Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
971/11.1GBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAUL ESTEVES
Descritores: LEGÍTIMA DEFESA
EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA
Nº do Documento: RP20150304971/11.1GBMTS.P1
Data do Acordão: 03/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Atua com excesso de legítima defesa não censurável o agente que foi conduzido a um local ermo, isolado e escuro e quando o ofendido, empunhando uma navalha, se dirige a si num comportamento típico de quem procura atingi-lo no corpo, reage e desfere diversas pancadas na cabeça com um “macaco de elevação” que tinha junto de si.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência os Juízes que integram o Tribunal da Relação do Porto

1 Relatório

Nos autos de Processo Comum Colectivo nº971/11.1GBMTS que correu termos no 3º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Matosinhos, foi proferido acórdão que:
Absolveu o arguido B… da prática de um crime de roubo, previsto e punível pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal;
Absolveu o arguido B… da prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punível pelo art. 365º, nº 1, do Código Penal;
Condenou o arguido B…, como autor de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143º, nº 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, com o quantitativo diário de € 6,00 (seis euros), perfazendo a quantia global de € 600,00 (seiscentos euros).
Julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante C… e, consequentemente, condenou o demandado B…, a pagar-lhe a quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, calculados desde a notificação do pedido até integral pagamento.

Não conformado, veio o arguido interpor recurso, alegando para tanto o que consta de fls.382 e seguintes dos autos, concluindo, em suma, nos seguintes termos:

A) A factualidade assente deveria ter sido subsumida em moldes diferentes daqueles que foram levados a cabo pelo Tribunal, verificando-se, no caso, ter a conduta do recorrente sido justificada por uma situação de legitima defesa e consequentemente a decisão recorrida haveria de ter absolvido o recorrente do crime pelo qual foi condenado, bem como do pedido cível que o ofendido formulou contra ele.
B) Assim não se entendendo, a pena de multa aplicada ao arguido mostra-se desajustada, devendo ser aplicada uma pena de Admoestação.

O Ministério Público junto do Tribunal de 1ª Instância respondeu ao Recurso, pugnando pela sua improcedência.

Neste Tribunal o Digno Procurador geral adjunto teve vista nos autos, emitindo parecer no sentido igualmente da improcedência do recurso.

Foram os autos aos vistos e procedeu-se à Conferência.

Cumpre assim apreciar e decidir.

2 Fundamentação

Resultam provados e não provados, bem como se fundamentou a convicção do Tribunal nos seguintes termos:

I. Da acusação:
2.1. No dia 24 de Dezembro de 2011, cerca das 02h45, numa artéria próxima da Estação … de …, na Maia, o arguido, que conduzia o seu veículo automóvel ligeiro de passageiros “Seat …” com a matrícula ..-..-AT, foi interveniente em acidente de viação com o ciclomotor com a matrícula .-MTS-..-.., conduzido pelo ofendido C….
2.2. O arguido ofereceu boleia ao ofendido C…, para o levar a casa, e este aceitou, com o intuito de o ofendido preencher, na declaração amigável de acidente, os dados relativos ao seguro de circulação rodoviária que o ofendido alegou ter (seguro esse que não tinha).
2.3. O ofendido C… foi indicando ao arguido o percurso a seguir até que, chegados a …, em Matosinhos, num local ermo, isolado e escuro, o ofendido disse ao arguido para parar o veículo, o que este fez.
2.4. Nessa altura, o ofendido empunhou então uma navalha, fazendo menção de com ela atingir o arguido, ao que este, com o intuito de se defender, muniu-se de um macaco de elevação que detinha junto de si e com este desferiu várias pancadas na cabeça do ofendido C….
2.5. O arguido provocou ao ofendido C… uma ferida com cerca de 2,5 cm de comprimento no couro cabeludo, ao nível da região parietal esquerda, múltiplas escoriações na região occipital, escoriação na metade direita da região frontal da face, equimose periorbitária à esquerda, edema e escoriação na região malar esquerda, edema acentuado na região pré-auricular esquerda, ferida com 2 cm de comprimento junto da implantação do pavilhão auricular esquerdo.
2.6. Tais lesões determinaram ao ofendido C… dez dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral.
2.7. O arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida.
2.8. No dia 25 de Dezembro de 2011, à tarde, o arguido dirigiu-se à Esquadra da P.S.P. de Matosinhos e, às 15h23, apresentou queixa contra o ofendido C…, que identificou como “condutor da viatura com a matrícula .-MTS-..-..”, alegando que: a) no dia 24 de Dezembro de 2011, cerca das 02H45, na Maia, a viatura com a matrícula .-MTS-..-.. e o veículo automóvel conduzido pelo arguido foram intervenientes em acidente de viação; b) como o “condutor da viatura com a matrícula .-MTS-..-..” não tinha os documentos do veículo, o arguido ofereceu-lhe boleia até casa para que depois, na posse desses documentos, pudessem preencher a declaração amigável de acidente de viação; c) quando chegaram à Rua …, em …, o “condutor da viatura com a matrícula .-MTS-..-..” agrediu o arguido com uma faca de ponta e mola, atingindo-o na zona abdominal e rasgando-lhe a roupa; d) o “condutor da viatura com a matrícula .-MTS-..-..” disse ainda ao arguido que se ele fosse à polícia o matava; e) perante isso, o arguido, para se defender, pegou no macaco do seu veículo e bateu com ele na cabeça do “condutor da viatura com a matrícula .-MTS-..-..”.
2.9. O arguido actuou com o intuito conseguido de com tal denúncia ser instaurado um processo criminal contra C…, pois tal denúncia deu origem ao processo 970/11.3GBMTS e, no seu âmbito, C… foi constituído e interrogado na qualidade de arguido.
II. Do pedido de indemnização civil:
2.10. O ofendido trazia consigo uma bijutaria de valor de pelo menos € 8,00 e um telemóvel.
2.11. O ofendido sofreu dores, quer no momento da agressão, quer nos dias que lhe seguiram.
III. Condições pessoais do arguido:
2.12. O arguido frequentou o sistema de ensino sem registos significativos até ao 7º ano de escolaridade, altura em que passou a manifestar alguma desmotivação com uma retenção, factores que o conduziram a uma escolaridade alternativa, passando a frequentar uma formação na área da jardinagem, que lhe conferiu a equivalência ao 9º ano de escolaridade.
2.13. Após a conclusão da formação, o arguido iniciou a actividade laboral remunerada como ajudante de serralheiro na empresa “D…”, em …, onde foi trabalhando em regime de contratos a termo certo.
2.14. Posteriormente, cumpriu um contrato numa empresa de construção civil, tendo após a conclusão da obra regressado à refinaria, ficando inactivo em Dezembro/2012.
2.15. À data de 24/11/2011, o arguido B… estava num período inactivo laboralmente, na sequência do termo de um contrato de trabalho que o vinculava à refinaria “D…”.
2.16. O arguido reside na companhia da mãe, num apartamento arrendado com adequadas condições de conforto e de habitabilidade, sendo o relacionamento familiar equilibrado.
2.17. Celebrou contrato de trabalho por tempo indeterminado com uma empresa de trabalhos temporários, iniciando no dia 1 de Fevereiro de 2013 trabalho como ajudante de serralheiro numa obra na E….
2.18. O arguido trabalha actualmente como operário da construção civil, apresenta um percurso de vida equilibrado, e dispõe no meio de inserção de uma imagem social positiva.
2.19. O arguido não tem antecedentes criminais.
*
Não se provaram os seguintes factos com relevância para a decisão:
A) constantes da acusação:
- Que o referido ciclomotor ficou impossibilitado de circular;
- Que na ocasião referida em 2.2. o arguido disse que se estava a sentir mal, saiu do veículo, dirigiu-se à bagageira e retirou daí um macaco de elevação;
- Que seguidamente, regressou ao lugar do condutor e, dizendo que continuava a sentir-se mal, pediu a C… que telefonasse à mãe dele, indicando-lhe o número;
- Que convencido que o arguido estava mal disposto, C… pegou no seu telemóvel e começou a digitar o número que o arguido lhe indicou;
- Que nessa altura, o arguido, exibindo o macaco de elevação, disse a C… “dá-me o fio, senão mato-te”;
- Que receoso e temendo pela sua integridade física, C… entregou ao arguido o fio que trazia ao pescoço e que, embora parecesse ser de ouro, era bijuteria;
- Que depois, C… saiu do veículo e tentou fugir mas o arguido, antevendo que aquele detinha outros bens, foi atrás dele;
- Que na ocasião referida em 2.4. o arguido desferiu pancadas em outras partes do corpo do ofendido;
- Que quando C… caiu no chão, inanimado, o arguido retirou-lhe a carteira, que continha apenas documentos, e o telemóvel “Nokia”, com o valor de 120€;
- Que o arguido quis integrar, como integrou, todos os referidos bens na sua esfera patrimonial, não obstante saber que eles não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade do seu dono;
- Que o arguido provocou no ofendido escoriação (com 4 cm por 2 cm) no cotovelo esquerdo e escoriação na face anterior do joelho;
- Que, quando apresentou a denúncia referida em 2.7., o arguido tinha perfeito conhecimento de que os factos nela vertidos não correspondiam à verdade, pois sabia que denunciava a prática de um crime, nomeadamente o de ofensa à integridade física qualificada, que não tinha sido cometido;
- Que para além disso, o arguido pretendeu, com a apresentação dessa denúncia, eximir-se das suas responsabilidades e imputar à verdadeira vítima um crime que esta nunca cometeu, bem sabendo que esta sua conduta era proibida;
B) Constantes do pedido de indemnização:
- Que o demandante sofreu dores durante mais tempo do que os dias referidos supra;
- Que o demandante é uma pessoa bastante querida por todos aqueles que com ele convivem tendo sempre pautado a sua conduta por estritas regras morais;
- Que o arguido havia amaçado de morte o demandante, como forma de o constranger à entrega de um fio de ouro;
- Que o demandante estava apavorado;
- Que quando foi atingido pelo arguido, o demandante sentiu-se aterrorizado, temeu pela vida e experimentou uma sensação de medo como havia sentido e que nunca mais esquecerá;
- Que o arguido desferiu pancadas até o demandante perder os sentidos;
- Que o demandante ficou profundamente marcado pelo crime;
- Que era uma pessoa alegre comunicativa e bem disposta e tornou-se uma pessoa triste, desanimada e psicologicamente abatida, introvertida e deprimida;
- Que até à data de hoje o demandante se recusa a sair de casa à noite e mesmo de dia evita sair sozinho;
- Que nas ocasiões em que sai, não se permite esquecer por um minuto que seja, a agressão que o vitimou;
- Que caminha em constante vigia, olhando regularmente para trás e assustando-se com o simples barulho do motor dos automóveis que por si passam;
- Que sempre que se cruza com algum desconhecido, o demandante não consegue deixar de pensar se não será ele também um potencial agressor.
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Não se provaram outros factos relevantes para a decisão, cumprindo aqui referir que a generalidade das demais alegações constantes da acusação e do pedido de indemnização civil, não expressamente acima referidas no elenco dos factos provados ou não provados, assumem natureza conclusiva ou de Direito, ou carecem de qualquer relevância para a decisão de mérito.
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O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto das provas produzidas, nomeadamente com base nas declarações do arguido, nas declarações do demandante, nos depoimentos das testemunhas inquiridas, diligências documentadas nos autos, exames periciais e documentos juntos.
Assim, o Tribunal valorou as declarações do ofendido C… que além do mais confirmou ter sido interveniente num acidente de viação, após o que o arguido chamou uns amigos para fazer a participação amigável ao seguro.
Declarou ainda o ofendido que o arguido se ofereceu para o levar a casa, bem como que, a cerca de 200 metros da casa do declarante, saiu da viatura do arguido e que este veio com o macaco no ar, dando-lhe com ele na cabeça.
Mais declarou o ofendido que o arguido lhe disse para lhe dar o fio de fantasia que senão o matava.
Além disso, o mesmo ofendido confirmou que tinha bebido, mas que estava lúcido.
No entanto, referiu não se recordar se ia a conduzir o ciclomotor.
Esclareceu que, na declaração amigável, faltavam os elementos do seguro, que reconheceu que não tinha, bem como que foi o declarante quem indicou o caminho a seguir ao arguido, e que lhe disse para parar o veículo, mas que este o levou para outro sítio ermo.
Referiu ainda que o arguido lhe levou o fio, a medalha e os documentos.
Foi considerado o depoimento da testemunha F…, mulher do ofendido, que referiu que o ofendido chegou a casa cheio de sangue e que chamou a ambulância.
Afirmou a mesma testemunha que a ambulância parou no local onde teriam ocorrido os factos, a uns cinco minutos a pé de sua casa, onde foram encontrados o telemóvel, o macaco, e os documentos do ofendido.
Referiu ainda a mesma testemunha que os dias seguintes ao sucedido foram complicados, em que o ofendido se queixava de dores, sem que tenha notado qualquer alteração no seu comportamento.
Foi igualmente valorado o depoimento da testemunha G…, filha do ofendido, que confirmou que quando chegou a casa, o ofendido tinha sangue por todo o lado e estava a perder os sentidos, esclarecendo que as lesões se situavam todas na zona da cabeça.
Confirmou igualmente a mesma testemunha que a ambulância onde seguia o ofendido parou perto ainda de sua casa, e que o bombeiro conseguiu então aí encontrar o macaco, os documentos, uma carteira e uma caneta.
Referiu ainda a mesma testemunha que o ofendido sofreu dores e que o mesmo andava de noite com medo, tendo medo de reviver a situação.
Esclareceu ainda que o local em causa era um descampado e que a sua casa era uma das mais próximas daquele local.
O Tribunal considerou por outro lado, o depoimento da testemunha H…, irmã do arguido, que afirmou em síntese ter estado com o arguido de manhã, quando este regressou do Hospital de S. João, tendo visto que aquele tinha umas arranhadelas quando levantou a camisa, que tinha a camisa rasgada e cheia de sangue.
O Tribunal valorou ainda as declarações prestadas pelo arguido, que afirmou ter sido interveniente no acidente em causa, e que ele e o ofendido decidiram fazer uma declaração amigável.
Confirmou o arguido que chamou o I… ao local, que aí apareceu com o filho, e que o ofendido disse que não tinha documentos e que os tinha em casa.
Afirmou ainda o arguido que aceitou levar o ofendido a casa, que este entrou no veículo e lhe foi indicando o caminho a seguir e que, a certa altura, o mandou parar.
Mais afirmou o arguido que de um momento para o outro, o ofendido lhe desferiu dois golpes superficiais com uma navalha, ao que o arguido entrou em pânico, pegou no macaco e lhe deu com o macaco por uma vez só.
Esclareceu que puxou o ofendido para o exterior do carro e o deixou ali, após o que se dirigiu à GNR de ….
Esclareceu ainda que depois daquela pancada, o ofendido estava consciente, bem como confirmou que no dia 25 foi fazer queixa, porque no dia 24 não ficara nada escrito.
Afirmou igualmente o arguido que o ofendido aparentava estar um “bocado com álcool”, que este lhe apontou a navalha ao pescoço e lhe disse que tinha ali a sua matrícula e que, se fosse à polícia, descobriria a sua morada e o matava, bem como que lhe disse que não tinha seguro.
O Tribunal considerou ainda o depoimento da testemunha I…, que afirmou que o arguido lhe ligou, dizendo que tinha tido um acidente, ao que se dirigiu com o seu filho ao local.
Afirmou a mesma testemunha que ajudou os dois a preencher a declaração amigável, mas que o ofendido referiu que tinha os documentos em casa, pelo que sugeriu que o arguido o levasse a casa, a fim de acabarem de preencher aquela declaração.
Esclareceu a mesma testemunha que o ofendido estava esmurrado na mão e na face, e que lhe doía o joelho, bem como que o mesmo estava totalmente embriagado, cheirando a álcool.
Por outro lado, o Tribunal valorou o auto de apreensão de fls. 11, o relatório de exame do LPC de fls. 108 a 109, e 156 e 157, a declaração de fls. 208 e a informação de fls. 73.
No que respeita às lesões sofridas pelo ofendido, foram ainda considerados a ficha de urgência do Hospital de fls. 26 a 27 e os exames periciais do INML de fls. 37 a 39, fls. 200, e fls. 269 a 271, e ainda os elementos clínicos de fls. 263 a 265.
Atendeu-se ainda à ficha de urgência relativa ao arguido, bem como o resultado do exame realizado no INML, de fls. 62 e 84, e fls. 147 e 148, respectivamente.
Por outro lado, foi valorado o teor do auto de denúncia de fls. 59 a 61, bem como o teor de fls. 89 a 94 dos autos, quanto aos factos acima descritos em 2.8. e 2.9..
Em conformidade, analisados os referidos meios de prova produzidos, conjugados e entrecruzados entre si, e analisados os mesmos de acordo com as regras da experiência, verifica-se que os mesmo se mostram consentâneos entre si no que respeita à agressão perpetrada e ao local em que esta ocorreu.
Importará nesta sede mencionar que as declarações prestadas pelo ofendido não se mostraram, em vários trechos, coerentes, revelando insegurança, além de que o mesmo não se recordava em termos precisos do que efectivamente sucedeu.
Por seu turno, as declarações do arguido afiguraram-se sinceras, embora o mesmo tenha produzido afirmações que se afiguram inverosímeis, como aquelas em que afirmou ter desferido uma única pancada, quando o teor da ficha de urgência do ofendido e o exame do INML o infirmam e demonstram o contrário.
No entanto, as incongruências são explicáveis pelo estado de perturbação em que o arguido se encontrava na ocasião, por ele afirmada e consentânea com o que é normal suceder em situações como aquela aqui em causa, segundo as regras da experiência comum.
Nestes termos, da conjugação dos aludidos meios de prova, entrecruzados entre si e analisados de acordo com as regras da experiência comum, os mesmos permitiram a formação da convicção positiva do Tribunal quanto aos factos julgados provados acima descritos.
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No que respeita às condições pessoais do arguido, o Tribunal fundamentou-se no relatório social junto aos autos, bem como no depoimento da testemunha J…, que foi chefe dos escuteiros e referiu que o arguido era um dos escuteiros, bem como que este age por impulso.
Atendeu-se ainda o depoimento da testemunha K…, vizinha do arguido há cerca de doze anos, que afirmou que este andava nos escuteiros com o filho da depoente, e que lhe confiava as chaves de casa quando vai de férias.
Foi igualmente valorado o depoimento da testemunha L…, amiga do arguido, que afirmou que este tem bom coração, que é muito franco e muito puro, não é calculista, nem o vê a orquestrar um plano.
Esclareceu que o arguido tem reacções impulsivas, mas que nunca o viu agressivo.
Referiu igualmente que o arguido foi pai há pouco tempo e se encontra a trabalhar na construção civil.
Relativamente aos seus antecedentes criminais, foi considerado o certificado de registo criminal junto aos autos.
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Relativamente à factualidade constante da acusação que não resultou provada, cumpre referir que a prova produzida não permitiu a formação de uma convicção positiva quanto a ela, ou porque não foi objecto de qualquer corroboração, ou porque aquela prova não se mostrou segura e inequívoca nesse sentido.
Assim, o arguido nas suas declarações em audiência, negou ter subtraído o que quer que seja ao ofendido.
Por outro lado, as declarações prestadas pelo ofendido não ofereceram credibilidade, atento o estado em que se encontrava e as incoerências e insegurança demonstradas nas suas afirmações, tanto mais que foi referenciado ter sido encontrado no local o seu telemóvel e os documentos.
Além disso, nenhum outro meio de prova foi produzido quanto a tal matéria, susceptível de corroborar as declarações do ofendido nessa parte.
Assim sendo, a prova produzida em audiência afigura-se insuficiente para permitir concluir que o arguido subtraiu quaisquer objectos ou documentos sob ameaça.
Relativamente aos demais factos que constam da acusação e que foram julgados não provados, cumprirá apenas referir que os mesmos não foram objecto de confirmação segura e inequívoca face à prova testemunhal produzida, nem são corroborados pelos elementos probatórios produzidos.
Do mesmo modo, os factos que foram alegados no pedido de indemnização civil formulado, julgados não provados, não foram confirmados por qualquer dos meios de prova.

Atentas as conclusões do recurso, e que fixam o seu objecto, apenas são colocadas a este Tribunal duas questões, a saber: Se a factualidade assente configura ou não uma situação de legitima defesa que justifica a conduta do recorrente e, em segundo lugar, se a pena aplicada ao recorrente é excessiva.

Vejamos então, começando pela primeira questão, a verificação ou não de uma causa de exclusão da ilicitude consubstanciada na actuação em legitima defesa por parte do recorrente, ou se, havendo excesso de legitima defesa esta é ou não censurável.

Resultou assente, com interesse para a apreciação da questão, a seguinte factualidade que, agora se volta a transcrever, só nesta parte:

2.2. O arguido ofereceu boleia ao ofendido C…, para o levar a casa, e este aceitou, com o intuito de o ofendido preencher, na declaração amigável de acidente, os dados relativos ao seguro de circulação rodoviária que o ofendido alegou ter (seguro esse que não tinha).
2.3. O ofendido C… foi indicando ao arguido o percurso a seguir até que, chegados a …, em Matosinhos, num local ermo, isolado e escuro, o ofendido disse ao arguido para parar o veículo, o que este fez.
2.4. Nessa altura, o ofendido empunhou então uma navalha, fazendo menção de com ela atingir o arguido, ao que este, com o intuito de se defender, muniu-se de um macaco de elevação que detinha junto de si e com este desferiu várias pancadas na cabeça do ofendido C….
2.5. O arguido provocou ao ofendido C… uma ferida com cerca de 2,5 cm de comprimento no couro cabeludo, ao nível da região parietal esquerda, múltiplas escoriações na região occipital, escoriação na metade direita da região frontal da face, equimose periorbitária à esquerda, edema e escoriação na região malar esquerda, edema acentuado na região pré-auricular esquerda, ferida com 2 cm de comprimento junto da implantação do pavilhão auricular esquerdo.
2.6. Tais lesões determinaram ao ofendido C… dez dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral.

Coloca o recorrente a questão de não ter o Tribunal a quo qualificado a conduta do recorrente, tal qual a revelou na factualidade assente, como uma conduta determinada pelo intuito de se defender, sendo os seus actos, actos próprios de legitima defesa, mostrando-se preenchida a previsão constante do artigo 31º nº 1 e 2 al. a) do C.Penal, e como tal excluída a ilicitude do facto, não sendo punido o recorrente.

A questão mereceu tratamento junto do Tribunal de 1ª Instância, vindo este a considerar o seguinte:

É certo que se provou que o arguido se muniu do macaco de elevação que detinha junto de si e com este desferiu várias pancadas na cabeça do ofendido, com o intuito de se defender, após o ofendido ter empunhado uma navalha, fazendo menção de com ela atingir o arguido.
Em conformidade, encontram-se verificados os pressupostos objectivos da legítima defesa.
Efectivamente, da factualidade descrita, resulta demonstrado que: a agressão era iminente e ilícita, na medida em que o ofendido fez menção de atingir o arguido com a navalha que empunhou; a defesa era necessária, porquanto era indispensável para salvaguardar um interesse juridicamente protegido do agente, ora arguido; o arguido agiu com intenção de se defender (V. M Leal Henriques e M. Simas Santos, Código Penal Anotado, 2ª ed., vol. I, pág. 336).
Contudo, entende-se que ocorreu excesso nos meios empregados pelo agente em legítima defesa nos termos e para os efeitos previstos no art. 33º do Código Penal.
Na verdade, considerando o objecto utilizado pelo arguido e suas características, bem como a zona do corpo em concreto atingida, a circunstância de terem sido desferidas várias pancadas na cabeça do ofendido, provocando as lesões acima descritas, com a gravidade e natureza mencionadas, conclui-se que, na sua acção defensiva, o arguido ultrapassou o que se afigurava razoavelmente necessário para repelir a agressão iminente.
Consequentemente, no caso concreto ocorreu excesso dos meios empregados nos termos previstos no citado art. 33º/1, pelo que o facto é ilícito, podendo a pena ser especialmente atenuada.
Com efeito, como se explanou no Ac. STJ de 18-04-2002, proferido no processo 02P854 (disponível no site www.dgsi.pt/jstj): A legítima defesa, como causa exclusória da ilicitude, constitui o exercício de um direito: o direito de legítima defesa que tem, entre nós, assento na Constituição, no Código Civil e está previsto para efeitos penais no art. 32.º do C. Penal. (…) A sua capacidade exclusória da ilicitude depende da verificação dos seguintes requisitos: - agressão actual e ilícita; - defesa necessária e com intenção defensiva. (…) Já o excesso de legítima defesa se situa entre as causas de exclusão da culpabilidade: circunstâncias que impedem que determinado acto considerado ilícito pela lei, seja atribuível de forma culposa ao seu autor, motivos que anulam, pois, o conhecimento ou a vontade do agente. O excesso de legítima defesa, quando o excesso (dos meios empregados em legítima defesa) resultar de perturbação, medo ou susto não censuráveis (art. 33.º, n.º 2 do C. Penal) cabe na inexigibilidade de conduta diversa, actuando no domínio da culpa. Com efeito, ainda que verificados os pressupostos objectivos da legítima defesa, pode-se, porém, exceder - no grau em que são utilizados ou na sua espécie - os meios necessários para a defesa. O «excesso nos meios» de que fala a lei, porque é em regra esse tipo de excesso que ocorre, resultante da perturbação profunda que a agressão provoca no agente deve imputar-se a uma culpa mitigada (ao menos em princípio), susceptível de permitir ao juiz que atenue a pena (art. 33.º, n.º 1 do C. Penal), ou não sendo censurável conduzirá à não punição do agente (art. 33.º, n.º 2 do C. Penal).
Assim, quando o excesso de legítima defesa resulte de medo, perturbação ou susto não censuráveis, cai-se no domínio da não exigibilidade de outra conduta, com a consequente falta de culpa do agente, conduzindo à sua não punição na medida em que não há pena sem culpa (v. M. Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 16ª ed. pág. 161 e Ac. STJ de 18/04/2002 aí citado na pág. 163).
Contudo, como igualmente se decidiu no mesmo Acordão, Como resulta do n.º 2 do art. 33.º do Código, não é qualquer perturbação, medo ou susto que é susceptível de afastar a punição em caso de excesso de legítima defesa. Só assim sucederá quando os mesmos não forem censuráveis. Há, pois, que relacioná-los sempre com a falta de culpa no excesso, que torna o facto não censurável pela via da não exigibilidade, já que sem culpa não há punição criminal.
Acresce que no âmbito dos pressupostos da legítima defesa vale igualmente o princípio in dubio pro reo, no caso "in dubio pro defendente", uma vez que a dúvida sobre a existência de legítima defesa é também necessariamente uma dúvida sobre o facto penalmente ilícito, sobre a ilicitude (…) Em todos estes casos, a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido" (v. Ac. STJ de 21/01/1998, proferido no Processo 97P1189, no citado site).
Ora, no caso em apreço, não se encontra demonstrado que o arguido tenha agido sob um estado emocional susceptível de afastar a sua capacidade de agir de outra forma, na medida em que, em princípio, o agente age sempre em estado de perturbação quando confrontado com a agressão iminente, pelo que apenas quando esta é passível de afastar a censurabilidade no excesso, haverá lugar à não punição.
Em conformidade, não sendo essa a situação demonstrada no caso em apreço, concluímos que se mostram preenchidos todos os elementos típicos objectivos do crime em causa, pelo que, ao actuar como actuou, o arguido se constituiu autor de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143º do Código Penal.

Podemos então concluir, em resumo, que entendeu o Tribunal a quo o seguinte:

1º Mostram-se preenchidos os pressupostos da legítima defesa;

2º O arguido, agiu com excesso de legitima defesa pois “considerando o objecto utilizado pelo arguido e suas características, bem como a zona do corpo em concreto atingida, a circunstância de terem sido desferidas várias pancadas na cabeça do ofendido, provocando as lesões acima descritas, com a gravidade e natureza mencionadas, conclui-se que, na sua acção defensiva, o arguido ultrapassou o que se afigurava razoavelmente necessário para repelir a agressão iminente.”

3º O excesso de legitima defesa mostra-se censurável pois “no caso em apreço, não se encontra demonstrado que o arguido tenha agido sob um estado emocional susceptível de afastar a sua capacidade de agir de outra forma, na medida em que, em princípio, o agente age sempre em estado de perturbação quando confrontado com a agressão iminente”

A questão foi devidamente abordada pelo Tribunal recorrido, tendo sido alinhadas diversas considerações que levaram a configurar um estado de excesso de legitima defesa e, dentro desta, a sua censurabilidade.

Com o devido respeito, contudo, não é esse o entendimento deste Tribunal.

Toda a dinâmica factual descrita na factualidade assente, leva-nos até um local ermo, isolado e escuro (negrito nosso), sendo a hora do ocorrido posterior às 2 horas e 45 minutos da manhã, o que deverá ser ponderado para efeitos de realçar o carácter isolado e escuro do local.

Ou seja, daqui, destas circunstâncias de tempo e lugar pode reconstituir-se com alguma facilidade, um cenário pouco receptivo a gerar qualquer tipo de confiança na possibilidade de uma ajuda de terceiros e também gerador de medos e receios típicos e comuns no homem médio colocado nessa mesma situação.

Importa realçar e vincar, para efeitos de se apurar o estado emocional do arguido, que foi o ofendido que o conduziu até aquele local, ou seja, estava o ofendido na posse de informação sobre o local que o arguido não tinha, sendo normal e humano que tal circunstância fizesse acreditar o arguido que estava em desvantagem perante o ofendido, pois este dominava o local e ele não.

Nestas circunstâncias o recorrente defronta-se com um ofendido que empunhou uma navalha, fazendo menção de com ela atingir o arguido.

Ora, naquele local ermo, isolado e escuro, a meio da noite, e onda apenas o ofendido sabia onde estava, o arguido vê-se sozinho, perante o ofendido que, empunhando uma navalha se dirige a si, num comportamento típico de quem procura atingir o seu corpo.

A navalha é uma arma que apontada ao corpo de alguém desperta especiais medos e receios no visado, sendo conhecido de todos o tipo de ferimento que causa e a potencialidade letal desses mesmos ferimentos.

O arguido, nessas circunstâncias procura defender-se da iminência do ataque e, com esse mesmo objectivo – conforme resultou provado – muniu-se de um “macaco” de elevação que tinha junto de si e com ele desferiu diversas pancadas na cabeça do ofendido.

Ora, com o devido respeito pela posição do Tribunal a quo, não se alcança a apontada censurabilidade, sendo o comportamento do arguido expectável e dentro dos padrões da actuação do homem médio colocado nas mesmas circunstâncias factuais, onde se revelam, forçosamente, medos e receios sobre a sua integridade física e mesmo a vida.

Assim e não podendo ser qualificada de censurável o comportamento do recorrente, haverá de afastar a culpa do recorrente, não havendo lugar à punição nos termos do disposto no artigo 33º nº 2 do Código Penal.

A não punição do arguido, alicerçada na inexistência de culpa, implica igualmente a improcedência do pedido cível que contra si o ofendido formulou, pois os pressupostos da obrigação de indemnizar, a título de responsabilidade civil extra-contratual, não se mostram preenchidos, sendo a ausência de culpa do demandado determinante para a inexistência da obrigação.

Na verdade a obrigação de indemnizar apenas nasce quando se verifica a existência de um facto ilícito, a imputação desse facto ao lesante a titulo de culpa, um dano e um nexo de causalidade entre o facto e o dano – artigo 483º do Código Civil.

O demandante não teve um comportamento culposo, sendo-lhe inexigível comportamento diferente, sendo os danos causados ao demandante originado pelo seu próprio comportamento que, conforme acima referimos, determinaram a conduta do demandado.

Assim, e nesta parte julga-se procedente o recurso, ficando prejudicado o conhecimento da outra questão colocada pelo recorrente.

3 Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e consequentemente revoga-se a decisão recorrida, sendo o recorrente absolvido do crime pelo qual foi condenado, bem como se julga totalmente improcedente o pedido cível contra si formulado.

Sem Custas

Porto, 3 de Março de 2015
Raul Esteves
Maria Manuela Paupério