Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
860/18.9T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
INDEMNIZAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
EQUIDADE
Nº do Documento: RP20220110860/18.9T8PVZ.P1
Data do Acordão: 01/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A indemnização do dano biológico passa pela determinação de um capital produtor um rendimento que se venha a extinguir no final do período provável de vida ativa do lesado, suscetível de lhe garantir, durante esta, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho.
II - A utilização de fórmulas abstratas ou critérios, como elemento auxiliar, tornam mais justas, atuais e minimamente discrepantes, as indemnizações.
III - O recurso aos juízos de equidade é defensável como complemento para ajustar o montante encontrado à solução do caso concreto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 860/18.9T8PVZ.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
AUTORA: B… e outro
RÉ, por via de intervenção principal: C… – Companhia de Seguros, S.A.

Por via da presente ação declarativa pretende a A. obter a condenação da Ré (a título subsidiário, sendo o pedido inicialmente formulado contra a seguradora D…), a pagar-lhe a quantia de € 82.104,40, acrescida de juros moratórios à taxa de 4% que se vencerem desde a citação até efetivo pagamento e, bem assim, as despesas médicas, medicamentosas, hospitalares, transportes e demais despesas futuras que sejam decorrentes das lesões sofridas no acidente, e danos patrimoniais e não patrimoniais que venham a ser gerados pelo agravamento futuro dessas lesões.
Para tanto, invocou acidente de viação do qual foi vítima e que produziu em si inúmeras consequências físicas que determinaram sequelas com que se debate ainda.

A Ré aceitou a responsabilidade pelo sinistro, mas contesta o valor dos danos invocados.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo:
a) absolve a Ré D… – Companhia de Seguros, S.A. dos pedidos formulados pela Autora B…:
b) condena a Interveniente Principal C… – Companhia de Seguros, S.A. a pagar à Autora B…:
i) a quantia de € 3.833,30 a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde 1 de Outubro de 2018, até integral e efetivo cumprimento;
ii) a quantia de € 20.000, a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde a presente data, até integral e efetivo cumprimento;
iii) o que vier a ser liquidado a título de danos patrimoniais e não patrimoniais em caso de agravamento das sequelas identificadas no ponto da fundamentação de facto.
Custas a cargo da Autora e da Interveniente Principal na proporção 7/10 e 3/10, respetivamente.
Foram os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida:
A. Dinâmica do acidente:
1. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ……… E…, Ld.ª transferiu para a Ré a responsabilidade decorrente da circulação do veículo pesado articulado marca DAF … matrícula ..-FX-.. [resposta aos artigos 71º, 42º das petições iniciais, respetivamente do processo principal e do apenso, 3º da contestação da Ré].
2. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ……… o Autor F… transferiu para a Interveniente Principal a responsabilidade decorrente da circulação do veículo ligeiro de passageiros marca Mercedes Benz …, matrícula ..-FU-.. [resposta aos artigos 4º da contestação da Ré, 6º da contestação da Interveniente Principal].
3. No dia 17 de Março de 2016, cerca das 5h30, G… conduzia o veículo pesado de mercadorias articulado identificado em 1) na Estrada Nacional .., na Freguesia …, no sentido … – … [resposta aos artigos 1º e 2º das petições iniciais].
4. O FX pertencia a E…, Ld.ª [resposta aos artigos 2º das petições iniciais, 3º da contestação da Ré].
5. No momento referido em 3) G… tripulava o FX no exercício da sua atividade de motorista da sociedade E…, Ld.ª no seu horário de trabalho e realizando tarefa de que fora incumbido [resposta ao artigo 2º da petição inicial].
6. No momento referido em 3) o Autor F… tripulava o veículo ligeiro de passageiros identificado em 2), na traseira do FX e no mesmo sentido [resposta aos artigos 3º das petições iniciais, 8º e 9º da contestação da Ré, respetivamente, do processo principal e do apenso].
7. A Autora B… era transportada no lugar do passageiro na parte dianteira do FU [resposta ao artigo 3º da petição inicial do processo principal].
8. O tempo estava limpo, o piso seco e a visibilidade era boa [resposta ao artigo 4º das petições iniciais].
9. A estrada dispunha de duas faixas de rodagem, em sentidos opostos [resposta ao artigo 4º das petições iniciais].
10. No momento não havia particular intensidade de trânsito [resposta ao artigo 4º das petições iniciais].
11. Ao km 15,650 da EN .. existe um entroncamento formado pela Rua … que se situa à esquerda, considerando o sentido … – .. [resposta aos artigos 8º das petições iniciais].
12. Perto do km 15,650 o Autor F… decidiu ultrapassar o FX [resposta aos artigos 5º das petições iniciais].
13. Por sua vez, o condutor do FX pretendia passar a circular na Rua … [resposta ao artigo 8º das petições iniciais, 6º e 7º da contestação da Ré, respetivamente, do processo principal e do apenso].
14. Para tanto, o FX aproximou-se do eixo da via [resposta aos artigos 9º da petição inicial, 5º e 6º da contestação da Ré, respetivamente, no processo principal e no apenso].
15. O condutor do FX não assinalou a sua intenção [resposta ao artigo 7º das petições iniciais].
16. O Autor deslocou-se para o eixo da via e abandonou a retaguarda do FX passando a ocupar a hemi-faixa destinada ao sentido … – … [resposta aos artigos 9º das petições iniciais, 9º das contestações da Ré].
17. Ao observar a manobra identificada em 14) e encontrando-se a par com a lateral do pesado de mercadorias, o Autor infletiu a marcha do FU para a esquerda para se desviar do FX e entrar na Rua … [resposta ao artigo 7º, 10º das petições iniciais].
18. O Autor perdeu o controlo do FU, que foi embater com a parte frontal com maior incidência à direita num muro em pedra situado à direita do início da Rua …, tendo por referência o sentido que levava, onde se imobilizou [resposta aos artigos 11º das petições iniciais, 10º, 11º, 12º das contestações da Ré].
B. Consequências do acidente para a Autora:
19. Em consequência do acidente, a Autora foi transportada de ambulância para o Hospital … [resposta ao artigo 26º da petição inicial].
20. À admissão hospitalar apresentava queixas de dores no tornozelo direito, cotovelo direito, grade costal esquerda e cervicalgia [resposta ao artigo 27º da petição inicial].
21. Após realização de raio-X e TC foi-lhe diagnosticado:
- traço de fratura ao nível de C2 intersetando o pedículo direito e a região somática posterolateral esquerda e massa lateral de C2 esquerda e foramina intertransversário esquerdo com topos fraturários relativamente alinhados;
- fratura intra-articular e cominutiva do calcâneo direito, multiesquirulosa, com atingimento da articulação sub-astragalina;
- discreta fratura linear transversal interessando a ponta do maléolo interno, alinhada [resposta aos artigos 29º, 31º da petição inicial].
22. Recebeu os primeiros cuidados com colar cervical e tala gessada no membro inferior direito [resposta ao artigo 28º da petição inicial].
23. Foi transferida, por vontade própria, para o Hospital H…, no Porto onde permaneceu internada até 21 de Março de 2016, saindo por sua iniciativa por desagrado com a assistência prestada [resposta ao artigo 30º da petição inicial].
24. Na mesma data foi admitida, na I…, no Porto [resposta ao artigo 30º da petição inicial].
25. A 21 de Março de 2016 foi submetida a cirurgia de osteossíntese do calcâneo direito e maléolo tibial direito [resposta ao artigo 32º da petição inicial].
26. Teve alta a 25 de Março de 2016, com manutenção de colar cervical, analgesia e marcha com canadianas sem carga [resposta ao artigo 33º da petição inicial].
27. A Autora manteve o colar cervical até 30 de Junho de 2016 [resposta ao artigo 34º da petição inicial].
28. Em 30 de Junho de 2016 a Autora deambulava com bota de Walker e auxílio de duas canadianas [resposta ao artigo 36º da petição inicial].
29. Na consulta de 30 de Junho de 2016 foi prescrito tratamento fisiátrico de três semanas, com agendamento de sessões para 8, 11, 12 e 13 de Julho de 2016, às quais faltou [resposta ao artigo 36º da petição inicial].
30. Iniciou tratamentos ao membro inferior direito, de hidroterapia a 17 de Outubro a 18 de Novembro de 2016 e de fisioterapia a 2 de Dezembro de 2016, ocasionalmente alternado com hidroterapia, que se prolongou até 14 de Fevereiro de 2017 [resposta ao artigo 35º da petição inicial].
31. A consolidação das lesões ocorreu a 14 de Fevereiro de 2014 [resposta aos artigos 39º da petição inicial].
32. A Autora esteve com défice funcional temporário total entre 17 e 25 de Março de 2016 [resposta ao artigo 40º da petição inicial].
33. Após a data referida em 31), a Autora ficou a padecer de a título definitivo de:
a) dificuldade na marcha, na passagem da posição de sentada para ortostática e em manter posição ortostática mais de 30 minutos;
b) fenómenos dolorosos no pé e tornozelo direitos, sem necessidade de analgesia;
c) edema maleolar lateral no membro direito;
d) dificuldade na marcha prolongada, em subir e descer escadas;
e) mobilidade mantida no pescoço, mas com referência de dor no arco final dos movimentos;
f) cicatriz eucrómica, de orientação horizontal, com 2 cm de comprimento na região maleolar externa direita;
g) cicatriz eucrómica, de orientação vertical, com 2 cm de comprimento na região maleolar interna direita;
h) palidez cutânea na região do tornozelo e da face dorsal do pé direito em comparação com o membro contralateral;
i) perímetro da perda direita de 32 cm a 13 cm do polo superior da rótula, sendo o da esquerda de 34 cm;
j) palpação dolorosa da região maleolar externa direita, temperatura fria à palpação do tornozelo e da face dorsal do pé direito em comparação com o membro contralateral;
k) limitação ligeira de mobilidade da articulação do tornozelo e mediotársica realizando flexão dorsal até 10º, flexão plantar até 30º, inversão até 10º e eversão até 20º;
l) marcha com ligeira claudicação à direita [resposta aos artigos 37º, 38º, 49º, 60º da petição inicial].
34. As cicatrizes e claudicação referidas em 33) correspondem a dano estético permanente de grau 2 numa escala de 1 a 7 [resposta ao artigo 43º da petição inicial].
35. Devido às lesões e aos tratamentos a Autora sofreu dores de grau 4 numa escala de 1 a 7 [resposta ao artigo 41º da petição inicial].
36. As sequelas referidas em 36) a) a e), j) e k), correspondentes a cervicalgias (Md803), limitação da flexão dorsal (Mc0641), limitação da flexão plantar (Mc0936), rigidez da articulação médio-társica (Mc 0648) e rigidez da articulação sub-talar (Mc0646), correspondem a défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14 pontos, com possibilidade de agravamento [resposta ao artigo 42º da petição inicial].
37. À data do acidente a Autora já era reformada [resposta ao artigo 47º da petição inicial].
38. Então, a Autora era autónoma e realizava atividades variadas, que lhe davam prazer [resposta ao artigo 47º da petição inicial].
39. Antes do acidente a Autora frequentava o ginásio [resposta aos artigos 37º, 48º, 49º da petição inicial].
40. Após o acidente, Autora passou a sentir dificuldade em praticar a maior parte dos exercícios que antes fazia no ginásio [resposta aos artigos 37º, 49º da petição inicial].
41. As dificuldades referidas em 40) correspondem a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 3 numa escala de 1 a 7 [resposta ao artigo 44º da petição inicial].
42. A Autora sente revolta por ter sofrido o acidente e tem recordações dolorosas deste, bem como dos tratamentos, das dificuldades de comunicação linguística, tendo perceção hostil dos ambientes hospitalares e de reabilitação [resposta aos artigos 37º, 55º da petição inicial].
43. A Autora despendeu:
a) € 182,70 em transportes para consultas e tratamentos;
b) € 5,60 em refeições;
c) € 45 em consultas [resposta aos artigos 65º, 66º, 67º da petição inicial].
44. No período compreendido entre 17 de Março de 2016 e 14 de Fevereiro de 2017, a Autora teve a sua autonomia afetada [resposta ao artigo 56º da petição inicial].
45. A Autora nasceu a 14 de Julho de 1943 [resposta ao artigo 46º da petição inicial].
46. Em consequência do acidente, a Interveniente Principal liquidou os seguintes montantes:
- € 4.500,44 à Autora a título de despesas hospitalares;
- € 4.275,19 à J… por assistência hospitalar prestada à Autora;
- € 280,71 ao Centro Hospitalar …, EPE por assistência hospitalar à Autora;
- € 60 de honorários médicos de consultas frequentadas pela Autora;
- € 4.418,52, para auxílio de terceira pessoa;
- € 3.246,01 de despesas de transporte;
- € 225,92 de despesas de medicamentos;
- € 1.500 a título de adiantamento da indemnização final [resposta aos artigos 9º, 10º e 12º da contestação da Interveniente Principal].
(os restantes factos referem-se às consequências do sinistro para o co-autor relativamente ao qual a sentença de primeira instância transitou já em julgado)

Desta sentença recorre a A., visando a revogação parcial, de modo a ver aumentados os valores indemnizatórios, fundamentando o seu recurso nos argumentos que assim sintetiza nas conclusões:
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Por seu vez, a seguradora C… – Companhia de Seguros, SA, apresentou recurso subordinado relativamente à condenação da Ré a pagar à A. a quantia de € 20.000,00, por danos não patrimoniais, considerando ser suficiente a quantia de € 12.000,00.
Para tanto, formulou as seguintes conclusões:
1. A recorrente não se conforma com a douta sentença proferida nos presentes autos, na parte em que condena a Ré no pagamento da quantia de € 20.000,00, a título de compensação por danos não patrimoniais valor que a recorrente considera excessivo.
2. A propósito, relativamente aos Danos Não Patrimoniais, entendeu o Tribunal a quo fixar o valor do dano em € 20.000,00, recorrendo a juízos de equidade e considerando os critérios de quantum doloris, período de doença e situação anterior e posterior do lesado em termos de afirmação social, apresentação e auto-estima, alegria de viver, idade, esperança de vida, perspetivas para o futuro, entre outros.
3. A recorrente não pode, nem deve, conformar-se com tal valor, por se situar muito para além dos padrões de normalidade e razoabilidade por que se devem pautar as decisões judiciais, bem como, atendendo aos critérios enunciados e aos factos demonstrados provados.
4. A tarefa do julgador não é fácil, precisamente quando estão em discussão danos não patrimoniais que não são mensuráveis nem quantificáveis monetariamente, pelo que importa recorrer a juízos de equidade para a fixação de valor capaz de indemnizar os danos deles decorrentes.
5. Ora, o critério a adotar deve considerar o grau de intensidade da dor, dos incómodos e do prejuízo estético e os danos físicos decorrentes das lesões, bem como deve ser considerada a realidade económica, política, social e cultural do nosso país para “quantificar” o dano, como se disse.
6. Salvo melhor opinião, entende a recorrente que o valor arbitrado é exagerado e foi fixado ao arrepio da jurisprudência dominante, mesmo considerando o quantum doloris no grau 4 em 7 e o Dano Estético no grau 2 em 7.
7. Desta forma, entende-se por demais razoável a fixação de € 12.000, 00, para majorar os danos não patrimoniais decorrentes do acidente dos autos, valor que se reputa adequado.

Objeto do recurso tendo em conta as conclusões recursivas:
- da fixação da indemnização pelo dano biológico;
- da compensação pelos danos não patrimoniais.

FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentos de facto
Os factos que interessam à decisão da causa foram os fixados em primeira instância e que aqui se dão por reproduzidos.

Fundamentos de Direito
Está em causa, em primeiro lugar, a avaliação do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica.
A determinação do dano patrimonial futuro, com base na afetação permanente e irreversível da capacidade funcional, com ou sem afetação total ou parcial da capacidade para o exercício da atividade habitual (com valores indemnizatórios reforçados neste último caso) foi objeto de acórdão uniformizador de jurisprudência (AUJ) proferido pelo STJ, a 28.3.2019 (Proc. 1120/12.4TBPLT.G1.S1)[1]. Nesse aresto consignaram-se os seguintes princípios que aqui renovamos:
- A indemnização deste dano passa pela determinação de um capital produtor um rendimento que se venha a extinguir no final do período provável de vida ativa do lesado, suscetível de lhe garantir, durante esta, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho.
- A utilização de fórmulas abstratas ou critérios, como elemento auxiliar, tornam mais justas, atuais e minimamente discrepantes, as indemnizações.
- O recurso aos juízos de equidade é defensável como complemento para ajustar o montante encontrado à solução do caso concreto.
Por nós, sempre aceitámos que valorização deste dano e os critérios de fixação da respetiva indemnização não dispensam um ponto de partida mais ou menos seguro e que consiste no apuramento dos rendimentos que o lesado recebe na sua ocupação normal ou previsível e determinar qual o período futuro de vida (que não apenas ativa) que ainda teria.
Tradicionalmente, os tribunais têm-se socorrido de diversos critérios para o cômputo da indemnização por danos derivados da redução ou extinção da capacidade de ganho[2].
Já se utilizou um critério de capitalização do salário, através da atribuição de um capital cujo rendimento, calculado com base na taxa média e líquida de juros dos depósitos a prazo, fosse equivalente ao rendimento perdido.
Também é vulgar elaborar-se um cálculo baseado em tabelas financeiras, método que assenta em duas condicionantes, uma relativa à esperança de vida do lesado[3] (e não apenas à vida ativa como se acentua neste AUJ) e outra à taxa de juros líquida (que hoje não é superior a 1%, atenta a generalizada baixa das taxas de juro).
Por vezes utilizam-se regras do direito do trabalho usadas no cálculo das pensões por acidente de trabalho ou capital por remição.
Estes critérios não devem ser aplicados mecanicamente mas podem servir como orientação geral ou elemento operativo, no âmbito da tarefa da fixação da indemnização, sujeita à correção imposta pelos circunstancialismos da cada caso mas sempre tendo por pressuposto que a quantia a atribuir ao lesado o há-de ressarcir, durante a sua vida (a laboralmente útil e a posterior), da perda sofrida e mostrar-se esgotada no fim do período considerado.
Destarte, faremos, numa primeira fase, uma abordagem ao problema da fixação da indemnização relativa à perda da capacidade aquisitiva por meio de simples cálculo matemático (refira-se que a tendência em termos de direito comparado é a de fixar tão apriorística e rigorosamente quanto possível os elementos de cálculo deste tipo de indemnização, não só para possibilitar soluções de consenso extrajudicial mas também para evitar casos de injustiça relativa que resultam da diversidade de critérios que se adotam nos diferentes fóruns judiciários, tendência que, quanto a nós, será inteiramente de aplaudir de iure condendo).
Lançaremos mão da equação matemática já utilizada em arestos jurisprudenciais e que é a seguinte:
C = (1+ i)ⁿ – 1 x P
(1+I)ⁿ x i
Nesta equação C representa o capital a depositar logo no primeiro ano, P, a prestação a pagar anualmente e i, a taxa de juro que se fixa em 1% atenta a baixa das taxas de juro e n, o número de anos de vida que o sinistrado terá.
Consideraremos aqui uma esperança de vida de 83 anos.
A A. nasceu a 14.7.43.
À data da consolidação das lesões (14.2.2017) a A. tinha 74 anos. Até aos 83 anos faltariam 9 anos.
Como se refere na sentença, e se concorda, não constitui óbice à atribuição de indemnização pelo dano patrimonial aqui em presença o facto de o sinistrado se já encontrar em situação de reforma.
Considera a sentença que, nesse caso, deverá ter-se em conta o salário mínimo nacional à data do sinistro (em 2016 era de € 530,00), dizendo a A. que deverá atender-se à remuneração média nacional que, nessa altura, era para uma mulher de € 840,30.
Por nós entendemos que o salário mínimo nacional reflecte mais equitativamente a situação de quem não aufere qualquer vencimento, correspondendo ao mínimo exigível nacionalmente para o efeito, pelo que não aceitamos a tese da recorrente de que deverá ter-se em conta a remuneração média nacional, uma vez que nada no caso concreto impõe uma ponderação acima do salário mínimo[4].
Considerando um rendimento mensal correspondente ao salário mínimo vigente ao tempo da consolidação das lesões (em 2017) de um valor mensal de 557, 00, e anual de € 7.798, 00, com uma perda anual de 14%, temos um total anual de perda de € 1.091, 72.
Assim, utilizando a fórmula que se propõe, teremos uma taxa de juro real líquida de 1% (1 + 0.01).

Logo, C= (1 + 0,1%)9- 1 x € 1.091, 72
(1 + 0.1%)9 x 0.1%

C= € 9.776, 53.
Neste conspecto, numa situação de equidade, admite-se arredondar para € 10.000, 00, o valor atribuível a este título, acrescendo juros de mora legais desde a presente data posto que atualizado a este momento o valor indemnizatório fixado.

Os danos não patrimoniais
Mercê do acidente, a A. viu ainda atingidos outros bens, agora de natureza não patrimonial, uma vez que sofreu ofensas corporais extensas e graves, dores físicas, prejuízos de ordem estética, clausura hospitalar, diminuição da sua capacidade funcional.
Sendo certo que nada apagará já as dores que sentiu (e continua a sentir) ou trará de volta a vitalidade e energia físicas perdidas não é menos verdade que estas danos, quer os que são diretamente biológicos, resultantes das alterações do estado morfológico em geral (as lesões, incapacitação funcional), quer os que respeitam à perturbação do estado de saúde da A., traduzida nas dores sentidas e incómodos resultantes dos internamentos, dos tratamentos, da perda de autonomia, dos sofrimentos psíquicos inerentes, são danos graves merecedores de uma justa e significativa reparação, que se fixa num quantitativo unitário, de acordo com o disposto no artº 496, nº1 e 3 Código Civil.
Considerando a regra geral que resulta dos arts. 496.º e 494.º Código Civil que se reconduzem, genericamente, à avaliação dos critérios de equidade, o que não dispensa a ponderação da orientação jurisprudencial em geral (que não é despicienda, a fim de evitar situações de injustiça relativa)[5], ponderaremos em concreto o seguinte quadro de danos referido na sentença:
A Autora foi transportada de ambulância para o Hospital de Vila Nova de Famalicão, com queixas de dores no tornozelo direito, cotovelo direito, grade costal esquerda e cervicalgia, foi submetida a exames de diagnóstico, tratada conservadoramente com colar cervical e tala gessada no membro inferior direito e, a 21 de Março, intervencionada cirurgicamente para osteossíntese do calcâneo direito e maléolo tibial direito, ficando internada até 25 de Março, período que correspondeu a défice funcional temporário total.
Na data da alta, mantinha de colar cervical, com que permaneceu até 30 de Junho seguinte, estava medicada com analgésico e deambulava apoiada em canadianas sem carga; continuou a locomoção com o mesmo tipo de auxílio até à consulta realizada naquela data, apoiando o pé no chão com bota de Walker; então, foi-lhe prescrita a realização de tratamento fisiátrico por três semanas para recuperação do membro inferior direito, que não se concretizou na datas de 8, 11, 12 e 13 de Julho de 2016, devido a falta da demandante, que passou a realizar hidroterapia entre 17 de Outubro a 18 de Novembro de 2016 e fisioterapia entre 2 de Dezembro de 2016 e 14 de Fevereiro de 2017, com ocasionais sessões de hidroterapia neste segundo período.
Atingida a estabilização das lesões, após um período de cerca de onze meses de afetação da autonomia, portanto, com défice funcional temporário parcial, verificou-se que a Autora ficou com duas cicatrizes eucrómicas de 2 cm de comprimento, uma na região maleolar externa direita, de orientação horizontal, e outra na região maleolar interna direita, de orientação vertical, palidez cutânea na região do tornozelo e da face dorsal do pé direito em comparação com o membro contralateral, diferença de menos 2 cm no perímetro da perna direita, por referência o polo superior da rótula, comparativamente à perna esquerda e marcha com ligeira claudicação à direita, o que traduz dano estético permanente de grau 2 numa escala de 1 a 7.
As lesões e tratamentos importaram quantum doloris de grau 4 na mesma escala.
Embora fosse reformada, a Autora era autónoma e realizava atividades variadas, que lhe davam prazer, designadamente, frequentava o ginásio, passando, após a recuperação das lesões sofridas no acidente, a sentir dificuldade em praticar a maior parte dos exercícios que antes ali realizava, com significado de repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 3 numa escala de 1 a 7.
Apurou-se, também, que a Autora sente revolta por ter sofrido o acidente – que imputou ao condutor do veículo pesado, desresponsabilizando o marido –, tem recordações dolorosas deste, bem como dos tratamentos, das dificuldades de comunicação linguística, tendo perceção hostil dos ambientes hospitalares e de reabilitação.
Este último aspeto apresenta uma exacerbação associada à personalidade da demandante, autocentrada, como decorre da mudança de instituições hospitalares, a segunda privada, num período de internamento de apenas 9 dias, por sua iniciativa e devido a insatisfação com os cuidados prestados, além da inexistência de qualquer esforço da sua parte em adaptar-se ao idioma do local de residência, aprendendo o português, pelo menos, para entender o que se passa à sua volta, em vez de esperar que sejam terceiros a realizar todo o trabalho.
Neste tocante, afigura-se-nos equilibrada a quantia compensatória alcançada em primeira instância, ponderando os danos concretos e tendo em conta os critérios jurisprudenciais[6], sendo de desatender a pretensão da A. de ver majorada a situação e bem assim a da Ré de fazer decrescer o quantum indemnizatório a tal propósito fixado.
Dispositivo
Pelo exposto, na procedência parcial do recurso principal e total improcedência do recurso subordinado, decide-se manter a sentença que apenas é revogada na parte relativa ao dano biológico que se fixa em € 10.000, 00, com juros de mora legais, desde a presente data e até integral pagamento, condenando-se a seguradora recorrida a pagar tal valor à A.
Custas por recorrente principal e por recorrente subordinado na proporção do decaimento.

Porto, 10.1.2022
Fernanda Almeida
Maria José Simões
Abílio Costa
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[1] Decisão que considera exactamente ser o dano biológico um dano abrangente de prejuízos alargados incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expetáveis.
[2] As tabelas de determinam o dano biológico constantes das Portarias 377/08, de 26.5, e 679/09, de 25.6, ficam aquém dos parâmetros jurisprudenciais, como é notado no AUJ.
[3] Que é hoje de 83 anos, para as mulheres, segundo o INE, cfr. https://www.sns.gov.pt/noticias/2021/09/24/esperanca-de-vida-aumenta/
[4] Neste sentido, ac. STJ, de 22.6.2017, Proc. 104/10.1TBBC.G1.S1: I. A atribuição de indemnização pelo dano biológico não substitui nem impede a atribuição de uma indemnização pelo dano patrimonial futuro que pondere a incapacidade funcional do sinistrado. II. O facto de o lesado ter apenas 14 anos de idade, de frequentar a escolaridade obrigatória e de, por tudo isso, não exercer ainda qualquer profissão, nem ter qualquer habilitação profissional ou académica não determina que, (i) como pretende a Seguradora, a indemnização seja calculada pelo valor da remuneração mínima garantida ou que, (ii) como decidiu a Relação, seja calculada pelo valor do salário mínimo nacional. III. Em tais circunstâncias é mais ajustado ajustado ponderar o valor do salário médio nacional, como elemento objectivo que sustenta o recurso à equidade.
[5] Naquele AUJ fixou-se a compensação por danos patrimoniais em 60.000,00, para, genericamente, os seguintes danos: lesado com 51 anos (já não exercendo atividade profissional ao tempo do sinistro por se encontrar reformado por invalidez), com fratura da cabeça e úmero com luxação dos ossos da perna, internamento hospitalar durante cerca de dois meses (interpolados), intervenções cirúrgicas, acamada durante vários meses, gesso durante seis semanas, auxílio de terceira pessoa, cadeira de rodas durante um ano, canadianas, fisioterapia, apresenta marcha claudicante, dores (quantum doloris de 5) e outras limitações, cicatrizes (dano estético de 3), défice funcional permanente de 31 pontos.
[6] Para uma situação similar, com a mesma incapacidade, mas envolvendo jovem de 17 anos e com resultados negativos nos estudos, o STJ, fixou em € 25.000,00, a compensação – ac. STJ, de 30.5.2019, Proc. 3710/12.6TJVNF.G1.S1: Resultando dos factos provados que a autora: (i) tinha 17 anos, completados no dia do acidente que a vitimou, ocorrido em 01-01-2010; (ii) em virtude desse acidente, ficou encarcerada no veículo, com perda de consciência; (iii) foi transportada para o serviço de urgência do Hospital, no qual ficou internada, tendo sido submetida a tratamentos e a operação ao fémur e ao punho; (iv) recebeu acompanhamento das especialidades de ortopedia, odontologia e psicologia, foi submetida a fisioterapia e a novas cirurgias, tendo tido alta definitiva em 31-03-2011; (v) devido às lesões e aos tratamentos, sofreu dores de grau 5 numa escala de 1 a 7; (vi) ficou a padecer de edema de ambos os calcanhares necessitando de usar calçado com um número acima; (vii) apresenta cicatrizes que determinam dano estético de grau 3 numa escala de 1 a 7; (viii) perdeu o ano lectivo 2009/2010, mudando para o curso de técnica de recepção no ano lectivo seguinte, sem que tenha ingressado no ensino superior como idealizara antes do sinistro; (ix) deixou de praticar futsal, o que lhe traz desgosto, valorizado como repercussão permanente as actividades desportivas e de lazer de grau 1 numa escala de 1 a 7; (x) dependeu de terceiros na realização das suas tarefas diárias, passou a isolar-se, deixou de ter vontade de conviver com os amigos, tornou-se facilmente irritável, de trato difícil, ansiosa e sente medo de andar de automóvel quando circula a velocidade superior a 90km/hora; (xi) devido a cansaço, deixou de poder correr e fazer caminhadas como anteriormente e ganhou peso por não poder praticar desporto, tendo de fazer dieta para o manter controlado; considera-se adequado o montante de € 25.000,00 fixado, pela Relação, a título de indemnização por danos não patrimoniais (arts. 496.º, n.os 1 e 3, e 494.º, do CC).