Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
633/15.0T8AMT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
MUDANÇA DE RESIDÊNCIA PARA PAÍS ESTRANGEIRO DO REQUERENTE
COMUNICAÇÃO AO PROCESSO DO NOVO RMMG
REVISÃO DO VALOR DA CESSÃO
CESSÃO ANTECIPADA DO PROCEDIMENTO DE EXONERAÇÃO
Nº do Documento: RP20211202633/15.0T8AMT.P2
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A mudança de residência do insolvente para um país estrangeiro durante o período de cessão, em sede de exoneração do passivo restante, onde passa a trabalhar numa situação de emigração, mediante uma RMMG de valor diferente da que vigorava em Portugal e com base na qual havia sido calculado o valor do rendimento disponível, deve ser imediatamente comunicada por ele ao tribunal.
II - Não o tendo feito, nem por isso o insolvente fica dispensado de comunicar a Juízo o valor do seu rendimento mensal e de colaborar, de modo sério e responsável, com o fiduciário no fornecimento das informações que lhe forem solicitadas, em ordem ao apuramento do rendimento de cessão.
III - Se, ainda que decorridos vários meses de emigração, o insolvente, informando daquela mudança de residência, emprego e rendimento, requereu a revisão do valor de cessão e a obteve, por decisão que transitou em julgado, mas apenas a contar da data desse requerimento, não pode continuar a defender no processo a aplicação daquela alteração desde o início do período de cessão.
IV - Tendo omitido os pagamentos desde o início do período de cessão, a entrega de documentos traduzidos, o fornecimento daquelas e de outras informações a que estava obrigado no processo, assim tendo impedido o fiduciário de apurar o seus rendimentos, apesar de notificado para o efeito e advertido para as consequências da sua conduta, daí resultando evidente prejuízo para os credores, deve cessar antecipadamente o procedimento de exoneração, nos termos do art.º 243º, nº 1, al. a) e nº 3, do CIRE).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 633/15.0T8AMT.P2 (apelação)
Comarca do Porto Este – Juízo de comércio de Amarante – J 4

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, com o NIF ………, e cônjuge, C…, com o NIF ………, residentes na Avenida … nº …, Entrada ., 2º Esquerdo, ….­… Penafiel, apresentaram-se à insolvência e requereram a exoneração do passivo restante, assumindo expressamente a obrigação de respeitarem todas as condições decorrentes da lei que lhes venham a ser impostas, designadamente aquelas a que se refere o art.º 239º do CIRE[1], disponibilizando-se para cederem parte do seu rendimento que seja considerado disponível.
Declarados aqueles insolventes por sentença de 8.5.2015, teve lugar a assembleia de credores (16.6.2015), na qual foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos devedores, tendo-se concluído o seguinte:
«(…)
Conjugados e ponderados os elementos e as considerações precedentes, decido fixar em 2 (dois) salários mínimos nacional, o correspondente ao razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos insolventes, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 2 e 3, alínea b), i), do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Em consequência, determino que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que os devedores venham a auferir seja cedido ao fiduciário adiante nomeado, nos termos do n.º 2 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
(…).»
Este despacho transitou em julgado.
Decorria o período de cessão de rendimentos, o Banco D…, S.A., veio, por requerimento de 12.07.2021, pedir a cessação antecipada do procedimento de exoneração com fundamento no incumprimento, pelos devedores, dos deveres estabelecidos no artigo 239º, nº 4.
Aberto incidente, pronunciaram-se Banco E…, S.A., credor, o Ministério Público e a Sr.ª Fiduciária no sentido da cessação.
Por seu turno, os devedores negaram a verificação dos pressupostos da cessão daquele benefício.
A 1.10.2021, o tribunal proferiu decisão com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Assim, nos termos conjugados dos arts. 239.º, n.º 4, als. a) e c), 243.º, n.º 1 , al. a) e n.º 3 parte final do CIRE, recuso a exoneração do passivo restante dos Devedores, declarando a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
Publicite e registo (art. 247.º do CIRE).
(…)».
*
Inconformados, apelaram os devedores insolventes, tendo apresentado alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
«1. A decisão proferida não tem fatos que permitam subsumir uma conduta dolosa ou com grave negligência por parte dos insolventes.
2. Os insolventes colaboraram sempre com o processo de insolvência e com a administradora de insolvência.
3. Por requerimento de 9 de Setembro de 2019 os insolventes informaram o Tribunal que a documentação referente aos seus rendimentos já tinha sido enviados à administradora de insolvência no dia 1 de Julho de 2019, com a expressa advertência de que caso fosse necessária a tradução da mesma necessitava de um período de 30 dias. Cfr. Requerimento com a referência 33335648
4. Por requerimento datado de 28 de Novembro de 2019 os insolventes comunicaram ao Tribunal que apesar do esforço que tentaram fazer a sua situação económica não lhes permitia pagar a quantia de 595,00€ pela tradução dos documentos referentes aos seus rendimentos. Cfr. requerimento com a referência 34158804
5. Sucedeu que, os insolventes emigraram para a Alemanha, e somente após 1 anos de permanência naquele país requereram nos presentes autos a indexação do rendimento indisponível ao salário mínimo alemão.
6. Esse atraso motivou que nesse ano, as contas ao rendimento indisponível tenham sido realizadas tendo por referência o salário mínimo português quando os insolventes viviam na Alemanha e auferiam o salário alemão.
7. Feitas as contas, resultou que os insolventes teriam de entregar a quantia de 25.000€, quantia que os insolventes não tinham nem podiam ter, pois emigrados na Alemanha, nunca teriam conseguido sobreviver apenas com a quantia equivalente ao salário mínimo português.
8. É consabido que os insolventes estavam emigrados na Alemanha, pelos próprios recibos de vencimento alemães.
9. A entrega de tais quantias é manifestamente impossível, por não disporem os insolventes de tais quantias, que gastaram no pagamento de despesas essenciais, água, luz, gás, arrendamento, alimentação, vestuário.
10. Afigura-se assim evidente que a quantia de 25000,00€ foi utilizada pelos insolventes para suportar as despesas correntes na Alemanha.
11. Atente-se que aos insolventes foi fixado, após alteração, um rendimento mensal indisponível de 1600€ para cada, totalizando assim 3.200,00€ por mês, o que equivale a um valor anual de 38400,00€.
12. Ora, se contabilizarmos o salário mínimo português (600,00€), para cada um dos insolventes, teríamos uma quantia anual de 14.400,00€ de rendimento indisponível para aquele primeiro ano.
13. Logo, se somarmos a estes 14.400€ a quantia de 25.000€ que é exigida aos insolventes, constatamos que os insolventes gastaram no total a quantia de 39.400,00€ naquele primeiro ano.
14. Então, se o Tribunal lhes fixou para os anos seguintes um rendimento indisponível de 38.400,00€ verificamos que os insolventes gastaram a quantia equivalente ao que lhes foi fixado pelo Tribunal.
15. Assim forçoso é de concluir que aquela quantia de 25.000€ era efetivamente necessária para a sobrevivência do casal, tanto assim é que o Tribunal veio a fixar quantia equivalente para os anos seguintes.
16. Deste modo, tem de ser aceite e assente que os insolventes precisaram da referida quantia para viver e suportar as despesas correntes naquele ano, e como tal não revelam dolo nem negligência na sua conduta.
17. Por outro lado, posteriormente veio a AI exigir que a documentação referente aos salários e recibos de vencimento lhe fosse entregue traduzida em alemão.
18. Os insolventes solicitaram orçamento para a tradução dos documentos em causa e a referida tradução ascendia à quantia de 595€, valor de que os mesmos não podiam dispor.
19. Os insolventes comunicaram que não tinham como suportar os custos da tradução, pelo que nenhuma culpa lhes pode ser imputada.» (sic)
Defenderam assim, os apelantes, a revogação da decisão e a sua substituição por outra que indefira o procedimento de cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
*
A Sr.ª Fiduciária produziu contra-alegações que sintetizou assim:
«a) Os Insolventes visam uma retroação da alteração ao rendimento indisponível para o início do período de Exoneração, tendo esta questão já sido decidida, e já devidamente transitada em julgado, pelo que inexiste qualquer possibilidade de retroagir qualquer alteração para momento anterior àquele em que a modificação foi requerida, mantendo os devedores a dívida de 25.039,19€;
b) Assim, continuam os Insolventes sem dar cumprimento às decisões já proferidas e transitadas em julgado;
c) Continuando, também, em incumprimento o envio da documentação já por diversas vezes solicitada;
d) Os Insolventes desde o início do período de Exoneração, que têm mostrado uma conduta pouco ou nada conforme às advertências feitas pelo Tribunal e Fiduciária, relativamente às obrigações que sobre eles impendem, nunca tendo revelado cautela face aos interesses dos Credores e da Massa Insolvente;
e) Revelando a mesma uma clara violação, pelo menos com negligencia grave, das obrigações impostas pelo artigo 239 nº4 do C.I.R.E;
f) Entendemos que o Douto despacho da qual recorrem os Insolventes não tenha violado o disposto nos artigos 239, 243 e 244 do C.I.R.E., antes tendo sido prolatado em consonância com os referidos preceitos legais, fazendo uma interpretação correta das normas referidas e da matéria de facto constante dos Autos, verificando-se o circunstancialismo previsto no artigo 243°, nº 1, alínea a) e nº 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas por violação dos deveres impostos no artigo 239, n° 4, alíneas. a), c) e d), devendo, por isso, ser determinada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante dos Insolventes
g) Deste modo, nada tendo a apontar ao Douto despacho recorrido, cremos que mantendo o mesmo e negando provimento ao Recurso interposto pelos Insolventes, será feita a costumada Justiça.» (sic)
*
O Ministério Público apresentou contra-alegações onde arregimentou também argumentos na defesa da improcedência do recurso.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do novo Código de Processo Civil[2]).
Impõe-se conhecer e decidir se --- estando em curso o período de cessão de rendimentos --- há fundamento relevante para a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, liminarmente admitido a favor do casal de insolventes.
Para o efeito, os apelantes pretendem o aditamento aos factos provados de dois factos de índole processual, o que irá ser previamente ponderado.
*
III.
O tribunal deu como provados os seguintes factos[3]:
1 – Os Devedores na sua p.i. declararam: “Os Requerentes pretendem a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, para o que declaram expressamente preencher todos os requisitos legais de que depende a sua concessão, e, assumem a obrigação de respeitar todas as condições decorrentes da lei que lhes venham a ser impostas, designadamente as que alude o artigo 239º do CIRE.”
2 - Por despacho datado de 16-06-2015 foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelos Devedores, fixando “em 2 (dois) salários mínimos nacional, o correspondente ao razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos insolventes, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 2 e 3, alínea b), i), do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”. E determinando que “durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que os devedores venham a auferir seja cedido ao fiduciário adiante nomeado, nos termos do n.º 2 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”
3 – Nesse mesmo despacho foram os Devedores advertidos: “Conforme estabelece o n.º 4 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, durante o período de cessão, correspondente aos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, os devedores ficam obrigados a: - Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; - Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; - Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência; - Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.”
4 – A 11.1.2019 a Sra. Fiduciária apresentou o seguinte requerimento: “1. Tendo em consideração de que a ora Fiduciária não dispunha dos elementos necessários à elaboração do primeiro relatório anual, no dia 22/10/2018, a aqui Fiduciária remeteu carta normal aos Insolventes para que estes apresentassem a documentação necessária, cf. Doc. N.º 1 que se junta; 2. Simultaneamente, requereu a ora Fiduciária os bons ofícios do Ilustre Mandatário dos Insolventes para a reunião e envio da documentação necessária, cf. Doc. N.º 2; 3. Por comunicação, via e-mail, o Ilustre Mandatário dos Insolvente informou já ter disponível documentação em alemão quanto aos rendimentos dos Insolventes (que se encontram a residir no estrangeiro), ao qual foi solicitado o envio de tal documentação devidamente traduzida; 4. No entanto, até à presente data nada foi enviado à ora Fiduciária, encontrando-se assim impedida de elaborar o relatório anual; 5. Face a tal, requer a Vossa Excelência se digne ordenar a notificação dos Insolventes e seu Ilustre Mandatário para apresentar a documentação relativa à situação patrimonial dos Insolventes referente ao primeiro ano de cessão, traduzido em língua portuguesa, e ainda informação sobre o domicílio fiscal dos mesmos. 6. Mais requer a Vossa Excelência que a referida notificação seja efetuada com expressa cominação de que nada dizendo serão os Credores e Fiduciária notificados para se pronunciarem acerca da eventual cessação antecipada da exoneração do passivo restante nos termos do artigo 243º do CIRE.”
5 – Em 22.01.2019 foi proferido o seguinte despacho: “Notifique os Insolventes, pessoalmente e através do seu Ilustre Mandatário, do teor da informação de 11-01-2019, devendo aqueles entregar à Srª. Fiduciária, em 10 dias, os elementos relativos à sua situação patrimonial (v.g., comprovativos de rendimentos auferidos, declaração de IRS, comprovativo de inscrição em centro de emprego, comprovativos de subsídios auferidos pelo ISS etc.), em língua portuguesa (devendo os insolventes, caso os documentos se encontrem redigidos em língua diferente diligenciar pela sua tradução para a língua portuguesa) sob pena de poderem ver cessado antecipadamente o procedimento de exoneração do passivo restante que lhes foi liminarmente concedido, por incumprimento dos deveres a que pessoalmente estão vinculados durante o período de cessão.”
6 – Em 11.02.2019, na sequência de requerimento dos Devedores foi prorrogado por 15 dias o prazo para cumprirem o determinado no despacho de 22.01.2019.
7 – Por requerimento de 4.3.2019 os Devedores juntaram os documentos traduzidos e requereram “que o rendimento indisponível de 2 salários mínimos nacionais que lhes foi fixado, seja alterado, para os 2 salários mínimos do país em que se encontram a residir, no caso Alemanha, e que tal indexação produza efeitos desde o início do período de cessão, por já se encontrarem emigrados nessa data.”
8 – Em 2.04.2019 foi proferido o seguinte despacho acolhendo a pretensão de se atender ao SMN da Alemanha, mas produzindo essa alteração apenas efeitos para o futuro. Mais se exarou nesse despacho: “O primeiro relatório anual a entregar pela Srª Fiduciária deverá abranger o período decorrido entre 1 de Julho de 2017 e 1 de Julho de 2018. Assim, pela ultima vez, determino a notificação dos insolventes para, em 10 dias, juntarem aos autos os recibos de vencimento da insolvente C… quanto aos meses de Outubro de 2017 e Junho de 2018 e os recibos de vencimento do insolvente B… quanto aos meses de Abril de 2018, e ainda nota de liquidação quanto aos rendimentos de 2017, sob expressa cominação de, não o fazendo, poder ser desencadeado o procedimento tendente à cessação antecipada do procedimento de exoneração.”
9 - Em 6.05.2019 foi proferido o seguinte despacho: “Despacho de 22-01-2019, req. de 05-02-2019, despacho de 11-02-2019, req. de 04-03-2019, informação de 27-03-2019 e despacho de 02-04-2019: Não tendo os devedores junto aos autos, no prazo concedido, os elementos documentais aludidos no despacho de 02-04-2019, notifique-se a Sr.ª Fiduciária e os credores para, querendo, requererem a cessação antecipada do procedimento de exoneração.”
10 – Em 13.6.2021 foi prolatado o seguinte despacho: “Req. de cessação antecipada de 08-05-2019 e 14-05-2019: Relativamente aos pedidos de cessação antecipada do procedimento de exoneração que se baseavam na falta de entrega de elementos documentais, dado que tais elementos já foram entregues à Exma. Sr.ª AI e que esta já procedeu à elaboração do relatório a que se alude no artigo 240.º, n.º 2 do CIRE, considero extinto o incidente. Notifique.” “Por requerimento de 04-03-2019 vieram os insolventes requerer que o rendimento indisponível de 2 salários mínimos nacionais que lhes foi fixado, seja alterado, para os 2 salários mínimos do país em que se encontram a residir, no caso Alemanha, e que tal indexação produza efeitos desde o início do período de cessão, por já se encontrarem emigrados nessa data. (…) Em face desse aumento do custo de vida, afigura-se justo que para os meses ou proporcionais que os insolventes residam na Alemanha fiquem para si com o equivalente a 2 salário mínimos de tal país, sendo que nos meses em que residam em Portugal deverão apenas ficar com o equivalente a 2 (dois) salários mínimos nacionais, tudo 12 vezes por ano (cfr., em situação em que os insolvente residiam na Suíça, o Ac. da R.P. de 18-02-2013 in www.dgsi.pt., proc. n.º 2160/12.9TJVNF-C.P1). Nos termos e pelos fundamentos expostos, defiro parcialmente o requerido pelos devedores em 04-03-2019 e, em conformidade, determino que nos meses ou proporcionais que os insolventes residam na Alemanha fiquem para si com o equivalente a 2 salários mínimos de tal país, sendo que nos meses em que residam em Portugal deverão apenas ficar com o equivalente a 2 (dois) salários mínimos nacionais portugueses, tudo 12 meses por ano, alteração esta que produz efeitos relativamente à cessão de rendimentos desde 04-03-2019.” “Notifique os Insolventes, pessoalmente e através do seu ilustre Advogado, do relatório que antecede, concedendo-se àqueles o prazo de 10 dias para procederem ao pagamento da quantia de € 25.039,19 que deveria ter sido cedida durante o período de cessão em análise, ou propor o seu pagamento faseado (acordando com a Senhora Fiduciária um plano de pagamentos que deverá ser comunicado ao processo), comprovando nos autos o início do cumprimento desse pagamento em prestações (cujo número de prestações não poderá exceder o número de meses que ainda faltam decorrer até findar o período de cessão), sob pena de poderem ver cessado antecipadamente o procedimento de exoneração do passivo restante que lhes foi liminarmente concedido.”
11 – Foi interposto recurso para que o “despacho proferido ser revogado nessa parte e substituído por outro que determine que a indexação do rendimento indisponível ao salário mínimo na Alemanha produza efeitos desde o início do período de cessão, por já se encontrarem aí emigrados nessa data. 14. Em consequência de tal decisão deve ser ordenada a notificação da Administradora de Insolvência para corrigir o cálculo do rendimento disponível dos insolventes em função da indexação ao salário mínimo da Alemanha, onde residem os insolventes.”. Esse recurso foi julgado improcedente e mantido o despacho da 1.ª instância.
12 – Em 6.07.2019 foi exarado o seguinte despacho: “Por outro lado, não tendo os devedores procedido ao pagamento da quantia identificada no despacho de 13-06-2019, nem requerido o respectivo pagamento faseado no prazo que ali lhes foi concedido, notifiquem-se os credores para, querendo, requererem a cessação antecipada do procedimento de exoneração, através de requerimento fundamentado.”
13 – No dia 8.11.2019 proferiu-se o seguinte despacho: “Considerando que os devedores não procederam ao pagamento da quantia identificada no despacho de 13-06-2019, nem requereram o respectivo pagamento faseado no prazo ali concedido, notifiquem-se novamente os credores para, querendo, requerem a cessação antecipada do procedimento de exoneração, através de requerimento fundamentado. (…) Relatório/informação anual de 08-08-2019, requerimento/informação da Exma. Sr.ª Fiduciária de 04-09-2019 e requerimento dos devedores de 09-09-2019: Considerando o tempo entretanto decorrido, notifiquem-se os devedores para, em 10 dias, procederem à entrega à Exma. Sr.ª Fiduciária da tradução dos documentos constantes do requerimento de 04-09-2019. Decorrido o prazo concedido aos devedores, notifique-se a Exma. Sr.ª Fiduciária para, em 10 dias, completar o relatório/informação anual atinente ao 2.º ano de cessão de rendimentos.”
14 – Em 27.01.2020 foi proferido o seguinte despacho: “Reqs. de 22-11-2019 e de 13-12-2019: É dever dos insolventes informar a Sr.ª Fiduciária e o Tribunal acerca dos rendimentos por si obtidos durante o período de cessão, sendo a eles que também compete providenciar pela tradução dos documentos que se encontrem redigidos em língua estrangeira concernentes com o mencionado dever de informação. Notifique.”.
15 – Em 9.07.2021 a Sra. Fiduciária juntou aos autos relatório nos seguintes termos: “Fica V. Ex.a notificado nos termos e para os efeitos dos art.º nº 239º, 240º, 241º n.º 1, 2 e 3 do C.I.R.E., do Relatório Anual referente ao segundo e terceiro ano do período de cessão: Considerando que os Insolventes não procederam ao envio dos documentos referentes aos rendimentos auferidos desde Julho de 2020, o presente Relatório Anual foi elaborado a zeros, conforme tabela infra (…) Assim, verifica-se que os Insolventes continuam a deter uma dívida para com a Fidúcia no montante global de, pelo menos, 25 035,19 €.”
16 – A 12.07.2021 o Banco D…, S.A. apresentou seguinte requerimento: “Os devedores demonstraram ao longo dos quatro anos do período de cessão já decorridos um comportamento de violação reiterada das suas obrigações. 2. Assim, referente ao primeiro ano do período de cessão, mantém-se em dívida a quantia de €25.035,19 (vinte e cinco mil e trinta e cinco euros e dezanove cêntimos). 3. Sendo certo que quanto aos segundo, terceiro e quarto anos, não foi remetida a informação/documentação solicitada relativa aos rendimentos auferidos ou não o foi com a devida tradução, apesar de notificados por diversas vezes quer pela Sra. Fiduciária, quer pelo Tribunal. 4. Assim, vê-se o Credor Reclamante forçado a, ao abrigo do disposto no artigo 243º do CIRE, requerer a cessação antecipada do procedimento de exoneração uma vez que foram incumpridos os deveres estabelecidos no artigo 239º nº 4 do CIRE por parte dos devedores.”
17 – Foi dado início ao incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração.
18 – Credor Banco E…, S.A., MP e Sra. Fiduciária, convergem no sentido da cessação. A Sra. Fiduciária no parecer apresentado conclui “Em suma, no caso em apreço é manifesto que os Insolventes mantém uma dívida no valor de 25.035,19€ (referente ao primeiro ano), não tendo remetido qualquer informação nem documentação solicitada relativa aos rendimentos auferidos, apesar de por diversas vezes notificados. 14. Ora tal conduta denota um comportamento que envolve violação com grave negligência das obrigações que lhes são impostas pelo artigo 239º, n.º 4, alíneas a), c) e d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas; 15. Assim, entende a ora Fiduciária verificar-se o circunstancialismo previsto no artigo 243º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas por violação dos deveres impostos no art.º 239º, nº 4, al. a) e d), 16. Face ao exposto, e atenta a consequente violação dos deveres a que se encontrariam adstritos os Insolventes, a ora Fiduciária reitera a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante dos Insolventes.”
19 – Os Devedores sustentam que não se verificam os pressupostos alegando: “1. Os insolventes de forma voluntária e proativa sempre colaboraram com a AI, procurando auxiliar em tudo o que estivesse ao alcance dos mesmos. 2. Sucedeu que, os insolventes emigraram para a Alemanha, e somente após 1 anos de permanência naquele país requereram nos presentes autos a indexação do rendimento indisponível ao salário mínimo alemão. 3. Esse atraso motivou que nesse ano, as contas ao rendimento indisponível tenham sido realizadas tendo por referência o salário mínimo português quando os insolventes vivam na Alemanha e auferiam o salário alemão. Contudo também suportaram o elevado custo de vida alemão. 4. Logo, quando a AI fez as contas ao rendimento que os insolventes teriam de entregar resultou na exorbitante quantia de 25.000€, quantia que os insolventes não tinham nem podiam ter, pois emigrados na Alemanha, nunca teriam conseguido sobreviver apenas com a quantia equivalente ao salário mínimo português, valor utilizado pela AI para os cálculos. 5. Tida a gente sabe que os insolventes estavam emigrados na Alemanha, pelos próprios recibos de vencimento alemães, portanto não se pode exigir que os insolventes vivam na Alemanha apenas com um salário de 600€. 6. Exigir que os insolventes entreguem tal quantia, é ato de pura demagogia, porque a referida quantia era manifestamente essencial para a sobrevivência de uma vida condigna naquele país. 7. Tanto assim é que o valor foi posteriormente alterado para o salário mínimo alemão, cujo valor ascende a 1.600€ mensais. 8. Fácil é assim de concluir que a entrega de tais quantias é manifestamente impossível, por não disporem os insolventes de tais quantias, que gastaram no pagamento de despesas essenciais, água, luz, gás, arrendamento, alimentação, vestuário. 9. Por outro lado, posteriormente veio a AI exigir que a documentação referente aos salários e recibos de vencimento lhe fosse entregue traduzida em alemão. 10. Os insolventes solicitaram orçamento para a tradução dos documentos em causa e a referida tradução ascendia à quantia de 595€, valor de que os mesmos não podiam dispor. 11. Os insolventes têm parcos rendimentos e o elevado nível de vida na Alemanha não lhes permite qualquer poupança, pelo que comunicaram prontamente nos autos a sua impossibilidade de suportarem o custo da tradução, tendo procedido ao envio da documentação em alemão. 12. A AI recusou a referida documentação por não se encontrar traduzida. 13. Os insolventes não dispõem de meios para procederem à tradução dos documentos e a AI recusa a documentação em alemão. 14. Os insolventes procuram colaborar, mas não têm meios financeiros para assumirem tais custos. 15. Assim, porque não se verifica qualquer incumprimento doloso ou com grave negligência por parte dos insolventes, nem tão pouco sequer é invocado por qualquer dos requerentes tal elemento subjectivo, têm de improceder os requerimentos apresentados.”
*
IV.
Apreciação da questão objeto do recurso
O CIRE introduziu uma nova medida de proteção do devedor que seja uma pessoa singular, ao permitir que, caso este não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, venha a ser exonerado do pagamento desses mesmos créditos, desde que satisfaça as condições fixadas no incidente de exoneração do passivo restante destinadas a assegurar a efetiva obtenção de rendimentos para cessão aos credores.
De acordo com o nº 2 do art.º 239º, o despacho liminar sobre o pedido de exoneração do passivo restante, não sendo de indeferimento, estabelece, para o período de cessão (de 5 anos a contar do encerramento do processo de insolvência), o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir com destino à fidúcia.
O rendimento disponível que, por efeito do despacho inicial, se considera cedido ao fiduciário, de acordo com a letra do n.º 3 do art.º 239°, é constituído, em regra, por todos os rendimentos a que durante o período de cessão o devedor tenha direito, qualquer que seja o respetivo título, com algumas exclusões (vulgarmente chamado rendimento indisponível), entre elas, o que seja “razoavelmente necessário” para “o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional” (al. b), ponto i) do nº 3, ainda do art.º 239º).
As exclusões de disponibilidade de rendimentos previstas nos pontos i) e ii) da al. b) do nº 3 do art.º 239º radicam na chamada função interna do património --- base ou suporte de vida do titular --- e a sua prevalência sobre a função externa --- garantia geral dos credores[4].
É o interesse dos credores que é globalmente protegido pelo processo de insolvência; mas a possibilidade de exoneração do insolvente do pagamento do passivo que fique por pagar, seja no processo de insolvência, seja nos cinco anos posteriores ao seu encerramento (artigo 235º), tem como objetivo específico a proteção do devedor.
Como se refere no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, o regime da exoneração do passivo restante pretende conjugar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.
Não é aceitável que nos afastemos do equilíbrio que deve ser estabelecido entre o princípio do ressarcimento dos credores e o princípio da sobrevivência condigna do devedor e do seu agregado familiar. O reconhecimento do princípio da dignidade humana exige do ordenamento jurídico o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.

No caso, em 16.2.2015, foi proferido aquele despacho liminar, com o seguinte dispositivo:

«(…)
Conjugados e ponderados os elementos e as considerações precedentes, decido fixar em 2 (dois) salários mínimos nacional, o correspondente ao razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos insolventes, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 2 e 3, alínea b), i), do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Em consequência, determino que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que os devedores venham a auferir seja cedido ao fiduciário adiante nomeado, nos termos do n.º 2 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
(…).»
Esta decisão transitou em julgado.
Em consequência do despacho inicial da exoneração, os insolventes ficaram obrigados a cumprir as obrigações decorrentes art.º 239º, nº 4, podendo a violação dolosa ou gravemente negligente das mesmas, entre outras, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
O art.º 243º estabelece, sob a epígrafe “Cessação antecipada do procedimento de exoneração”:
«1 – Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.°, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.° 1 do artigo 238.°, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
2 – O requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova.
3 – Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.° 1, o juiz deve ouvir o devedor, (…) antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
4 – O juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência.»
Trata-se de um modo anormal de cessação do procedimento --- extingue-se antes de ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante ---, já que o modo normal ocorre com a decisão final de concessão ou negação da exoneração (art.º 244º, nº 1).
Temos, assim, que a cessação antecipada da exoneração pode ocorrer:
- Logo que se verifique a satisfação integral dos créditos da insolvência – art.º 243º, nº 4;
- Sempre que o procedimento venha a ser extinto antes de ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante; e
- Sempre que, de modo superveniente, se verifique que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração.
Esta última situação ocorrerá a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência se ainda se encontrar em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, nos casos tipificados no nº 1 do art.º 243º:
a) Se o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência incumprido algumas das obrigações que lhe incumbem em relação à cessão do rendimento disponível - art.º 243º, n.º 1, a), e 239º;
b) Se vier a ser apurado (supervenientemente) algum dos fundamentos de indeferimento liminar previstos nas alíneas b), e) e f) do art.º 238º - art.º 243º, nº 1, b);
c) Quando a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência - art.º 243º, nº 1, c).

A dissensão recursiva radica na verificação dos fundamentos de cessação do procedimento a que se referem as ditas al.s a), c) e d)[5] do nº 4 do art.º 239º. Encerra, como vimos, uma das causas de superveniência (relativamente ao despacho limiar de deferimento) de indignidade do devedor na obtenção da exoneração.
A lei exige que o requerimento seja fundamentado, o que significa que o requerente deve invocar ali e provar as causas justificativas da cessação antecipada do procedimento.[6]
O juiz deve decidir segundo a prova produzida e o seu prudente arbítrio, na verificação de fundamento legal justificativo da recusa de exoneração.
É necessária uma conduta dolosa ou gravemente negligente do devedor que viole alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.°, prejudicando, por esse facto, a satisfação dos créditos sobre a insolvência; ou seja, para além da verificação daquela relação psicológica entre o agente e o facto, é indispensável a verificação de prejuízo (um qualquer prejuízo) para a satisfação dos créditos e que entre a conduta e o dano exista nexo casual.[7]
Uma das obrigações a que o devedor fica adstrito no período de cessão, cuja violação pode acarretar cessação antecipada do procedimento de exoneração é a de não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título e informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado (art.º 239º, nº 4, al. a)). Outra delas é entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão (al. c)), sendo ainda obrigação do devedor informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego (al. d)).

Os factos de natureza processual que os recorrentes pretendem que sejam aditados aos factos provados, resultam efetivamente de dois dos seus requerimentos juntos ao processo, em 19.9.2019 e em 28.11.2019, nada obstando à sua fixação nos seguintes termos:
Por requerimento de 9 de setembro de 2019, os insolventes informaram o tribunal que a documentação referente aos seus rendimentos já tinha sido enviada à fiduciária no dia 1 de julho de 2019, em alemão, com a expressa advertência de que, caso fosse necessária a tradução da mesma, necessitavam de 30 dias para o efeito (cf. requerimento com a referência 33335648).
Por requerimento datado de 28 de novembro de 2019, os insolventes comunicaram ao tribunal que, apesar dos esforços que fizeram, a sua situação económica não lhes permitia pagar a quantia de € 595,00 pela tradução dos documentos referentes aos seus rendimentos (cf. requerimento com a referência 34158804).

Vejamos!
O primeiro ano (de cinco) de cessão de rendimentos iniciou-se em julho de 2018.
Os insolventes informaram o tribunal de que estavam a residir na Alemanha apenas pelo requerimento de 4 de março de 2019, no qual requereram que o rendimento indisponível de 2 RMMG em Portugal fosse convertido em 2 RMMG na Alemanha, país onde estavam a residir e a trabalhar, cada um deles com a retribuição equivalente a este salário mínimo pago na Alemanha, e que assim se contabilizasse o seu rendimento indisponível desde o início do período de cessão, alegando que já então eram emigrantes naquele país.
Pelo despacho de 13.6.2019[8], o tribunal deferiu parcialmente a pretensão dos devedores: determinou que o rendimento indisponível passava a ser o equivalente a 2 salários mínimos da Alemanha, 12 meses por ano, e que esta alteração apenas produz efeitos desde 4 de março de 2019, a data do requerimento.
Esta decisão transitou em julgado, na sequência de recurso dela interposto e do acórdão da Relação que a confirmou.
Os devedores tinham então o prazo de 10 dias, conforme notificação que lhes foi dirigida para procederem ao pagamento da quantia de € 25.039,19 (ou pedir o seu pagamento faseado) que deveria ter sido cedida relativamente ao primeiro ano de cessão de rendimentos.
Não pagaram nem pediram o pagamento faseado daquela quantia, violando o dever inerente à notificação e ao disposto na al. c) do nº 4 do art.º 239º, segundo o qual o devedor deve entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão. Se havia fundamento para não entregaram à fidúcia os seus rendimentos disponíveis imediatamente após a sua perceção, tal apenas foi reconhecido, por decisão transitada, relativamente aos rendimentos posteriores a 4 de março de 2019 e a oportunidade de efetuar o pagamento da quantia acima referida não foi aproveitada pelos insolventes, que a não entregaram no prazo que então lhes foi concedido.
É certo que, a 9.9.2019, os devedores manifestaram junto da Sr.ª Fiduciária que iriam obter a tradução dos documentos relativos aos seus rendimentos na Alemanha, caso aquela entendesse ser necessário. Mas também é verdade que já então estavam cientes dessa necessidade (de tradução), para a qual haviam sido já solenemente alertados, sob a advertência de que, se a não apresentassem, poderiam ver cessar antecipadamente o procedimento de exoneração do passivo restante, por incumprimento dos deveres a que pessoalmente estão vinculados durante o período de cessão, tendo, aliás, juntado os primeiros documentos devidamente traduzidos, conhecendo já perfeitamente essa sua obrigação, conforme resulta dos pontos 4, 5, 6 e 7 dos factos provados.
Ainda assim, o requerimento de 9.9.2019 não ficou sem decisão. Por despacho de 8.11.2019 --- data em que aquela documentação ainda não tinha sido entregue, tal como o não fora o rendimento disponível, nem o pedido o seu pagamento faseado --- o tribunal ainda ordenou uma nova notificação dos devedores para, em 10 dias, procederem à entrega à Exma. Fiduciária da tradução dos documentos constantes do requerimento de 4.9.2019.
Por requerimento datado de 28 de novembro de 2019, os insolventes comunicaram ao tribunal que, apesar dos esforços que fizeram, a sua situação económica não lhes permitia pagar a quantia de € 595,00 pela tradução dos documentos referentes aos seus rendimentos (cf. requerimento com a referência 34158804); uma nova, sucessiva e segunda justificação para negar a remessa da tradução dos documentos.
Pois bem. Não basta dizer; é preciso convencer. Não é compreensível que, mesmo depois do decurso de tão longo período de tempo sem entrega de qualquer quantia à fidúcia e só depois de um pedido de prorrogação de prazo para obter a tradução dos documentos (quando já anteriormente os devedores haviam traduzido outros sem discussão ou reserva quanto aos respetivos custos, que se presume por eles suportados), num assunto desta natureza, venham invocar dificuldade económica para pagar pouco mais de € 500,00 pela prestação daquele serviço. Se a dificuldade na sua obtenção era primeiramente apenas o prazo, não ser percebe – porque também não foi explicado, designadamente pela alteração de rendimentos ou do custo de vida dos devedores --- como é que passou a ser o preço daquele serviço.
Nem depois do despacho de 27.1.2020, em que o tribunal advertia mais uma vez os devedores de que era sua obrigação entregar à Sr.ª Fiduciária os documentos e a respetiva tradução, essa entrega foi efetuada.
Esta omissão de informação documental relativa aos seus rendimentos, assim como a omissão de informação, no devido prazo (10 dias), atinente à mudança de domicílio para a Alemanha e a obtenção de novo emprego, com diferente remuneração, naquele país, são circunstâncias causais da dificuldade/impossibilidade que a Sr.ª Fiduciária tem tido na elaboração dos relatórios anuais relativos ao apuramento do rendimento de cessão do casal.
Se a mudança de vida do casal para o estrangeiro, para um país com um rendimento mínimo mensal e um custo de vida diferentes dos nossos, justificava a revisão do quantitativo do rendimento de cessão, não é menos certo que essa revisão ocorreu por decisão do tribunal, a pedido dos devedores, e que, se não ocorreu anteriormente, nem retroagiu a data anterior ao seu requerimento, foi por factos que só a eles são imputáveis, por não terem cumprido atempadamente --- como reconhecem --- o dever de informação daquela mudança de vida para a Alemanha.
Por essa razão e porque a decisão de 13.6.2019 transitou em julgado, não é aceitável a argumentação exposta na apelação no sentido de que seja de ponderar o salário mínimo da Alemanha, auferido pelos devedores antes 4.3.2019, desde o início do período de cessão.
Impõe-se acrescentar que a violação dos referidos deveres, legalmente previstos nas al.s a), c) e d) do nº 4 do art.º 239º não parte de uma situação de inocência ou ignorância dos insolventes. Para além dos sucessivos incumprimentos, mesmo após comunicação de advertência para a possível cessação do benefício da exoneração do passivo restante, releva desde logo para a consciência da gravidade daquelas violações que os devedores foram notificados do despacho liminar do presente incidente, onde se fez constar expressamente que ficavam adstritos às obrigações previstas naquele nº 4 do art.º 239º, ou seja, a:
«- Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
- Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
- Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência;
- Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores».
Ademais, os devedores nunca entregaram qualquer quantia, nem sequer pediram a entrega faseada dos rendimentos disponíveis.
É evidente a verificação do elemento intelectual do dolo, à luz das regras da experiência: os devedores não podiam deixar de ter conhecimento dos seus próprios rendimentos e das suas alterações, do rendimento disponível e das obrigações a que estavam obrigados desde o despacho liminar. Já o elemento volitivo do dolo emerge necessariamente da negação persistente da entrega de documentos pelos quais se descortinaria a existência do rendimento disponível para entrega à Sr.ª fiduciária. Há uma evidente vontade dirigida ao incumprimento. Sabiam e queriam os devedores ocultar aquele rendimento, subtraindo-o à afetação do interesse dos credores da insolvência, prejudicando-os necessariamente, em seu benefício pessoal, ocorrendo, assim, também nexo causal entre tal conduta e o prejuízo causado. Em lugar de contribuírem para o apuramento do rendimento disponível pela Fiduciária e de, assim, o entregarem, os devedores terão feito seus os respetivos montantes e, pela violação do dever de informar a Fiduciária, os insolventes inviabilizaram desde logo o apuramento de valores. Mesmo ao arrepio do compromisso que haviam assumido no seu requerimento inicial do processo, agiram dolosamente, na recusa das informações e transparência a que estavam obrigados ao abrigo das al.s a), c) e d) daquele normativo, daí resultando (nexo causal exigível) evidente prejuízo para os credores da insolvência, consistente na impossibilidade de cálculo do rendimento disponível para a cessão, com a consequente não entrega do mesmo, destinado à afetação do interesse dos credores pelo pagamento dos seus créditos na execução universal que constitui este processo especial.
Ao não terem enviado as devidas traduções de documentos, depois de conhecerem bem o dever de os entregar e a advertência da cessação antecipada do procedimento, assim protelando o cumprimento dos seus deveres, a exoneração deve ser também recusada com fundamento em comportamento indevido, nos termos do art.º 243º, nº 3, 2ª parte.[9]
O comportamento omissivo persistente é, no conjunto de circunstâncias, censurável e justifica, também ao abrigo do nº 3 do art.º 243º, a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
Com efeito, temos por verificados os pressupostos de cessação antecipada do procedimento de exoneração, também nos termos do art.º 243º, nº 1, al. a) e nº 3 do CIRE.
A sentença merece confirmação.
*
SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
………………………………
………………………………
………………………………
*
V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
*
Custas a cargo dos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.
*
*
Porto, 2 de dezembro de 2021
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
______________
[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a que pertencem todas as disposições legais que forem citadas sem menção de origem.
[2] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho.
[3] Por transcrição.
[4] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, Quid Juris, 2009, pág. 295.
[5] A integração na al. d) foi defendida pela Sr.ª Fiduciária nas suas contra-alegações.
[6] L. Carvalho Fernandes e João Labareda, Coletânea de Estudos sobre a Insolvência, Quid Juris, 2009, pág.s 288 e seg.s. Acórdão da Relação de Lisboa de 15.12.2011, proc. 23553/10.0T2SNT-B.L1-6, in www.dgsi.pt.
[7] Mais exigente se revela o art.º 246º, nº 1, que, prevendo para a revogação da exoneração (já concedida), pressupõe a existência de dolo (não já a negligência, ainda que grave) e de um prejuízo relevante (não o mero prejuízo). Sobre esta comparação de regimes (cessação antecipada versus revogação), cf. acórdão da Relação de Coimbra de 3.6.2014, proc. 747/11.6TBTNV-J.C1, in www.dgsi.pt: «(…) A violação, com dolo, da obrigação que vincula o insolvente há-de provocar um resultado: a afectação relevante da satisfação dos créditos da insolvência. Não é suficiente um qualquer prejuízo, como sucede, por exemplo, para a cessação antecipada do procedimento de exoneração: deve tratar-se de um prejuízo relevante (artºs 243 b) e 246 nº 1, in fine, do CIRE). Realmente, ao passo que para a cessação antecipada do procedimento de exoneração se reclama que da violação dolosa ou negligente de qualquer obrigação do insolvente resulte simplesmente um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre aquele, para a revogação da exoneração a lei é, no tocante ao dano resultante da conduta dolosa do insolvente para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, nitidamente mais exigente: esse prejuízo deve ser relevante.».
[8] Por lapso, o tribunal recorrido referiu que o despacho é de 13.6.2021.
[9] L. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 2009, pág. 798.