Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
415/13.4T3OBR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CASTELA RIO
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
FACTO NOVO AUTONOMIZÁVEL
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
Nº do Documento: RP20150923415/13.4T3OBR.P1
Data do Acordão: 09/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A falta de imputação da liberdade de agir da agente e da consciência pela agente da conduta como sua e do tipo de vontade de actuação da agente e da consciência pela agente da ilicitude criminal / penal da sua conduta, enquanto expressivas de um deficiente exercício do «princípio do acusatório», não podem ser supridas através do mecanismo de uma «alteração não substancial dos factos», sob pena de violação do «princípio da vinculação temática» do Tribunal.
II – Se os exactos termos imputados de facto, na Acusação ou no Requerimento de Abertura de Instrução que a substituir, não constituir todos os elementos objectivos e subjectivos de um tipo legal de crime, cabe Decisão Instrutória de não pronúncia na fase de Instrução e Decisão Final de absolvição na fase de Julgamento salva a hipótese de se descobrir, na sequência da valoração da prova produzida na fase de Inquérito e ou Instrução ou na fase de Julgamento uma nova acção e ou omissão criminosas susceptíveis de constituir «facto novo autonomizável» nos termos e para os efeitos dos arts 303-4 e 359-2 do CPP respectivamente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Na 1ª Secção Judicial / Criminal do TRP acordam em Conferência os Juízes no
Recurso Penal 415/13.4T3OBR.P1 vindo do Juiz 1 da 2ª Secção de Instrução
Criminal da Instância Central de Águeda da Comarca de Aveiro

O Inquérito 415/13.4T3OBR do MP de OBR culminou no Despacho de 23-6-2014 a fls 158-162 de Arquivamento ex vi art 277-2 do CPP por «… inexistência e/ou não oferecimento de qualquer outro elemento de prova … do crime denunciado nos autos…» que foi abuso de confiança qualificado p.p. pelo art 205-1-5 «… na forma continuada…» porquanto:

«Declaro encerrado o presente Inquérito.

Iniciaram-se os presentes autos com queixa apresentada por B…, na qualidade de legal representante da C…, Lda, contra D…, alegando, em síntese, que, em junho de 2008, na qualidade de legal representante da empresa, contractou os serviços da denunciada para desempenhar a função de TOC.

Em Outubro de 2010 comunicou à denunciada que pretendia rescindir o contrato, tendo a denunciada informado que já tinha feito serviços por referencia a esse mês e que havia prazos para comunicar a rescisão dos serviços, motivo pelo qual a denunciante e a denunciada, acordaram que esta efectuaria o fecho do ano de 2010.

Mais refere que se convenceu que teria a colaboração da denunciada, incluindo a entrega da documentação contabilística, até porque pretendia cessar a actividade, intenção que tinha comunicado à denunciada.

Contudo, desde Março de 2011 que a denunciante tem encetado diversas tentativas para reaver a documentação contabilística, mas sem sucesso. Nesse sentido, enviou várias cartas à denunciada e apresentou duas queixas junto à Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas.

Apesar de diversas vezes interpelada, a denunciada foi protelando a sua entrega e a partir de 2012, recusou-se a devolve-la, alegando que a denunciante teria uma avença em atraso, facto que não corresponde à verdade.

Por forma a recuperar a documentação, liquidou a avença que a denunciada alegava estar em atraso, mas mesmo assim, não conseguiu que a denunciada lhe entregasse a documentação.

Refere por último que esta situação causou inúmeros prejuízos à denunciante e impediu o encerramento da actividade.

Para prova dos factos alegados, a denunciante juntou 39 documentos.

Os factos supra descritos porque, em abstracto, susceptíveis de configurarem a prática pelo denunciado de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo disposto no artigo 205°, n.°1 do Código Penal, deram origem ao presente Inquérito, no âmbito do qual foram empreendidas todas as diligências que se reputaram úteis e possíveis com vista a apurar indícios suficientes da prática de tal infracção.
Assim:

Inquirida a denunciante limitou-se a confirmar os factos participados, referindo que continua a desejar procedimento criminal contra a arguida, uma vez que ainda não foi ressarcida dos prejuízos sofridos.

Inquirido E…, confirma o teor da denuncia apresentada pela sua mãe e refere ter conhecimento dos factos por ter participado em várias diligências para contactar a denunciada. Acrescenta que a denunciada, desde o final de 2010, tem-se furtado ao diálogo e suspeita que esse comportamento esteja relacionado com má gestão contabilística, porque ao longo do período em que exerceu funções na empresa, a sua mãe sempre pagou várias coimas.

F…, refere, em síntese que é contabilista e foi contactado, em finais de 2010, por E… pra realizar a contabilidade da empresa “C…, Lda.”

Acrescenta que é o contabilista da empresa, e nessa medida tem a contabilidade feita à data da inquirição, mas não consegue entregar o fecho das contas de 201 1 e 2012, porque a denunciada se recusa a entregar os documentos e as declarações fiscais do ano de 2010.

Foi constituída arguida e interrogada nessa qualidade a denunciada D… que, em suma, confirmou ter sido a contabilista da empresa até Dezembro de 2010. Afirma que reteve alguns documentos respeitantes à sociedade lesada e não ao trabalho por si desenvolvido, por força de uma dívida acumulada, resultante de honorários devidos em função dos serviços prestados.

No entanto e para entrega das pastas respeitantes à sociedade lesada e que mantinha na sua posse, disponibilizou-se para as entregar e nesse sentido encetou várias tentativas, contudo nunca obteve resposta.

Mais informa que, através do seu mandatário, já procedeu à entrega de toda a documentação que retinha na sua posse.

Por último refere não ter tido intenção de se apropriar ou fazer sua propriedade qualquer documento respeitante àquela sociedade, tendo-se limitado a reter legitimamente a documentação relacionada com o seu trabalho, em virtude do não pagamento dos honorários que lhe eram devidos.

São estes os factos apurados no decurso do Inquérito, importando agora decidir se os mesmos são ou não susceptíveis de indiciar a prática pela arguida de algum ilícito criminal, nomeadamente e naquilo que agora nos interessa, da prática do crime de abuso de confiança denunciado.

Nos termos do disposto no artigo 205°, n° 1 do Código Penal, comete o crime agora em análise: “Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade”.

São assim elementos deste tipo legal:
- A apropriação ilegítima;
- De coisa móvel;
- Entregue por título não translativo de propriedade.

A consumação do crime verifica-se com a apropriação, isto é, com a inversão do título da posse, situação que ocorre quando, estando a coisa em causa na posse ou detenção do agente por modo legítimo, embora por título não translativo de propriedade, este se apropria daquela, passando a actuar como seu dono, com o propósito de não a restituir.

Mostrando-se de difícil determinação o momento da apropriação, temos que esta se verificará quando ocorrer a inversão do título da posse e existam actos objectivos demonstrativos de o agente ter incorporado a coisa na sua esfera patrimonial, ou seja, actos objectivos susceptíveis de revelarem que o agente já está a dispor da coisa como se fosse sua.

A apropriação traduz-se sempre, no contexto do crime de abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção: o agente que recebera a coisa «uti alieno», passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela — naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais — «uti dominus»; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a “inversão do título de posse ou detenção” e é nela que se traduz e se consuma a apropriação (...) Sob que forma deva manifestar-se a apropriação, é em definitivo indiferente: necessário é apenas, que como acima se disse, se revele por actos concludentes que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa “como proprietário”. (...) É indispensável que através do acto ou actos de apropriação se tenha verificado uma deslocação da propriedade: a mera afetação da substância da coisa não constitui abuso de confiança — Cfr. Prof Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Pena Coimbra Editora 1999, Tomo II, pág. 94

Assim, para que exista crime é indispensável que o agente actue como «uti dominus», ou seja como proprietário.

Ora, no caso dos autos, forçosamente teremos que concluir que não lograram obter-se nos autos indícios suficientes — nos termos pressupostos no artigo 283°, n° 2 do C.P.P. - da prática pela arguida do crime denunciado, ou seja, não se recolheram indícios suficientes da inversão do título de posse ou detenção.

Com efeito, aquilo que resultou apurado no final das investigações foi que a denunciante terá contratado os serviços da arguida, os quais não pagou, facto que determinou, por parte da arguida, a retenção lícita de documentos respeitantes ao trabalho por si desenvolvido.

Facto que se comprova pelos documentos juntos a fls 105 e ss, onde se comprova as declarações da arguida, designadamente que apenas reteve os documentos por forma a garantir o pagamento dos valores em dívida e que nunca teve intenção de ficar com eles.

Ademais, a arguida abordou, junto da ofendida e do novo TOC, por diversas vezes a questão da não entrega dos documentos e comunicou designadamente ao serviço de finanças e à ordem dos técnicos oficiais de conta, a falta de pagamento dos seus serviços e a retenção dos documentos.
Ora, para que se possa imutar a alguém a prática do crime em análise imprescindível é que seja possível afirmar que agiu com a vontade e a intenção de se apropriar de coisa alheia a que bem sabia não ter direito, o que manifestamente não é o caso.

Cremos pois que a questão denunciada nos autos será, eventualmente, uma situação a dirimir no foro civil e não qualquer conduta merecedora de censura criminal.

Face ao exposto e atenta a inexistência e/ou não oferecimento de qualquer outro elemento de prova, forçosamente se tem que concluir não ser possível considerar indiciada a prática do crime denunciado nos autos, nos termos pressupostos na norma do artigo 283°, n° 2 do Código de Processo Penal, ou seja, em termos de fundamentar um juízo de culpabilidade e a formulação de um despacho acusatório do qual venha a resultar uma possibilidade razoável de condenação em fase de julgamento, motivo pelo qual se determina o arquivamento do presente Inquérito nos termos do disposto no artigo 277°, nº 2 do Código de Processo Penal.

Comunique à ofendida, à arguida e respectivos mandatários o precedente despacho de arquivamento, nos termos do disposto no artigo 277°, nos. 3 e 4, als. a) e c) do Código de Processo Penal.

Em cumprimento do disposto na circular 5/2008 da PGD, consigna-se que o prazo de prescrição do procedimento criminal pelos factos denunciados nos presentes autos é de 5 anos, motivo pelo qual, a respectiva prescrição ocorrerá no próximo dia 08-04-2019» [1].

Inconformada com o decidido, G… – Denunciante por si e como sócia gerente de C…, LDA - requereu em 10-9-2014 a fls 171-178 = 179-186 = 188-196 sua constituição como ASSISTENTE e a abertura de INSTRUÇÃO porquanto:

2. Os presentes autos foram arquivados porquanto o Ministério Público considerou que não se lograram obter indicios suficientes da prática pela arguida do crime de abuso de confiança, não se recolhendo indicios da inversão do título de posse ou detenção e considerou que para que se possa imputar a alguém a prática do crime de abuso de confiança impriscindivel é que seja possível afirmar que agiu com vontade e a intenção de se apropriar de coisa alheia a que bem sabia não ter direito, o que manifestamente não foi o caso.

3. Salvo o devido respeito discordamos em absoluto de tal decisão.

4. O referido fundamento assentou apenas no depoimento da arguida D…, com o número de identificação fiscal ………, contabilista, residente na Rua … n.º .. Moradia . ….-… … e nos documentos por ela juntos aos autos.

5. Tendo sido desconsiderados quer os documentos juntos pela assistente na queixa apresentada quer os depoimentos prestados pelas testemunhas indicadas pela assistente.

6. Vejamos os factos alegados na participação da ora assistente que, grosso modo, estão demonstrados nos documentos juntos aos autos e provados pelos depoimentos das duas testemunhas ouvidas em sede de inquérito, e que se se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais:

a. “Afirma denunciante dedica-se, com fins lucrativos à actividade de restauração, sendo a denunciante gerente da mesma e sua única sócia.

b. Sucede que no inicio da actividade da firma denunciante, em 3 de Junho de 2008, a denunciante na qualidade de legal representante daquela contratou a denunciada para desempenhar a função de técnica oficial de contas.

c. No dia 19 de Novembro de 2010, a denunciante comunicou à denunciada que pretendia rescindir o contrato de prestação de serviços a partir de 1 de Outubro de 2010, conforme documento n.° 1 que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

d. Contudo, de acordo com a informação da denunciada esta já teria efectuado serviços para a firma denunciante referentes ao mês de Outubro, mormente tratamento de salários junto da Segurança Social., conforme documento n.° 2 que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

e. E alegou que se iria informar junto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas se existiria um período mínimo de pré-aviso para se comunicar a rescisão de serviços, cfr. Documento n.° 2.

f. Perante os argumentos apresentados, e depois de uma reunião realizada com a participada, acordaram que esta efectuaria o fecho do ano de 2010 e todas as tarefas que daí adviessem, conforme documento n.º 3 que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

9. A denunciante convenceu-se que teria toda a colaboração necessária por parte da participada, incluindo a posterior entrega da documentação contabilística pertencente à firma-denunciante, uma vez que pretendia cessar a actividade.

h. Intenção que, desde logo, foi comunicada à denunciada.

i. Certo é, que desde Março de 2011, a denunciante tem encetado diversas tentativas para reaver a sua documentação contabilística que se têm revelado infrutíferas.

j. A denunciante enviou diversas cartas registadas em 22 de Março de 2011, 19 de Maio de 2011, 17 de Junho de 2011, 16 de Setembro de 2011, 15 de Outubro de 2012, 5 de Novembro de 2012; e-mails no dia 19 de Maio de 2011, 6 de Junho de 2011, 17 de Junho de 2011 e tentou presencialmente no dia 21 de Dezembro de 2012, conforme documentos n.ºs 4 a 12 que se juntam e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

k. Apresentou duas queixas junto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas que também se revelaram infrutíferas, conforme documentos n.ºs 13 a 23 que se juntam e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

l. Apesar das diversas vezes interpelada, a denunciada inicialmente foi iludindo a denunciante dizendo-lhe que lhe entregaria posteriormente a documentação.
m. A partir de Dezembro de 2012, recusou-se devolvê-la, dela se tendo apropriado.

n. Alegando que a firma-denunciante teria uma avença ainda em atraso.

o. Facto que não corresponde à verdade.

p. A denunciante para reaver a documentação contabilística resolveu liquidar a alegada avença em atraso.

q. No entanto, a denunciada nem assim devolveu a referida documentação, continuando a recusar-se a devolvê-la e dela se apropriando.

r. Com os referidos comportamentos, a denunciada causou um elevado prejuízo patrimonial à denunciante e à firma denunciante.”

7. Do despacho de arquivamente consta que o que resultou apurado no final das investigações foi que a denunciante terá contratado os serviços da arguida, os quais não pagou, facto que determinou por parte da arguida a retenção licita de documentos de trabalho por si desenvolvido e que ademais a arguida abordou junto da ofendida e do novo TOC, por diversas vezes a questão da não entrega dos documentos comunicou designadamente ao serviço de finanças e à ordem dos técnicos oficiais de contas, a falta de pagamento dos seus serviços e a retenção dos documentos.

8. Mais, o Diginissimo Procurador do Ministério Público considerou que para que se possa imputar a alguém a prática do crime de abuso de confiança impriscindivel é que seja possível afirmar que agiu com vontade e a intenção de se apropriar de coisa alheia a que bem sabia não ter direito, o que manifestamente não foi o caso.

9. Ora, como se encontra provado pelos documentos juntos aos autos e como se procurará mais uma vez demonstrar infra, a arguida teve intenção de se apropriar e fazer sua propriedade de documentos pertencentes à firma denunciante.

10. E lograram-se obter nos autos indicios suficientes da prática pela arguida do crime de abuso de confiança.

11. Daí que o processo não possa ser arquivado como pretende o Ministério Público.

12. Antes de mais, das declarações prestadas pela arguida no dia 8/04/2014 resulta que aquela conhece a denunciante mas não a identifica como sócia gerente da sociedade tendo-lhe sido apresentada como funcionária.

13. Tal não corresponde à verdade.

14. Com efeito, por diversas vezes e por diversos meios (mail, cartas registadas, presencialmente) a assistente entrou em contacto com a arguida.

15. E por e-mail remetido no dia 17 de Junho de 2011 junto aos autos pela assistente, o gerente da sociedade informou a arguida que a entrega da documentação deveria ser feita a B…, na Rua … n.° ….° . ….-… Aveiro.

16. Por outro lado, no documento nº 17 junto aos autos pela própria arguida a mesma alega que tem sido contactada pela assistente e que não dispõe de qualquer documento que ligue essa senhora à sociedade.

17. A arguida depôs que reteve alguns documentos por força de uma dívida acumulada resultante de honorários devidos em função de serviços prestados e por outro lado disse que se disponibilizou para entregar os documentos através de carta, encetou diversos contactos para moradas distintas e nunca obteve resposta nem pela firma nem pelos seus legais representantes. Em data anterior à diligência entregou toda a documentação que retinha através do seu defensor.

18. O depoimento da arguida mostra-se deveras contraditório.

19. Se por um lado afirma que reteve os documentos porquanto alegadamente existiria um divida resultante de honorários.

20. Por outro lado, alega que tentou várias vezes fazer a sua entrega.

21. Conforme documentos n.°s 4 a 23 juntos aos autos pela assistente e pelos depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de inquérito, os contactos para que a documentação fosse entregue foram feitos não pela arguida mas por aquela e pelo seu actual contabilista.

22. À arguida foram feitas inúmeras interpelações e tentativas por parte da assistente para reaver a documentação da Empresa, as quais nunca mereceu resposta por parte da arguida.

23. Se a arguida não tivesse intenção e vontade de se apropriar ilegitimamente dos documentos pertencentes à sociedade e se tivesse intenção, conforme alegou, de entregar a documentação, perante as interpelações seja entregaria a documentação solicitada.

24. Por outro lado, não existia qualquer valor em atraso que justificasse a retenção de documentos, conforme documentos n.° 4 a 23 juntos aos autos pela assistente e pelos depoimentos prestados pelas testemunhas em sede de inquérito.

25. A assistente sempre demonstrou a sua oposição relativamente à existência dos valores em atraso.

26. No entanto, sempre se dirá que independentemente de saber se a arguida era ou não credora de alegados valores em atraso, a recusa em entregar a documentação é abusiva, ilegítima e ilegal.

27. Ao contrário do douto despacho de arquivamento a retenção dos documentos por parte da arguida não pode ser considerada como licita.

28. A ser legitima configuraria tal recusa um direito de retenção. Sucede porém que um contabilista não goza do direito de reter e de não entregar documentos/pastas de contabilidade enquanto não lhe forem pagos valores de serviços resultantes de contabilidade.

29. Não se vislumbra no Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas, Decreto-Lei 452/99 de 5 de Novembro, alterado pelo Decreto-Lei 310/2009, qualquer norma que lhe confira o direito de retenção.

30. Veja-se nesse sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24 de Janeiro de 2014, do Relator Barateiro Martins, disponível em www.dgsi.pt.

31. Ficou, portanto, provado em sede de inquérito que a arguida se apropriou dos documentos pertencentes à empresa e que em momento algum teve intenção de proceder à sua entrega.

32. Aliás a alegada entrega de toda a documentação da sociedade só se concretizou porquanto a assistente se viu obrigada a instaurar uma providência cautelar junto do Tribunal de Comarca do Baixo Vouga.

33. Nesse processo foi lavrado termo de transação do qual resultou o documento junto aos autos pela própria arguida no qual se constata que, em 24 de Janeiro de 2014, o ora patrono da assistente recepcionou documentação por parte da arguida.

34. No entanto, de tal documento também consta a declaração do patrono da assistente de que desconhecia o conteúdo das pastas e se das mesmas se encontravam presentes de todos documentos especificados no acordo homologado em Tribunal.

35. Certo é que os documentos constantes do acordo de transação não constavam nas pastas entregues ao então mandatário da assistente.

36. Logo, a arguida continua a apropriar-se de documentos pertencentes à sociedade representada pela assistente.

37. Por outro lado, a entrega referida no artigo 34.° deste articulado data de 24 de Janeiro de 2014.

38. A queixa apresentada pela Assistente foi recepcionada pelos Serviços do Ministério Público de Oliveira do Bairro em 6 de Novembro de 2014 [2].

39. Logo, a entrega dos documentos foi efectuada em data muito posterior à apresentação da queixa que deu origem aos presentes autos.

40.Face ao exposto e com o devido respeito, nunca poderia ter sido proferido despacho de arquivamento dos presentes autos,

41. Pois os factos em presença, descritos supra, indicam que a arguida terá se apropriado ilegitimamente de documentos dos quais não era proprietária, incorrendo assim na prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.° do Código Penal.
● Termos em que e nos demais de direito requer a V.Exa:
I. Seja admitida a sua constituição de assistente e;
II. Seja declarada a abertura de instrução e, em consequência, proferido despacho de pronúncia da arguida D… pela prática do crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.° do Código Penal
Prova Testemunhal:
Requer-se a va Ex° a reinquirição das testemunhas indicadas pela assistente em sede de inquérito, bem como a tomada de declarações da assistente, para prova dos factos constantes nos artigos 6.° a) a r), 15.°, 16.°, 21.°a 25.°, 26.°, 33.°a 36.°dopresente articulado.
A Assistente protesta juntar no prazo de 10 dias o termo de transação referido no artigo 33.° do presente articulado» [3].

Tendo o Mmo Juiz a quo indeferido - no Despacho liminar de 03-11-2014 a fls 214 - «a reinquirição da assistente e das testemunhas indicadas visto que já depuseram no Inquérito, não se vislumbrando (e nem tendo sequer sido alegada) a pertinência da sua nova audição – art. 291º nº 3 do CPP», as diligências instrutórias realizadas no decurso da Instrução consistiram no seguinte

Junção em 12-11-2014 a fls 220-221 de cópia a fls 222-223 da Sentença Homologatória de 07-02-2014 da Transacção no Procedimento Cautelar 1033/13.2T2OBR segundo a qual «1.º A requerida compromete-se a entregar no prazo de 10 dias toda a documentação que tiver em seu poder, designadamente, todo o processo de encerramento relativo ao ano de 2010, inclusivamente, o Modelo 22 da IES e o dossier fiscal, no escritório do Il. Mandatário da requerente. 2.º No que se refere aos nºs 2 e 3 do pedido, relativamente ao pedido de indemnização por danos patrimoniais, a A. desiste da instância o que a R. aceita. 3.º Custas em partes iguais». Ademais a este propósito,

No início do Debate Instrutório em 13-11-2014 o Mmo Juiz a quo solicitou à Patrona da Assistente que «… esclarecesse, por referência ao requerimento de abertura de instrução, quais os documentos que não foram entregues pela arguida à assistente, ao que a mesma respondeu serem a declaração modelo 22 do IES de 2010 e a declaração de encerramento também referente ao ano de 2010» após o que o Il Mandatário da Arguida «disse que os documentos referidos não foram elaborados pela arguida – atento o documento junto a fls 129 dos autos [4]– e por isso não os tem na sua posse».

A Instrução culminou no Despacho de NÃO PRONÚNCIA de 25-11-2014 a fls 227-233 com o teor seguinte que foi objecto de Recurso:

DECISÃO INSTRUTÓRIA
Declaro encerrada a instrução.
I. Relatório:
Nos presentes autos o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento (fls.266 e segs.), relativamente ao crime de abuso de confiança imputado pela assistente B… contra D…, considerando não haver indícios suficientes da prática de crime, nomeadamente quanto ao elemento subjectivo do crime.

Discordando de tal arquivamento veio a assistente requerer a abertura de instrução com os fundamentos constantes do requerimento de fls. 189 e segs. que aqui se dão por reproduzidos imputando à referida a prática do mesmo crime.

Os actos de instrução:
Por despacho de fls. 214 a Instrução foi declarada aberta.
Em Instrução foi junto um documento.
Procedeu-se à realização do debate instrutório, com observância do devido formalismo legal.

II. Saneamento:

O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia.
Não há questões prévias ou nulidades que importe conhecer.

III. Fundamentação:

A) Considerações gerais sobre a Instrução:

Nos termos do artigo 286º do CPP a instrução visa, designadamente, a comprovação judicial da decisão final do inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, mediante a verificação (ou não verificação) de indícios suficientes.

Os indícios são suficientes, na perspectiva do normativo invocado, quando, em face dos mesmos, seja em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido ou esta seja mais provável que a sua absolvição (cfr. art.º. 283º, n.º. 1 ex vi do art.º. 308º, n.º. 2, ambos do Cód. Proc. Penal)[5]. Dito de outro modo, por «indícios suficientes» para efeitos da decisão instrutória, deve entender-se a possibilidade razoável de que o arguido tenha praticado os factos que lhe são imputados e de que lhe será aplicada uma pena ou medida de segurança, devendo o juiz, nas palavras de Germano Marques da Silva, (Curso de Processo Penal III, 2000, p.179), pronunciar o arguido apenas e só “quando pelos elementos constantes dos autos forme a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido”.

A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende, assim, da existência de indícios suficientes, obtidos por via do inquérito e/ou da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. art.º. 308º, n.º. 1 do Cód. Proc. Penal).
A concretização do que sejam “indícios suficientes” assume fulcral importância nos ulteriores desenvolvimentos e metodologia empregue na apreciação do processado. Assim, referia-se Cavaleiro Ferreira aos indícios, por aproximação às presunções naturais civis, nos seguintes termos: “A prova indiciária é prova indirecta. Os factos probatórios indiciários são os que permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos por meio de raciocínio em regras da experiência comum, ou da ciência, ou da técnica” [6].

A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária. Como refere Germano Marques da Silva[7], o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios “enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime”. É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no art.º 308º do Cód. Proc. Penal.

De todo o modo, nesta fase preliminar do processo, não se visar “alcançar a demonstração da realidade dos factos” [8].

Como conclui ainda Germano Marques da Silva [9], “As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento “(sublinhado nosso).

Assim, de acordo com o art. 308º do CPP se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, haverá decisão de pronúncia pelos respectivos factos, no caso contrário, haverá despacho de não pronúncia.

O objecto da instrução está delimitado pelo despacho de acusação proferida nos autos ou pelo RAI, sem prejuízo do disposto no artigo 303º do CPP
*
B) Análise crítica da decisão proferida no final do inquérito quanto aos factos dados por indiciados à luz do RAI:

1. Factos indiciados:

1.1 por referência ao artigo 6º RAI: alíneas a) m) e n).

1.2 Outros factos:

- que a arguida agiu do modo descrito na convicção de que poderia ficar com os documentos até que lhe fossem pagos pela ofendida os honorários decorrentes dos serviços de contabilidade que lhe havia prestado;

- que a documentação em causa acabou por ser entregue pela arguida à ofendida após transacção nos autos de procedimento cautelar nº 1033/13.2T2OBR com excepção da declaração modelo 22 do IES de 2010 e da declaração de encerramento referente ao mesmo exercício, documentos estes que não chegaram a ser elaborados pela arguida.
*
2. Factos não indiciados:
Nada mais se demonstrou e designadamente não se demonstrou a subsistência e montante dos alegados créditos da arguida sobre a ofendida.
*
C) Motivação e análise crítica (quanto ao referido nos pontos anteriores):

Quanto aos factos indiciados:

- quanto à não entrega pela arguida até à referida transacção e justificações dadas, existência de algum crédito da arguida sobre a ofendida à data dos factos e convicção da arguida quanto ao direito de não entrega dos documentos até ser paga: depoimentos prestados em Inquérito nomeadamente pela arguida e pela testemunha E…; documentos juntos aos autos e posições expressas no debate instrutório quanto aos documentos ainda em falta;

- quanto à apropriação: a apropriação não se confunde com a intenção de apropriação. Que houve apropriação resulta da recusa sucessiva na entrega dos documentos em causa retirando a sua disponibilidade e utilidades à ofendida. Contra não se diga que os documentos acabaram por ser entregues; é que tal entrega configura uma restituição à posteriori que em nada colide (antes confirma dada a sede em que foi feita – no decurso de processo judicial) a anterior apropriação. Contra também não se argumente que o que não foi restituído não foi afinal elaborado; é que sendo isso inteiramente verdade o objecto da indiciada apropriação não corresponde a tais documentos (não elaborados e por isso nunca retidos) mas, de outro modo, aos restantes documentos contabilísticos.

- quanto à alegada intenção da arguida: resulta dos autos que existia um litígio entre a ofendida e a arguida quanto ao pagamento da remuneração da arguida por serviços prestados à ofendida. Foi neste quadro que a arguida, pretendendo obter da ofendida aquilo a que, na sua óptica teria direito, se apropriou dos documentos em causa. Ora, sendo certo que não agiu portanto com dolo directo, o certo é que actuou com dolo necessário, isto é, representando como possível a apropriação dos documentos como consequência última do não pagamento da sua retribuição, nem por isso deixou de actuar nesse sentido por tal ser necessário ao pretendido pagamento. Contra não se invoque a declaração da Ordem dos TOC constante de fls. 130 já que tal declaração não se refere à legitimidade ou ilegitimidade de retenção dos documentos contabilísticos na posse da arguida mas, de outro modo, à legitimidade da recusa da arguida em assinar as declarações fiscais e demonstrações financeiras documentos que, como já exposto, não foram retidos porque simplesmente não foram sequer elaborados.

Quanto aos não indiciados:

- quanto à subsistência e montante dos alegados créditos da arguida sobre a ofendida: por não ter sido feita prova idónea sobre a matéria, sendo que se trata de matéria cível a dirimir na sede própria.
*
D) Ponderação global dos Indícios, por referência aos crimes imputados:

Chegados a este ponto, importa proceder ao enquadramento jurídico-penal dos factos expostos.
O crime de abuso de confiança, cuja prática ao arguido é imputada, encontra-se tipificado no art.205 nº1 do Cód. Penal.

Em conformidade com a previsão contida no referido normativo, “Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

O tipo de ilícito convocado acha-se sistematicamente inserido no capítulo dos “Crimes contra a propriedade” e, através dele, procurou o legislador proteger a propriedade que é o único bem tutelado pelo tipo legal em causa.

O crime de abuso de confiança exige, como elementos objectivos do tipo:
● a entrega e recebimento lícitos pelo arguido de coisa móvel alheia;
● por título não translativo da propriedade;
● a apropriação dessa coisa pelo arguido;
● a ilegitimidade desta apropriação.
E como elemento subjectivo, exige-se o dolo em qualquer das suas modalidades.

4. Subsunção dos factos indiciados aos apontados elementos do tipo:

Atenta a factualidade supra descrita como indiciada e não indiciada é de concluir que estão verificados os apontados elementos do tipo, com excepção do relativo à «ilegitimidade da apropriação»; vejamos:

Ninguém discute que houve entrega legítima dos documentos em causa à arguida que os recebeu, por título não translativo da propriedade já que tal entrega se destinava ao cumprimento de um contrato de prestação de serviços de contabilidade que celebrou com a arguida no âmbito da sua actividade de contabilista.

Como já se viu também ficou indiciada a apropriação pela arguida dessa documentação bem como o dolo na modalidade de «dolo necessário».

Falta porém a ilegitimidade da apropriação:

Como já se disse foi celebrado entre ofendida e arguida um contrato de prestação de serviços de contabilidade. Tal contrato não tem uma regulamentação própria, não está tipificado autonomamente na lei civil nem em qualquer disposição avulsa que lhe trace o respectivo regime jurídico mas deve qualificar-se inequivocamente como sendo um contrato de prestação de serviços pois que se caracteriza pela obrigação principal de execução se certo resultado – tratamento de contabilidade – mediante ou contra o pagamento de certa retribuição – artigo1154º do CCivil.
Porque é assim, é aplicável a um tal contrato o disposto no artigo 1156º do CCivil que estabelece que as disposições do contrato de mandato são extensivas, com as necessárias adaptações, às modalidades do contrato de serviço de prestação de serviços que a lei não regule especialmente.
Ora, relativamente ao mandatário prevê a lei expressamente que o mesmo goza de um direito de retenção sobre as coisas que lhe tiverem sido entregues para execução do mandato, pelo crédito resultante da sua actividade – artigo 755º nº1 c) do Código Civil.

Assim sendo, embora seja certo que não esteja previsto no Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas um qualquer direito de retenção tal direito resulta directamente da lei civil, nomeadamente das convocadas disposições dos artigos 1156º e 755º nº1 c) do CCivil.

Contra não colhe a doutrina do Ac. RCoimbra de 21-1-2014 (dgsi.pt) convocado pela assistente; é que, salvo o devido respeito pela referida doutrina, esta assenta a conclusão da inexistência de um direito de retenção dos TOC por referência à verificação dos pressupostos do direito de retenção reconhecido aos depositários (art. 755º nº1 e) do CCivil), quando (para nós) a existência do direito de retenção dos TOC’s deve fazer-se, de modo diverso, por referência ao contrato de prestação de serviços

Efectivamente, o depósito da documentação contabilística não corresponde (salvo melhor entendimento) à prestação essencial do contrato em causa mas apenas a um dever lateral que não lhe molda a natureza jurídica. Mais de que cujo mero contrato de depósito de certa documentação o contrato com um TOC para elaboração da contabilidade tem como dever essencial a prestação desse resultado e é esse dever essencial do contrato que define a sua natureza jurídica identificando-o, como se disse, afinal como um (mais abrangente) contrato de prestação de serviços ao qual são aplicáveis as regras do mandato, incluindo quanto ao reconhecimento de um direito de retenção.

Concluindo como exposto pela verificação de um direito de retenção dos documentos em causa por parte da arguida para satisfação dos seus créditos sobre a ofendida resultante do contrato com ela celebrado, está excluída a ilegitimidade da apropriação dos documentos em causa, para efeitos de preenchimento do tipo legal do crime de abuso de confiança, independentemente da questão (a dirimir na sede cível) quanto à efectiva existência e montante do crédito em causa e consequências para a ofendida de uma eventual inexistência do invocado crédito.

Uma última nota para dizer que, mesmo que assim se não entendesse – concluindo pela não existência de direito de retenção por parte da arguida – ainda assim não poderia a mesma ser pronunciada, então por verificação de uma situação de «erro» sobre os pressupostos de uma causa de exclusão da ilicitude – precisamente o direito de retenção – erro que, nos termos do artigo 16º nº2 do CPenal excluiria o dolo exigível.
***
IV. Decisão:
Face ao exposto, decide-se proferir DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA quanto ao crime de abuso de confiança imputado pela assistente B… à arguida D….
Custas pelo assistente requerente da Instrução fixadas em 2 UC’s.
Notifique» [10].

Inconformada com o decidido, em tempo a ASSISTENTE interpôs RECURSO pela Declaração de interposição com MOTIVAÇÃO a fls 237-251 = 252-264 rematada com as sgs 16 CONCLUSÕES [11]:

1. O presente recurso tem por objecto a existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão do despacho recorrido e de toda a matéria de direito do douto despacho proferido nos presentes autos.

2. O douto despacho de não pronúncia sofre do vício apontado na alínea b) do artigo 410.º, número 2 do Código de Processo Penal.

3. A construção do douto despacho recorrido é vicioso, uma vez que os fundamentos e factos indiciados e não indiciados têm que conduzir a uma decisão de sentido oposto ou pelo menos diferente.

4. O Tribunal a quo considerou como factos indiciados, No parágrafo 2 na motivação e análise critica: “ quanto à apropriação: a apropriação não se confunde com a intenção de apropriação. Que houve apropriação resulta da recusa sucessiva na entrega dos documentos em causa retirando a sua disponibilidade e utilidades à ofendida. Contra não se diga que os documentos acabaram por ser entregues; é que tal configura uma restituição à posteriori que em nada colide (antes confirma dada a sede em que foi feita- no decurso de processo judicial) a anterior apropriação. Contra também não se argumente que o que não foi restituído não foi afinal elaborado; é que sendo isso inteiramente verdade o objecto da indiciada apropriação não corresponde a tais documentos ( não elaborados e por isso nunca retidos) mas, de outro lado, aos restantes documentos contabilisticos” e no parágrafo seguinte o mesmo Juíz de Instrução considerou:” – Quanto à alegada intenção da arguida: resulta dos autos que existia um litigio entre a ofendida e arguida quanto ao pagamento da remuneração da arguida por serviços prestados à ofendida. Foi neste quadro que a arguida, pretendendo obter da ofendida aquilo, a que na sua óptica teria direito, se apropriou dos documentos em causa. Ora, sendo certo que não agiu portanto, com dolo directo, o certo é que actuou com dolo necessário, ou seja representando como possível a apropriação dos documentos como consequência última do não pagamento da sua retribuição, nem por isso deixou de actuar nesse sentido por tal ser necessário ao pretendido pagamento.”

5. Por outro lado, considerou como não indiciado os factos respeitantes à “subsistência e montante dos alegados créditos da arguida sobre a ofendida; por não ter sido feita prova idónea sobre a matéria, sendo que se trata de matéria civel a dirimir em sede própria.”
6. Ao considerar que a arguida não logrou provar a existência e montante de crédito em causa, o Tribunal a quo deveria ter proferido um despacho de sentido oposto ao que proferiu, ou seja deveria ter proferido um despacho de pronúncia porquanto não se verificou qualquer direito de retenção por parte da arguida dos documentos em causa, logo tal despacho enferma do referido vício, o que desde já se invoca para todos os efeitos legais.

7. Caso assim não se entenda por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que, impugnando a matéria de direito, o Exmo Juíz de Instrução considerou pela verificação de um direito de retenção dos documentos em causa por parte da arguida para a satisfação dos seus créditos sobre a ofendida resultante do contrato com ela celebrado, o que excluiria a ilegitimidade da apropriação dos documentos em causa, para efeitos de preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança.

8. Conforme consta do douto despacho recorrido não resultou qualquer indicio suficiente da subsistência e do montante do alegado crédito da arguida sobre ofendida, não logrando a arguida provar a existência do alegado direito de retenção.

9. No entanto, independentemente de se saber se a arguida era ou não credora de quaisquer valores sobre a assistente, a recusa de entrega de documentos é abusiva, ilegítima, abusiva e ilegal.

10. Um contabilista não goza do direito de reter e de não entregar documentos/pastas de contabilidade enquanto não lhe forem pagos valores de serviços resultantes de contabilidade, Não se vislumbrando no Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas, Decreto-Lei 452/99 de 5 de Novembro, alterado pelo Decreto-Lei 310/2009, qualquer norma que lhe confira o direito de retenção, veja-se nesse sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24 de Janeiro de 2014, do Relator Barateiro Martins, disponível em www.dgsi.pt.

11. Os livros e demais documentação contabilística são legitima propriedade das sociedades a quem o TOC presta serviços.

12. O artigo 16.º do Código Deontológico dos TOC refere que é obrigatória a devolução de documentos no caso de rescisão do contrato, tendo o TOC um prazo de 60 dias para o fazer a entrega de toda a documentação compreende as declarações fiscais e demais anexos, livros selados, todos os mapas, extractos, registos e respectivos documentos de suporte, não sendo, portanto licito um TOC reter a documentação da sociedade, independentemente da eventual existência de créditos a haver em virtude da relação contratual.

13. Logo, existem indícios sufi[ci]entes que a arguida se apropriou dos documentos ilegitimamente pertencentes à assistente.

14. Encontrando-se verificados, ao contrário do entendimento do douto despacho recorrido, todos os elemento subjetivos e objetivos do tipo de crime tipificado no artigo 205.º, número 1 do Código Penal, o crime de abuso de confiança.

15. Pelo que deveria o Meritissimo Juíz ter proferido despacho de pronúncia da arguida julgando procedente e provado o requerimento de abertura de instrução.
16. Pelo exposto, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 205.º, número 1 do C.P., assim como o preceito do artigo 308, nº 1 do Código de Processo Penal.

● Termos em que e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser a arguida pronunciada pela prática de crime de abuso de confiança, previsto e punido no artigo 205.º, número 1 do Código Penal» [12].

ADMITIDO o Recurso a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo para este TRP ut arts 310-1, 399, 401-1-b-II, 406-1, 407-2-a, 408 a contrario e 427 do CPP por Despacho a fls 267 notificado aos Sujeitos Processuais inclusive nos termos e para os efeitos dos arts 411-6 e 413-1 do CPP, apenas o MINISTÉRIO PÚBLICO apresentou RESPOSTA a fls 271-274 com a «CONCLUSÃO» única que «A decisão instrutória de não pronúncia não merece qualquer reparo, não enfermando de qualquer vício de natureza formal ou substancial que inquine a sua validade material, e por isso, deve ser mantida nos seus precisos termos» por considerar – após destaque das conclusões 1 a 3 e 16 e pedido in Motivação - «… não assistir razão à assistente» porquanto:

«Na decisão recorrida, entendeu o Mmo Juiz que os TOC (Técnicos Oficiais de Contas) gozam de um direito de retenção sobre o depósito da documentação contabilística, uma vez que o contrato que os mesmos celebram se caracteriza, em termos jurídicos, como um contrato de prestação de serviços cuja obrigação principal é a execução de certo resultado – tratamento de contabilidade, sendo o depósito da documentação um mero reflexo lateral – contra o pagamento de certa retribuição, aplicando-se, por isso, ao mesmo, o regime jurídico tipificado no Código Civil, mormente o art. 1156º, que estipula que as disposições do contrato de mandato são extensivas, com as necessárias adaptações, às modalidades do contrato de prestação de serviços.

Prevendo a lei, relativamente ao mandatário, que o mesmo goza de um direito de retenção sobre as coisas que lhe tiverem sido entregues para execução do mandato, pelo crédito resultante da sua actividade – cfr. art. 755º, nº 1, al. c) do Código Civil, tal direito verifica-se, igualmente, na esfera dos TOC sobre a documentação contabilística que lhe tenha sido entregue para execução da obrigação principal decorrente da celebração do contrato de prestação de serviços de tratamento da contabilidade da outra parte (seja pessoa colectiva e/ou pessoa individual).

Perante este regime legal e atenta a matéria probatória reunida, entendeu o Mmo JIC e, em nosso entendimento, muito bem que não se mostra, nos autos, indiciado um dos elementos típicos do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205º do Código Penal, qual seja, que a arguida se tenha apropriado de forma ilegítima dos documentos contabilísticos que lhe haviam sido entregues pela assistente destinando-se os mesmos ao cumprimento do contrato de prestação de serviços de contabilidade que haviam celebrado.

Com efeito, nos termos deste normativo, comete o crime de abuso de confiança:" Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade”.

São assim elementos deste tipo legal: | - A apropriação ilegítima; | - De coisa móvel; | - Entregue por título não translativo de propriedade.

A consumação do crime verifica-se com a apropriação, isto é, com a inversão do título da posse, situação que ocorre quando, estando a coisa em causa na posse ou detenção do agente por modo legítimo, embora por título não translativo de propriedade, este se apropria daquela, passando a actuar como seu dono, com o propósito de não a restituir.

Ora, mostrando-se indiciado que a arguida agiu do modo descrito no requerimento de abertura de instrução na convicção de que poderia ficar com os documentos até que lhe fossem pagos os honorários decorrentes dos serviços que havia prestado, e que o regime jurídico do contrato de prestação de serviços de contabilidade, por força do estipulado nos arts. 1154º, 1156º e 755, nº 1, al. c) todos do Código Civil, prevê a figura do direito de retenção, teremos de concluir, como o Mmo JIC, que a conduta da arguida não preenche o elemento típico do crime de abuso de confiança – apropriação ilegítima.

Com efeito, atentos indícios carreados para os autos durante as fases de inquérito e instrução, a arguida actuou na convicção que estava a exercer um direito de retenção dos documentos, enquanto não fosse ressarcida dos montantes, que em seu entendimento, lhe eram devidos como contrapartida da sua actividade de contabilista.

Sendo que não é de relevar, ao contrário do que pretende a recorrente, que não tenha sido apurado, em sede de instrução, dos montantes eventualmente em divida.

Face ao supra exposto, não vislumbra o Ministério Publico que a decisão sob recurso enferma de qualquer vício, designadamente não se vislumbra qualquer contradição insanável entre a fundamentação quer de direito quer de facto e a decisão de não pronuncia proferida.

Daí que, em coerência entre a factualidade indiciada e o direito aplicável, outra conclusão não poderia extrair o julgador, senão a de que a arguida não cometeu o crime de abuso confiança, decidindo, por isso, pela sua não pronúncia» [13].

Em Vista ut art 416-1 do CPP a Exma Procuradora Geral Adjunta emitiu a fls 285 II o PARECER «… de confirmação de confirmação da decisão impugnada» após «… dizer que nos louvamos nas considerações da Resposta da Ex.ma Procuradora da República junto do Tribunal recorrido, sendo que a argumentação ali desenvolvida, merece o nosso acolhimento, bem como os fundamentos e elementos (nomeadamente factuais e normativos) aduzidos – o que nos dispensa do aditamento de mais desenvolvimentos considerandos em defesa do decidido» [14].

NOTIFICADOS os demais Sujeitos Processuais para, querendo, responderem em 10 dias seguidos ex vi art 417-2 do CPP, NÃO apresentaram Resposta.

Na oportunidade efectuado EXAME PRELIMINAR e colhidos os VISTOS LEGAIS os autos foram submetidos à CONFERÊNCIA.
APRECIANDO

Salvo o devido respeito, é penal processual penalmente inócuo discutir a existência ou não de «direito de retenção» - e a questão subsidiária de um «erro sobre os pressupostos de facto de uma tal «causa de justificação» especial - da Arguida sobre documentos da contabilidade de C…, LDA - por crédito/s de prestação do trabalho profissional de Técnica Oficial de Contas daquela para esta - pelo facto de tais discussões de facto e de Direito redundarem em exercício académico sem qualquer relevância à decisão de confirmação ou revogação do Despacho recorrido pela simples mas decisiva razão - a montante e não a jusante daquelas - do RAI da Assistente não conter uma narração de factos susceptíveis de constituírem todos os elementos objectivos e subjectivos comummente tidos doutrinal e jurisprudencialmente como consubstanciadores da autoria material pela Arguida de doloso de abuso de confiança qualificada pela profissão do art 205-1-5 do CP - o que devia ter determinado logo uma rejeição liminar da abertura de Instrução por sua inadmissibilidade legal - pelo facto do RAI da Assistente não conter a imputação de facto verbi gratiae que:

A Arguida agiu de modo livre, consciente e deliberado com o executado propósito conseguido de fazer seus os documentos da contabilidade de C…, Lda, sem o consentimento e mesmo contra a vontade desta que lhos entregara para exercício das funções de Técnica Oficial de Contas apesar de bem saber que a sua conduta era proibida e punida por Lei Criminal.

Com efeito, lidos e revistos os 41 §§ do RAI citados nas pgs 4 a 8 em sede de Relatório deste Acórdão, do § 6 ressuma que a Assistente pretende a Pronúncia da Arguida pela autoria material do crime doloso de abuso de confiança qualificada pela profissão do art 205-1-5 do CP, por considerar a Assistente que «… estão demonstrados …» os seguintes «… factos alegados na participação …»:

a. “A firma denunciante dedica-se, com fins lucrativos à actividade de restauração, sendo a denunciante gerente da mesma e sua única sócia.

b. … no inicio da actividade da firma denunciante, em 3 de Junho de 2008, a denunciante na qualidade de legal representante daquela contratou a denunciada para desempenhar a função de técnica oficial de contas.

c. No dia 19 de Novembro de 2010, a denunciante comunicou à denunciada que pretendia rescindir o contrato de prestação de serviços a partir de 1 de Outubro de 2010 …

d. Contudo, de acordo com a informação da denunciada esta já teria efectuado serviços para a firma denunciante referentes ao mês de Outubro, mormente tratamento de salários junto da Segurança Social …

e. E alegou que se iria informar junto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas se existiria um período mínimo de pré-aviso para se comunicar a rescisão de serviços …

f. Perante os argumentos apresentados, e depois de uma reunião realizada com a participada, acordaram que esta efectuaria o fecho do ano de 2010 e todas as tarefas que daí adviessem …

g. A denunciante convenceu-se que teria toda a colaboração necessária por parte da participada, incluindo a posterior entrega da documentação contabilística pertencente à firma-denunciante, uma vez que pretendia cessar a actividade.

h. Intenção que, desde logo, foi comunicada à denunciada.

i. Certo é, que desde Março de 2011, a denunciante tem encetado diversas tentativas para reaver a sua documentação contabilística que se têm revelado infrutíferas.

J. A denunciante enviou diversas cartas registadas em 22 de Março de 2011, 19 de Maio de 2011, 17 de Junho de 2011, 16 de Setembro de 2011, 15 de Outubro de 2012, 5 de Novembro de 2012; e-mails no dia 19 de Maio de 2011, 6 de Junho de 2011, 17 de Junho de 2011 e tentou presencialmente no dia 21 de Dezembro de 2012 …

k. Apresentou duas queixas junto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas que também se revelaram infrutíferas …

l. Apesar das diversas vezes interpelada, a denunciada inicialmente foi iludindo a denunciante dizendo-lhe que lhe entregaria posteriormente a documentação.

m. A partir de Dezembro de 2012, recusou-se devolvê-la, dela se tendo apropriado.

n. Alegando que a firma-denunciante teria uma avença ainda em atraso.

o. Facto que não corresponde à verdade.

p. A denunciante para reaver a documentação contabilística resolveu liquidar a alegada avença em atraso.

q. No entanto, a denunciada nem assim devolveu a referida documentação, continuando a recusar-se a devolvê-la e dela se apropriando.

r. Com os referidos comportamentos, a denunciada causou um elevado prejuízo patrimonial à denunciante e à firma denunciante».

É certo que dos §§ 7 a 41 do RAI da Assistente mais consta – mas sem estar recoberto pelo segmento «factos alegados na participação …[que] … estão demonstrados…» do § 6 do RAI - que:

8. Mais, o Diginissimo Procurador do Ministério Público considerou que para que se possa imputar a alguém a prática do crime de abuso de confiança impriscindivel é que seja possível afirmar que agiu com vontade e a intenção de se apropriar de coisa alheia a que bem sabia não ter direito, o que manifestamente não foi o caso.

9. Ora, como se encontra provado pelos documentos juntos aos autos e como se procurará mais uma vez demonstrar infra, a arguida teve intenção de se apropriar e fazer sua propriedade de documentos pertencentes à firma denunciante.

21. Conforme documentos n.°s 4 a 23 juntos aos autos pela assistente e pelos depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de inquérito, os contactos para que a documentação fosse entregue foram feitos não pela arguida mas por aquela e pelo seu actual contabilista.

22. À arguida foram feitas inúmeras interpelações e tentativas por parte da assistente para reaver a documentação da Empresa, as quais nunca mereceu resposta por parte da arguida.

23. Se a arguida não tivesse intenção e vontade de se apropriar ilegitimamente dos documentos pertencentes à sociedade e se tivesse intenção, conforme alegou, de entregar a documentação, perante as interpelações seja entregaria a documentação solicitada.

24. Por outro lado, não existia qualquer valor em atraso que justificasse a retenção de documentos, conforme documentos n.° 4 a 23 juntos aos autos pela assistente e pelos depoimentos prestados pelas testemunhas em sede de inquérito.

25. A assistente sempre demonstrou a sua oposição relativamente à existência dos valores em atraso.

33. Nesse processo foi lavrado termo de transação do qual resultou o documento junto aos autos pela própria arguida no qual se constata que, em 24 de Janeiro de 2014, o ora patrono da assistente recepcionou documentação por parte da arguida.

34. No entanto, de tal documento também consta a declaração do patrono da assistente de que desconhecia o conteúdo das pastas e se das mesmas se encontravam presentes de todos documentos especificados no acordo homologado em Tribunal.

35. Certo é que os documentos constantes do acordo de transação não constavam nas pastas entregues ao então mandatário da assistente.

36. Logo, a arguida continua a apropriar-se de documentos pertencentes à sociedade representada pela assistente».

Porém, trata-se de imputação hoc sensu dalguns «factos objectivos» e «juízos de facto» após recopilação de argumentações do Despacho de Arquivamento do MP para serem - como foram - objecto de contra-argumentações - e por meio de apreciação de meios de prova - pela Assistente que, no final do RAI, não apresentou - podendo-o e devendo-o ex vi art 283-3-b aplicável ut art 287-2-II do CPP - uma «narração, ainda que sintéctica, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena», isto é, todos os elementos objectivos e todos os elementos subjectivos constitutivos da autoria material do crime doloso de abuso de confiança qualificado do art 205-1-5 do CP, concretamente falhando in casu pelo menos a imputação hoc sensu da liberdade de agir da agente, a consciência pela agente da conduta como sua, o tipo de vontade de actuação da agente e a consciência pela agente da ilicitude criminal /penal da conduta dele que consabidamente fundamentam a responsabilidade criminal querida pela Assistente, apesar de ser consabido que:

«Nos termos do artigo 286º/1 do CPP, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Dizer, visa a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito. Dizer também, a instrução não é em face da lei um novo inquérito – sem prejuízo do suplemento de investigação autónoma que o juiz de instrução pode levar a cabo (2) – mas um mecanismo de comprovação.

Desta arte, se a finalidade da instrução é a prolação de uma comprovação judicial seja da decisão de dedução de acusação, seja da decisão de arquivamento do processo, naturalmente ela deverá conduzir à prolação de um “despacho de pronúncia ou de não pronúncia” [307º/1 CPP]

Em conformidade do que – assim se acompanhando Pinto de Albuquerque - “Não há lugar a instrução se se verificar uma nulidade insanável ou irregularidade não sanada, da acusação ou do arquivamento.” (3)

E à luz deste entendimento torna-se perfeitamente compreensível o indeferimento in limine, confinado à nulidade em causa, dizer falta de acusação.

Posto que a lei consigne a nulidade [«A acusação contém, sob pena de nulidade…» (283º/3CPP)] e esta não deva ser entendida como absoluta ou insanável [119º, a contrario, CPP], entende-se que, com referência ao momento seja da apreciação in limine litis do Requerimento da Abertura da Instrução – e este é o caso -, seja na prolação da Decisão Instrutória, seja no despacho de saneamento do processo [311ºCPP] o regime aplicável não é o decorrente do artº 122º do CPP – ao menos na ideia de que ao juiz, por força do apontado princípio da acusação e/ou da vinculação temática, não lhe é «possível» proceder/ordenar/convidar à «repetição» - é, antes, o decorrente da norma ínsita no referido artigo 311º (rejeição da acusação), a traduzir, no âmbito da instrução, ora pelo não recebimento liminar (posto que parcial) do requerimento da abertura da instrução, ora por uma decisão final de não pronúncia, tudo como vem de ser referido.

Mutatis mutandis, tem aqui, se bem se ajuíza, inteira pertinência, toda a argumentação subjacente ao Acórdão nº7/2005 (Processo 430/2004 – 3ª Sec.) (4) que fixou jurisprudência nos seguintes termos:

«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.»

A partir da questão “sobre se deve o juiz convidar o assistente a colmatar o seu requerimento de instrução sempre que enferme de deficiente narração factual e de direito” o STJ foi reconhecendo ora “a ausência de qualquer segmento normativo proibindo ou negando o convite ao aperfeiçoamento”, ora que o figurino do processo civil – apelativo, por via do princípio da cooperação inter-subjetiva, à transformação do processo numa autêntica comunidade de trabalho – “não se harmoniza com o processo penal”, “já que o processo penal se não identifica com um processo de partes, de disponibilidade de interesses privados, antes vocacionado à realização da paz pública, segurança social e paz jurídica entre os cidadãos”: “aquela natureza dificilmente combateria disfuncionalidades, desvios e abusos, que o legislador reputou e detetou como responsáveis pela frustração de uma justiça tempestiva e eficaz”.

Tomando como certa a identificação do RAI (requerimento de abertura de instrução) como “uma verdadeira acusação”, conclui aquele alto tribunal no sentido de que “a falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respetiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283º nº3 alínea b) e 311º nºs 2 al. a) e 3 al. b) do CPP”.
Justifica, então, aquele mesmo Tribunal que sendo inadmissível o convite à correcção de uma acusação estruturada deficientemente, sai igualmente inadmissível o convite à correcção do RAI:

«A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a perentoriedade da consequência legal desencadeada: o ser manifestamente fundada igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.»

É que, como ainda ali se justifica:

«Uma ilimitada investigação levada a cabo pelo juiz de instrução buliria com o princípio da acusação, pois seria ele a delimitar o objeto do processo contra os peremtórios termos do artº 311º nº3 alínea b) do CPP, não sendo curial, …, o tribunal substituir-se aos profissionais do foro…»

«O convite à correção dilataria o termo final do desfecho da instrução,…, brigando com a celeridade de uma fase intercalar do processo, cogitada para ser breve…»

«A renovação, pelo convite à apresentação de um novo requerimento, obstaria ao trânsito do despacho de não pronúncia e exporia o arguido à possibilidade de ver renovada a acusação, quando pela acusação o arguido adquire a garantia de ser julgado pelos factos dela constantes, por forma irrepetível e definitiva.

Significante, ainda, estar vedado ao juiz do julgamento direcionar convite ao Ministério Público para completar o elenco factual acusatório, ante e com apoio nos termos peremtórios do citado artigo 311º nº3 al. b).»

Acresce.

De acordo com a Constituição da República, o princípio estruturante do processo penal é o princípio acusatório – o processo penal tem estrutura acusatória [Artigo 32º/1 CRP].

Este princípio reitor da vinculação temática ou da acusação reconduz-se, no essencial, à ideia de que a acusação ou a pronúncia definem e fixam, perante o tribunal, o objecto do processo.

Gomes Canotilho e Vital Moreira - que delimitam o respectivo conteúdo normativo à ideia de que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento», - não hesitam em considerá-lo «um dos princípios estruturantes da constituição processual penal» e «uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial» (5)

Assumindo-o, o legislador ordinário a ele se referiu, expressis verbis, no Preâmbulo do C.P.Penal aprovado pelo DL 78/87:

“Por apego deliberado a uma das conquistas mais marcantes do progresso civilizacional democrático, e por obediência ao mandato constitucional, o Código perspectivou um processo de estrutura basicamente acusatória. Contudo – e sem a mínima transigência no que às autênticas exigências do acusatório respeita -, procurou temperar o empenho na maximização da acusatoriedade com um princípio de investigação oficial, válido tanto para efeito de acusação como de julgamento.»

Figueiredo Dias, que tem o princípio da acusação como “a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido - … - que assim se vê protegido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal e assegura os seus direitos de contraditoriedade e audiência”, ensina, em termos práticos:

«deve… firmar-se que objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (actividade cognitória…) e a extensão do caso julgado (actividade decisória…). É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consumpção do objecto do processo penal; os princípios, isto é, segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e – mesmo quando o não tenha sido – deve considerar-se irrepetivelmente decidido.» (6)

Com uma tal estrutura acusatória quer-se significar, segundo ensinamento do mesmo mestre de Coimbra, que “a imparcialidade e objectividade que, conjuntamente com a independência, são condições indispensáveis de uma autêntica decisão judicial só estarão asseguradas quando a entidade julgadora não tenha também funções de investigação preliminar e acusação das infracções, mas antes possa apenas investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado (em regra o MP ou um juiz de instrução).”(7)

Axiologicamente conexionado com este princípio do acusatório ou da vinculação temática (ne procedat iudex ex officio), aquele outro do processo equitativo, do processo justo, do processo devido (due process), qual exigência do Estado de Direito (8) (9) (10), a impor, nomeadamente, que a verdade só possa ser procurada de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com o integral respeito dos direitos fundamentais das pessoas que no processo se vêem envolvidas. (11)

É exactamente na atenção à filosofia subjacente à lei penal adjectiva nos pontos em que, quais princípios reitores, assume, de uma parte, a estrutura basicamente acusatória do processo penal e, de outra, na decorrência desta mesma estrutura acusatória, confere uma específica relevância ao inquérito, que este, “convertido na fase geral e normal de preparar a decisão de acusação ou de não acusação”, é realizado “sob a titularidade e a direcção do Ministério Público a quem, exactamente por lhe ser deferida tal titularidade bem como a competência exclusiva para a promoção processual, é atribuído não o estatuto de parte, mas o de uma autêntica magistratura sujeita ao estrito dever de objectividade”. (12)

Não se olvide, porém, que aquele papel de titular da ação penal e de direção do inquérito não apaga a posição ancilar do assistente: é colaborador do Ministério Público a cuja actividade subordina a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei [Artigo 69º/1 C.P.P] (13)

Pela mesma razão de ser, atinente à dita estrutura acusatória, constituindo-se a lide em uma disputa entre duas partes – a acusação (deduzida esta pelo MºPº ou pelo Assistente sob a forma de RAI) e a defesa – será ao juiz/tribunal – independente e acima daquelas – que competirá discipliná-la.
Mas porque ao juiz competirá o exercício, independente e imparcial, do ius dicere, então não lhe poderão competir funções de promover o processo (ne procedat judex ex officio), como, de igual passo, lhe ficará defesa a condenação para além da acusação.

DESTARTE.

A estrutura acusatória do processo penal – a consubstanciar, de par com a garantia do direito de defesa, a concretização da axiologia inerente a um Estado de direito democrático – obriga a que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados, seja na acusação, seja no requerimento de abertura de instrução equivalente a acusação.

Esta, como é de todos sabido, sob a unidade lógica da conclusão – identificável com a sanção penal requerida - deve ser construída de maneira que possa converter-se num silogismo, em que a premissa maior sejam os elementos-do-tipo do ilícito (fattispecie penal) e a premissa menor os factos histórico-concretos que preenchem aqueles.

Exige-se, então, sob pena de comprometimento irremediável do êxito da lide, que a narração destes contenha os factos pertinentes à causa, ou dizer os factos necessários e suficientes, verdadeiramente relevantes, que sejam indispensáveis para a definição do direito para o caso concreto (iuris dictio).

Tenham-se presentes, a este propósito, os termos que a lei adjectiva penal aponta relativamente à descrição do conteúdo da acusação.

Diz o artigo 283º/3 do C.P.Penal que “A acusação contém sob pena de nulidade: b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção”

Exigências quanto ao conteúdo da acusação igualmente aplicáveis ao despacho de pronúncia, por força do preceituado no artigo 308º, nº 2, do mesmo código.

Se bem se interpreta, a norma não estabelece qualquer vinculação narrativa, posto que, sem prejuízo de que a narração deva ser sintética, determina que seja de factos, de factos com relevância juspenal, assim com referência aos elementos objectivos do tipo-do-ilícito, assim com referência ao elemento subjectivo - como sejam a consciência da prática do acto, o conhecimento da ilicitude, a voluntariedade da conduta - assim, ainda, com referência aos elementos pertinentes ao apuro do grau de censurabilidade ético-jurídica merecida (culpa).

Factos que, devendo pertencer à realidade histórico-existencial, tanto podem revestir a natureza material como assumir natureza espiritual (v.g. a consciência da ilicitude, a voluntariedade na prática do acto, a decisão livre e consciente, a motivação/ intenção ou propósito de)

De todo o modo, na decorrência do princípio da vinculação temática, exigir-se-á que a narração dos factos que constituem os elementos do crime seja, de uma parte, suficientemente clara, perceptível e inequívoca, – até para que o arguido possa saber, com precisão, do que vem acusado – como, de outra parte, exigir-se-á que contenha, ainda que de forma sintética, uma descrição dos factos efectuada «descriminada e precisa com relação a cada um dos actos constitutivos do crime», mencionando «todos os elementos da infracção» e quais «os factos que o arguido realizou», (14) num e outro caso para que o objecto do processo fique claramente definido e fixado visto que será perante o quadro fáctico nele assim descrito que o mesmo arguido deverá elaborar a sua estratégia de defesa e que a acusação definirá e fixará o objecto do processo, limitando a actividade cognitiva e decisória do tribunal.

É tempo de descer à questão em concreto suscitada no thema decidendum: exigibilidade ou não de uma específica referência à consciência da ilicitude, no libelo acusatório? (15)

Uma vez aqui, importa tomar em linha de conta, posto que em termos breves, as referências decorrentes (i) já da fundamentação recursiva [«encontram-se alegados factos suficientes e susceptíveis de permitirem ao Tribunal que, através de operações dedutivas, estabeleça a existência de dolo e a consciência da ilicitude do arguido»] (ii) já mesmo do douto Parecer do Exmo. Procurador –Geral Adjunto [«posto que no RAI não se faça qualquer alusão à consciência pelo Arguido da ilicitude dos factos, tal alusão, ainda que omitida, é de conclusão forçosa, enquanto resultante das presunções judiciais e da experiência comum, na medida em que, qualquer cidadão normal, ao atuar como descrito, forçosamente sabe que está a agir contra o ordenamento jurídico que protege os bens alheios»].

Atalhando, não se subscreve a argumentação expendida.

Bastaria tomar em linha de conta a conclusão 5ª do recurso interposto: «o legislador pretende é que ao submeter-se uma pessoa a julgamento se definam os seus actos e a postura subjetiva com que agiu»

O Recorrente toma como exigência legal – seguramente, em obediência ao imperativo do sobredito princípio da vinculação temática – que a acusação defina a postura subjetiva com que o arguido acusado agiu.

Nos termos do artigo 1º al.a) do CPP, considera-se «crime» o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais.

Consabidamente, a conceção pessoal do ilícito supõe uma construção bipartida do tipo objetivo e subjetivo do ilícito.

No que a esta última concerne – a que ora importa -, é igualmente de todos sabido que o tipo subjetivo do ilícito, na forma dolosa, inclui o dolo do tipo (ou dolo do facto) e os elementos especiais subjetivos (ou elementos subjetivos do tipo).

O dolo do tipo consiste no conhecimento [elemento cognitivo ou intelectual do dolo] e vontade [elemento volitivo do dolo] de realização da ação típica.

Certo, todavia, para que exista o crime não basta que uma conduta seja tipicamente antijurídica, é preciso também que ela possa ser reprovada ao seu agente, isto é que seja culposa.

Assim, ao lado do juízo de valor que refere o comportamento humano a bens ou valores jurídicos, outro juízo de valor se requer como elemento do crime – a culpa, a qual se analisa na censura dum certo facto típico à pessoa do seu agente» (16)

Integra o tipo de culpa a “consciência da antijuridicidade (da ilicitude ou do lilícito), a avaliar em função duma disposição interna (concorde ou não concorde com a norma) no plano em que o agente se dá ou não dá conta (e em que medida tal acontece) de que viola a lei ou da punibilidade do facto, ou seja, de que o seu comportamento é proibido” (17) (18)

Ainda no dizer de Eduardo Correia, que vem de se citar, «…para se afirmar o elemento intelectual do dolo não basta que o agente tenha conhecido ou representado todos os elementos constitutivos do tipo legal de crime, mas é ainda necessário que tenha tido conhecimento do seu sentido ou significado, isto é, que tenha atuado com consciência da ilicitude», «Se o agente atua sem consciência da ilicitude ele não se propõe, na verdade, um fim ilícito» (19) (20)

Se o ensinamento de Eduardo Correia – para quem o erro era a outra face do dolo – valia, no que vem de ser exposto, relativamente a um Código Penal onde a ignorância da lei penal não eximia da responsabilidade criminal (Artº 29º/1 do CP 1886), vale hoje muito mais em face da lei penal vigente, visto nomeadamente o teor dos artigos 16º e 17º da lei penal substantiva.

Subscreve-se por inteiro neste particular, GERMANO MARQUES DA SILVA:

«A partir do momento em que a lei deixou de presumir o conhecimento da lei incriminadora ou pelo menos deixou de considerar irrelevante para efeitos de punição o seu desconhecimento e considera que a consciência da ilicitude é elemento essencial da censurabilidade, entende-se também a necessidade da indicação da lei aplicável na própria acusação e no despacho de pronúncia, sob pena de nulidade. É que agora, contrariamente ao regime do Código Penal anterior, a consciência da ilicitude é essencial para a punibilidade do facto e, por isso, a existência dessa consciência tem de ser objeto de acusação e de prova, é pressuposto da punição e, portanto, faz parte também do objeto do processo (21)

Ora uma coisa é acusar o facto, outra, bem distinta, é dizer como poderá o Tribunal chegar à comprovação do facto. Aquele, terá de constar da acusação, integrar o respetivo objeto. A atividade em sede de produção de prova decorrerá do julgamento.

Coisa diferente, ainda, o recurso, no exercício judiciário da livre apreciação da prova, às presunções naturais. (22)

Consabidamente, a prova nem sempre é directa, de percepção imediata. Infere-se, muitas vezes. Factos há – sejam por exemplo os factos internos ou “de alma - a que só por revelação do próprio ou por dedução com recurso às presunções naturais e de acordo com as regras da experiência comum – vale dizer, com recurso às certezas emergentes do id quod plerumque accidit, que nenhuma liberdade pode contrariar - se pode chegar.

Não teve o Recorrente, neste conspecto, dificuldade em alegar na acusação um juízo de facto, quando imputou ao arguido a intenção de provocar mais estragos” !

Nesta ordem de ideias, não se compreende a justificação apelativa às “expressões sacramentais” quando podia e devia - se tinha tal juízo de facto por suficientemente indiciado na prova produzida em sede de inquérito - alegar factos atinentes à consciência da ilicitude – ou correspectivo juízo de facto - com que o arguido tivesse agido.

Não o fez, sibi imputet!

Não valem, salvaguardado o devido respeito p.m.o., as considerações tecidas ora no sentido de que “encontram-se alegados factos suficientes e susceptíveis de permitirem ao Tribunal que, através de operações dedutivas, estabeleça a existência de dolo e a consciência da ilicitude do arguido» ora de que esta “é de conclusão forçosa, enquanto resultante das presunções judiciais e da experiência comum, na medida em que, qualquer cidadão normal, ao atuar como descrito, forçosamente sabe que está a agir contra o ordenamento jurídico que protege os bens alheios”.

Presunção, neste momento, apenas a decorrente do processo penal constitucional, dizer, a presunção da inocência (23) (24).

Outrossim, seja por prova direta, seja com apelo às presunções naturais, certeza metafísica é, ainda neste momento, que só pode ser objecto de prova, o facto anteriormente alegado. Neste campo, como se deixa entender a propósito do princípio da vinculação temática: quod non este in actis non est in mundo!» [15].

Assim quanto à consciência pelo agente da ilicitude criminal / penal da sua conduta, idem por «identidade de razão» quanto à liberdade de agir da agente e à consciência pela agente da conduta como sua e ao tipo de vontade de actuação da agente, por serem, todos eles, elementos com idêntica relevância constitutiva do crime doloso de abuso de confiança qualificada do art 205-1-5 do CP.

Ora a falta de imputação – res prévia à questão, por isso ulterior, da indiciação em sede de Inquérito ou Instrução ou demonstração em sede de Julgamento - da liberdade de agir da agente e da consciência pela agente da conduta como sua e do tipo de vontade de actuação da agente e da consciência pela agente da ilicitude criminal / penal da sua conduta, enquanto expressivas de um deficiente exercício do «princípio do acusatório», não podem ser supridas através do mecanismo de uma «alteração não substancial dos factos» do art 303 do CPP em sede de Instrução e do art 358 do CPP em sede de Julgamento, sob pena de violação do «princípio da vinculação temática» do Tribunal de Instrução ou do Tribunal de Julgamento pelo conteúdo das peças processuais Acusação ou Pronúncia conforme o imperativo constitucional das «Garantias do processo criminal» do art 32-1-I da CRP.

O que se nota em conformidade com a fundamentação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 1/2015 que «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal» [16].
Disse-se supra «identidade de razão» tendo presente valer na fase de Instrução o art 303-3 do CPP conforme o qual «Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância» tal como na fase de Julgamento vale o art 359-1 do CPP conforme o qual « Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância».

Vale dizer, decide-se atento posto que sobre os exactos termos imputados de facto na Acusação ou no Requerimento de Abertura de Instrução que a substituir, se não constitui todos os elementos objectivos e subjectivos de um tipo legal de crime, Decisão Instrutória de não pronúncia na fase de Instrução e Decisão Final de absolvição na fase de Julgamento salvo se se descobrir, na sequenciada valoração da prova produzida na fase de Inquérito e ou Instrução ou na fase de Julgamento uma nova acção e ou omissão criminosas susceptíveis de constituir «facto novo autonomizável» nos termos e para os efeitos dos arts 303-4 e 359-2 do CPP respectivamente.

É que a imputação inovatória numa Pronúncia ou Decisão Final da liberdade de agir da agente e ou da consciência pela agente da conduta como sua e ou do tipo de vontade de actuação da agente e ou da consciência pela agente da ilicitude criminal / penal da sua conduta constitui não uma «alteração não substancial dos factos» mas uma «alteração substancial dos factos» imprópria por ter efeito jus constitutivo de elementos constitutivos de um tipo legal de crime determinante da aplicação de uma pena que, antes da realização do aditamento inovatório, era pura e simplesmente inaplicável ao Arguido por se tratar de conduta não punível ou atípica.

Disse-se «alteração substancial dos factos» imprópria porque - sendo «alteração substancial dos factos» em sentido próprio apenas «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites mínimos das sanções aplicáveis» ut art 1-f do CPP – se teve em mente o seguinte § da fundamentação do AUJ 1/2015:

«… se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art. 358º do CPP, também não será caso de aplicação do art. 359.º, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais».
DECIDINDO

1. Nega-se provimento ao Recurso da Assistente B…, ainda que por razão diversa das motivadas.

2. Decaída in totum condenam-a em 5 UC de taxa de justiça ut arts 515-1-b do CPP e 8-9 e tabela III do RCP.

3. Notifiquem-se os Sujeitos Processuais conforme art 425-6 do CPP.

4. Transitado, para execução do decidido remeta-se ao Juiz 1 da 2ª Secção de Instrução Criminal da Instância Central de Águeda.

Porto, 23 de Setembro de 2015
Castela Rio
Lígia Figueiredo
____________
[1] Conforme scanerização pelo Relator.
[2] Nota do Relator – a fls 02 consta carimbo de entrada da Denúncia – Queixa no dia 06 NOV 2013.
[3] Conforme scanerização pelo Relator.
[4] Nota do Relator – a fls 129 consta carta datada de 06-6-2011 enviada pela Ordem dos TOC à Arguida capeando o envio de «autorização de recusa de assinatura das declarações fiscais» a fls 130 em que o «… Bastonário … vem … autorizar, de acordo com o nº 1 do Art. 15.º, do Código Deontológico, e com fundamento na falta de pagamento de honorários, … D…, a recusar-se, enquanto persistirem os fundamentos invocados, a assinar as respectivas declarações fiscais e demonstrações financeiras do sujeito passinho “C…, Lda”, … relativas ao exercício de 2010».
[5] «Cfr. também José Mouraz Lopes, Garantia Judiciária no Processo Penal – Do Juiz e da Instrução, Coimbra, 2000, pág. 68 v. e ss..».
[6] «Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 237».
[7] «Do Processo Penal..., pág. 347».
[8] «João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, citado por Germano Marques da Silva, op. e loc. cit.».
[9] «Op. e loc. cit..».
[10] Conforme copy paste do suporte digital oportunamente com o processo.
[11] Delimitadoras de objecto de Recurso e poderes de cognição deste TRP ex vi consabidas Jurisprudência reiterada dos Tribunais Superiores e Doutrina processual penal sem prejuízo do conhecimento de questão oficiosa vg JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, V, pgs 362-363, ASTJ de 17.9.1997 in CJS 3/97, ASTJ de 13.5.1998 in BMJ 477 pág 263, ASTJ de 25.6.1998 in BMJ 478 pág 242, ASTJ de 03.2.1999 in BMJ 484 pág 271, ASTJ de 28.4.1999 in CJS 2/99 pág 196, GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, III, 3ª edição, Verbo, 2000, pág 347, ASTJ de 01.11.2001 no processo 3408/00-5, SIMAS SANTOS, LEAL HENRIQUES, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, Rei dos Livros, Maio de 2008, pág 107.
[12] Conforme copy paste pelo Relator do suporte digital graciosa e oportunamente disponibilizado.
[13] Conforme scanerização pelo Relator.
[14] Conforme scanerização pelo Relator.
[15] Fundamentação do ARP de 06-6-2012 de Melo Lima com Francisco Marcolino no processo 414/09.0PAMAI-B.P1 que se citou extensamente por não se ver como dizer mais e melhor.
[16] Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 20-11-2024 in DR I série 18 de 27-01-2015.