Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
19152/21.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL FERREIRA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
NÃO USO DO LOCADO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ENCERRAMENTO DO ESTABELECIMENTO
ESTADO DE EMERGÊNCIA
COVID-19
IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DO LOCADO
Nº do Documento: RP2023061519152/21.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O encerramento de estabelecimentos comerciais determinado por lei durante o período de estado de emergência no âmbito da pandemia declarada por força do agente causador da doença “COVID-19” e as restrições ao seu funcionamento e às deslocações de pessoas que vigoraram nos subsequentes períodos de situação de calamidade constituem uma situação de impossibilidade objectiva de utilização do espaço arrendado não imputável ao arrendatário, não dando lugar à resolução do contrato de arrendamento pelo não uso do locado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 19152/21.0T8PRT.P1
(Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2)


Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Deolinda Varão
2ª Adjunta: Isoleta Costa

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


I AA, na qualidade de cabeça-de-casal da herança indivisa de BB, intentou, no Juízo Local Cível do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, acção declarativa, com processo comum, contra “A... – Comércio de Têxteis, Lda.”, pedindo:
- seja decretada a resolução do contrato de arrendamento com os fundamentos previstos nas alíneas c) e d) do nº 2 e nº 3 do artigo 1083º do Código Civil;
- seja a R. condenada a desocupar de imediato o locado e a devolvê-lo à herança, representada pelo A., livre e devoluto de pessoas e bens;
- seja a R. condenada ao pagamento das rendas em dívida, no valor de €1.800,00;
- seja a Ré condenada em indemnização correspondente a, pelo menos, o dobro do valor da renda, desde a data do trânsito em julgado da decisão que decretar a resolução do arrendamento e até efectiva restituição do locado.
Alegou para tal que a autora da herança deu de arrendamento à R. o imóvel identificado no art. 3º da petição inicial, para comércio, pela renda mensal de €300,00, onde a R. instalou um estabelecimento de venda de artigos têxteis, roupa e acessórios, não tendo esta pago as rendas de Maio a Outubro de 2020, recomeçando os pagamentos em Novembro de 2020, que os senhorios foram imputando às rendas mais antigas, encontrando-se em dívida, à data da petição inicial, o valor de €1.800,00 respeitante às rendas dos meses de Agosto a Dezembro de 2021 (vencida em Novembro), e que há mais de um ano (por referência à data de entrada da petição inicial) que a loja se mantém fechada, tendo a R. aí deixado de exercer o comércio de produtos têxteis a que se dedicava.
A R. contestou, invocando a excepção de caducidade do direito da herança à resolução do contrato por falta de pagamento das rendas de Maio a Outubro de 2020, por ter passado mais de um ano desde o incumprimento, e impugnando os factos alegados relativamente ao não uso do locado.
Procedeu ainda ao depósito das rendas em dívida, acrescidas de metade do seu valor, a título de indemnização, como forma de cessação de mora, invocando a referida caducidade também por este motivo.
O A. respondeu, defendendo não se verificar a caducidade pelo primeiro fundamento invocado.
Foi realizada audiência prévia, foi elaborado despacho saneador, onde se relegou para a sentença o conhecimento da excepção de caducidade, foi identificado o objecto do litígio e foram elencados os temas da prova.
Procedeu-se seguidamente a julgamento.
Após, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a acção improcedente e, em consequência, absolver a R. do pedido.
De tal sentença veio o A. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões (!), que se transcrevem:
«A – O presente recurso vem interposto da sentença que julgou a ação improcedente uma vez que decidiu que não resultou demonstrado que à data da instauração da ação, 22/11/2021, o não uso do locado tivesse ocorrido por mais de um ano ou que o mesmo fosse utilizado para fim diverso daquele a que se destina.
B - Em sede de intervenção na decisão da matéria de facto, o recorrente submete a este Tribunal a reapreciação dos meios probatórios constantes dos autos, incluindo a prova gravada, meios de prova sujeitos a livre apreciação, reclamando um novo e autónomo juízo relativamente ao facto impugnado.
C - No plano do seu conteúdo a sentença impugnada não cumpre o dever de fundamentação dando causa à nulidade prevista no artigo 615.º/1-b), ou caso assim se não entenda, à nulidade prevista no artigo 615.º/1-c), do CPC.
D - A retórica argumentativa da sentença basta-se com a mera referência que a decisão proferida “atendeu aos documentos juntos aos autos e, em concreto, o Tribunal atendeu à Escritura Pública de habilitação de herdeiros e à correspondência junta aos autos; (…), às fotografias e à informação junta aos autos”, sem, contudo, apreciar a prova documental que invoca ter atendido.
E - No que concerne à prova testemunhal declara ter atendido ao depoimento das testemunhas CC, irmã do Autor, DD, esposa do Autor, e EE.
F - Considerou que as duas primeiras testemunhas se reportaram às circunstâncias em que constataram estar encerrado o estabelecimento em causa, afirmando que se encontrava com um aspeto abandonado, apresentando, contudo, um depoimento interessado e que se mostrou contrariado pelo depoimento da testemunha EE, a qual esclareceu ser detentora de uma loja de comércio de jogos também na Rua ..., a poucos metros da loja ora em causa.
G – Este segmento decisório assinala que as testemunhas arroladas pelo Autor, sendo uma, sua irmã, e outra, seu cônjuge, depuseram de forma interessada e, portanto, desconsidera os seus depoimentos, mas do mesmo não se consegue extrair a razão pela qual conclui que estas testemunhas depuseram de forma interessada, nem se consegue perceber porque é que, no confronto destes depoimentos com o depoimento prestado pela testemunha arrolada pela ré, [contraditórios entre si] o Tribunal a quo valorizou esta última.
H - A decisão proferida assentou numa causa objetiva de desconsideração do depoimento das testemunhas arroladas pelo Autor: a sua relação familiar [cônjuge e irmã] com aquele, o que constitui como que um repristinar da inabilidade legal que, antes da reforma do processo civil, ocorrida em 1995/1996, afetava os cônjuges, e que, evidentemente, no quadro legal vigente, não encontra suporte.
I - Ao omitir os fundamentos da decisão proferida quanto à matéria de facto, ou caso assim possa não se entender, ao fundamentar tal decisão de modo incompleto e arbitrário, o Tribunal a quo deu causa à nulidade prevista no artigo 615.º/1-b), ou c) do CPC.
J - A decisão proferida padece de erro de julgamento na fixação da matéria de facto provada, tendo sido incorretamente julgado não provado o seguinte facto: “Em 22/11/2021, a loja mantinha-se fechada há mais de um ano, tendo deixado de nela se exercer o comércio de produtos têxteis a que se dedicava a Ré, nem qualquer atividade conexionada com os fins do contrato, não existindo movimento de pessoas, clientes ou fornecedores, encontrando-se desocupada, não sendo consumida energia elétrica, nem água.”
K - O recorrente submete a este Tribunal a reapreciação dos meios probatórios constantes dos autos, incluindo a prova gravada, meios de prova sujeitos a livre apreciação, e que reclamam um novo e autónomo juízo por parte deste Tribunal relativamente ao facto impugnado, concretamente, a prova documental, as declarações de parte do legal representante da Ré e os depoimentos das testemunhas do Autor.
L - Consta do elenco dos factos provados que os senhorios “enviaram carta (datada de 06 de novembro de 2020, embora remetida em 02 de dezembro seguinte) registada com AR com o assunto “Pagamento de rendas em atraso”. Na referida comunicação a Ré é informada da mora em que incorria em consequência da falta de pagamento de rendas, o valor e, dívida e a indemnização moratória de que era devedora. Ainda na supra referida carta, o Autor questionou a Ré acerca da disponibilidade desta para um acordo de revogação do contrato de arrendamento, uma vez que a loja se mantinha encerrada, o que era evidenciado pela ampla correspondência espalhada pelo chão, mesmo em frente à porta da entrada. – cfr. ponto 6 dos factos provados.
M - A carta mencionada não foi recebida pela Ré, tendo sido devolvida com a indicação “Encerrado” – cfr. ponto 6 dos factos provados e o mesmo sucedeu com a carta enviada em 16 de dezembro de 2020 – cfr. ponto 9 dos factos provados.
N – Nessa carta os senhorios, entre o demais, referem que: “Por fim, temos constatado que a loja tem estado encerrada por longos períodos, pelo que estamos disponíveis para efetuar um acordo de revogação do contrato de arrendamento em vigor, que preveja uma situação mais vantajosa quanto ao valor em dívida.”
O - Do teor da sobredita carta pode legitimamente concluir-se, invocando juízos de normalidade e de razoabilidade, que em novembro/dezembro do ano de 2020 já os herdeiros haviam verificado que a loja estava encerrada “por longos períodos”, não sendo verosímil admitir que os declarantes, através de uma comunicação em que visavam obter o acordo da locatária, comunicassem a esta factos inexatos.
P - A interligação coerente desta comunicação com os restantes meios de prova constituem notórios sintomas de verdade.
Q - Ainda reportando à prova documental junta aos autos, é de salientar, neste mesmo sentido, e pela sua importância, a comunicação emitida pelo Departamento Municipal de Fiscalização da Câmara Municipal do Porto, no âmbito do Processo P/11..., datada de 12/10/2021, com o assunto Verificação da execução das obras impostas, e no qual a Recorrida é identificada como Requerente/Arrendatária.
R - Nesta comunicação, junta aos autos a fls… , declara-se que o local foi inspecionado em 30/09/2021 e que “não obstante terem sido notificados todos os interessados para facultar o acesso ao local, no dia e hora agendado não foi facultado o acesso ao estabelecimento do r/c, indiciando assim o desinteresse da entidade requerente (locatário)”.
S - No último parágrafo daquele ofício pode ainda ler-se o seguinte: “De acordo com os esclarecimentos obtidos no local o estabelecimento encontra-se fechado desde o início da pandemia.”
T - O distanciamento e desinteresse da Recorrida relativamente ao arrendado e ao comércio a que supostamente se dedica naquela loja é de tal ordem que, à data em que as declarações de parte foram efetuadas, dia 08 de setembro de 2022, o Legal Representante da Recorrida ainda não tinha notado que as obras determinadas pela entidade administrativa tinham sido efetuadas, como constatado pelos serviços de fiscalização em 30/09/2021, quase um ano antes.
U - Ainda no domínio da prova documental constam dos autos a fls… as faturas referentes aos consumos de água e de luz que evidenciam que os consumos entre 21-11-2020 e 21-11-2021 eram praticamente inexistentes e demonstram, igualmente, que o estabelecimento não desenvolveu a sua atividade durante aquele período.
V – A mesma conclusão se retira, ainda no domínio da prova documental, da informação prestada pela Autoridade Tributária, com os números das vendas trimestrais da Recorrida, durante o período em causa.
X - As declarações de parte do Legal Representante da Recorrida embora abundante em flutuações contraditórias, permitem confirmar que o estabelecimento esteve fechado no período alegado pelo Autor.
Z - No decurso do seu depoimento o Legal Representante da recorrida declarou que “havia um empregado, um funcionário de outra loja minha, que também ia lá às vezes buscar mercadorias (…) o que decerto permite perceber o inusitado e surpreendente interesse da Recorrida na manutenção deste arrendamento.
AA - Os depoimentos das testemunhas arroladas pelo Autor, ora recorrente, são coerentes com o contexto probatório antecedentemente invocado, tendo relatado os factos com esclarecida razão de ciência.
AB - São substanciais, avultados e coerentes os elementos probatórios, a começar pela prova documental, regra geral, de superior fiabilidade que, conjugados entre si e apreciados sob as regras da experiência comum demonstram que, em 22/11/2021, a loja se mantinha fechada há mais de um ano, tendo deixado de nela se exercer o comércio de produtos têxteis a que se dedicava a Ré.
AC - A prova exigida ao Recorrente é manifestamente difícil, sendo de acentuar que o Tribunal a quo também não ponderou a dificuldade que constitui demonstrar que o estabelecimento se manteve encerrado por mais de um ano, desde 22/11/2021.
AD - Este facto mostra-se normativamente formulado pela negativa e a sua demonstração obriga à prova de um facto verdadeiramente negativo, qual seja o de o locado não ter sido usado por mais de um ano- cfr. Artigo 1083º/2, al. d) do CC. - muito mais difícil de fazer do que demonstrar que o estabelecimento se encontrava em funcionamento e afeto à atividade para a qual foi arrendado.
AE - A apreciação da prova de um facto negativo, devido às maiores dificuldades que lhe estão inerentes, deve ser feita considerando o princípio da proporcionalidade.
AF - Sopesada toda a prova produzida, corresponderá mais adequadamente à verdade material dar como assente o facto impugnado que deverá, assim, ter-se como provado na formulação que se propõe: Em 22/11/2021, a loja mantinha-se fechada há mais de um ano, tendo deixado de nela se exercer o comércio de produtos têxteis a que se dedicava a Ré, nem qualquer atividade conexionada com os fins do contrato, não existindo movimento de pessoas, clientes ou fornecedores, encontrando-se desocupada.
AG - A lógica da decisão proferida na sentença recorrida repousa na decisão de não provado que mereceu este facto.
AH - Provado que em 22/11/2021, a loja se mantinha fechada há mais de um ano, tendo deixado de nela se exercer o comércio de produtos têxteis a que se dedicava a Ré, nem qualquer atividade conexionada com os fins do contrato, não existindo movimento de pessoas, clientes ou fornecedores, encontrando-se desocupada, encontra-se preenchido o fundamento para a resolução do contrato de arrendamento constante sob o artigo 1083º/2, al. d) do CC, o que determina a revogação da decisão proferida e a sua substituição por uma outra que decrete a resolução do contrato de arrendamento e condene a Recorrida nos pedidos formulados.
AI – Na decisão proferida não foram atendidos os comandos ínsitos no artigo 607º nºs. 4 e 5 do CPC.
NESTES TERMOS E O DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXªS QUE SEMPRE SE ESPERA, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO RECONHECIDA A INVOCADA NULIDADE DA SENTENÇA, ALTERADO O JULGAMENTO SOBRE O FACTO IMPUGNADO, E, CONSEQUENTEMENTE, SER REVOGADA A DECISÃO DE QUE SE RECORRE E BEM ASSIM SER A DECISÃO PROFERIDA SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE DECLARE A RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO E CONDENE A RECORRIDA NOS PEDIDOS FORMULADOS.
ASSIM PROMOVERÁ O DIREITO E REALIZARÁ A JUSTIÇA!».
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar:
a) apreciar da nulidade da sentença;
b) apurar da alteração da matéria de facto conforme propugnado pelo recorrente;
c) averiguar, com base na pretendida alteração da matéria de facto ou independentemente dela, se deve ser decretada a resolução do contrato de arrendamento com fundamento no não uso do locado por mais de um ano, ou no uso para fim diverso daquele a que se destina.
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Vejamos a primeira questão.
Invoca o recorrente a nulidade da sentença, nos termos do art. 615º, nº 1, als. b) e c), do C.P.C., por omitir o exame crítico das provas, não cumprindo o dever de fundamentação.
A situação prevista na alínea b) da norma em causa reconduz-se à falta de fundamentação e para que se verifique a nulidade em causa tem de tratar-se de uma falta absoluta, “embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”, não bastando que “a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente” (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed. revista e actualizada, 1985, pág. 687).
No caso concreto, a sentença recorrida contém efectivamente os fundamentos de facto (enumeração dos factos considerados provados e dos considerados não provados e fundamentação da convicção do tribunal) e de direito (discussão do aspecto jurídico da causa) em que se baseou para chegar à decisão de improcedência da acção – pode-se concordar ou não com os mesmos, mas eles constam da decisão.
Relativamente à alínea c), 1ª parte, da mesma norma, está em causa a situação de “oposição entre a decisão e os fundamentos em que ela repousa”, referindo-se a lei “à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão”. Há aqui “um vício real no raciocínio do julgador”, pois “a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente” (idem, págs. 689 e 690).
Ora, vista a sentença recorrida verifica-se que a fundamentação (de facto e de direito) e a decisão não estão em contradição, pois que da primeira resulta que o tribunal a quo entende que a pretensão do A. não pode proceder e na decisão julga-se precisamente improcedente a acção, em consonância com o que se disse na fundamentação.
Mais uma vez, pode-se concordar ou não com a decisão e/ou com os fundamentos, pode-se entender que existiu erro de julgamento ou que a decisão não é correcta e é injusta, mas isso não significa que exista contradição entre os fundamentos e a decisão.
Independentemente da concordância ou não com a decisão, da leitura da sentença percebe-se o motivo pelo qual não foi a acção julgada procedente.
A situação prevista na alínea c), 2ª parte, da norma em causa respeita à ocorrência de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. “A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes”, sendo que essa ambiguidade ou obscuridade “só releva quando torne a parte decisória ininteligível, o que ocorre quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236º, nº 1, e 238º, nº 1, do CC, não possa retirar um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar” (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, 3ª ed., Almedina, pág. 794, anot. 12 ao artigo 615º e Acs. do S.T.J. aí citados).
Ora, vista a sentença recorrida, verifica-se que a mesma não contém qualquer ambiguidade ou obscuridade (aliás, nem tal lhe foi apontado em concreto pelo recorrente, que, quanto a esta alínea, se limitou a invocar a mesma), sendo perfeitamente inteligível o seu teor.
Igualmente aqui se pode concordar ou não com a decisão da matéria de facto e/ou com os seus fundamentos, pode-se entender que existiu erro de julgamento ao considerar o facto não provado como tal, mas isso não significa que exista obscuridade ou ambiguidade da decisão.
Independentemente da concordância ou não com a decisão, da leitura da sentença, percebe-se todo o seu teor e o motivo pelo qual o facto em causa foi considerado não provado.
É de concluir, pois, que não ocorre a nulidade invocada pelo recorrente.
Não merece, portanto, provimento o recurso nesta parte.
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Passemos à segunda questão.
O recurso pode ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.).
Neste caso, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (nº 1 do art. 640º):
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No que respeita à alínea b) do nº 1, e de acordo com o previsto na alínea a) do nº 2 da mesma norma, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Uma vez que a impugnação da decisão de facto não se destina a que o tribunal de recurso reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, a lei impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
No caso concreto, verifica-se que o recorrente deu cumprimento às referidas exigências, especificando os concretos factos que põe em causa e indicando as razões da sua discordância, nomeadamente por referência aos meios de prova que, em seu entender, sustentam a solução que propugna.
Apreciemos então.
Pretende o recorrente que deve ser dado como provado (parcialmente) o facto da alínea a) dos factos não provados.
Este facto é do seguinte teor:
“Em 22/11/2021, a loja mantinha-se fechada há mais de um ano, tendo deixado de nela se exercer o comércio de produtos têxteis a que se dedicava a Ré, nem qualquer atividade conexionada com os fins do contrato, não existindo movimento de pessoas, clientes ou fornecedores, encontrando-se desocupada, não sendo consumida energia elétrica, nem água.”.
O recorrente defende que deve ser dado como provado com a seguinte redacção:
“Em 22/11/2021, a loja mantinha-se fechada há mais de um ano, tendo deixado de nela se exercer o comércio de produtos têxteis a que se dedicava a Ré, nem qualquer atividade conexionada com os fins do contrato, não existindo movimento de pessoas, clientes ou fornecedores, encontrando-se desocupada”.
Para o efeito, invoca o recorrente a conjugação dos documentos juntos aos autos (cartas enviadas, documento da Câmara Municipal do Porto e documentos remetidos por “Águas e Energia do Porto”, “EDP Comercial” e Autoridade Tributária), das declarações de parte do legal representante da R. e dos depoimentos das testemunhas CC e DD, respectivamente irmã e mulher do A..
O tribunal recorrido entendeu que a factualidade em causa resultou não provada, tendo motivado a sua decisão aduzindo:
De igual forma, o Tribunal atendeu ao depoimento das testemunhas CC, irmã do Autor, DD, esposa do Autor, e EE.
Com efeito, as duas primeiras testemunhas reportaram-se às circunstâncias em que constataram estar encerrado o estabelecimento ora em causa, afirmando que se encontrava com um aspeto abandonado. Apresentando, contudo, um depoimento interessado e que se mostrou contrariado pelo depoimento da testemunha EE, a qual esclareceu ser detentora de uma loja de comércio de jogos também na Rua ..., a poucos metros da loja ora em causa. Narrou o circunstancialismo por si constatado diariamente, de forma que se mostrou desinteressada – trabalhava na loja a D. FF, uma senhora com mais de 80 anos – vendia pijamas e mais recentemente roupa. A loja esteve aberta, embora, nem sempre fazia o horário completo.”.
Embora aparentemente exista contradição entre os depoimentos referidos, bem vistas as coisas, assim não será exactamente. Com efeito, as testemunhas indicadas pelo A. enfatizaram nos seus depoimentos os momentos em que viram a loja fechada e a testemunha indicada pela R. enfatizou os momentos em que viu a loja aberta, mas nem as primeiras afirmaram peremptoriamente que a viram sempre fechada, nem a segunda afirmou que a viu sempre aberta. Ou seja, no fundo, de todos os depoimentos conjugados, pode-se retirar objectivamente a ilação de que houve períodos em que a loja esteve aberta e períodos em que a loja esteve fechada, reportando-nos ao período de tempo situado após a declaração de pandemia respeitante à emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID -19 (que ocorreu em Março de 2020).
Afigura-se-nos, pois, que não existem motivos para desconsiderar nenhum dos depoimentos em relação a outros.
Quanto aos depoimentos das testemunhas CC e DD na sentença recorrida apenas se diz que se apresentaram interessados, mas não se diz porquê, podendo apenas pressupor-se que assim se considerou por serem familiares do A., irmã e mulher, respectivamente.
Porém, a simples relação familiar de uma testemunha com a parte não faz dela interessada na concreta situação em causa nos autos. E no caso menos ainda, pois que mesmo o A. não é ele próprio interessado na situação jurídica existente – ele é apenas o cabeça-de-casal da herança que é a senhoria do locado, não sendo herdeiro dessa mesma herança (foi nomeado por acordo dos herdeiros, como se vê da certidão da habilitação de herdeiros junta com a petição inicial), da qual igualmente não são herdeiras as referidas testemunhas.
É evidente que alguém que não tenha interesse directo na relação jurídica em litígio pode apresentar um depoimento interessado como testemunha se pretender assumir a todo o custo a defesa da posição da parte com a qual tem mais afinidade. Pelo que não seria impossível que aquelas testemunhas, sem qualquer interesse na situação jurídica dos autos, assumissem o interesse dos herdeiros da herança senhoria (um deles até é o pai da testemunha CC, como a mesma explicou no seu depoimento).
Todavia, ouvidos os depoimentos das duas testemunhas na totalidade, não nos parece que qualquer deles tenha sido prestado de forma não sincera ou incoerente. Claro que o interesse dos familiares no imóvel ditou uma maior atenção pela loja do que seria normal a qualquer pessoa que ali passasse quando se deslocasse para o trabalho ou outro local (como as próprias reconheceram) e eventualmente a interpretação por si dada aos factos objectivos que viram, mas aquilo que foi relatado por ter sido visto pelas próprias testemunhas afigura-se-nos que corresponde realmente àquilo que foi visto pelas mesmas, não havendo qualquer razão para crer (da audição dos depoimentos) que estivessem a faltar à verdade.
Como quer que seja, o mesmo se pode ainda dizer do depoimento da testemunha EE. Ainda que não interessada na situação jurídica dos autos, também da sua parte se verificou existir uma ligação de proximidade à anterior gerente da R. (como a mesma explicou no seu depoimento e foi notório pela forma mais vivaz como respondeu a algumas das perguntas), de quem seria amiga (a D. FF de que se fala na motivação da sentença recorrida não era só uma senhora que trabalhava na loja, como ali se diz, era a própria gerente da R., mãe do actual gerente, como este confirmou nas suas declarações de parte).
Mas também no caso desta testemunha, mesmo sendo o ênfase do seu depoimento (que igualmente ouvimos na totalidade) na circunstância de a loja estar aberta, se verifica que no que concerne a factos que presenciou ela própria a mesma não terá faltado à verdade no seu depoimento (aliás, anote-se que o recorrente não imputa qualquer motivo para desconsiderar este depoimento, apenas defende que se considerem os depoimentos das testemunhas por si arroladas).
Sendo assim, atentas as diferentes percepções das testemunhas ouvidas perante a situação da loja, temos também de ter presente, para integrar os seus respectivos depoimentos, e tentar definir os concretos períodos em que a loja terá estado fechada, a prova mais objectiva constante dos autos, os documentos juntos. E destes o que ressalta é o seguinte:
- as duas cartas enviadas pelo A. à R. para a morada do locado foram devolvidas, a primeira, em 02/12/2020, pelo motivo indicado pelos correios de “encerrado”, e a segunda, em 22/12/2020, pelo motivo indicado pelos correios de “sem caixa” (documentos juntos com a petição inicial) – logo, pode concluir-se que a loja estaria fechada quando lá foram os funcionários dos correios, mas não a ponto de se considerar que ali já não fosse exercida qualquer actividade (o segundo funcionário, podendo escolher a opção “encerrado”, optou por acrescentar a opção “sem caixa” não previamente definida);
- no âmbito de um procedimento de obras impostas ao senhorio, instaurado a requerimento da R. em 2015, foi efectuada a verificação da execução das obras pela Câmara Municipal do Porto, que haviam sido impostas em 05/02/2016, verificação que ocorreu em 30/09/2021 (mais de 5 anos depois!), tendo sido informado pelo técnico que se deslocou ao local que as obras foram executas, que não foi facultado o acesso ao estabelecimento do r/c, “indiciando assim o desinteresse da entidade requerente”, e que “de acordo com os esclarecimentos obtidos no local o estabelecimento encontra-se fechado desde o início da pandemia” (documento junto em 06/07/2022);
- do documento elaborado pelo técnico que se deslocou ao local constam 3 fotografias, uma das quais da montra da loja da R., na qual se pode ver que a montra está montada, tendo vários objectos em exposição, incluindo manequins envergando roupas de senhora, estando a mesma visível da rua, a quem passa, sem qualquer protecção ou gradeamento;
- em 06/07/2022 foram também juntas três fotografias tiradas à entrada da loja em causa, as quais foram tiradas pelo menos no dia 06/07/2022 (ou em dia posterior, mas nunca anterior, visto que na primeira das fotografias se vê um jornal daquele dia, e todas tirão sido tiradas no mesmo dia, pois se vê na montra o reflexo da pessoa que as está a tirar, podendo perceber-se que é sempre a mesma e está com a mesma roupa) – nessas fotografias vêem-se um total de sete cartas no chão da loja (mas trata-se de Julho de 2022 e não do período de tempo em causa nos autos), e na segunda fotografia vê-se a montra da loja, igualmente montada, com vários objectos em exposição, incluindo manequins envergando roupas de senhora, tal como na fotografia de 30/09/2021 tirada pelo técnico da Câmara Municipal do Porto, sendo perceptível que a roupa que veste os manequins é diferente da roupa que os vestia em 30/09/2021 (portanto houve actividade de mudança da montra), estando agora ainda vários cartazes colados na montra com referência a promoções e aos preços de várias peças de roupa;
- das facturas da água (juntas em 08/09/2022) resulta que os valores respeitantes ao efectivo consumo de água (descontadas as taxas e outros valores) já em 2018-2019 eram baixos, sendo que apenas em 25/03/2019, 27/05/2019, 26/07/2019, 24/09/2019, 25/11/2019, 24/01/2020, 21/07/2020, 21/09/2020, 20/11/2020 e 21/01/2021 foram efectuadas leituras da empresa, sendo as restantes por estimativa (anotando-se ainda que aquando das leituras da empresa na maior parte das vezes houve acertos a favor do consumidor) – ou seja, nenhuma conclusão se pode retirar do facto de os consumos de água aparentarem ser residuais no período em causa, até porque, mesmo em circunstâncias normais, o consumo de água numa loja de pronto-a-vestir será à partida diminuto (e mais ainda no período da pandemia, em que a opção generalizada das pessoas foi a de utilizar os mais diversos produtos desinfectantes, quer para as mão, quer para higienizar os espaços);
- das facturas da electricidade (juntas em 26/09/2022) resulta que nunca deixou de haver consumos de electricidade na loja da R., ainda que a partir da pandemia em valores menores do que anteriormente (sendo que no período de Agosto e Setembro de 2020 é que o valor foi muito inferior aos restantes), anotando-se que desde Fevereiro de 2019 apenas nove leituras foram por estimativa, uma delas em Abril de 2021 (até Agosto desse ano todas as restantes leituras de 2021 foram reais);
- dos elementos juntos pela Autoridade Tributária (juntos em 18/10/2022) resulta que nas declarações periódicas de IVA apenas não consta base tributável nos períodos 6/2020 e 3/2021, sendo esta de valores maiores ou menores nos restantes períodos (embora, como o próprio recorrente reconhece, não se possa daí extrapolar qualquer conclusão apenas quanto à loja dos autos, visto que a R. tem duas lojas e as declarações não discriminam entre as duas).
Concatenando todos estes elementos, o que se pode concluir, como já se aflorou, é que, no período em causa, houve alturas em que a loja esteve fechada (o que, aliás, foi reconhecido pelo legal representante da R. nas suas declarações de parte, que também ouvimos na totalidade, ainda que nada tenha ficado a constar da acta da respectiva sessão da audiência de julgamento) e outras em que esteve aberta – algumas alturas esteve fechada ou aberta de forma seguida e outras alturas de forma intermitente (estava fechada e aberta em dias alternados).
De acordo com a confissão do legal representante da R. (que de confissão se trata, posto que é o reconhecimento de um facto desfavorável, que favorece a parte contrária), a loja esteve fechada nos meses de Novembro e Dezembro de 2020, depois estava dias aberta e dias fechada (nas suas palavras reabriu na Primavera).
Segundo a testemunha EE a loja esteve encerrada “no período Covid” e depois reabriu, mas não sabe dizer em que data (aliás, não soube precisar quaisquer datas), ainda assim referiu que a partir daí a loja não estava sempre aberta, não sabe quantas horas passou a estar aberta por dia, mas estava aberta duas ou três vezes por semana, o que sabe porque nessas ocasiões almoçava com a D. FF.
As testemunhas CC e DD viram a loja fechada nas vezes em que passavam na rua, mas tal não significa realmente que não estivesse aberta noutros momentos – no caso desta última, que passava com mais frequência, considerando os horários em que explicou que o fazia, pode ter sucedido que em várias dessas vezes apenas tivesse encontrado a loja fechada naquele momento, mas até se tratasse de dias em que aquela chegou mesmo a abrir.
Como quer que seja, completamente fechada e sem actividade não há prova de que tenha estado ininterruptamente em todo o período em causa nos autos.
Este período, considerando que na petição inicial não foi concretizado em datas, apenas se alegando que “há mais de um ano” que a loja estava fechada (art. 26º), só pode ser o período de pelo menos um ano e um dia antes da data da entrada da petição inicial, o que sucedeu em 22/11/2021. Ou seja, o que está em causa é saber se a loja se manteve fechada desde pelo menos 21/11/2020 até 22/11/2021.
Do que já se disse verifica-se que esta prova não se logrou na totalidade.
Os consumos de electricidade demonstram que alguma actividade se manteve na loja, a forma como a montra se encontrava, e como foi mudada pelo menos depois de 30/09/2021, também.
Ademais, tendo em conta o específico período temporal em causa nos autos, não se pode fazer grande apelo às regras da normalidade, visto que este momento da vida colectiva do país (e mesmo do mundo) não foi um período normal, foram os tempos da pandemia declarada por força do agente causador da doença “COVID-19”.
Por força da pandemia, em Portugal vigorou a situação de alerta de 13 a 19 de Março de 2020, o estado de emergência, com as sucessivas renovações, entre 19 de Março e 2 de Maio de 2020, a situação de calamidade de 3 de Maio a 30 de Junho de 2020, a situação de calamidade, contingência e alerta de 1 a 31 de Julho de 2020, a situação de contingência e alerta de 1 de Agosto a 14 de Setembro de 2020, a situação de contingência de 15 de Setembro a 14 de Outubro de 2020, a situação de calamidade de 15 de Outubro a 8 de Novembro de 2020, novamente o estado de emergência, com sucessivas renovações, entre 9 de Novembro de 2020 e 30 de Abril de 2021, a situação de calamidade de 1 de Maio a 22 de Agosto de 2021, a situação de contingência de 23 de Agosto a 30 de Setembro de 2021, a situação de alerta de 1 de Outubro a 30 de Novembro de 2021, a situação de calamidade de 1 de Dezembro de 2021 a 18 de Fevereiro de 2022 e a situação de alerta de 19 de Fevereiro a 30 de Setembro de 2022 (sublinhados os estados verificados no período de tempo em causa nos autos).
Depois de ter havido um primeiro período de confinamento, com encerramento das lojas como a da R., durante o estado de emergência de Março a Maio de 2020, a partir desta data os espaços puderam reabrir mas com restrições, sendo que havia também restrições de circulação para a generalidade das pessoas, o que levava a que não houvesse muita clientela para os estabelecimentos de venda de roupa ao público, para além de especiais “deveres de protecção” para pessoas com mais de 70 anos (como era o caso da então gerente da R., o que resultou do depoimento da testemunha EE e das declarações de parte do actual gerente da R., filho daquela).
Durante o segundo período de vigência do estado de emergência, para além de várias restrições de circulação e períodos de recolher obrigatório que foram vigorando, a partir de 15 de Janeiro de 2021 entrou em vigor um novo período de confinamento, com novo encerramento das lojas como a da R., que se manteve até 30 de Abril de 2021. E a abertura a partir de 1 de Maio de 2021 foi com várias restrições, incluindo no horário de funcionamento, pois aquelas lojas só podiam abrir às 10 horas (cfr. art. 15º da Resolução do Conselho de Ministros nº 45-C/2021, de 30/04), só voltando a ser possível cumprir o horário normal a partir de 1 de Agosto de 2021(cfr. art. 13º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 101-A/2021, de 30/07).
Quer dizer, durante o período de encerramento imputado à loja da R., verifica-se que entre 15/01 e 30/04/2021 este encerramento tinha necessariamente que se verificar, pois que determinado obrigatoriamente por lei.
E no período de 01/05 a 31/07/2021 a loja só podia abrir a partir das 10 horas da manhã (se a testemunha DD ali passasse antes dessa hora, nesta fase, teria que ver a loja fechada necessariamente).
Além disso, nos restantes períodos a vida das pessoas não foi uma vida normal, as saídas e as compras eram voluntariamente reduzidas, pelo que os estabelecimentos como os da R. se ressentiram e tiveram uma grande diminuição de clientela mesmo durante os períodos em que passaram a ter o horário de funcionamento normal, pelo que é natural que em muitos casos se tenha optado por não abrir todos os dias da semana e/ou por reduzir o horário de funcionamento a poucas horas por dia. Isso sucedeu notoriamente em diversos casos, sendo normal que tenha sucedido também com a R..
E daí que aquilo que podia ser uma situação “normal” num período de vida “normal” não pode servir como exemplo para tirar ilações sobre a situação dos autos, nomeadamente para concluir por um encerramento voluntário e ininterrupto da loja por parte da R..
Todo este contexto, aliás, também infirma a conclusão que o técnico da C.M. do Porto retirou da não comparência de um representante do arrendatário no dia 30/09/2021, de que seria por “desinteresse” (mais facilmente seria por desorganização decorrente do estado do país, ou até por esquecimento, considerando que a “queixa” datava já de 2015 e a obrigação de fazer obras era de 2016).
Ademais, acrescenta-se que nada também se pode concluir do que o mesmo diz sobre as informações que recolheu acerca do encerramento da loja desde o início da pandemia, posto que não se sabe quem foram as pessoas que prestaram essas informações e qual a sua razão de ciência.
Anote-se ainda que o teor da carta referida no ponto 6, ao contrário do pretendido pelo recorrente, não permite concluir que é verdade o que ali se diz, pois o documento apenas prova que o seu autor emitiu aquelas declarações, mas não prova que as mesmas correspondam à realidade.
Na verdade, atento o disposto no art. 376º do Código Civil, no seus nºs 1 e 2, tratando-se de documento particular (como é o caso) há em primeiro lugar que averiguar do reconhecimento da sua autoria, de acordo com as regras do art. 374º do Código Civil. Estando aquela reconhecida, o documento faz prova plena quanto à circunstância de o seu autor ter declarado o que ali consta como o tendo feito.
Já quanto à realidade do que foi declarado, os factos ali compreendidos serão considerados provados se forem contrários ao interesse da pessoa autora da declaração.
Assim, provada a veracidade do documento particular, “tem-se por plenamente provado que o signatário emitiu todas as declarações constantes do documento”, mas “nem todos os factos referidos nessas declarações se têm por provados”.
E, à semelhança do que sucede quanto aos documentos autênticos, a prova plena (nas referidas circunstâncias) ocorre “em relação à materialidade das afirmações” constantes do documento, “mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas pelas partes” – “a eficácia probatória de um documento particular diz apenas respeito à materialidade das declarações e não também à exactidão delas” (cfr. Manual de Processo Civil, Antunes Varela e outros, Coimbra Editora, 2ª ed. revista e actualizada, 1985, págs. 522 e 523 e nota 3).
Aqui chegados, quanto a períodos de tempo concretos, a prova produzida, bem como o facto notório da pandemia e das suas consequências no país, permitem-nos concluir apenas que a loja esteve encerrada em Novembro e Dezembro de 2020 e entre 15 de Janeiro e 30 de Abril de 2021 e em algumas datas não concretamente apuradas entre Maio e Novembro de 2021, não havendo nessas alturas, obviamente, movimento de pessoas, clientes ou fornecedores.
Mas já não, perante as características do encerramento da loja, conforme analisado, que aí se tenha deixado de exercer o comércio de produtos têxteis e as actividades conexionadas com este comércio ou que a loja estivesse desocupada.
Pelo que, é de concluir que apenas pode obter parcial provimento a impugnação da matéria de facto.
Assim:
- acrescenta-se um ponto 17 ao elenco dos factos provados, com o seguinte teor: A loja esteve fechada nos meses de Novembro e Dezembro de 2020 e entre 15 de Janeiro e 30 de Abril de 2021, bem como em algumas datas não concretamente apuradas entre Maio e Novembro de 2021, não existindo, nessas ocasiões, movimento de pessoas, clientes ou fornecedores; e
- altera-se a redacção da alínea a) dos factos não provados, que passa a ser a seguinte: Para além dos períodos referidos no ponto 17, em 22/11/2021 a loja mantinha-se fechada há mais de um ano, tendo nela deixado de se exercer o comércio de produtos têxteis a que se dedicava a R. ou qualquer actividade com esta conexionada, encontrando-se desocupada, não sendo consumida energia eléctrica, nem água.
*
Resta apreciar a terceira questão.
Tendo em conta a alteração da matéria de facto resultante do tratamento da questão anterior, a factualidade a ter em conta para apreciação da pretensão do recorrente é a seguinte:
«1. O Autor é cabeça de casal da herança aberta por óbito da Exma. Senhora D. BB.
2. Entre a Senhora D. BB e a Ré foi celebrado um contrato de arrendamento para fins não habitacionais, que teve por objeto a fração autónoma localizada na Rua ..., ... Porto, concelho do Porto, União Freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo nº ...52.
3. Na referida fração autónoma, destinada a comércio, a Ré instalou um estabelecimento de venda de artigos têxteis, roupa e acessórios, atividade comercial por si prosseguida.
4. Em contrapartida do uso e fruição do locado a Ré suporta uma renda mensal no valor de 300,00€ (trezentos euros).
5. A Ré não pagou as rendas relativas aos meses de maio, junho, julho, agosto, setembro e outubro do ano de 2020.
6. Os herdeiros da Senhora D. BB, enviaram carta (datada de 06 de novembro de 2020, embora remetida em 02 de dezembro seguinte) registada com aviso de receção com o assunto “Pagamento de rendas em atraso”. Na referida comunicação a Ré é informada da mora em que incorria em consequência da falta de pagamento de rendas, o valor em dívida e a indemnização moratória de que era devedora. Ainda na supra referida carta, o Autor questionou a Ré acerca da disponibilidade desta para um acordo de revogação do contrato de arredamento, uma vez que a loja se mantinha encerrada, o que era evidenciado pela ampla correspondência espalhada pelo chão, mesmo em frente à porta da entrada.
7. A comunicação mencionada não foi recebida pela Ré, tendo sido devolvida, com a indicação “Encerrado”.
8. A 16 de dezembro de 2020, o Autor repetiu o envio da mesma comunicação, novamente para a morada correspondente ao locado.
9. A carta não foi recebida pela Ré e foi devolvida ao remetente com a indicação “Sem Caixa”.
10. O Autor, através de Mandatária, enviou uma outra carta registada com aviso de receção, desta vez dirigia para a sede da Ré, na Rua ..., ..., Porto. Nesta comunicação, o Autor faz menção das duas missivas anteriormente enviadas para o locado e não recebidas pela Ré, solicita a regularização da taxa de retenção na fonte das rendas pagas para efeitos de IRS, que tem sido feita pelo valor correspondente a 16%, quando deveria ser 25%, discrepância que impossibilita a emissão do recibo da renda eletrónico. Aproveitou ainda o Autor para questionar a Ré sobre a sua disponibilidade para consentir na desocupação do locado, em face da manutenção do seu encerramento e das rendas em dívida até à presente data.
11. Esta última comunicação foi devolvida, com a dupla indicação de “Encerrado” e “Sem Caixa”.
12. A partir de novembro de 2020, a Ré retomou o pagamento mensal da renda de 300,00€.
13. Acumulou-se correspondência recebida no chão do locado.
14. A presente ação foi instaurada em 22/11/2021.
15. A Ré foi citada em 30/11/2021.
16. A Ré procedeu ao depósito da quantia de € 2.700,00 em 17//12/2021.»
17. A loja esteve fechada nos meses de Novembro e Dezembro de 2020 e entre 15 de Janeiro e 30 de Abril de 2021, bem como em algumas datas não concretamente apuradas entre Maio e Novembro de 2021, não existindo, nessas ocasiões, movimento de pessoas, clientes ou fornecedores.
Sendo a seguinte, a factualidade não provada:
a) que, para além dos períodos referidos no ponto 17, em 22/11/2021 a loja mantinha-se fechada há mais de um ano, tendo nela deixado de se exercer o comércio de produtos têxteis a que se dedicava a R. ou qualquer actividade com esta conexionada, encontrando-se desocupada, não sendo consumida energia eléctrica, nem água.
O recorrente pretende que se verifica uma situação de não uso do locado por mais de um ano ou de uso diverso para o que se destina, o que seria fundamento para a resolução do contrato de arrendamento.
Nos termos do art. 1083º, nº 2, do Código Civil, é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio:
a) (…)
c) O uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio;
d) O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072.º;
(…).
Quanto ao uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina é óbvio que não se verifica no caso. O locado foi arrendado para “fins não habitacionais” segundo o que consta no ponto 2 da matéria de facto, sendo que a fracção é destinada a comércio e o estabelecimento aí instalado é de venda de artigos têxteis, roupa e acessórios (pontos 2 e 3 da matéria de facto).
Essa é a actividade exercida pela R. no locado e não há nenhuma prova de qualquer alteração da mesma.
É certo que o que o recorrente pretende é equiparar o não uso, por si alegado, com o uso para fim diverso (pretendendo, assim, contornar uma eventual não prova do período temporal exigido na al. d) do nº 2 do artigo citado). Mas não lhe assiste razão, na medida em que se trata de situações diferentes, uma coisa é nada fazer no locado, outra coisa é fazer algo de diferente do que era suposto (tanto assim é que o legislador impôs uma baliza temporal ao não uso e não o fez no caso de uso diferente).
Quanto ao não uso do locado, mesmo perante a matéria constante do ponto 17, ora aditado, da matéria de facto, aquele não se tem por verificado.
Se é verdade que “ao longo de um não uso continuado” não relevam as “meras utilizações ou aberturas esporádicas”, que “não descaracterizam o estado de desocupação em que é essencialmente mantido o espaço arrendado com o seu não uso” (cfr. Pinto Furtado, Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, 3ª ed. revista e actualizada, 2021, pág. 519), não é menos verdade que a factualidade provada não configura um estado de desocupação, tendo havido períodos de encerramento que foram determinados por lei e não estando de tal maneira configurados os períodos de fecho ocorridos a partir de Maio de 2021 de modo a permitir concluir que nessa altura se estava perante uma situação de aberturas esporádicas.
Ademais, há que ter em conta que, nos termos do art. 1072º, nº 2, al. a), o não uso pelo arrendatário é lícito em caso de força maior.
Ora, afigura-se-nos que a situação de pandemia vivida e todos os efeitos que a mesma teve ao nível do funcionamento de certos ramos de comércio, como já se aflorou no tratamento da segunda questão, são o exemplo mais acabado de caso de força maior, para este efeito.
Na verdade, o não uso por mais de um ano não será fundamento de resolução “se foi determinado por factos naturais, da autoridade ou de terceiros, constitutivos de impossibilidade objectiva de utilização não imputável ao arrendatário” (cfr. ob. e aut. cits, pág. 524)
No caso, para além de que do facto provado não se pode concluir que tenha havido um não uso por mais de um ano, ocorre ainda que durante o período de 15 de Janeiro a 30 de Abril de 2021 o encerramento do estabelecimento foi ditado por facto da autoridade, e durante o restante período foi o mesmo contexto de pandemia que impossibilitou objectivamente a utilização normal daquele, que não permitiu que a R. exercesse a sua actividade nos moldes habituais.
Ainda que assim não se entendesse quanto aos restantes períodos, o certo é que, descontando o período de 15 de Janeiro a 30 de Abril de 2021, não decorreu mais de um ano de não uso até à data da propositura da acção.
Não estão, pois, verificados, no caso, os fundamentos invocados pelo recorrente para a resolução do contrato de arrendamento.
O que determina que não mereça acolhimento a sua pretensão com a apresentação do presente recurso.
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Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir, com excepção do aditamento do ponto 17 da matéria de facto provada e a alteração da alínea a) dos factos não provados, pela não obtenção de provimento do recurso interposto pelo A. e pela consequente confirmação da decisão recorrida.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em:
a) alterar a decisão proferida quanto à matéria de facto, nos seguintes termos:
1. aditar um ponto 17 ao elenco dos factos provados, com a seguinte redacção:
- “17. A loja esteve fechada nos meses de Novembro e Dezembro de 2020 e entre 15 de Janeiro e 30 de Abril de 2021, bem como em algumas datas não concretamente apuradas entre Maio e Novembro de 2021, não existindo, nessas ocasiões, movimento de pessoas, clientes ou fornecedores.”;
2. alterar a redacção da alínea a) dos factos não provados, que passa a ser a seguinte:
- “a) para além dos períodos referidos no ponto 17, em 22/11/2021 a loja mantinha-se fechada há mais de um ano, tendo nela deixado de se exercer o comércio de produtos têxteis a que se dedicava a R. ou qualquer actividade com esta conexionada, encontrando-se desocupada, não sendo consumida energia eléctrica, nem água.”;
b) no mais, negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelo recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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Porto 15/6/2023
Isabel Ferreira
Deolinda Varão
Isoleta de Almeida Costa