Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
391/18.7GBBAO.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CRIME DE INJÚRIAS
FACTOS DESONROSOS
IMPUTAÇÃO DE FACTOS CRIMINOSOS
PROVA DA VERDADE DOS FACTOS
Nº do Documento: RP20201125391/18.7GBBAO.P1
Data do Acordão: 11/25/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os termos amplos que a Jurisprudência do TEDH confere à tutela da liberdade de expressão no âmbito da vida política dizem respeito à formulação de juízos, não à imputação de factos.
II - No que se refere à imputação de factos, na vida política como noutros âmbitos, a conciliação entre a liberdade de expressão e de crítica e a tutela do direito à honra concretiza-se através do recurso à causa de justificação especial prevista no art.º 180.º, n.º 2 do CP.
III – No âmbito político, pode dizer-se que a imputação de factos desonrosos relativos a questões de interesse público (não a questões da vida privada) é feita para a realização de interesses legítimos. É frequente a imputação de factos que se reputam verdadeiros com fundamento sério.
IV – As exigências de um debate político livre poderão reclamar alguma flexibilidade na consideração da solidez desses fundamentos, mesmo que não seja provada a verdade da imputação.
V – Mas não pode dizer-se que nesse campo é admissível a imputação de factos desonrosos conscientemente falsos. Não o reclamam as exigências da vida democrática, pelo contrário, a mentira consciente não pode deixar de falsear o debate democrático.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 391/18.7GBBAO.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B… veio interpor recurso da douta sentença do Juízo de Competência Genérica de Baião do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este que o condenou, pela prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, l), todos do Código Penal, na pena de oitenta e cinco dias de multa, à taxa diária de seis euros e cinquenta cêntimos, assim como no pagamento ao assistente e demandante C… da quantia de seiscentos euros, acrescida de juros legais, a título de indemnização de danos não patrimoniais.

Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
«I). O arguido/Recorrente B… foi condenado por sentença proferida no Processo comum, pela prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de injúria agravada, p. e p. pelo art. 181º, nº 1 e 184º, por referência ao artigo 132º, nº 2, al. l) do Código Penal, na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos)
II). Mais se condenou o recorrente a pagar ao demandante a quantia de 600€ (seiscentos euros), a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação da presente decisão até efetivo e integral pagamento, absolvendo do demais peticionado
III). O assistente C… exerceu o cargo de Presidente da Junta de Freguesia …, entre os anos de 2013 e 2017
IV). No dia 22 de Dezembro de 2018, entre as 21h30 e as 22h00, na Junta de Freguesia …, sita na Rua …, Baião, no decurso de uma assembleia de freguesia a que assistiam, além dos que desempenhavam funções na Junta e Assembleia de Freguesia, vários populares, a propósito de um contrato celebrado pelo assistente, no decurso do seu mandato e na qualidade de Presidente da Junta …, com uma empresa de energias renováveis, o arguido B… dirigiu-se ao atual Presidente da Junta … dizendo “Pergunta-lhe onde meteu os € 10.000,00 que recebeu por baixo da mesa”, referindo-se ao assistente, ao mesmo tempo que levantou a mão direita no ar e abria e fechava a mão
V). Com tal expressão referida na presença do assistente, por causa das funções que este exerceu de Presidente da Junta de freguesia …, o arguido quis e conseguiu atingi-lo na sua honra e consideração pessoal e profissional, ciente que aquele tinha exercido tais funções de presidência
VI). Após análise atenta do depoimento prestado pelo arguido (depoimento prestado em 06/02/2020, minuto 14:35:24 a 15:22:23 da gravação) se infere, que o mesmo terá dito que o assistente pegou na cadeira e levantou-a e pousou-a, que não sabia se queria subir para cima dela
VII). No seguimento do depoimento prestado pelo arguido, a meritíssima juíza explorou esse facto, levando a crer o arguido e interpretando as suas declarações no sentido de que este sugeriu que o assistente queria subir para a cadeira, quando, na realidade não é esse o facto que o arguido pretendeu transmitir.
VIII). Na verdade, as declarações do arguido são corroboradas pela testemunha apresentada pelo assistente – D…, depoimento prestado em 06/02/2020 ao minuto 16:37:44 a 16:53:22 da gravação.
IX). As declarações do arguido ocorreram num contexto de assembleia de freguesia, convocada com a finalidade de discutir assuntos da freguesia, com várias pessoas presentes, às quais era dada oportunidade para solicitar esclarecimentos que entendessem necessários.
X). A conduta do arguido é justificada no contexto e que é exercida, em assembleia de freguesia, sendo certo que, nunca em momento algum se dirigiu diretamente ao assistente.
XI). O assistente, no seu depoimento prestado em 06/02/2020 minuto 15:34:38 a 16:14:22, admite terem existido outras acusações semelhantes, dando a entender que estariam ou que iria instaurar outros processos judiciais.
XII). A liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa
XIII). As exceções constantes do n.° 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem devem ser interpretadas de modo restrito
XIV). Tal liberdade abrange, com alguns limites, expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade.
XV). Os políticos e outras figuras públicas, quer pela sua exposição, quer pela discutibilidade das ideias que professam, quer ainda pelo controle a que devem ser sujeitos, seja pela comunicação social, seja pelo cidadão comum — quanto à comunicação social, o Tribunal vem reiterando mesmo a expressão "cão de guarda" -devem ser mais tolerantes a críticas do que os particulares, devendo ser, concomitantemente, admissível maior grau de intensidade destas
XVI). Nos seus acórdãos, o TEDH tem sublinhado a necessidade de se proceder a uma valoração do conteúdo ou sentido das expressões em causa, integrando-as no contexto em que surgiram para distinguir uma imputação de facto de um julgamento de valor, considerando que mesmo os juízos de valor susceptíveis de reunirem indiscutivelmente apenas um conteúdo ofensivo, podem afinal merecer a protecção da liberdade de expressão, desde que sejam dotados de uma base factual mínima e de uma explicação objectivamente compreensível de crítica sobre realidades objectivas, nomeadamente, prestações, desempenhos, realizações, trabalhos e obras, em assunto de interesse público ou em debate de natureza política.
XVII). A frase proferida pelo arguido/recorrente, enquadra-se no âmbito da liberdade de expressão, quer pelo local, circunstância e, nomeadamente porque se relacionava com desempenho, realizações, trabalhos e obras, em assunto de interesse público e, mais importante ainda, em debate de natureza politica.
O tribunal a quo violou, por erro de interpretação, as disposições legais dos artigos 181.º, n.º 1 e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, devendo proferir-se decisão que absolva o arguido do crime de que vem acusado, bem como da indemnização em que foi condenado.»
O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O assistente também apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se a prova produzida impõe decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida
- saber se a factualidade provada integra a prática, pelo arguido e recorrente, do crime de injúria agravada por que foi condenado, ou configura o exercício legítimo da liberdade de expressão e crítica no âmbito da atividade política.

III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:
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IV 1. – Cumpre decidir.
Vem o arguido e recorrente alegar que a prova produzida impõe decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida. Alega que a sua afirmação de que o assistente pegou numa cadeira, levantou-a e pousou-a, foi mal interpretada pela Meritíssima Juíza a quo, a qual considerou que ele havia dito que o assistente queria subir para a cadeira, quando não foi isso que ele pretendeu dizer, como foi corroborado pela testemunha (indicada pelo assistente) D…. Alega que nunca se referiu diretamente ao assistente. Na motivação do recurso, afirma lamentar o tratamento diferenciado da credibilidade das testemunhas de acusação e da defesa.
Vejamos.
Na verdade, não vislumbramos em que é que estas alegações do arguido e recorrente possam abalar a decisão sobre a prova.
Um qualquer equívoco da Meritíssima Juíza a quo quanto à afirmação a que o arguido e recorrente faz referência em nada influi na prova dos factos constantes do elenco dos factos provados e não provados constante da sentença recorrida. Essa afirmação, e a interpretação que dela possa fazer-se, não consta desse elenco. A ela aludiu a Meritíssima Juíza a quo apenas como exemplo da falta de credibilidade das declarações do arguido (por não ser corroborada pelos depoimentos das testemunhas). Mas não é nela, obviamente, que assenta, exclusiva ou principalmente, tal juízo de credibilidade. Que tais declarações possam ter sido mal interpretadas não leva a qualquer alteração da decisão quanto à prova dos factos relevantes em apreço.
É verdade que a afirmação do arguido que levou à sua condenação não era dirigida ao assistente (mas ao atual presidente da junta da freguesia …). Mas, sendo a ele referida, foi proferida na presença dele e esta circunstância permite integrar essa conduta no crime de injúria, e não de difamação (ver, neste sentido, José Faria Costa in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, 1999, pg. 608). De qualquer modo, mesmo que assim não se entendesse, sempre seria de admitir uma alteração de qualificação jurídica, nos termos do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3. do Código de Processo Penal.

Quanto ao alegado tratamento diferenciado da credibilidade das testemunhas indicadas pela acusação e pela defesa, a sentença recorrida justifica racionalmente esse tratamento, invocando fatores (a maior ou menor espontaneidade, naturalidade ou serenidade dos depoimentos) que dependem da imediação, da qual nesta sede estamos privados (não é, por isso, esta a sede própria para pôr em causa esses juízos de maior ou menor credibilidade).
Deverá, assim, ser negado provimento ao recurso quanto a este aspeto.

IV 2.- Vem o arguido e recorrente alegar que a factualidade provada não integra a prática do crime de injúria agravada por que foi condenado e configura o exercício legítimo da liberdade de expressão e crítica no âmbito da atividade política. Invoca o facto de a afirmação em causa ter sido proferida numa reunião de uma assembleia de freguesia destinada ao esclarecimento de assuntos relativos à atividade da junta dessa freguesia e de essa afirmação ser também relativa a essa atividade. Invoca a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
Vejamos.
A questão a decidir é relativa à conciliação entre o direito à honra e a liberdade de expressão e de crítica política (essencial numa sociedade livre e democrática). A este respeito, há que distinguir, por um lado, entre a formulação de juízos e a imputação de factos. No que se refere à formulação de juízos, há que distinguir entre a crítica de uma atuação ou medida de ordem política (que pode ser injusta ou expressa com modos violentos e descorteses), da crítica que atinge a própria pessoa na sua dignidade de pessoa (para além da crítica à sua atuação).
De qualquer modo, o que está em discussão no caso em apreço e o que levou à condenação do arguido é uma imputação de factos, não um qualquer juízo crítico.
Os termos amplos que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos confere à tutela da liberdade de expressão no âmbito da vida política dizem respeito à formulação de juízos, não à imputação de factos. Podem ver-se, a este respeito, por exemplo, os acórdãos desse Tribunal Jerusalém c. Áustria, Wabl c. Áustria, Renaud c. França, Pinto Pinheiro Marques c. Portugal e Pais Pires de Lima c. Portugal (todos acessíveis em https//hudoc.echr.int), onde se distingue bem a imputação de factos e a formulação de juízos de valor, não sendo a imputação de factos não verdadeiros coberta pela liberdade de expressão que cobre juízos de valor.
No que se refere à imputação de factos, na vida política como noutros âmbitos, a conciliação entre a liberdade de expressão e de crítica e a tutela do direito à honra concretiza-se através do recurso à causa de justificação especial prevista no artigo 180.º, n.º 2, do Código Penal. Estatui este artigo que a imputação de factos desonrosos (ou a reprodução dessa imputação) não é punível quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos (alínea a)) e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira (alínea b)). No âmbito político, pode dizer-se que a imputação de factos desonrosos relativos a questões de interesse público (não a questões da vida privada) é feita para a realização de interesses legítimos. E pode dizer-se que será frequente a justificada imputação de factos que se reputam verdadeiros com fundamento sério (sendo que neste aspeto as exigências de um debate político livre e amplo poderão reclamar alguma flexibilidade na consideração da solidez desses fundamentos), mesmo que não seja provada a verdade da imputação. Mas não pode dizer-se que nesse campo é admissível a imputação de factos desonrosos conscientemente falsos. Não o reclamam as exigências da vida democrática; pelo contrário, a mentira consciente não pode deixar de falsear e corromper o debate democrático. E não se justifica alguma violação da igualdade entre os cidadãos neste aspeto da tutela do direito à honra.
Ao afirmar «Pergunta-lhe onde meteu os € 10.000,00 que recebeu por baixo da mesa», o arguido imputou ao assistente a apropriação indevida dessa quantia, ou porque tal quantia seria pertença da junta de freguesia, ou porque com ela se deixou corromper (é significativa a alusão a um recebimento «por baixo da mesa»)
O sentido da afirmação do arguido não foi, pois, claramente, a de um pedido de esclarecimento sobre o destino de rendas recebidas pela junta de freguesia, foi a da imputação ao assistente de um recebimento «por baixo da mesa»
Ora, o arguido não tentou, sequer, provar a verdade dessa imputação, nem alegou, sequer, ter fundamento sério para, em boa fé, acreditar na verdade dessa imputação. Não se verifica, pois, a causa de justificação especial prevista no artigo 180.º, n.º 2, do Código Penal.
A qualificação da conduta do arguido como prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, l), todos do Código Penal, não é, pois, merecedora de reparo.
Deve ser negado provimento ao recurso também quanto a este aspeto.

O arguido deverá ser condenado em taxa de justiça (artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais)

V - Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo a douta sentença recorrida.

Condenam o arguido e recorrente em 3 (três) U.C.s de taxa de justiça.

Notifique.

Porto, 25/11/2020
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo