Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1338/17.3T8STS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RP202007141338/17.3T8STS-A.P1
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na reapreciação da prova, e tendo em vista garantir um segundo grau de jurisdição de facto, a Relação deve formar a sua autónoma convicção à luz dos meios de prova invocados pelo recorrente e todos os demais que se lhe mostrem disponíveis, introduzindo na decisão de facto as alterações que essa sua própria convicção lhe imponha.
II - Apesar de não existir no actual Código de Processo Civil uma norma equivalente ao anterior artigo 646º, n.º 4, o princípio que dele emanava mantém-se aplicável, razão porque não devem, na fundamentação de facto e nos termos do artigo 607º, n.º 4, do actual Código, utilizar-se na sentença afirmações conclusivas, genéricas ou com evidente conotação jurídica.
III - A presunção estabelecida no artigo 186º, n.º 2, do CIRE, é uma presunção iuris et iure quanto à culpa e nexo causal entre os factos-base e a criação ou agravamento da situação de insolvência; Por conseguinte, demonstrado algum dos factos-índice ali taxativamente previstos, a insolvência é sempre culposa, não sendo admissível prova do contrário.
IV - A alteração introduzida no artigo 189º, n.º 2 al. a), do CIRE, pela Lei n.º 16/2012, de 20.04, visou alargar o âmbito subjectivo dos afectados pela qualificação da insolvência, procurando, num esforço de moralização e de protecção dos credores, abranger pela qualificação não apenas, como antes sucedia, os administradores de direito ou de facto do insolvente, mas todos os que, mesmo não tendo essa qualidade, tenham contribuído, com dolo ou culpa grave, para a situação de insolvência ou para o seu agravamento, nomeadamente os que tenham colaborado com o administrador (de direito ou de facto) na prática de algum dos factos que podem conduzir à qualificação da insolvência como culposa, previstos no artigo 186º, n.ºs 2 e 3, do CIRE.
V - À luz do preceituado no artigo 189º, n.ºs 2 al. e) e 4, do CIRE, a indemnização aos credores tem por limite a diferença entre o valor dos créditos reconhecidos e o que é pago pelas forças da massa insolvente, mas tem, ainda, de ser proporcional à gravidade da situação prejudicial criada pelo afectado pela insolvência, devendo, por isso, aproximar-se do valor dos danos efectivamente causados pela conduta que está na base da qualificação da insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1338/17.3.T8STS-A.P1
Origem: Juízo de Comércio de Santo Tirso – J1.
Relator: Jorge Seabra
1º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha
2º Adjunto Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO
1. Por apenso aos autos de insolvência em que foi declarada insolvente “B… – Unipessoal, Lda.”, veio o credor “C…, Unipessoal, Lda.” requerer a abertura de incidente de qualificação da insolvência, a qualificação da insolvência como culposa e a afectação de D…, alegando factos susceptíveis de demonstrar a dissipação de património da insolvente, a prática de negócios que agravaram a situação da insolvente e a utilização de bens da mesma em proveito próprio do administrador e de terceiro.

Veio, ainda, o credor E… requerer a mesma qualificação e a afectação de D… e F…, alegando factos susceptíveis de demonstrar a gerência de facto por parte desta última, dissipação de património, prática de negócios que agravaram a situação da insolvente, utilização de bens da insolvente em proveito próprio do administrador e de terceiro, prática de factos a favor de terceiro e falta de contabilidade organizada.
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2. Declarado aberto o incidente, veio a Srª Administradora de Insolvência apresentar parecer de qualificação da insolvência como culposa, alegando factos susceptíveis de demonstrar a alegada dissipação de património, realização de negócios que agravaram a situação da insolvente, utilização de bens da insolvente em proveito do administrador, falta de colaboração e violação do dever de apresentação à insolvência.
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3. Cumprido o preceituado no artigo 188º, n.º 4, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (adiante designado por CIRE), o Ministério Público propôs também a qualificação da insolvência como culposa, propondo a afectação de D… e F….
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4. Observado o disposto no artigo 188º, n.º 6, do CIRE, ambos os requeridos deduziram oposição, afastando os fundamentos invocados pelos credores, os fundamentos constantes do parecer oferecido pela Administradora da Insolvência e pelo Ministério Público.
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5. Foi proferido despacho saneador, com identificação do objecto do litígio e fixação dos factos assentes e temas de prova.
Foi, ainda, requerida e realizada audiência prévia nos termos do preceituado no artigo 593º, n.º 3, do Código de Processo Civil (adiante designado por CPC), tendo sido apreciada a reclamação apresentada.
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6. Procedeu-se a julgamento, sendo proferida sentença que decidiu pela qualificação como culposa da insolvência de “B…, Unipessoal, Lda.”, declarando afectados os requeridos D… e F…, decretando a inibição de ambos para o exercício do comércio e administração de patrimónios pelo período de 5 anos e condenando os mesmos a indemnizar os credores pelos créditos não satisfeitos, até à força dos respectivos patrimónios e até ao valor dos créditos reconhecidos no processo de insolvência.
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7. Inconformada, veio a requerida F… interpor recurso de apelação, oferecendo alegações e aduzindo as seguintes
CONCLUSÕES
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8. Foram oferecidas contra-alegações em que se pugnou pela improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença recorrida.
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Observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não sendo lícito a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas se mostrem de conhecimento oficioso – artigos 635º, n.º 4, 637º, n.º 2, 1ª parte e 639º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC.
Por outro lado, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não suscitadas pelas partes em 1ª instância e ali apreciadas, sendo que a instância recursiva não se destina à prolação de novas decisões, mas à reapreciação das decisões proferidas pelas instâncias, em função das questões convocadas pelas partes. [1]
Neste enquadramento jurídico e no seguimento de tais princípios, as questões a dirimir são as seguintes:
I. Impugnação da decisão de facto;
II. Do mérito da sentença recorrida quanto à afectação da apelante pela qualificação culposa da insolvência de “B…, Unipessoal, Lda.” e quanto à medida dessa sua afectação.
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Em face do antes decidido, a factualidade provada e a considerar será a seguinte:
1. A insolvência da devedora foi requerida a 26 de Abril de 2017 por terceiro.
2. Foi declarada a sua insolvência por sentença proferida a 13 de Novembro de 2017.
3. Foram reclamados e reconhecidos pela Administradora de Insolvência créditos no valor global € 209.112,28.
4. Não foram apreendidos bens.
5. A requerida F… foi fornecedora da insolvente.
6. Em 26 de Janeiro de 2017 foi constituída a sociedade “G…, Lda.”, com sede no mesmo local da sede da insolvente, tendo como gerente F….
7. Por documento intitulado de “Contrato de Trespasse”, datado de 17 de Julho de 2017, a insolvente declarou trespassar o estabelecimento na Rua …, .., em Santo Tirso a “G… – Unipessoal, Lda.”, pelo preço de € 20.000,00.
8. A insolvente teve sede na Rua …, .., em Santo Tirso até 17 de Julho de 2017, data em que alterou a mesma para a Rua …, …, em Vila Nova de Gaia.
9. D… é, de acordo com o contrato de constituição da sociedade “B… – Unipessoal, Lda.” e à luz do respectivo registo comercial, o único gerente da insolvente. [2]
10. F… era, no final do ano de 2016, credora da sociedade insolvente, em montante não apurado.
11. Em 18.11.2016, F…, tendo como titulo executivo uma letra de câmbio, no valor de € 9.300,00, com vencimento em 31.10.2016, intentou contra a insolvente processo executivo que correu termos com o nº 4945/16.8T8LOU, Instância Central da Lousada, secção de Execução.
12. Em 12.12.2016, o Agente de Execução nomeado fez a penhora de todo o recheio do estabelecimento da sede da insolvente, tendo atribuído o valor de € 12.200,00 aos bens penhorados e a exequente prescindiu da remoção dos bens.
13. Em documento escrito datado de 09.02.2017, intitulado de “Dação em pagamento” celebrado entre a insolvente e F…, consta que a insolvente “na indicada qualidade confessa-se devedor à primeira da importância global de sessenta mil oitocentos quarenta e seis euros e noventa e dois cêntimos, quantia essa resultante de vários mútuos entregues pela primeira outorgante ao segundo na indicada qualidade, tendo inclusive dado origem ao processo de execução comum que com o nº 4945/16.8T8LOU que corre termos na comarca de Porto Este, Lousada, Instância Central – Secção de Execuções – J2, bem como ainda uma letra de câmbio no montante de € 40.000,00 na posse da primeira outorgante.”
14. Mais é declarado que para pagamento dessa dívida a insolvente dá a F… os bens que haviam sido penhorados.
15. Em 23.06.2017, por documento intitulado de alteração a contrato de arrendamento, a proprietária do imóvel onde se encontrava instalado o estabelecimento da insolvente declara acordar em renunciar à preferência no trespasse do estabelecimento.
16. O veículo de matrícula ..-JS-.., registado a favor da insolvente desde 19.05.2015 foi registado a favor de H… em 21.07.2017.
17. A insolvente deixou de pagar aos seus fornecedores em 2016.
18. D… engendrou um plano para fugir com o património e não pagar as dívidas, com a colaboração de F….
19. Para o efeito a insolvente deu os seus bens a F….
20. Após a entrada do pedido de insolvência foi constituída a sociedade “G…, Unipessoal, Lda.” com intuito de transmitir o contrato de arrendamento do prédio onde está instalado o restaurante. [3]
21. A sociedade insolvente não recebeu qualquer contrapartida financeira pelo trespasse do estabelecimento e pela transferência de propriedade do veículo.
22. Todos os actos foram praticados com o intuito de impedir penhoras e outros actos de apreensão.
23. A insolvente, até Novembro de 2017, pagou vencimentos de alguns dos trabalhadores.
24. O requerido D… não remeteu à Administradora as informações nem os elementos contabilísticos que pela mesma foram solicitados.
25. Não apresentou IES relativa aos exercícios de 2016 e 2017.
26. O gerente da devedora não prestou colaboração à Administradora de Insolvência, não entregando contabilidade, nem esclarecendo o destino dos alegados montantes referentes aos negócios celebrados.
27. A Administradora de Insolvência teve apenas acesso aos “IES – Informação Empresarial Simplificada” de 2014 e 2015.
28. [A insolvente] Apresenta dívidas vencidas a fornecedores desde 2015 e à Segurança Social desde Junho de 2016.
29. Desde meados de 2016 os fornecedores começaram a exigir o pagamento dos seus créditos.
30. Desde esse momento os requeridos sabem que a insolvente está impossibilitada de cumprir as suas obrigações.
31. À data da celebração de negócios com F… a insolvente tinha execuções pendentes.
32. O cheque pessoal emitido por F… foi levantado ao balcão pelo requerido.
33. O estabelecimento mantém-se idêntico, com a maioria dos trabalhadores que eram da insolvente.
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IV.II. Da afectação da apelante pela qualificação da insolvência como culposa.
Dirimidas as questões de facto, cumpre conhecer das subsequentes questões de direito suscitadas pela apelante e que justificam a sua discordância em face da sentença proferida.
Como é consabido, o incidente de qualificação da insolvência consiste num incidente do processo de insolvência que tem por fim a qualificação da natureza fortuita ou culposa da insolvência do devedor, bem como, tratando-se de insolvência culposa, da indicação da (s) pessoa (s) afectada (s) por tal qualificação e das consequências aplicáveis.

A figura do incidente de qualificação da insolvência encontra-se prevista e regulada no Título VIII do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (artigos 185º a 191º), tendo por inspiração a figura congénere da “calificácion del concurso”, prevista na lei espanhola - Ley Concursal, aprovada pela Ley n.º 22/2003.
O regime português foi aprovado pelo DL n.º 53/04 de 18.03., tendo sofrido, no que ora releva, significativas alterações com a Lei n.º 16/2012, de 20.04.
Neste contexto, preceitua o artigo 185º do CIRE que “a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos de causas penais, nem das acções a que se reporta o n.º 2 do artigo 182º.”
A insolvência fortuita não vem definida no diploma legal, que se limita a definir a insolvência culposa no subsequente artigo 186º, pelo que é de entender que a insolvência será fortuita quando não possa ser qualificada como culposa, ou seja, por exclusão de partes. [4]
Segundo o artigo 186º, n.º 1 do CIRE a insolvência deve ser considerada como culposa “quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”
Destarte, para a qualificação da insolvência como culposa exige-se, não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores levada a cabo no período de três anos prévios ao início do processo, mas ainda um nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência, nexo esse que consistirá na contribuição desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência. [5]
São, assim, requisitos cumulativos da qualificação da insolvência os seguintes elementos: (i) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; (ii) a ilicitude desse comportamento; (iii) a culpa qualificada (por dolo ou culpa grave); (iv) e o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência. [6]
Neste contexto, não deixando o legislador de ter presente os fins prosseguidos através do incidente de qualificação da insolvência (censura das condutas que originaram e agravaram a insolvência e respectiva responsabilização do devedor e dos administradores de facto e de direito) e as reconhecidas dificuldades ao nível da prova do caracter doloso ou gravemente negligente da conduta e da relação de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da insolvência, consagra o CIRE um conjunto tipificado e taxativo de factos-índice que envolvem, segundo as regras da experiência e do curso normal das coisas, efeitos particularmente negativos para o património do insolvente, susceptíveis de gerar ou de agravar a situação de insolvência.
Desta forma, no n.º 2 do artigo 186º consagra-se um conjunto de factos-índice de cuja verificação resulta, em termos iniludíveis, a prova da culpa (dolo ou culpa grave) e do nexo causal entre os mesmos e o surgimento/agravamento da situação de insolvência.
Portanto, como acentua em termos pacíficos a doutrina e a jurisprudência, verificados esses factos-índice, não só se prescinde de um juízo de culpa, como se torna desnecessário demonstrar a adequação dos mesmos para a criação ou para o agravamento do estado de insolvência.
Como refere L. Menezes Leitão, op. cit., pág. 284, “O artigo 186º, n.º 2, contém uma presunção iuris et iure de insolvência culposa, considerando-a como tal sempre que os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham praticado actos destinados a empobrecer o património do devedor ou incumprido determinadas obrigações legais.”
Por conseguinte, praticado, pelo gerente de facto ou de direito do devedor que não seja pessoa singular, qualquer um dos factos enunciados nas várias alíneas do citado n.º 2 do artigo 186º, a insolvência é sempre qualificada como culposa, não sendo possível a qualquer dos visados (devedor ou gerente de facto ou de direito) fazer prova do contrário, ilidindo aquela presunção irreversível. [7]
Em suma, como também referem L. Carvalho Fernandes e J. Labareda, “CIRE Anotado”, Quid Iuris, 2008, pág. 610, a verificação das situações previstas no n.º 2 do artigo 186º determina “inexoravelmente a atribuição de caracter culposo à insolvência” ou, como escreve Carina Magalhães, op. cit., pág. 117, “Alegados e provados os factos que servem de base a uma dessas presunções referidas, a insolvência será sempre considerada culposa”, sendo a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa a prova, pela pessoa afectada, de que não praticou o acto que serve de base à presunção legal.
Dito isto, no caso dos autos e em função da factualidade provada, a actuação do gerente (de direito) da sociedade insolvente, D…, integra, em nosso julgamento, a previsão das alíneas a), d), h) e i) do n.º 2 do artigo 186º, do CIRE, pois que, por um lado, o mesmo fez desaparecer todo o património da dita sociedade, dele dispondo na integra em proveito de terceiros, alienando em favor de F… o estabelecimento comercial que a sociedade explorava, com todo o seu conteúdo, incluindo o direito ao arrendamento, e alienando, ainda, o veículo automóvel titulado pela mesma sociedade em favor de H…, fazendo seu o produto de tais negócios, de tal ordem que nenhum bem logrou ser apreendido em favor da massa e para satisfação dos seus credores - vide factos provados em 4, 7, 13, 14, 16, 18 19, 20 e 21 -, incumpriu, ainda, a obrigação de manter organizada a contabilidade da insolvente, pois que não apresentou sequer os IES relativos aos anos de 2016 e 2017 - vide factos provados em 25 e 27 – e violou, de forma reiterada e grave os seus deveres de colaboração para com a Administradora de insolvência, pois que não procedeu à entrega da contabilidade da sociedade, nem esclareceu do destino por si dado aos montantes recebidos no contexto da celebração dos negócios de alienação do estabelecimento e do veículo automóvel que compunham o património da sociedade – vide factos provados em 24 e 26.
Destarte, preenchendo a actuação do gerente de direito, D…, a previsão das citadas alíneas do n.º 2 do artigo 186º, do CIRE e atento o caracter inilidível de tais factos quanto à demonstração da culpa grave e nexo causal entre esse factos e a verificação da situação de insolvência e o seu agravamento, nenhuma divergência nos merece a decretada qualificação da insolvência como culposa, sendo certo, ainda, que esses factos ocorreram na janela temporal dos três anos anteriores à instauração do processo de insolvência.
Tendo isto por adquirido, a questão que a apelante verdadeiramente coloca (pois que não suscita qualquer divergência quanto à qualificação da insolvência como culposa), é saber se colhe, do ponto de vista legal, fundamento a sua afectação pela qualificação da insolvência, sendo certo que, após a reapreciação da decisão de facto, não resulta demonstrada a sua qualidade de gerente de facto da sociedade insolvente.
Diga-se, à partida, que a questão não se apresenta com a linearidade que a apelante sustenta nas suas alegações, pois que a circunstância de a mesma não ser gerente de facto da insolvente não exclui, sem mais, face ao quadro legal actualmente aplicável, que decorre das alterações introduzidas no artigo 189º, do CIRE, pela Lei n.º 16/2012, de 20.04, que a mesma possa ser afectada pela qualificação da insolvência.
Neste conspecto, refira-se que nem a situação factual retratada nos presentes autos é equivalente àquela sobre que versou o Acórdão da RC de 28.05.2013 e que a apelante invoca em defesa da sua tese [8], nem, sobretudo, no caso ali versado era ainda aplicável, ao contrário do que ora sucede, a alínea a) do n.º 2, do artigo 189º do CIRE, na redacção introduzida pela citada Lei n.º 16/2012.
O artigo 189º, n.º 2, alínea a), do CIRE, na redacção introduzida pela citada Lei n.º 16/2012, de 20.04. (que entrou em vigor a 20.05.2012), dispõe o seguinte:
Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
(…)
a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afectadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respectivo grau de culpa.” [9]
A alteração deste normativo por mor da Lei n.º 16/2012, como é reconhecido de forma unânime pela doutrina, teve em vista o alargamento do âmbito subjectivo dos afectados pela qualificação da insolvência, nela passando a abranger, não só, como sucedia no domínio da redacção original do CIRE, os administradores, de facto e de direito, do insolvente, como, ainda, de forma expressa, os ROC’s e os TOC’s e todos aqueles que, ainda que não possuam aquelas qualidades, tenham contribuído, com dolo ou culpa grave, para a situação de insolvência ou para o seu agravamento. [10]
Neste sentido, a mesma doutrina tem acentuado, também de forma pacífica, que a previsão dos eventuais afectados pela qualificação da insolvência é meramente exemplificativa, sendo confesso propósito do legislador (num esforço de moralização e de protecção dos credores) com a alteração introduzida obter um alargamento da responsabilização das pessoas que, para além do insolvente e dos seus administradores (de facto e de direito), contribuíram para a criação ou agravamento da insolvência, fazendo aplicar a todas, na medida da respectiva culpa, as consequências sancionatórias e ressarcitórias previstas no citado artigo 189º.
Por conseguinte, neste contexto, dir-se-á, como salienta, em termos que nos merecem integral adesão, A. Soveral Martins, op. cit., pág. 383, que “Serão também afectados os TOC’s, ROC’s ou outras pessoas que não sejam o devedor e seus administradores de direito ou de facto que, com dolo ou culpa grave, colaboraram com o devedor ou com os seus administradores na criação ou agravamento da situação de insolvência ou que colaboraram com o devedor ou com os seus administradores em qualquer uma das actuações previstas no artigo 186º, n.º 2.”
E, ainda, “também serão afectados os TOC’s, ROC’s ou outras pessoas que não sejam o devedor e seus administradores de direito ou de facto que, com dolo ou culpa grave, tenham colaborado com o devedor ou com os seus administradores nas actuações abrangidas pelas alíneas do artigo 186º, n.º 3.”
Do exposto resulta, pois, ao contrário do que sustenta a apelante, que a simples circunstância de a mesma não ser gerente de facto da insolvente não afasta, sem mais, a sua afectação pela qualificação; Ponto essencial será, no entanto, que resulte demonstrado que a mesma, com dolo ou culpa grave, colaborou com o devedor ou com o seu administrador de direito (o requerido D…) nas actuações previstas no n.º 2 do artigo 186º, do CIRE (que conduziram à qualificação da insolvência como culposa), contribuindo, assim, de forma significativa, para a situação de insolvência ou para o seu agravamento.

Demonstrado esse circunstancialismo (cujo ónus de prova cabe ao requerente do incidente de qualificação), mostrar-se-á, pois, em nosso ver, justificada, do ponto de vista legal, a sua afectação, ainda que por fundamentos distintos dos invocados na sentença recorrida.
E, de facto, como já resulta do que antes se expendeu em sede de motivação da decisão de facto e emerge, ainda, da conjugação dos factos provados em 7, 13, 18 e 19, cremos ser seguro afirmar-se que a apelante F… colaborou, com culpa grave (sendo que inexistem elementos que nos permitam afirmar o dolo da sua conduta), com o administrador de direito, D…, na dissipação/desaparecimento da parte mais significativa e valiosa do património da insolvente (o estabelecimento comercial de restauração detido pela insolvente e que passou para a sua titularidade e que a mesma explora em seu benefício), de tal ordem que, decretada a insolvência, nenhum património foi possível apreender para a massa insolvente e para satisfação dos credores.
Com efeito, e como oportunamente se salientou noutro passo deste acórdão, conhecendo a apelante, fruto da sua proximidade com o negócio em causa e com o administrador D…, a situação de extrema debilidade económica da insolvente (pois que nem ela própria conseguia obter o pagamento dos seus fornecimentos e era confrontada com o sucessivo protelamento desse pagamento), conhecendo, por essas mesmas razões, a apelante que o único património significativo que a insolvente detinha era o estabelecimento comercial de restauração, não podia a mesma deixar de conhecer (e aceitar) que, ao obter em seu favor a transmissão desse único património, estava a contribuir, de forma inexorável, para a situação de insolvência da sociedade em apreço, pois que, a partir desse momento, a mesma passaria a não possuir quaisquer meios para ocorrer à satisfação das suas obrigações, seja através dos proventos que a exploração do estabelecimento de restaurante poderia gerar, seja, ainda, através do próprio estabelecimento em si mesmo, enquanto somatório dos bens e equipamentos que o integravam, da sua clientela ou aviamento e do direito ao arrendamento.
Por conseguinte, em nosso ver, tendo a apelante F…, com a sua sobredita actuação (e mesmo que tenha tido também em vista a satisfação do seu crédito) e em colaboração com o administrador de direito da insolvente, contribuído, com culpa grave, para a criação da situação de insolvência da sociedade “B…, Unipessoal, Lda. “ ou para o agravamento da situação de insolvência da mesma, mostra-se-nos justificada, do ponto de vista do preceituado no artigo 189º, n.º 2 al. a), do CIRE, a sua afectação, ainda que por fundamentos jurídicos distintos dos que serviram de base à qualificação decretada pelo tribunal de 1ª instância.
Improcede, pois, neste segmento a apelação, sendo certo, ademais, que a circunstância de se encontrar pendente acção de resolução em favor da massa insolvente do negócio de trespasse do estabelecimento em causa não afecta, nem prejudica a comprovada verificação dos pressupostos legais da afectação da apelante pela qualificação da insolvência, tratando-se de matérias distintas e com contornos jurídicos também diversos.
A resolução de tal negócio poderá, a ser decretada, revelar no contexto, como oportunamente se salientará.
Por último, e a título subsidiário, invoca ainda a apelante que a medida da sua afectação, concretamente ao nível da sua responsabilidade pela totalidade das dívidas da insolvente se revela excessiva e desproporcional, sendo certo que é ela alheia, pelo menos, às dívidas que foram contraídas em data anterior ao início da sua alegada gerência de facto da sociedade insolvente.
Segundo se alcança das conclusões atinentes a tal matéria, a discordância da apelante centra-se na parte decisória da sentença em que ali se decreta a condenação dos “afectados a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património, pelo valor dos créditos reconhecidos no processo de insolvência.”
A condenação em apreço reconduz-se, na prática, à mera reprodução textual do teor do artigo 189º, n.º 2 al. e), do CIRE, na redacção introduzida pela já citada Lei n.º 16/2012.
À partida, dir-se-á que numa simples e literal interpretação parece que o afectado pela qualificação fica obrigado a indemnizar os credores do insolvente pela totalidade dos créditos que a massa insolvente, por insuficiência, não possa satisfazer, contanto que no património do afectado existam bens suficientes para o efeito; ou seja, o afectado responde pela totalidade dos créditos graduados e reconhecidos na medida em que a massa insolvente seja insuficiente para os cobrir, tendo como limite o esvaziamento do seu próprio património.
Não nos parece, todavia, na esteira da jurisprudência que se tem pronunciado sobre esta matéria, que a norma possa ser assim interpretada, desde logo por violação do princípio constitucional da proporcionalidade e da proibição do excesso.
Na verdade, fazendo uma aplicação estritamente literal da norma ter-se-ia de admitir a possibilidade de um afectado pela qualificação responder com todo o seu património, com todos os seus bens, por créditos sobre uma sociedade insolvente que podem ascender a vários milhões de euros, quando o mesmo se apropriou ou desviou em desfavor da massa de um bem a ela pertencente no valor de cerca de 5 ou 10 mil euros, dentro dos três anos que precederam o início do processo de insolvência. Uma tal sanção seria, de todo, inaceitável por ser desproporcional e gravemente excessiva face ao prejuízo causado e, por isso, inconstitucional.
Com efeito, decorre do princípio do Estado de Direito Democrático o princípio da proibição do excesso ou o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, que constitui, no fundo, um princípio de controlo e de limite a que estão sujeitas todas as medidas adoptadas pela autoridade pública – seja a autoridade administrativa, seja a autoridade judicial -, no sentido de saber da conformidade de tal medida aos subprincípios da proibição do excesso, como sejam: (i) o princípio da conformidade ou adequação de meios; (ii) o princípio da exigibilidade ou da necessidade; (iii) o princípio da proporcionalidade em sentido estrito. [11]
Ora, a interpretação e aplicação da norma do artigo 189º, n.º 2, alínea e), do CIRE, tem de mostrar-se conforme àqueles princípios constitucionais, exigindo, pois, na sua subsunção casuística, a ponderação, não apenas da medida da culpa do afectado na criação ou agravamento da situação de insolvência (cfr. artigo 189º, n.º 2 al. a), do CIRE), mas sobretudo da medida do prejuízo causado pela conduta do afectado.
Neste sentido, como se refere no Acórdão desta Relação de 29.06.2017, que aqui seguimos de perto, “entendemos que a pessoa afectada pela qualificação deve ser condenada a indemnizar os credores do insolvente pela diferença que existe entre aquilo que cada um deles recebe em pagamento pelas forças da massa insolvente, após liquidação, e o valor do seu crédito, não podendo a indemnização ser superior ao valor do prejuízo causado à massa com a prática dos factos fundamentadores da qualificação. A referência às forças do seu património é excessiva e desnecessária porque jamais os obrigados podem responder para além dos limites do seu património.” [12]
E, ainda, no mesmo sentido, refere-se no AC RC de 16.12.2015 que “o montante da condenação há-de ser fixado em função da incidência que a apurada conduta, que determinou a qualificação da insolvência como culposa e determinou a sua afectação, teve na criação ou agravamento da situação de insolvência, […] Tendo em conta tal solução inspiradora [Ley Concursal espanhola] e porque o severo regime que emerge da aplicação conjugada dos artigos 186º e 189º vincula a uma interpretação que salvaguarde precisamente o princípio da proporcionalidade, conjugando o teor das alíneas a) e e) do n.º 2 e o n.º 4 do artigo 189º, entendemos que encontra acolhimento no texto legal o entendimento de que na fixação do montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afectado, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao acto ou actos determinantes dessa culpa. “ [13]
Por isso, a nosso ver, acompanhando o AC desta Relação de 29.06.2017, antes citado, os princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso impõem que a indemnização se deva aproximar do montante dos danos causados pelo comportamento que conduziu à qualificação da insolvência ou que conduziu à afectação do visado por tal qualificação.
Destarte, se, por exemplo, a qualificação ou a afectação do visado decorre de um comportamento que se traduziu na destruição ou dissipação de todo ou parte considerável do património do devedor, a medida da culpa há-de ter por referência esse comportamento e a sua contribuição para a situação de insolvência ou do seu agravamento, assim como a medida da indemnização deve, em termos equivalentes e proporcionais, ascender ao valor desse património destruído ou dissipado que se não fosse esse comportamento iria responder pelos créditos reconhecidos e graduados. É por isso, aliás, que a alínea a) do n.º 2 do artigo 189º exige que, no caso de a qualificação da insolvência afectar várias pessoas, o juiz fixe a medida da culpa de cada uma delas, assim como é, por isso também, que o n.º 4 do artigo 189º estabelece que o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas e, se tal não for possível, fixar, ao menos, os critérios que permitirão a sua posterior liquidação, o que não seria necessário se a indemnização correspondesse, pura e simplesmente, à diferença entre o valor dos créditos e o produto da liquidação do activo apreendido, se este existir.
Dito isto, logo se alcança que, em nosso ver, a parte decisória em causa não pode manter-se, pois que não pode a indemnização arbitrada na sentença ser fixada sem qualquer limite e tendo apenas por referência o valor dos créditos reconhecidos e graduados, antes deve a responsabilidade indemnizatória dos afectados pela qualificação conter-se na medida do dano que os mesmos, com a sua específica conduta, causaram à massa insolvente e, reflexamente, aos credores, fazendo-os, pois, responder, limitadamente e solidariamente, pelo valor dos bens que foram dissipados e que, não fosse, esse seu comportamento deveriam responder pelos créditos reconhecidos e graduados.
Por outro lado, e quanto à medida da culpa, afigura-se-nos, em sentido oposto ao propugnado pela apelante F…, que nenhuma distinção relevante importa fazer quanto à actuação da apelante (e apesar de a mesma não ser gerente de facto da insolvente) e quanto à actuação do requerido e gerente D…, pois que ambos contribuíram, em idêntica medida, para a insolvência ou para o seu agravamento, como co- responsáveis pela dissipação do único património economicamente significativo que a insolvente detinha, qual seja o referido estabelecimento comercial de restauração que foi alienado pelo contrato de trespasse referido nos autos e em que ambos intervieram, como alienante e adquirente, respectivamente.
Destarte, à luz do antes exposto, nesta parte deve proceder a apelação, com a consequente alteração do decidido sob a alínea e) do segmento decisório final da sentença, passando a condenação ali proferida quanto a ambos os afectados (a apelante F… e o requerido D.., apesar de este último não ter recorrido da sentença proferida, pois que está em causa matéria de conhecimento oficioso – interpretação e aplicação do artigo 189º, n.ºs 2 alínea e) e 4, do CIRE, em conformidade com os princípios constitucionais da proporcionalidade e proibição do excesso ínsitos no princípio do Estado de Direito Democrático – artigo 2º da CRP) a ter por limite, quanto ao requerido D…, o valor de mercado do estabelecimento comercial detido pela sociedade insolvente e alienado por trespasse e o valor de mercado do veículo automóvel identificado nos autos, tendo por referência a data em que as alienações tiveram lugar, a liquidar posteriormente, e quanto à apelante F… a ter como limite o valor de mercado do estabelecimento comercial detido pela insolvente e alienado por trepasse, tendo por referência a data deste último negócio, também a liquidar posteriormente.
Para o cômputo deste prejuízo haverá, naturalmente, que acautelar a possibilidade de a acção de resolução em favor da massa insolvente do acto de trespasse do estabelecimento ser procedente e, portanto, esse estabelecimento vir a reingressar na massa insolvente e a ser alienado, caso em que o dito prejuízo poderá ser total ou parcialmente mitigado.
Por outro lado, ainda, até ao valor limite da responsabilidade da apelante F… (valor de mercado do estabelecimento comercial antes referido), ambos os afectados responderão solidariamente, em conformidade com o disposto no artigo 189º, n.º 2 alínea e), do CIRE e nos termos dos artigos 518º e 519º, do Código Civil.
Aqui chegados, cumpre, ainda, esclarecer o pronunciamento quanto ao gerente D…, apesar de, como se disse, o mesmo não ter recorrido da sentença ora em causa.
Por princípio, mesmo estando em causa matéria de conhecimento oficioso, a presente decisão não poderia contender com o decidido em 1ª instância quanto ao mesmo, por força do respeito ao caso julgado formado pela sentença, na parte não impugnada, ou seja, quanto ao aludido D… que não interpôs recurso – cfr. artigo 635º, n.º 5, do CPC.
Na verdade, como salienta A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 91, os poderes de conhecimento oficioso do tribunal de recurso “interferem a jusante, ou seja, na fase em que o tribunal tem de preparar a decisão a proferir, não podendo então olvidar-se o efeito de caso julgado que porventura já se tenha formado a montante sobre qualquer decisão ou segmento decisório, o qual prevalece sobre o eventual interesse na melhor aplicação do direito…”
Por conseguinte, por princípio, não tendo o requerido D… interposto recurso na parte decisória que o condenou na indemnização já referida, não poderia este Tribunal alterar o decidido quanto ao mesmo pelo Tribunal de 1ª instância, por força do citado n.º 5 do artigo 635º.
Sucede, no entanto, que, como resulta do preceituado no artigo 189º, n.º 2, alínea e), do CIRE, a responsabilidade de ambos os afectados é uma obrigação solidária.
Ora, sendo assim, à luz do artigo 634º, n.º 2, alínea c), do CPC, o recurso interposto pela recorrente F… acaba por aproveitar ao dito D…, enquanto devedor solidário.
Neste sentido refere, ainda, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 87, que “Nas obrigações solidárias, qualquer dos co-devedores responde integralmente pela dívida, sem que lhe seja lícito alegar que a mesma não lhe pertence por inteiro. Consequentemente, nos termos da alínea c) do n.º 2, a interposição do recurso por um dos compartes acaba por se repercutir automaticamente na esfera dos demais, salvo se o recurso, pelos seus fundamentos, respeitar apenas à pessoa do recorrente.”
Ora, sendo certo que os fundamentos por nós invocados (oficiosamente) – atinentes ao princípio da proibição do excesso e da proporcionalidade - são aplicáveis em termos gerais não apenas à recorrente, mas, ainda, ao co-devedor solidário não recorrente, D…, o recurso daquela F…, em função do disposto no artigo 634º, n.º 2, alínea c), do CPC, deve aproveitar àquele e, por isso, a decisão proferida nesta instância também acaba por lhe aproveitar, nos termos sobreditos.
Procede, assim, face ao exposto, parcialmente, a apelação.
* *
V. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso de apelação interposto e, em consequência,
a) Condena-se o requerido D… a pagar aos credores da devedora declarada insolvente a quantia, a liquidar em execução de sentença, correspondente ao valor de mercado do estabelecimento comercial e do veículo automóvel referidos nos autos e tendo por referência a data em que os negócios de transmissão de tais bens tiveram lugar;
b) Condena-se a requerida F… a pagar aos credores da devedora declarada insolvente a quantia, a liquidar em execução de sentença, correspondente ao valor de mercado do estabelecimento comercial referido nos autos e tendo por referência a data em que o trespasse do mesmo teve lugar;
c) Até ao valor de mercado do estabelecimento comercial antes referido ambos os requeridos/afectados pela qualificação da insolvência respondem solidariamente perante os credores.
d) Em tudo o mais, mantem-se a sentença recorrida.
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Atento o decaimento verificado, as custas, em ambas as instâncias, serão suportadas, a título provisório, pelos Requerentes e Requeridos/Afectados, na proporção de 1/4 e 3/4, respectivamente - artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 14.07.2020
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade

(A redacção deste acórdão não segue na sua elaboração as regras do novo acordo ortográfico)
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[1] Vide, neste sentido, por todos, FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 147 e A. ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo Código de processo Civil”, 2ª edição, pág. 92-93.
[2] Alteração introduzida por forma a extrair os conceitos conclusivos de gerente de facto e de direito e tomando em consideração o documento de fls. 11 dos autos.
[3] Alterado por forma a fazer constar o conteúdo do documento referido sob o ponto 6 dos factos assentes.
[4] Vide, neste sentido, L. CARVALHO FERNANDES, “Themis”, Edição Especial, 2005, pág. 94 e LUIS MENEZES LEITÃO, “Direito da Insolvência”, 3ª edição, pág. 283.
[5] Vide, neste sentido, L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 283-284 e MARIA do ROSÁRIO EPIFÂNIO, op. cit., pág. 128-129.
[6] Vide, neste sentido, por todos, L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 283-284, ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2015, pág. 373 e CARINA MAGALHÃES, “Incidente de Qualificação da Insolvência. Uma visão geral”, in “Estudos de Direito da Insolvência”, 2015, pág. 116.
[7] Vide, neste sentido, por todos, na doutrina, L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 284, MARIA do ROSÁRIO EPIFÂNIO, op. cit., pág. 129-130 e A. SOVERAL MARTINS, op. cit., pág. 374.
[8] AC RC de 28.05.2013, relator ALBERTINA PEDROSO, disponível in www.dgsi.pt.
[9] O artigo 189º, n.º 2, alínea a), na sua versão original, previa apenas o seguinte:
“Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas afectadas pela qualificação.”
Conjugando este normativo com o artigo 186º, n.º 1, era posição unânime da doutrina e jurisprudência que apenas podiam ser afectados pela qualificação da insolvência como culposa, os administradores de direito ou de facto do insolvente.
[10] Vide, neste sentido, por todos, CATARINA SERRA, op. cit., pág. 157, JOSÉ ENGRÁCIA ANTUNES, op. cit., pág. 85-86 e 94, CARINA MAGALHÃES, op. cit., pág. 115 e, ainda, A. SOVERAL MARTINS, op. cit., pág. 381-383.
[11] Vide sobre o princípio constitucional da proporcionalidade e os seus subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, por todos, JORGE MIRANDA, RUI MEDEIROS, “Constituição Portuguesa Anotada”, I volume, 2ª edição revista, 2017, pág. 80, assim como a jurisprudência do Tribunal Constitucional ali elencada.
[12] AC RP de 29.06.2017, relator FILIPE CAROÇO; No mesmo sentido, ainda, AC RP de 23.02.2017, relator ARISTIDES RODRIGUES de ALMEIDA (inédito), ali citado, ambos in www.dgsi.pt.
[13] AC RC de 16.12.2015, relator MARIA DOMINGAS SIMÕES, disponível no mesmo sítio oficial.