Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7495/09.5TBVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: PROCESSO EXECUTIVO
TÍTULO EXECUTIVO EUROPEU
CRÉDITOS NÃO CONTESTADOS
TRIBUNAL DO ESTADO DO LUGAR DA EXECUÇÃO
DECLARAÇÃO DE EXECUTORIEDADE
NATUREZA DA PENHORA
PENHORA DE DIREITO
Nº do Documento: RP201101257495/09.5TBVNG-A.P1
Data do Acordão: 01/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Da conjugação dos citados art°s 38° n°1 e 22° n°5 do Regulamento44/2001, resulta que o “processo executivo” rectius “a execução de bens” deve ter lugar no tribunal do Estado do lugar da execução, precedendo uma declaração de executoriedade, sem qualquer excepção à natureza da execução, ou seja, da penhora, se incidindo sobre um bem ou, como é o caso dos autos, sobre um direito ou crédito.
II - A partir da vigência do Regulamento CE n° 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, que criou o título executivo europeu para créditos não contestados, não tendo o requerimento injuntivo sido objecto de oposição, encontra-se o ora Exequente em condições de obter, no próprio tribunal onde foi requerida a decisão injuntiva, no caso, em Portugal, uma certidão de Título Executivo Europeu, nos termos dos art°s 6° e 9° do Regulamento citado, para que a execução tenha lugar, com base nesse Título, no tribunal do Estado-Membro onde se encontrem os bens a executar.
III - Uma decisão judicial que considere competente para a execução de bens ou direitos em França um tribunal português deve qualificar-se como formalmente inexistente, pois que, ainda que formalmente assumida, revelaria uma falta absoluta de aptidão ou possibilidade de cumprir a respectiva finalidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ● Rec. 7495-09.5TBVNG-A.P1. Relator – Vieira e Cunha. Decisão de 1ª instância de 17/9/10. Adjuntos – Desembargadores Mª das Dores Eiró e João Proença Costa.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de apelação em separado interposta na acção com processo executivo e forma comum nº7495/09.5TBVNG-A, do Juízo de Execução da Comarca de Vila Nova de Gaia.
Agravante/Exequente – B………., S.A..
Executada –C………..

A ora Exequente apresentou contra a ora Executada requerimento injuntivo, ao qual, em tempo oportuno, foi aposta a fórmula executória.
Posteriormente, nos presentes autos de execução fundada em injunção, montando a quantia exequenda a € 28.106,63, foram indicados à penhora os saldos bancários pertencentes à Executada e sediados em instituições bancárias francesas, tendo sido requerido o levantamento do sigilo bancário, nos termos dos artºs 861º-A e 176º C.P.Civ.
Por despacho judicial de 19/1/2010, com a refª ......74, foi deferida a penhora, e por despacho de 24/5/2010, com a referência ......27 foi ordenado que a carta rogatória para cumprimento da penhora fosse cumprida pela Secretaria.
Mais tarde, em 17/9/2010, sobre a matéria recaiu novo despacho, de que agora se recorre, nos seguintes termos:
“Este tribunal não tem competência para proceder à penhora de bens fora do território português.”
“Nestes termos, e pelos motivos expostos, indefere-se a penhora requerida pelo Exequente a fls. 2, ficando prejudicados os despachos antecedentes nesta matéria.”
“Notifique, incluindo o agente de execução.”

Conclusões do Recurso de Apelação (resenha):
1º – A atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses é regulada pelos artºs 65º e 65º-A C.P.Civ.
2º - Ainda que só o artº 65º al.b) se destine especificamente à acção executiva, todo o restante articulado se aplica à acção executiva, por analogia – cf. Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 12ª ed.
3º - Assim, são os tribunais portugueses competentes “quando a execução tiver algum elemento de conexão (objectiva ou subjectiva) com as jurisdições doutros Estados (Amâncio Ferreira, ob. cit., pg. 91).
4º - No caso “sub judice” essa conexão existe, tanto subjectiva como objectiva, porque mesmo que um dos sujeitos tenha sede num país que não Portugal e o objecto da execução aí se encontre, a Exequente é uma sociedade com sede em Portugal.
5º - Nos termos do artº 74º C.P.Civ., as acções destinadas a exigir o cumprimento das obrigações deverão, à escolha do credor, ser propostas no tribunal do local onde a obrigação deveria ter sido cumprida, o tribunal da comarca onde se situa a sua sede.
6º - Trata-se do princípio da coincidência entre a competência interna e a competência internacional – artºs 90º e 94º C.P.Civ.
7º - No mesmo sentido, o Ac.R.L. de 18/2/2003.
8º - No caso dos autos e também segundo a doutrina desse acórdão, e penhora de depósitos bancários volve-se em penhora de uma prestação pecuniária correspondente a um direito de crédito, não se tratando da entrega de uma coisa em espécie determinada.
9º - Por outro lado, o artº 666º nº1 C.P.Civ. faz esgotar imediatamente o poder jurisdicional do juiz, quanto à matéria em causa, assim que é proferida sentença.
10º - O despacho de 17/9/2010, agora em crise, concluiu pela incompetência do tribunal para proceder à penhora de bens fora do território português, incompetência esta que não acontece, como ficou acima expresso, e indeferiu a penhora requerida “ficando prejudicados os despachos antecedentes nessa matéria”.
11º - Ora, os despachos anteriores sobre a matéria tinham já deferido a penhora: o despacho de fls. 19/1/2010, com a refª ......74, que deferiu a penhora, e o despacho de 24/5/2010, com a referência ......27 (que ordenou que a carta rogatória para cumprimento da penhora fosse cumprida pela Secretaria).
12º - Assim, a questão em causa já tinha sido decidida e deferida por dois despachos anteriores do tribunal.
13º - O despacho recorrido desrespeita o princípio da imodificabilidade ou irrevogabilidade da decisão, agredindo o caso julgado.
14º - Neste sentido se pronunciou o Ac.R.L. de 13/5/99.
15º - Também o Ac.R.L. de 6/5/00 fixou jurisprudência semelhante, afirmando que as excepções à imodificabilidade da decisão jurisdicional só são as consagradas expressamente nos artºs 667º, 66º e 744º nº3 C.P.Civ.
16º - Tal princípio é extensível aos despachos – artº 666º nº1 C.P.Civ.
17º - Por outro lado, incumbia ao tribunal especificar quais os fundamentos de direito que estiveram na base desta decisão.
18º - Ora, o tribunal limitou-se a declarar-se incompetente para proceder à penhora de bens fora do território português, sem que o justificasse legalmente, sequer com preceitos legais.
19º - Daí que a decisão seja nula – artº 668 nº1 al.b) C.P.Civ.
20º - Foram violados os citados artºs do Cod. Proc. Civil.

Factos Apurados
Encontram-se provados os factos supra resumidamente expostos, relativos à tramitação processual destes autos e ao teor do despacho recorrido.
Mais se demonstra que a sede social da Executada se situa em França, aí se situando também os estabelecimentos bancários a quem deveria ser solicitada a penhora de “depósitos bancários” requerida nos autos.

Fundamentos
A pretensão da Exequente pode dividir-se nos seguintes itens:
- encontramo-nos perante uma decisão recorrida que é nula, à luz do disposto no artº 668º nº1 al.b) C.P.Civ.?
- sendo o tribunal competente para o procedimento declarativo o tribunal português, a respectiva competência estende-se à execução subsequente e mais à penhora de depósitos bancários a efectuar no estrangeiro, a qual se consubstancia em mera penhora de um direito de crédito, não implicando entrega de uma coisa em espécie determinada?
- de todo o modo, a Mmª Juiz “a quo” violou a regra da imodificabilidade da decisão jurisdicional, do artº 666º nº1 C.P.Civ., princípio extensível aos despachos?
Vejamos detalhadamente.
I
Começaremos, como é comando legal, por conhecer das questões processuais levantadas rectius a nulidade do despacho impugnado – artº 660º nº1 C.P.Civ., sendo certo que, se optar pela verificação da nulidade, deverá este tribunal supri-la, porque invocada perante si (o regime português parte do suprimento das nulidades pelos tribunais de recurso, não optando pelo efeito cassatório do julgamento do recurso, que determinaria a repetição da decisão pelo tribunal recorrido).
Nos termos do artº 668º nº1 al. b) C.P.Civ., é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
A citada causa de nulidade da decisão quadra com o disposto no artº 158º nº1 C.P.Civ., de acordo com o qual as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo devem ser sempre fundamentadas. Os actos jurisdicionais a que se refere o artº 158º nº1 C.P.Civ. são “decisões”, ou seja, nos termos do artº 156º, “despachos” ou “sentenças”.
Mas, conforme Varela, J.M.Bezerra e S. e Nora, Manual, 1ªed., §222, para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta ou não convincente; é preciso que exista falta absoluta de fundamentação, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito. Esta é a doutrina assente do Supremo Tribunal de Justiça, referenciando-se ex abundanti o Ac.S.T.J. 22/1/98 Bol.473/434.
Torna-se necessário que o juiz “não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão” (cf. Varela, Bezerra e S. e Nora, Manual, 1ªed., §222).
Ora, e sem necessidade de outros considerandos, por supérfluos, é essa a hipótese dos autos, em que um despacho se limita a dizer que “este tribunal não tem competência para proceder à penhora de bens fora do território português”, mais a mais quando expressamente revoga outros dois despachos que tinham aceite, ao menos implicitamente, tal competência.
Cabe-nos assim suprir, neste acórdão, a nulidade apontada.
II
As doutas alegações de recurso seguiram os passos de doutrina atinente, todavia, essa a sua pecha, salvo devido respeito, não mencionam a lei atinente.
Por se encontrarem em causa as legislações de países subscritores do Tratado de Roma e seus subsequentes, isto é, de dois países, Portugal e França, que integram a União Europeia, o princípio da lealdade europeia, consagrado no artº 4º nº3 T.U.E., implica que olhemos em primeiro lugar, aos Tratados e actos jurídicos vinculativos da Comunidade, na procura da solução jurídica para a “quaestio” dos autos.
De entre tais actos jurídicos vinculativos, são de salientar os regulamentos, semelhantes à lei dos Estados nacionais, isto é, possuindo carácter geral e sendo de aplicação directa e obrigatória em todos os Estados, nos termos do artº 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia - T.F.U.E. (Tratado de Roma, sucessivamente revisto, até ao Tratado de Lisboa).
Ora, de entre esses Regulamentos, avultava, para o caso concreto de decisões judiciais que devessem ser executadas em país diverso daquele que proferiu a decisão, o Regulamento CE nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, que reproduziu grosso modo os termos da anterior Convenção de Bruxelas.
Este Regulamento, sucessivamente alterado pelos Regulamento CE nº 1496/2002 da Comissão, de 21/8/2002, Regulamento CE nº 1937/2004 da Comissão, de 9/11/2004, Regulamento CE nº 2245/2004 da Comissão, de 27/12/2004, Regulamento CE nº 1791/2006 do Conselho, de 20/11/2006 e Regulamento CE nº 1103/2008 do Parlamento e do Conselho, de 22/10/2008, estabelece que, em matéria de execução de decisões, têm competência exclusiva os tribunais do Estado membro do “lugar da execução” – artº 22º nº5.
As doutas alegações põem em causa este conceito de lugar da execução, pois que, se a penhora de um, depósito bancário se efectiva apenas por uma notificação ao banqueiro, à semelhança da penhora de créditos (que o é, verdadeiramente), então não há lugar a diligências executivas que impliquem “o recurso à força, à coacção ou ao desapossamento de bens móveis ou imóveis, em vista da execução material das decisões dos actos”, diligências estas que se encontram na base da competência dos tribunais dos países onde a execução se efective (cf. F. Amâncio Ferreira, Curso, 5ª ed., pg. 76).
Porém, a norma do Regulamento citado – artº 38º nº1 – refere que “as decisões proferidas num Estado-Membro e que nesse Estado tenham força executiva podem ser executadas noutro Estado membro depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer parte interessada”.
Torna-se manifesto, da conjugação dos citados artºs 38º nº1 e 22º nº5 do Regulamento nº 44 /2001, que o “processo executivo” rectius “a execução de bens” deve ter lugar no tribunal do Estado do lugar da execução, precedendo uma declaração de executoriedade (e sem que se vislumbre, em ambos os normativos qualquer excepção à natureza da execução, se incidindo sobre um bem ou, como é o caso dos autos, sobre um direito ou crédito).
Portanto, para que a entidade bancária se achasse vinculada pela notificação relativa à penhora de um depósito bancário, cumpriria declarar a executoriedade da decisão declarativa ou equivalente no Estado membro da União onde se situasse a agência bancária notificanda e, após, nesse mesmo Estado membro proceder à execução.
III
Isto, que seria assim se levássemos em conta o Regulamento citado, deixou de o ser a partir da plena vigência do Regulamento CE nº 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, que criou o título executivo europeu para créditos não contestados.
Segundo cremos, não tendo o requerimento injuntivo sido objecto de oposição, encontra-se o ora Exequente em condições de obter, à luz do instrumento regulamentar europeu citado, no próprio tribunal onde foi requerida a decisão injuntiva, ou seja, em Portugal, uma certidão de Título Executivo Europeu, nos termos dos artºs 6º e 9º do Regulamento citado.
A execução terá lugar, com base nesse Título, no tribunal do Estado-Membro onde se encontrem os bens a executar rectius a penhorar, ou as entidades a notificar, por força das regras do processo executivo do Estado da execução de bens, nos termos dos artºs 20ºss. do Regulamento.
IV
A decisão recorrida que julgou o tribunal incompetente para proceder à penhora de bens fora do território português ficaria prejudicada por decisões anteriores que tinham determinado a penhora, designadamente através de carta rogatória?
A resposta só poderá ser negativa, e tal porque, se a um determinado órgão jurisdicional falha a competência funcional ou simplesmente decisória sobre certa matéria, tal decisão deve qualificar-se como formalmente inexistente, pois que, ainda que formalmente assumida, ela revelaria uma falta absoluta de aptidão ou possibilidade de cumprir a respectiva finalidade – neste sentido, sobre inexistência formal da decisão judicial, cf. Teixeira de Sousa, Estudos, pg. 217.
Nada existe assim a alterar no decidido, embora pela forma que intentámos fundamentar.

Resumindo a fundamentação:
I - Da conjugação dos citados artºs 38º nº1 e 22º nº5 do Regulamento44/2001, resulta que o “processo executivo” rectius “a execução de bens” deve ter lugar no tribunal do Estado do lugar da execução, precedendo uma declaração de executoriedade, sem qualquer excepção à natureza da execução, ou seja, da penhora, se incidindo sobre um bem ou, como é o caso dos autos, sobre um direito ou crédito.
II - A partir da plena vigência do Regulamento CE nº 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, que criou o título executivo europeu para créditos não contestados, não tendo o requerimento injuntivo sido objecto de oposição, encontra-se o ora Exequente em condições de obter, no próprio tribunal onde foi requerida a decisão injuntiva, no caso, em Portugal, uma certidão de Título Executivo Europeu, nos termos dos artºs 6º e 9º do Regulamento citado, para que a execução tenha lugar, com base nesse Título, no tribunal do Estado-Membro onde se encontrem os bens a executar.
III – Uma decisão judicial que considere competente para a execução de bens ou direitos em França um tribunal português deve qualificar-se como formalmente inexistente, pois que, ainda que formalmente assumida, revelaria uma falta absoluta de aptidão ou possibilidade de cumprir a respectiva finalidade.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar improcedente, por não provado, o recurso de apelação, desta forma se confirmando o despacho recorrido.
Custas pela Apelante.

Porto, 25/I/11
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
João Carlos Proença de Oliveira Costa
(Tem o voto de conformidade da Exmª Desembargadora Drª Maria das dores Eiró, que não assina por não se encontrar presente.)