Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1816/08.5TBVLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
MATÉRIA CONTRATUAL
TRADUÇÃO DOS ELEMENTOS DA CITAÇÃO
NULIDADE DA CITAÇÃO
RECUSA DA CITAÇÃO
Nº do Documento: RP201301151816/08.5TBVLG.P1
Data do Acordão: 01/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – É competente internacionalmente o tribunal português para conhecer um litígio que tenha por objecto matéria contratual quando for o do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.
II – A citação, pelo correio, de uma sociedade sediada em França não é nula se omitir a tradução em língua francesa dos elementos da citação.
III – Se o citando recusar a citação devido a inadequação linguística deverá proceder-se à tradução da documentação expedida.
IV – Contudo, se o destinatário alegar recusar a citação mas se, juntamente com essa declaração, argumentar e discorrer sobre os contornos da demanda demonstrando conhecer os seus termos e agindo como se dela se quisesse defender tem de considerar-se a predita declaração incompatível com o complexo argumentativo da defesa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 1816/08.5TBVLG.P1
Do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Valongo.
REL. N.º 689-A
Relator: Henrique Araújo
Adjuntos: Fernando Samões
Vieira e Cunha
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

“B…, Lda.”, com sede na Rua …, ../.., …, Valongo, intentou, no Tribunal Judicial de Valongo, acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato contra “C…”, com sede em …, Rue …, ….., França, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 38.678,44 €, acrescida de juros de mora sobre o capital de 35.040,56 €, desde a propositura da acção até efectivo e integral cumprimento, com fundamento no fornecimento de diverso material da indústria de serralharia de precisão que a Ré não pagou.

Em 26.05.2008 foi expedida carta-registada para citação da Requerida na sua sede social, onde foi entregue em 30.05.2008 – cfr. fls. 92/93.
Na sequência dessa carta foi apresentado articulado em língua francesa, subscrito pelos Ex.ºs Advogados D… e E….

Notificada desse articulado, a Requerente veio dizer o seguinte:
“Não obstante parte documento junto a fls. 89 e 90 estar redigida em língua estrangeira, resulta inequivocamente de todo o seu teor, nomeadamente do respectivo cabeçalho, que o mesmo constitui resposta à carta que recebeu, para citação, sendo ainda que o mesmo se encontra subscrito por Advogados, embora de uma sociedade de Advogados de Direito francês.
(…)
Verifica-se, porém, que aquele articulado, por ser apresentado em língua francesa, não respeita o disposto no art. 139º-1, o que impede a Autora de exercer o respectivo contraditório.
Para além disso, a Ré não comprova a autoliquidação da taxa de justiça inicial.
Salvo melhor opinião, deve a Ré ser notificada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 486ºA-3 CPC, e bem assim para, no prazo que lhe for concedido, apresentar aos autos cópia traduzida em língua portuguesa, do articulado que produziu, sob a cominação de o mesmo ser desentranhado, com todas as consequências legais.
(…)”.

O Mmº Juiz a quo deferiu esse requerimento e, em 05.01.2009, foi expedida nova carta registada para a Requerida, tendo esta apresentado tradução do articulado apresentado.

Em 18.09.2009, o Mmº Juiz proferiu novo despacho do seguinte teor:
“Constata-se … que não foi junta aos autos procuração outorgada a favor do advogado subscritor da oposição apresentada. Assim, notifique-o nos termos do disposto no art. 40º, n.º 2, do CPC”.

Em 27.01.2010, foi expedida carta-registada à Requerida, notificando-a nos termos do transcrito despacho.

No dia 04.06.2010, o Mmº Juiz exarou o despacho que segue:
“Foram apresentados, em nome da requerida, requerimentos subscritos por mandatário que não juntou aos autos procuração outorgada a seu favor.
Notificado para juntar aos autos procuração, não a juntou em 10 dias nem até ao momento.
Assim, e atento o disposto no art. 40º, n.º 2, do CPC, fica sem efeito tudo o que o mesmo praticou, ordenando-se o desentranhamento de tal processado e sua devolução ao apresentante. (…)”.

Finalmente, em 26.01.2011, foi proferida decisão que, por falta de oposição da Requerida, conferiu força executiva à petição (fls. 124/125).

Notificada dessa sentença, veio a Ré arguir a incompetência internacional do tribunal português, a nulidade da citação e a recusa deste acto.

Por decisão proferida em 05.04.2011, o tribunal da 1ª instância julgou improcedentes as arguições da Ré que, inconformada, logo recorreu.

O recurso foi admitido como sendo de apelação, com efeito meramente devolutivo.

Nas alegações de recurso a apelante conclui do seguinte modo:
DA INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRIBUNAL
1. Estando em causa um contrato de compra e venda de bens, o Autor poderia ter optado entre propor a presente acção no foro do lugar do domicílio da Ré (em França) ou no foro facultativo do lugar da entrega dos bens.
2. No caso concreto, ao contrário do decidido no tribunal a quo, os bens foram entregues em França, pelo que o foro competente sempre será o francês.
3. Nas facturas juntas aos autos vem expressamente referido que o Local de Carga das mercadorias é a morada da Autora e que o Local da Descarga das mercadorias entregues é: …, Rue …, …., France (sede da Ré, ora Recorrente).
4. Os teores da nota de encomenda e das guias de transporte ora juntas como documentos 1, 2 e 3, confirmam inequivocamente que as mercadorias foram efectivamente entregues, como acordado, em … – França.
5. O lugar da entrega dos bens [França] foi um facto alegado pela Recorrente no requerimento de arguição da incompetência absoluta do tribunal, facto esse que a Recorrida não impugnou e aceitou.
6. Sendo o domicílio do Réu, Recorrente, em França, e tendo o lugar da entrega dos bens sido também em França, os tribunais portugueses são absolutamente incompetentes para conhecer deste litígio (cfr. n.º 1 do art. 2º e n.º 1 do art. 5º do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000.
DA NULIDADE DA CITAÇÃO POR PRETERIÇÃO DE FORMALIDADES LEGAIS
1. O acto de citação da Recorrente é nulo por violação das formalidades exigidas pelo Regulamento (CE) n.º 1348/2000, de 29 de Maio de 2000.
2. Com efeito, o acto de citação estava redigido em Português e não estava acompanhado de qualquer tradução que possibilitasse à Recorrente a plena compreensão do objecto do processo, das cominações legais a que se encontrava sujeito e, bem assim, dos termos em que podia apresentar a sua defesa.
3. Além disso não continha a indicação da possibilidade de recusa da recepção do acto de citação pela Recorrente.
4. O acto de citação também é nulo por omissão do prazo dilatório para defesa da Ré, que tem lugar mesmo no procedimento especial previsto no Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro.
5. Por requerimento com data de 12 de Junho de 2008, enviado ao abrigo do art. 8º do Regulamento (CE) n.º 1348/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, a Recorrente arguiu expressa e tempestivamente a nulidade da citação.
6. O pressuposto processual do patrocínio judiciário previsto no Código de Processo Civil não é aplicável aos requerimentos remetidos ao abrigo do art. 8º do citado Regulamento.
7. O requerimento da Recorrente com data de 12 de Junho de 2008 não revela que esta tenha tido conhecimento da causa de pedir da acção nem dos seus meios de defesa.
8. Nesse requerimento a Recorrente recusa a citação, contesta a sua validade e pede que lhe seja remetida uma versão portuguesa do acto de citação, o que constitui o exercício legítimo de um direito que o tribunal recorrido devia ter deferido.
9. Sendo a citação nula e tendo tal nulidade sido arguida legítima e tempestivamente, deve todo o processado subsequente ser anulado e repetida a citação com observância das formalidades legais.
Subsidiariamente …
10. Perante a citação em língua portuguesa, a Recorrente nem sequer tinha o ónus de arguir a nulidade da citação, nos termos do n.º 1 do art. 198º do CPC, mas apenas de recusar o acto de citação nos termos do art. 8º do Regulamento n.º 1348/2000.
11. À citação para estes autos aplica-se o Regulamento n.º 1348/2000, que determina que o citando pode recusar o acto de citação nessa língua, sem, todavia, impor nenhuma formalidade para o exercício do direito de recusa da recepção da citação e sem fazer depender do cumprimento das regras processuais civis portuguesas destinadas a assegurar a regularidade ou suficiência do patrocínio judiciário.
12. A Ré limitou-se, portanto, a comunicar, válida e eficazmente tal recusa, mediante requerimento dirigido ao presente Tribunal, em 12 de Junho de 2008.
13. A declaração emitida pela Ré deve valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (art. 236º do CC).
14. O douto tribunal não pode deixar de interpretar esta declaração da Ré – independentemente da regularidade ou não do mandato judicial – como consubstanciando, inequivocamente, uma manifestação de recusa da citação, devidamente fundamentada no facto de ter sido feita em língua portuguesa e não francesa.
15. O tribunal devia ter considerado a Ré como não citada, notificado a Autora para apresentar tradução da petição inicial e, finalmente, citado a Recorrente em língua francesa.
16. A recusa válida e eficaz da citação por parte da Ré configura uma situação de falta de citação, à luz do art. 8º do Regulamento (CE) n.º 1348/2000, aplicável directamente ao caso em apreço.
17. A falta de citação foi arguida tempestivamente para todos os efeitos legais, entre os quais, a anulação de todo o processado, a renovação da citação e a não operância da revelia da Ré (cf. art. 483º do CPC).

Não houve contra-alegações.
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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente – artigos 684º e 685º-A, n.º 1, do CPC – as questões que importa dirimir são as que seguem:
a) Os tribunais portugueses são incompetentes para conhecer da causa;
b) A citação da Ré é nula?
c) A Ré recusou validamente a citação, o que equivale à falta deste acto?

O DIREITO

Uma nota prévia: o presente acórdão visa dar cumprimento ao determinado pelo douto acórdão do STJ de fls. 468 e seguintes, no qual se determinou que o processo baixasse a esta Relação para conhecer do recurso interposto da decisão da 1ª instância proferido em 05.04.2011, cujas alegações de recurso se mostram juntas a fls. 233 a 258.
Quanto ao recurso interposto para esta Relação da decisão da 1ª instância prolatada em 26.01.2011, o acórdão que dele conheceu é o que consta de fls. 275 a 288.

a) Da incompetência absoluta
De acordo com o artigo 101º do CPC[1] “a infracção das regras da competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras da competência internacional, salvo quando haja mera violação de um pacto privativo de jurisdição, determina a incompetência absoluta do tribunal”.
A incompetência absoluta do tribunal constitui excepção dilatória, cujo conhecimento é oficioso – artigos 494º, alínea a) e 495º, 1ª parte, e ainda o artigo 25º do Regulamento (CE) 44/2001.
A sua procedência conduz à absolvição do réu da instância, nos termos do artigo 288º, n.º 1, alínea a).
Não tendo transitado em julgado a decisão proferida na 1ª instância, em função do recurso interposto pela Ré, é ainda possível o conhecimento da referida excepção invocada por esta.
O artigo 65º, que estabelece os factores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses (cuja competência exclusiva vem definida no artigo 65º-A), concede, no seu proémio, nítida primazia ao direito comunitário ao referir “sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais …”. A mesma prevalência do direito comunitário vem afirmada no Regulamento (CE) 44/2001, convocado para a situação em apreço, quando no artigo 3º, n.º 2, se estatui que contra as regras de competência da normação desse Regulamento não podem ser invocadas as regras de competência nacionais – cfr. ainda o artigo 8º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa[2].
Dado que o presente litígio envolve duas sociedades comerciais sediadas em países diferentes, uma portuguesa (a Autora) e outra francesa (a Ré), sendo ambos os países (Portugal e França) membros da União Europeia aplica-se, necessariamente, o regime do referido Regulamento 44/2001 do Conselho Europeu[3] no que respeita à definição da competência judiciária.
Vejamos o que nele se estipula a esse propósito.
O artigo 2º, n.º 1, inscrito na secção 1, “Disposições Gerais”, do capítulo que disciplina a competência, determina:
“Sem prejuízo do disposto no presente Regulamento, as pessoas domiciliadas no território dum Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.”
O foro do réu constitui, pois, o regime-regra, mas o Regulamento admite que, no domínio contratual, o credor possa demandar o réu devedor no tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação.
Com efeito, na secção 2, relativa às “Competências Especiais”, o artigo 5º estabelece:
“Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro:
1. a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
- no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues;
- no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;
c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a)”.
Este artigo 5º, n.º 1, alude, como se vê, às acções que tenham por objecto matéria contratual, como é o caso da presente acção.
A solução consagrada nessa norma é a do foro do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação. Na falta de convenção em contrário, a alínea b) concretiza o lugar de cumprimento da obrigação em dois tipos de contratos: a compra e venda de bens, em que o lugar que releva é o da entrega dos bens; e a prestação de serviços, em que o lugar relevante é o da prestação dos serviços.
Tal solução obriga a duas tarefas preliminares: primeiro, que se proceda à caracterização do contrato a que respeita a acção, tendo por referência a configuração descrita na petição inicial (causa de pedir); segundo, que se determine qual o lugar do cumprimento da obrigação em litígio ou da obrigação relevante.
Nos artigos 1º e 2º da petição inicial, a Autora alegou que se dedica à indústria de serralharia de precisão e que, no exercício dessa actividade, forneceu à Ré, sob encomenda desta, mercadorias e serviços das qualidades, quantidades e preços das diversas facturas que junta.
Quer se considere que esta alegação configura a existência de um contrato de fornecimento ou de vários contratos de compra e venda (artigos 874º e seguintes, do CC), quer se considere tratar-se de um contrato de prestação de serviços, a competência para a acção pode ser cometida à jurisdição portuguesa se for essa a opção do credor, a coberto do regime alternativo previsto no artigo 5º do Regulamento.
Ora, todas as facturas apresentadas pela Autora, juntas a fls. 14 e seguintes, indicam como local de carga a “N/morada” e, quanto à forma de expedição das mercadorias, consta “Conta e Risco do Cliente”.
Portanto, as mercadorias eram entregues à Ré nas instalações da Autora e por aquela transportadas por sua conta e risco.
Assim, parece-nos incontroverso, à luz da citada disposição do Regulamento comunitário 44/2001, que o tribunal português é o internacionalmente competente para conhecer do presente litígio.
Deste modo, improcede, nesta parte, o recurso.

b) Da nulidade da citação
A apelante suscita também a questão da nulidade da citação por inobservância de algumas formalidades na sua realização, designadamente a ausência de tradução para a língua francesa do acto de citação e dos documentos processuais respectivos, a falta de indicação do prazo dilatório para a defesa e a omissão da menção da possibilidade de recusa da recepção do acto de citação pela recorrente, por falta da dita tradução, tudo nos termo do artigo 8º do Regulamento n.º (CE) 1348/2000, de 29 de Maio de 2000.

Apreciando o primeiro aspecto:
A citação é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi intentada contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender. Deve ser acompanhada de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objecto – artigo 228º, n.ºs 1 e 3.
O acto de citação implica a remessa ou entrega ao citando do duplicado da petição inicial e da cópia dos documentos que a acompanhem, a comunicação de ficar citado para a acção a que o duplicado se refere, a indicação do tribunal, juízo, vara e secção por onde corre o processo, o prazo de apresentação da defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorre se ficar em revelia – artigo 235º.
Uma das espécies de citação pessoal é a que ocorre por via da entrega ao citando de carta registada com aviso de recepção, de modelo oficialmente aprovado, dirigida ao citando e endereçada para sua residência ou local de trabalho ou, tratando-se de pessoa colectiva ou sociedade, para a respectiva sede ou para o local onde funciona normalmente a sua administração – artigos 233º, n.º 2, alínea a), e 236º, n.º 1.
Dispõe o artigo 198º, n.º 1, do CPC que é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei.
“Quando o réu resida no estrangeiro, observar-se-á o que estiver estipulado nos tratados e convenções internacionais” – artigo 247º, n.º 1, do CPC. Só na falta de tratado ou convenção é que a citação é feita por via postal, em carta-registada com aviso de recepção – n.º 2 do mesmo artigo.
Entrou em vigor no dia 31.05.2001, o Regulamento (CE) 1348/2000, de 29.05.2000, que se aplica ao caso vertente[4] – cfr. artigos 1º, n.º 1, e 25º.
Nos termos do artigo 14º do Regulamento, qualquer Estado-Membro tem a faculdade de proceder directamente por via postal à citação de actos judiciais destinada a pessoas residentes num outro Estado-Membro[5].
Diz-se nesse preceito:
“1. Cada Estado-Membro tem a faculdade de proceder directamente, por via postal, às citações e às notificações de actos judiciais destinadas a pessoas que residam num outro Estado-Membro.
2. Qualquer Estado-Membro pode precisar, nos termos do n.º l do artigo 23°, sob que condições aceitará as citações e notificações por via postal”.
Temos, assim, que o Regulamento não exclui, antes admite, a citação ou notificação pelo correio, a menos que o Estado-Membro comunique à Comissão a sua reserva quanto a tal forma de citação ou notificação, como decorre das disposições conjugadas do n.º 2 do art. 14º e 23º, n.º 1.
O Regulamento prevê, com efeito, várias modalidades de transmissão e de citação ou notificação de actos judiciais, para além da transmissão entre entidades de origem e entidades requeridas, com ou sem intervenção auxiliar da entidade central, de que se ocupam exclusivamente os artigos 4º a 11º:
- A transmissão por via diplomática ou consular (artigo 12°);
- A citação ou notificação de actos judiciais por agentes diplomáticos ou consulares (artigo 13°);
- A citação ou notificação por correio (artigo 14º); e
- O pedido directo de citação ou notificação (artigo 15°).
No presente caso foi utilizada a via postal, meio de transmissão previsto no artigo 14º do Regulamento.
Assim, em 26.05.2008, o Tribunal Judicial de Valongo emitiu carta registada com aviso de recepção para citação da Ré, advertindo-a de que dispunha do prazo de 20 dias para contestar, querendo, a acção, sob a cominação de que, na falta de contestação, poderia ser conferida força executiva à petição. Nessa carta, a Ré era também informada de que podia apresentar as provas na audiência de julgamento, de que o prazo era contínuo (só se suspendendo nas férias judiciais) e de que não era obrigatória a constituição de mandatário judicial – cfr. fls. 85.
Vejamos o que se escreveu num acórdão do STJ[6], a propósito de uma situação semelhante à dos autos, envolvendo a citação de uma sociedade comercial sediada em França:
“O artigo 23º do Regulamento, para que o n.º 2 do seu artigo 14º remete, prescreve, além do mais que aqui não releva, que os Estados-Membros devem comunicar à Comissão as informações a que se refere o artigo 14º, e que a última as publicará no Jornal Oficial da Comunidades Europeias.
No que concerne ao artigo 14º do Regulamento, a República Portuguesa comunicou não ter quaisquer reservas a formular, enquanto a República Francesa comunicou sobre a ‘carta registada com aviso de recepção, do qual constem os documentos enviados, ou qualquer outro modo que permita identificar as datas de envio e de recepção, bem como o respectivo conteúdo’ (Jornal Oficial das Comunidades Europeias, C 151/4, de 22 de Maio de 2001).
O que resulta da mencionada comunicação da República Francesa em relação à citação por carta registada com aviso de recepção de pessoas domiciliadas em França é que do aviso de recepção devem constar os documentos enviados, ou algum outro modo que permita a identificação da data do envio e da recepção da carta, bem como o respectivo conteúdo.
Se a República Francesa pretendesse consignar a mencionada exigência de tradução em língua francesa da petição inicial, dos documentos e da nota de citação, certamente teria expressado, como o fez a República da Itália, expressando ser condição indispensável para poder aceitar os actos por via postal que eles fossem acompanhados da tradução em língua italiana (Jornal Oficial das Comunidades Europeias, C 151/9, de 22 de Maio de 2001)”.
Por conseguinte, a omissão de tradução em língua francesa dos elementos da citação da recorrente não integra o vício de nulidade apontado pela recorrente.
De resto, no seguimento da carta-registada, com aviso de recepção, expedida à Ré para a sua citação na sede social, em língua portuguesa (artigo 139º, n.º 1), esta apresentou um articulado de oposição, redigido em língua francesa (fls. 171), entretanto traduzido (v. fls. 174). O texto desse articulado denota que a Ré compreendeu perfeitamente o teor da petição inicial e o conteúdo do acto de citação, tendo inclusivamente alegado que as mercadorias fornecidas pela Autora apresentavam graves desconformidades. Esse articulado de defesa foi, porém, mandado desentranhar e considerou-se sem efeito tudo o que havia sido processado pelos Ex.ºs advogados subscritores, uma vez que não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 40º, n.º 2 (falta de procuração e de ratificação do processado).

No que tange à falta de indicação do prazo dilatório, cumpre dizer o seguinte:
É verdade que no direito processual em geral existem dois tipos de prazos: o prazo peremptório, que consiste no período de tempo dentro do qual um acto pode ser realizado, e o prazo dilatório, que consiste num acrescentamento do prazo peremptório.
O nosso legislador partiu do princípio de que podem haver circunstâncias especiais que justificam um aumento de tempo ao prazo peremptório fixado. Essas circunstâncias encontram-se concretizadas no art.º 252º-A CPC, respondendo às exigências constitucionais de um efectivo direito de defesa e do direito ao contraditório.
Em princípio, o acto de citação deve mencionar, quando seja caso disso e consoante as situações, a dilação a aplicar.
Mas, ao contrário do que se dispõe para a citação edital, em que é obrigatória a menção expressa da dilação (e também de que o prazo para a defesa só começa a correr depois de finda essa dilação – artigo 249º do CPC), a regra geral do processo civil que estabelece os elementos a transmitir ao citando (artigo 235º) não inclui como obrigatória a indicação da dilação, pelo que a falta desta constituirá mera irregularidade da citação[7].
Sempre se dirá, no entanto, que, mesmo que essa falta configurasse nulidade, por susceptível de influir no exame ou decisão da causa, a mesma estaria sanada pelo decurso do tempo, uma vez que apenas foi suscitada em Fevereiro de 2011 – artigos 201º, 205º, n.º 1, e 153º do CPC.

Finalmente, quanto ao terceiro aspecto, relativo à omissão da menção da possibilidade da recusa do acto de citação, não há dúvida de que essa menção constitui formalidade a cumprir na transmissão – artigo 8º do Regulamento –, configurando a sua omissão nulidade da citação – artigo 198º, n.º 1, do CPC.
Contudo, apesar de nada constar sobre esse aspecto na carta-registada expedida pelo tribunal português, a verdade é que a citanda era conhecedora da possibilidade de recusa do acto de citação, como se intui claramente da declaração que emitiu em 12.06.2008 e que trataremos de seguida – artigo 198º, n.º 4, do CPC.

c) Da recusa da citação
Subsidiariamente, a apelante refere que o Regulamento 1348/2000 não impõe nenhuma formalidade para o exercício do direito de recusa da recepção da citação e que, tendo comunicado, válida e eficazmente tal recusa, mediante requerimento dirigido ao presente Tribunal, em 12 de Junho de 2008, deve concluir-se que essa situação equivale a uma situação de falta de citação, à luz do artigo 8º desse Regulamento.
O artigo 8º do Regulamento 1348/2000 reza do modo que segue:
“1. A entidade requerida avisa o destinatário de que pode recusar a recepção do acto se este estiver redigido numa língua que não seja qualquer das seguintes:
a) A língua oficial do Estado-Membro requerido ou, existindo várias línguas oficiais nesse Estado-Membro, a língua oficial ou uma das línguas oficiais do local onde deve ser efectuada a citação ou a notificação; ou
b) Uma língua do Estado-Membro de origem que o destinatário compreenda.
2. Se a entidade requerida for informada de que o destinatário recusa a recepção do acto, nos termos previstos no n.º 1, comunicará o facto imediatamente à entidade de origem, utilizando para o efeito a certidão prevista no artigo 10º, e devolver-lhe-á o pedido e os documentos cuja tradução é solicitada.”
Num estudo publicado na Revista da Ordem dos Advogados[8], Salazar Casanova pronunciou-se sobre o tema da recusa do acto de citação por via postal, nos seguintes termos:
“No que respeita ao acto de citação, o Tribunal Constitucional[9], reconhecendo a sua importância, considera que, tomando-se como padrão um cidadão com diligência e zelo minimamente exigíveis, é de todo inaceitável que, recebida uma carta com aviso de recepção, a parte não procure saber o sentido da comunicação e, sem mais, a remeta para um arquivo. O incómodo que representa a tradução não assume para o Tribunal Constitucional português, uma dimensão relativa inadmissível dos direitos de defesa do citando.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pronunciou-se apenas no sentido de que a pessoa que recebe numa língua que não compreende uma notificação para comparecer deve dispor de tempo e facilidades necessárias para a poder traduzir.
Pode assim defender que, tratando-se de citação postal, salvo declaração em contrário do Estado-Membro (art. 14º/2) o destinatário não se poderá recusar a aceitar a citação ou notificação por não estar o acto traduzido (…)
Parece, de facto, que o Regulamento subtrai ao destinatário o direito de recusar a recepção do acto não traduzido nos casos de citação postal, salvo se o Estado-Membro emitir declaração em contrário. O regime do Regulamento é proteccionista para o cidadão mas não se sobrepõe, pelo menos, nesta modalidade de citação, à vontade do Estado.”
Este entendimento encontra também algum conforto na própria redacção do artigo 8º, no qual se fala sempre em ‘entidade requerida’, parecendo excluir-se do seu âmbito a citação ou notificação por via postal.
Contudo, na primeira actualização das comunicações dos Estados-Membros em conformidade com o disposto no artigo 23.º do Regulamento n.º 1348/2000[10], foi aditado um parágrafo à introdução da Comunicação dos Estados-Membros, com o seguinte teor: “No que diz respeito ao artigo 14º, o facto de um Estado-Membro não ter comunicado quaisquer disposições linguísticas específicas significa implicitamente que são aplicáveis as disposições linguísticas do artigo 8º.”
Daí que no processo n.º C-443/03 do TJUE se tivesse interpretado o n.º 1 do artigo 8º do Regulamento[11] no sentido de que, “quando o destinatário de um acto o recusar por não estar redigido numa língua oficial do Estado-Membro requerido ou numa língua do Estado-Membro de origem que esse destinatário compreenda, o remetente pode sanar essa deficiência enviando a tradução solicitada … no prazo mais curto possível”.
Daí também que se tenha decidido, no acórdão desta Relação de 14.11.2011[12], que, por via desse aditamento, surgido da necessidade de o legislador comunitário esclarecer que, mesmo que o Estado-Membro não tenha comunicado a necessidade de tradução do acto para as línguas referidas no artigo 8.º, o destinatário tem o direito de recusar a recepção do acto se este não estiver redigido em conformidade com o preceito, se imponha à entidade de origem o dever de avisar o destinatário nesse sentido.
Desse modo, verificando-se a recusa do acto do citando ou notificando, devido a inadequação linguística, o procedimento a seguir, necessariamente adaptado aos casos de transmissão pelo correio, é o que consta no n.º 2 do artigo 8.º, ou seja, terá de proceder-se à tradução da documentação expedida.
Portanto, não tendo havido, no caso em apreço, tradução dos documentos enviados por via postal, poderia a Ré citanda recusar o acto de citação.
Ciente disso, pretende a recorrente que se considere como recusa da citação a declaração por si emitida no articulado datado de 12.06.2008 (cfr. fls. 171/172).
No parágrafo 4º desse articulado pode ler-se:
“En outre, elle n’a pás eté destinataire d’une traduction en français et conteste la validité de la remise du courrier joint”, frase esta traduzida para português nos seguintes termos (fls. 174): “Além disso, ela não foi destinatária duma tradução em francês e contesta a validade da entrega do correio em anexo”.
Nada opomos a que se considere esta fórmula como consubstanciando uma recusa de citação, por parte da Ré citanda, em virtude de não ter sido traduzida para a língua francesa a petição inicial e os documentos apresentados pela Autora.
Só que essa declaração surge integrada num complexo alegatório em que a Ré recorrente, a par da arguição da incompetência internacional dos tribunais portugueses, contesta a pretensão da Autora, negando dever-lhe o que quer que seja e arrogando-se até titular do direito a uma indemnização em virtude de desconformidades detectadas nos artigos fornecidos por esta última.
E, no final desse articulado, a Ré pede ‘desculpa’ por ter usado a língua francesa, justificando esse facto com a urgência na prática do acto, imposta de acordo com “o correio enviado” – cfr. fls. 171/172 e 174.
Pois bem.
Ao contrário do que fez com a declaração negocial (artigos 9º e 236º, n.º 2, do CC), o legislador não construiu um sistema de interpretação dos actos de processo.
Existem, no entanto, algumas normas processuais que contêm regras adjuvantes da percepção do sentido do acto processual praticado, quando permaneçam dúvidas quanto à sua inteligibilidade ou alcance. Referimo-nos concretamente aos artigos 193º, n.º 3, 266º, n.º 2 e 669º do CPC, respeitantes, respectivamente, às nulidades dos actos das partes, aos poderes do tribunal e à aclaração da sentença.
Neste campo, o artigo 193º, n.º 3, fornece um contributo fundamental.
De acordo com essa norma, se o réu arguir a ineptidão da petição inicial com fundamento na alínea a) do n.º 2, mas ainda assim contestar, não será julgada procedente a excepção se, ouvido o autor, se concluir que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
Existe um paralelismo evidente entre o disposto no artigo 236º, n.º 2, do CC e no artigo 193º, n.º 3, do CPC.
Veja-se o que Paula Costa e Silva[13] escreve sobre a matéria:
“De acordo com o art. 236º/2 do CC, a declaração emitida vale com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário. O que significa que pode existir uma total descoincidência entre a vontade real e a vontade tal como foi ou aparece declarada. Neste caso, e porque o declaratário sabe exactamente aquilo que o declarante pretende, passa-se por cima do texto, valendo a declaração eventualmente com um sentido que aquele nem sequer comporta.
O que encontramos no art. 193/3 é algo de semelhante. Também neste caso a petição vale de acordo com o sentido real que o autor pretendia atribuir-lhe. A interpretação (no caso de ininteligibilidade) ou a integração (no caso de falta) realizadas pelo réu mostram que ele atribuiu o sentido correcto à imprecisa ou incompleta forma de expressão do autor.
Tanto num caso, como no outro, o sentido do acto pode ser fixado contra o texto.”
Transportando estes ensinamentos para a hipótese dos autos, a declaração emitida pela Ré não pode surtir o efeito processual que reclama.
Com efeito, se o destinatário declara recusar a citação, mas se, juntamente com essa declaração, argumenta e discorre sobre os contornos da demanda, demonstrando conhecer os seus termos e agindo como se dela se quisesse defender, tem de considerar-se a predita declaração incompatível com o complexo argumentativo da defesa no qual se inclui.
Aliás, ex abundanti, deve dizer-se que, posteriormente à entrega desse articulado, escrito em língua francesa, a Ré foi notificada para proceder à sua tradução para a língua portuguesa, cumprindo essa determinação do tribunal.
A defesa, por excepção e impugnação, deduzida pela Ré só não foi atendida pelo tribunal recorrido, porque a Ré, apesar de notificada para o efeito, não juntou aos autos a competente procuração outorgada a favor do ilustre advogado subscritor desse articulado, nem ratificou o que por este foi processado, no prazo que lhe foi determinado pelo tribunal e sob a cominação estabelecida no artigo 40º, n.º 2, do CPC.
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III. DECISÃO

Assim, julga-se improcedente o recurso de apelação interposto pela Ré da decisão proferida pela 1ª instância em 05.04.2011, confirmando-se esta.
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Custas pela apelante.
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PORTO, 15 de Janeiro de 2013
Henrique Luís de Brito Araújo
Fernando Augusto Samões
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
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[1] Diploma a que pertencem, doravante, todas as disposições legais sem menção contrária.
[2] “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático”.
[3] A entrada em vigor deu-se no dia 1 de Março de 2002.
[4] O Regulamento 1393/2007, que o revogou, apenas iniciou o seu período de vigência em 13 de Novembro de 2008.
[5] Tal como sucede, aliás, no âmbito do mesmo artigo 14º do Regulamento 1393/2007.
[6] Acórdão de 26.02.2004 (Salvador da Costa), no processo n.º 04B277, em www.dgsi.pt
[7] Cfr. acórdão do STJ de 08.03.2000, no processo n.º 99S047, em www.dgsi.pt
[8] “Regulamento (CE) n.º 1348/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000. Princípios e Aproximação à Realidade Judiciária”, Ano 62, Dezembro de 2002, páginas 798 a 800. Cfr., ainda, o acórdão da Relação de Lisboa, de 15.03.2001, CJ, Ano XXVI, Tomo II, página 75.
[9] Cfr. acórdão n.º 632/99, de 17.11., no BMJ 491, página 55.
[10] Cfr. Jornal Oficial das Comunidades 2001/C 202/07), de 18.07.2001, disponível em eur-lex.europa.eu
[11] Inspirando o actual n.º 3 do artigo 8º do Regulamento 1393/2007 – cfr. Carlos de Melo Marinho, “As citações e Notificações no Espaço Europeu Comum, em Revista Julgar, n.º 14.
[12] No processo n.º 8275/08.0TBMAI.P1, em www.dgsi.pt
[13] “Acto e Processo”, páginas 388/389.