, em síntese, o seguinte:
A BB tem tido uma conduta condizente com a sua vontade, manifestada nos autos, de ser dispensada do exercício do cargo de curadora, para o qual não reúne condições.
Abriu um restaurante e tem dois filhos menores, em relação aos quais já houve uma intervenção da “Protecção de Menores”.
Deixou de dar ao inabilitado a medicação para tratamento da dependência alcoólica, o que levou a que este voltasse aos consumos excessivos.
No dia 04.11.2021, o inabilitado recebeu quatro vales de correio provenientes da Segurança Social, no montante de €2.500,00 cada um e, com a complacência ou desinteresse da curadora, logrou obter, sozinho, o seu pagamento, ficando, assim, com grande disponibilidade para adquirir bebidas alcoólicas para seu consumo.
Sem a medicação e tendo voltado ao consumo excessivo de álcool, o inabilitado está descontrolado e agressivo.
Além disso, o inabilitado deixou de ir às consultas médicas (psiquiatria e médico de família).
Pede, com base nestes factos, que a BB seja destituída do cargo de curadora «por não cumprir com as suas obrigações» e que, para o seu lugar, seja nomeada ela própria, CC, e como sub-curador o seu filho EE (que também subscreve o requerimento).
No exercício do contraditório, a requerida apresentou resposta que assim se sintetiza:
Depois de ter sido informada de que tinha de continuar no exercício do cargo, assumiu, plenamente, as suas responsabilidades perante o acompanhado, seu pai.
O facto de ter um restaurante a 500 metros da casa de residência do acompanhado é uma vantagem porque pode visitá-lo mais vezes e melhor exercer as suas funções.
A intervenção da CPCJ tem a ver com o facto de o pai dos seus filhos, de quem está separada, ser alcoólico.
Admite que o acompanhado se esquiva a tomar os medicamentos, mas a esposa, subcuradora, estando mais perto dele, está em melhores condições para o fazer tomá-los.
O acompanhado, verdadeiramente, nunca deixou de ingerir bebidas alcoólicas e é difícil exercer sobre ele total controlo, mas tem feito esforços para que isso deixe de acontecer.
Desconhecia o recebimento dos vales de correio e, se o acompanhado conseguiu que lhe fossem entregues os respectivos valores, foi porque alguém o ajudou. São as pessoas que coabitam com ele (a sua mãe CC e o seu irmão EE) que em melhores condições estavam para impedir que tal acontecesse, mas nada fizeram.
O requerimento assinado pela sua mãe não foi por ela escrito nem exprime a sua vontade. Aliás, também ela já apresenta sinais de padecer de anomalia psíquica, pelo que se justifica a sua substituição.
Termina pedindo que se indefira o requerido.
*
Em sede de instrução, foram ouvidos os principais interessados, designadamente o acompanhado.
Finda a produção de prova, pronunciaram-se os interessados sobre as medidas a aplicar.
O Beneficiário, através do seu ilustre Advogado, veio defender que deveria ser o seu filho EE a exercer as funções de acompanhante; em alternativa, propõe a sua mulher CC.
A acompanhante em funções veio dizer que não tem tido a colaboração dos demais familiares do acompanhado e a esposa deste, a sua mãe, recusou-se mesmo a auxiliá-la a tratar dos assuntos tributários e outros, sublinhando que a atuação da sua mãe e irmãos apenas visa retirá-la do cargo, agora que o pai recebe pensão de reforma.
Por seu turno, o Ministério Público manifestou o entendimento de que é a BB a pessoa indicada para ser a acompanhante do beneficiário AA e promoveu a aplicação das seguintes medidas de acompanhamento:
a) Representação geral para todos os actos da vida corrente, sem prejuízo daqueles actos que careçam de autorização judicial [art. 145.º, n.º 2, al. b), do CC];
b) Limitação do direito pessoal de testar (art. 147.º, n.ºs 1 e 2, do CC);
c) Administração total de bens [art. 145.º, n.º 2, al. c), do CC].

Com data de 14.03.2022, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Em face do supra exposto, determina-se, em sede de revisão de medidas de acompanhamento, proceder alterações/ampliação nos termos que se seguem, instituindo-se a favor de AA:
I) a medida de acompanhamento de poder de representação especial para suprir as suas necessidades de:
- natureza médica/de saúde, incluindo a decisão na marcação de consultas, na sua comparência às mesmas, na adesão/sujeição às terapêuticas prescritas, mormente, na toma de medicação e decisão de internamento e alta em conformidade com a indicação médica para esse efeito – art. 145.º, n.º 2, alínea e),
- natureza patrimonial, tais como a celebração de negócios jurídicos, atos de disposição de bens e atos de proceder a pagamentos, assunção de obrigações pecuniárias e ainda representação junto de repartições públicas e privadas, tais como centros de saúde, hospitais e outros de idêntica natureza, Finanças, Segurança Social, CTT, instituições financeiras e Bancárias, notários, empresas prestadoras de serviços essenciais, incluindo a abertura/tratamento de correspondência a estas entidades associada e proceder aos atos necessários para que a correspondência dirigida ao beneficiário seja enviada/ direcionada para a morada da Acompanhante – art. 145.º, n.º 2, alínea b),
II) a medida de Administração total do seu património, nomeadamente do rendimento que aufere a título de pensão e outros rendimentos que aufira, em conformidade com o disposto no art. 145.º, n.º2 c),
III) Em ordem à proteção do beneficiário, decide-se restringir o exercício dos seus direitos pessoais:
i. previstos no artigo 5.º, n.º3 da Lei de Saúde Mental e conferir ao/à acompanhante legitimidade para requerer as providências previstas no artigo 13.º da Lei de Saúde Mental.
ii. quanto à tomada de quaisquer decisões em sede da sua saúde designadamente, toma de medicação, consultas, tratamentos, exames e outros atos necessários e medicamente prescritos, incluindo internamentos e decisões de alta, assim como acesso à correspondência.- art. 147.º, n.º2.
IV) Determinar, ainda, que a sua liberdade para a celebração dos “negócios da vida” corrente seja igualmente restringida – art. 147.º, n.º1.
V) MANTER no exercício das funções de Acompanhante Principal BB (filha do beneficiário);
VI) Designar para Acompanhante Substituto, EE (filho residente do beneficiário), para, além de providenciar pela a administração da medicação prescrita ao beneficiário, ao abrigo do dever de assistência e de prestar informações necessárias à acompanhante quanto todas as questões de saúde ou patrimoniais que tenha conhecimento;
-tomar os necessários atos, quando aquela não possa fazê-lo e/ou lhe peça auxilio para o efeito, designadamente, quanto a questões de saúde do beneficiário.
VII) MANTER no conselho de família CC, esposa do beneficiário, e o filho DD, todos com sinais nos autos.
VIII) Fixar o prazo de revisão da medida em 3 anos, sem prejuízo do previsto no artigo 904.º, n.º2 do CPC.»
*
Inconformado com a decisão, o Beneficiário dela interpôs recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões:
«a) Por sentença proferida no processo n.º 2886/17.0T8GDM, que corre os seus termos junto do Juízo Local Cível de Gondomar - Juiz 2 e datada de 16 de Março de 2022, manteve o Tribunal a quo, as funções de Acompanhante na pessoa da Exma. Sra. BB.
b) O Recorrente, não se conforma com tal entendimento, tendo em conta os factos carreados aos Autos, o total alheamento da mesma tendo em conta a sua indisponibilidade e inércia.
c) O Recorrente manifestou a sua vontade, clara e expressa, na alteração do Acompanhante, tendo, para o efeito indicado como pessoas da sua especial confiança, a sua mulher – CC e o seu filho – EE.
d) Nos termos e para efeitos do n.º 1 do art. 143º do Código Civil, “O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente”.
e) Não tendo o Tribunal a quo logrado atender à escolha do Recorrente.
f) Não obstante, nos termos e para efeitos do n.º 2 do mesmo artigo, “na falta de escolha [que refira-se, não é o caso], o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário”, sendo indicada uma lista de possíveis pessoas a designar para o efeito, devendo ser respeitada a hierarquia aí vertida.
g) Sendo certo que apenas em 5º (quinto) lugar, surgem os “filhos maiores”.
h) Sem prescindir, resulta da prova junta aos Autos, que a Acompanhante nomeada não dispõe de disponibilidade para exercer a função em causa, tendo tal facto prejudicado, séria e gravemente, os interesses do Recorrente, quer a nível clínico, patrimonial e de dignidade.»
Apenas o Ministério Público apresentou contra-alegações, que concluiu assim:
«A sentença recorrida não padece de qualquer nulidade, encontra-se devidamente fundamentada e faz uma análise correcta dos elementos constantes nos autos, bem como uma correcta interpretação dos preceitos legais aplicáveis à situação em apreço
Termos em que, se Vossas Excelências julgarem improcedente o recurso farão a habitual JUSTIÇA.»
O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Como decorre, com meridiana clareza, das conclusões que ficaram reproduzidas, o recorrente, apenas, põe em causa a manutenção da filha BB como sua acompanhante e entende que deve ser nomeado para o cargo quem ele indicou: o seu filho EE ou a sua esposa CC.
São, pois, questões a apreciar e decidir:
- se deve ser removida do cargo a acompanhante BB;
- na afirmativa, quem deve ser designado, em substituição, para o cargo.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
O tribunal considerou relevantes para a decisão e deu como provados os seguintes factos:
1. Nos presentes autos intentados a 15/09/2017, por sentença de 07/06/2018, foi tomada a seguinte decisão:
a) Decretar a inabilitação de AA pelo uso de bebidas alcoólicas;
b) Fixar o início provável da inabilitação em 9 de agosto de 2017;
c) Ao abrigo do disposto no artigo 153.º do Código Civil determina-se que estão sujeitos à autorização do curador: os atos de disposição de bens entre vivos; os atos de administração de eventuais imóveis de que o requerido seja proprietário; a assunção de obrigações pecuniárias (contrair dívidas), que não se reportem a atos de vida corrente e bem assim deverá ser entregue ao curador o rendimento que o requerido auferirá com vista à administração por parte do curador que administrará de acordo com as necessidades do requerido, por forma a evitar o seu desaparecimento com a aquisição de bebidas alcoólicas.
d) Nomeia-se como curadora BB, identificada na petição inicial.
e) Nomeia-se para constituir o conselho de família: CC (sub-curador) e DD (vogal).
2. O beneficiário padece de alcoolismo crónico, síndrome de dependência alcoólica grave.
3. Não cumpre as prescrições médicas de tratamento preconizadas para a sua doença, recusa-se a ir a consultas e abandonou o tratamento no CAT de Gondomar.
4. Nem a mulher nem os filhos conseguem ministrar-lhe a medicação, nem submetê-lo às intervenções terapêuticas/clínicas necessárias, face à sua resistência às mesmas.
5. O beneficiário não tem sentido critico quanto ao seu estado de saúde, sobre consequências da ingestão de álcool para a mesma nem quanto à necessidade de se submeter a tratamentos médicos/terapêuticos/medicamentosos.
6. Recusando ficar internado mesmo quando recomendado pelo médico.
7. No dia 04/05/2021, o beneficiário, levantou nos Ctt vales de correio no valor total de €10.700,00.
8. Com parte desse valor, adquiriu álcool que ingeriu sem qualquer controlo.
9. O beneficiário tem vindo a consumir todo o álcool a que tem acesso e vontade.
10. Deteriorando a sua situação de saúde física e mental, nos termos constantes dos documentos clínicos juntos.
11. Têm chegado a casa cartas das Finanças e de outros credores que o beneficiário destrói ou deita fora.
12. A acompanhante, que tem dois filhos menores a seu cargo, abriu um restaurante perto da casa dos pais.
13. As pessoas que habitam com o beneficiário são a sua esposa CC e o seu filho EE.
14. Nenhum deles deu conhecimento da atribuição de indemnização ao beneficiário nem do levantamento dos vales, nem como tal se processou.
15. A acompanhante não teve acesso às cartas do beneficiário.
16. O beneficiário conseguiu levantar o cartão de cidadão novo, sem conhecimento da acompanhante que tinha ido com ele proceder à sua renovação.
17. A esposa CC e o filho EE saem de casa de manhã, acompanhados do filho FF, ficando o Beneficiário sozinho.
18. Sobre o imóvel do beneficiário e da esposa, casados no regime de comunhão de adquiridos, incidem registos de penhoras a favor da Fazenda Nacional de 11/02/2014, de 29/11/2016, de 27/02/2019 e a favor da credora H..., s.a. datado de 08/02/2019.
Como factos não provados que poderiam relevar para a decisão, forem elencados os seguintes:
a) A acompanhante tenha deixado de dar medicação ao beneficiário e de o acompanhar a consultas e tratamentos por sua iniciativa.
b) A acompanhante não cumpra as suas obrigações por falta de tempo e de vontade.
c) A esposa do beneficiário tenha anomalias psíquicas.

2. Fundamentos de direito
É sabido que, desde 10 de Fevereiro de 2019, está em vigor o Regime Jurídico do “Maior Acompanhado” instituído pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que substituiu os tradicionais institutos da interdição e da inabilitação, até então regulados nos artigos 138.º a 156.º do Código Civil, regime que, nos termos do artigo 26.º, n.º 1, daquele diploma legal tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor, como era o caso.
Tendo sido nomeada curadora do inabilitado AA, a BB passou a ser a sua acompanhante e a aplicar-se-lhe o regime do maior acompanhado, designadamente as normas que regulam a sua remoção e a sua exoneração.
O beneficiário/recorrente censura a decisão recorrida porque o tribunal não teria respeitado a norma do artigo 143.º, n.º 1, do Código Civil que manda que a designação judicial do acompanhante recaia sobre aquele ou aquela que o acompanhado ou o seu representante legal escolher. Só na falta de escolha (e não era o caso, visto que escolheu para exercer o cargo, como pessoas da sua especial confiança, a sua mulher CC ou o seu filho EE) o acompanhamento é, de harmonia com o disposto no n.º 2 do mesmo artigo, deferido à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário (cfr. conclusões d), e) e f)).
Ressalvado o devido respeito, é manifesto o equívoco do recorrente.
A questão precípua a apreciar e decidir não era a designação judicial do acompanhante, porque este já existia, mas saber se havia fundamento para a remoção ou a exoneração da acompanhante BB.
Só uma resposta afirmativa a essa questão justificaria que se passasse ao ponto seguinte, que seria a designação judicial do novo acompanhante.
O artigo 152.º do Código Civil manda aplicar à remoção e exoneração do acompanhante designado inicialmente as normas dos artigos 1948.º a 1950, com as necessárias adaptações.
Trata-se de um incidente que se processa nos próprios autos do processo de inabilitação/acompanhamento.
O acompanhante pode ser exonerado das suas funções, a seu pedido, se sobrevier alguma das causas de escusa, previstas no artigo 1934.º (aplicável ex vi do artigo 144.º, n.º 3, do CC).
Embora não integre o aglomerado de factos provados, é verdade que a BB manifestou indisponibilidade para exercer o cargo de tutora do seu progenitor, para o qual foi inicialmente nomeada.
No entanto, veio a infletir a sua posição e, ouvida no âmbito do procedimento incidental, manifestou vontade e disponibilidade para continuar a exercer as funções de acompanhante.
Essa questão (que o Beneficiário retoma na motivação do recurso, embora não esteja reflectida nas respectivas conclusões) foi assim apreciada e decidida:
«Sendo certo, que a Acompanhante, tinha pedido a exoneração do cargo por requerimento de 07/01/2019, tendo ulteriormente dado a conhecer, no requerimento de 26/11/2021, de que fora advertida pelo Tribunal de que não podia exonerar-se do cargo sem que decorressem cinco anos, isto apesar de não se ter encontrado vertido no processo, a verdade é que, de todo o modo, manifestou aquela, entretanto, vontade em continuar a exercer as funções para que fora nomeada, pelo que fica manifestamente prejudicado o anteriormente peticionado a este respeito».
Independentemente da existência, ou não, de causa(s) de escusa, tendo a BB manifestado vontade de continuar a exercer as funções de acompanhante, fica afastada a possibilidade de exoneração.
Vejamos, então, se há fundamento para a sua remoção.
Importa recordar que foram a mulher CC e o filho EE quem despoletou o incidente, acusando a curadora/acompanhante de não cumprir as suas obrigações, imputação que concretizam assim:
- deixou de dar ao inabilitado a medicação para tratamento da dependência alcoólica, o que levou a que este voltasse aos consumos excessivos;
- no dia 04.11.2021, o inabilitado recebeu quatro vales de correio provenientes da Segurança Social, no montante de €2.500,00 cada um e, com a complacência ou desinteresse da curadora, logrou obter, sozinho, o seu pagamento, ficando, assim, com grande disponibilidade para adquirir bebidas alcoólicas para seu consumo;
- sem a medicação e tendo voltado ao consumo excessivo de álcool, o inabilitado está descontrolado e agressivo;
- o inabilitado deixou de ir às consultas médicas (psiquiatria e médico de família).
Foi com estes fundamentos que requereram que a BB «seja destituída do cargo de curadora».
O Beneficiário, ora recorrente, secunda estas acusações, alegando ser «patente a existência de desinteresse e indisponibilidade da ainda acompanhante» e que a sua manutenção no cargo «colide com a dignidade e melhoramento das circunstâncias que conduziram ao presente processo, desde logo, pela falta de acompanhamento do Recorrente, que culminou em faltas de comparência sucessivas às consultas junto do centro de tratamento de doentes dependentes de álcool, bem como o adensamento de processos de execução fiscal».
Bem pode dizer-se, como se argumentou na sentença recorrida, que «…apesar de o beneficiário assim ter manifestado ser sua vontade mudar a pessoa de Acompanhante, passando a exercer tal cargo a sua mulher ou o seu filho mais novo, fê-lo, manifestamente, porque segundo a sua perceção estas são as pessoas que melhor permitem que o mesmo faça o que bem entende – conforme se evidencia nos termos já relatados, entendendo-se não ser viável neste caso, nomear a esposa para assumir o cargo de acompanhante pois não mostra apta a fazê-lo, para além do que já foi dito, não só porque denota sua fragilidade em termos de idade, como também alguma subserviência ao marido e de alguma dependência do seu filho mais velho, FF, nem o seu filho EE, apesar de viver com o beneficiário, que não conseguiu, conforme reconheceu, até agora tomar as rédeas deste».
Pela sua proximidade existencial, eram a esposa CC e o filho EE quem em melhores condições estavam para tentar evitar os seus excessos com bebidas alcoólicas, pois coabitam na mesma casa. No entanto, nenhum deles deu conhecimento da atribuição de indemnização ao beneficiário nem do levantamento dos vales que lhe permitiram adquirir grandes quantidades de bebidas alcoólicas.
Aliás, vem provado que a esposa CC e o filho EE saem de casa de manhã, acompanhados do filho FF, deixando o Beneficiário completamente sozinho, em roda livre, para fazer o que lhe apetece.
A ideia que emerge destas atitudes é que estes familiares do Beneficiário estão empenhados, não em proteger o acompanhado, mas em desacreditar a acompanhante.
O acompanhante que falte ao cumprimento dos seus deveres ou se revele inapto para o exercício das respectivas funções pode ser removido do cargo.
Para este efeito, importa ter presente que o escopo fundamental do acompanhamento do maior é assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres (artigo 140.º, n.º 1, do CC).
É o artigo 146.º, n.º 1, do CC, que concretiza os deveres de cuidado e diligência que, na «concreta situação», o acompanhante deve respeitar.
Deve o acompanhante pugnar pela defesa da auto-determinação do beneficiário, respeitando a sua vontade e desejos, tanto a nível pessoal, como patrimonial, que não foram judicialmente reservados ou restringidos; prestar, ou assegurar que lhe são prestados, os cuidados devidos, atento o respectivo contexto pessoal, social e ambiental; participar juridicamente na representação legal determinada pelo tribunal.
Para que o acompanhante exerça, de forma plena e com respeito pela lei, a sua função, deverá manter contacto permanente com o beneficiário, tal como impõe o artigo 146.º, n.º 2, do CC, visitando-o, no mínimo, uma vez por mês.
O único facto relevante que vem provado é que a acompanhante tem dois filhos menores a seu cargo e abriu um restaurante perto da casa dos pais.
Não se lobriga como é que este singelo facto pode consubstanciar a violação daqueles deveres.
Como se argumentou na sentença recorrida, «não é porque a acompanhante não está sempre disponível que deve ser afastada do cargo», pois tem uma actividade profissional e filhas para criar. Não obstante, tem demonstrado atenção e cuidado com o pai.
Ainda fundamental é que os demais familiares do acompanhado se consciencializem que, também sobre eles, recaem os deveres legais de assistência e cooperação e por isso exige-se-lhes que, em vez de a desacreditar, auxiliem a acompanhante na tarefa de que, por decisão judicial, foi incumbida.
Concluindo, também não se vislumbra motivo sério para a remoção da acompanhante e por isso andou bem o tribunal a quo ao manter a BB no cargo para que foi nomeada.

III - Dispositivo
Por tudo o exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

As custas do recurso ficam a cargo do recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 24.10.2022
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
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[1] Sentença de 07.06.2018.