Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2772/15.9T9AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: CRIME DE DIFAMAÇÃO
PARTICIPAÇÃO DISCIPLINAR
EXERCÍCIO DE DIREITO
Nº do Documento: RP201709272772/15.9T9AVR.P1
Data do Acordão: 09/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 48/2017, FLS.75-83)
Área Temática: .
Sumário: Age ao abrigo de uma causa de justificação (arts. 31º 2 al. b) e 180º 2 CP) e no exercício de um seu direito funcional, a coordenadora do serviço público que, na defesa do interesse público e com razões para de boa fé acreditar no cometimento de infracções disciplinares, por factos conexos com o exercício de funções, denuncia a ocorrência de infracção disciplinar ao seu superior hierárquico.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 2772/15.9T9AVR.P1
Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
B…, C… e D…, assistentes devidamente identificadas nos autos de Instrução acima referenciados, inconformadas com a decisão instrutória de não pronúncia, recorreram para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1. Vista a decisão sob recurso e quanto, a final, determinou para o Tribunal recorrido uma decisão de não pronúncia, estamos perante esvaziamento por via do entendimento vertido em tal decisão do crime de difamação, como previsto e punido pelos artigos 180º, n.º 1, e 183º, n.º1, alínea b), do Código Penal, e, com tanto, uma inadmissível desprotecção, à luz do próprio princípio e direito constitucional de acesso aos tribunais e tutela jurisdicional efectiva, dos bens jurídicos da honra e da consideração das Assistentes.
2. Ainda que no caso concreto a própria decisão do IRN, I.P. não tenha acompanhado as concretas imputações e a intenção da Arguida, fosse em sede de acusação, fosse por via de punição disciplinar, certo é que o IRN, I.P. não é órgão de soberania, não se admitindo ou compreendendo sequer qualquer tentativa de ingerência, muito menos uma sobreposição do que aquele organismo público entenda ao que é da competência dos Tribunais, em sede de tutela penal e jurisdicional efectiva dos bens jurídicos da honra e da consideração.
3. A Arguida não se limitou a tecer juízos de valor ofensivos e infundados, antes imputando factos concretos a cada uma das Assistentes, com relevância e gravidade bastantes, tanto que consubstanciadores não só de infracções disciplinares, como da prática de crime(s), como o de procuradoria ilícita.
4. É falso quanto a Arguida referiu sobre a Assistente B… e a esta imputou directamente, em plena consciência e com conhecimento da falsidade dos factos que lhe imputava, e de que a ofendia seriamente nas suas honra e consideração, sendo tamanha a gravidade dos juízos formulados e da factualidade que directamente lhe imputou directamente junto dos dirigentes da entidade empregadora, que foi a Assistente sujeita a procedimento disciplinar, como pretendido pela Arguida no intuito exclusivo de denegrir a Assistente no seu bom nome e no seu desempenho profissional.
5. Ao acusar as Assistentes C… e D… do exercício simultâneo da Advocacia e de funções públicas pese embora a incompatibilidade, bem como, de forma igualmente directa e expressa, da prática do crime de procuradoria ilícita, sujeitou-as a procedimento disciplinar também por tais imputações falsas de acrescida gravidade e a que fossem expostas como suspeitas do que consubstanciaria mesmo a prática de crime mediante missivas dirigidas pela Instrutora à Ordem dos Advogados e a Autoridades Judiciárias (v.g. fls 41, 42, 43, 44, 45 e 46 dos autos).
6. A Arguida, jurista e tendo exercido Advocacia, ora Adjunta de Conservador e (então) Coordenadora-Geral dos Serviços do IRN, I.P. na Loja do Cidadão, sabia necessariamente da falsidade e da falta de fundamento de quanto imputou às Assistentes, incluindo a prática que imputou às Assistentes C… e D… do crime de procuradoria ilícita.
7. Diz-se na decisão sob recurso que foram analisadas todas as provas, mas evidencia-se preterição absoluta de consideração do teor de 15 depoimentos, para além dos das próprias Assistentes, bem demonstrativos da falsidade das imputações dirigidas pela Arguida a cada uma das Assistentes e, bem assim, de que tinha plena consciência dessa falsidade e de qual fosse a sua intenção ao investir contra trabalhadoras que haviam prestado declarações, com a verdade, em inquérito que veio a culminar em sancionamento disciplinar da Arguida.
8. Desconsiderando, no todo, os depoimentos prestados por 15 testemunhas, 12 das quais em exercício de funções nos Serviços do IRN, I.P. da Loja do Cidadão E…, limitou-se o Tribunal recorrido a aludir, vagamente, aos depoimentos de 5 testemunhas arroladas pela Arguida, completamente contrariados por aqueles 15 depoimentos e pela própria decisão condenatória da Arguida em sede do processo disciplinar 21 RC 2014/SAIGS, e, ademais, prestados de forma, no mínimo, sui generis, como resulta dos autos.
9. Aludindo o Tribunal a quo ao processo disciplinar 16 DIV 2014/SAIGS – ainda que numa leitura incorrecta – e à qualidade de superior hierárquica da Arguida comos e tal legitimasse a ofensa, não se compreende que não seja igualmente atendido o relatório final e a decisão proferida no processo disciplinar 21 RC 2014/SAIGS (fls 90 e 91), com sancionamento da Arguida por força da sua conduta, precisamente, enquanto superior hierárquica para com os demais trabalhadores, e quanto nesse relatório já referia o Senhor Instrutor sobre a falta de fundamento de quanto a Arguida pretendia imputar às Assistentes e, estranhamente, após ter tido conhecimento de que haviam prestado declarações em inquérito que corria contra a Arguida.
10. O cumprimento de um dever previsto no artigo 31º, n.ºs 1 e 2, alínea e) do Código Penal pressupõe esse dever e uma intenção legítima, e não que seja admitido a um cidadão ofender outro, com consciência de que o faz, invocando a sua condição de superior hierárquico, no que mais antes demonstra irresponsabilidade e violação de deveres funcionais.
11. Ao desconsiderar elementos probatórios (prova documental e 15 depoimentos) indiciários de forma bastante e consistente da prática do crime de difamação pela Arguida contra cada uma das Assistentes, não cumpriu o Tribunal a quo a finalidade e o objectivo da instrução, incorrendo em violação dos artigos 286º, n.º 1, e 308º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
12. Existem indícios bastantes e consistentes da prática do crime de difamação praticado, com plena consciência e intencionalmente, pela Arguida contra cada uma das Assistentes, devendo aquela, em prol da realização de Justiça, ser pronunciada e submetida a julgamento pela prática daquele crime contra cada uma das Assistentes, como previsto e punido pelos artigos 180º, n.º 1, e 183º, n.º1, alínea b), do Código Penal.”
Pedem que o presente recurso seja julgado procedente e revogada a decisão recorrida, pronunciando-se a arguida pela prática de três crimes de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1, e 183º, n.º1, alínea b), do Código Penal.
1.2 O MP junto da 1ª instância respondeu à motivação do recurso, defendendo a sua improcedência e manutenção integral da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões (transcrição)
“1. A prova produzida não contém indícios suficientes por forma a considerar como sendo falsos os factos descritos na acusação particular que motivaram a participação disciplinar ou de que que a arguida tenha actuado dolosamente e com consciência da falsidade de tais factos e de ter agido qualquer intenção de imputar às denunciantes factos ofensivos da sua honra e consideração.
2. Resultam antes indícios que permitem concluir que a arguida agiu em cumprimento de um dever a que estava vinculada, na qualidade de superior hierárquico das denunciantes, ao participar disciplinarmente das mesmas por factos de que teve conhecimento.
3. O M. mº JIC pronunciou-se de forma clara sobre todos os factos relevantes para a boa decisão da causa, bem como apreciou criticamente os elementos de prova, testemunhal ou documental, existentes nos autos.
4. O M. mº JIC efectuou uma correcta interpretação jurídica dos arts. 31º 1, 2 b), 180º 1) e 183º 1 b) do Cód. Penal, e 286º 1), 308º1) do C.P.P.
5. Em suma, deve ser negado provimento ao recurso, por não ter sido violado nenhum comando normativo e, consequentemente, deve ser mantida nos seus precisos termos a decisão sob recurso.
1.3 A arguida F… respondeu igualmente à motivação do recurso, pugnando pela sua improcedência e formulando, por seu turno, as seguintes conclusões (transcrição):
1.ª Nenhum facto, elemento ou pressuposto existe da prática de crime algum;
2.ª Nem sequer a ora respondente imputou qualquer facto falso, mas sim apenas factos verdadeiros;
3.ª Pelo que nem sequer se pode considerar qualquer consciência ou intenção de uso de falsidade absolutamente inexistente;
4.ª Conforme resulta do processo disciplinar instaurado, os factos participados eram verdadeiros, sendo que uns constituíram fundamento da formulação das acusações e outras constituíram mesmo fundamento de condenação das participadas;
5.ª Destas, que eram em número de cinco, quatro foram condenadas a final e a remanescente foi acusada após diligências investigatórias e probatórias, vindo no entanto a ser absolvida a final;
6.ª A autoridade disciplinar afirmou e concluiu expressamente que a participação era verdadeira, não havendo qualquer indício de qualquer falsidade, muito menos intencional;
7.ª Inexplicavelmente – ou talvez não – as assistentes participaram da ora respondente por, com a apresentação de tal participação, a ora respondente ter cometido, no entender delas, um crime de denúncia caluniosa e, tanto quanto se entende, um outro de difamação;
8.ª O Ministério Público, após a efectivação das diligências suscitadas, arquivou o inquérito, por entender que nenhum indício havia da prática de crime e a então arguida e ora respondente ter actuado no cumprimento do seu dever;
9.ª As assistentes, conformando-se então com as razões do arquivamento quanto ao crime de denúncia caluniosa, vieram no entanto a apresentar acusação particular, da qual o Ministério Público fez menção expressa de se demarcar;
10.ª Obrigada a ora respondente a requerer a abertura de instrução, veio nesta, após efectivação das diligências probatórias requeridas e análise dos documentos juntos, a ser proferida decisão instrutória de não pronúncia;
11.ª É desta decisão que as assistentes interpõem o presente recurso que, conforme alegação produzida ao longo da presente resposta, não tem evidentemente qualquer fundamento;
12.ª Em desespero talvez pela averiguação criminal que contra elas se processa na instância própria, promovida pela ora respondente, as assistentes proclamam, com descaramento inaudito, deve dizer-se, que a decisão instrutória não valorizou devidamente os elementos probatórios juntos aos autos, designadamente a prova documental;
13.ª Ora, se virmos bem, bastaria o teor da decisão final do processo disciplinar e a sua afirmação na ordem jurídica, por inexistência de impugnação contenciosa, para demonstrar a falsidade material e ideológica das suas (delas) pretensões;
14.ª Sucede porém que as conclusões do processo disciplinar foram confirmadas – desnecessariamente, a nosso ver – pelos depoimentos de quatro funcionárias e da directora-geral da Loja, produzidos em instrução;
15.ª Outra solução não pode pois sustentar-se da que a não pronúncia da ora respondente, assim se pugnando pela improcedência absoluta do recurso das assistentes, ao qual não deve ser concedido provimento, assim se fazendo a habitual justiça.
1.4 Nesta Relação, a Exª Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, aderindo in totum ao teor das respostas do MP e da arguida.
1.5 Cumpre decidir.
2. Fundamentação
2.1 Matéria de facto
A decisão instrutória de não pronúncia (ora recorrida) é do seguinte teor:
“Declaro encerrada a instrução.
O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia.
Não há nulidades ou questões prévias que cumpra conhecer.
A fls. 327 e ss. as assistentes B…, C… e D… deduziram acusação particular contra a arguida F… imputando-lhe a prática de três crimes de difamação, p. e p. pelos arts. 180º, n.º 1 e 183º, n.º 1 al. b) do Código Penal, acusação esta não acompanhada pelo Ministério Público – vide fls. 367.
Discordando do teor da acusação veio a arguida requerer a abertura de instrução, com os fundamentos constantes do requerimento de abertura de instrução de fls. 377 e ss., que aqui se dão por reproduzidos. Pugna, a final, pela sua não pronúncia.
Por despacho de fls. 387 foi declarada aberta a instrução.
Foi inquirida uma testemunha.
Procedeu-se à realização do debate instrutório, com observância do devido formalismo legal, com formulação a final de conclusões pelo Ministério Público, assistentes e arguida.
A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende da existência de indícios suficientes, obtidos por via do inquérito e da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. art.º. 308º, n.º. 1 do Cód. Proc. Penal).
Os indícios são suficientes, na perspectiva do normativo invocado, quando, em face dos mesmos, seja em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido ou esta seja mais provável que a sua absolvição (cfr. art.º. 283º, n.º. 1 ex vi do art.º. 308º, n.º. 2, ambos do Cód. Proc. Penal).
A concretização do que sejam “indícios suficientes” assume fulcral importância nos ulteriores desenvolvimentos e metodologia empregue na apreciação do processado. Assim, referia-se Cavaleiro Ferreira aos indícios, por aproximação às presunções naturais civis, nos seguintes termos: “A prova indiciária é prova indirecta. Os factos probatórios indiciários são os que permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos por meio de raciocínio em regras da experiência comum, ou da ciência, ou da técnica”.
A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária. Como refere Germano Marques da Silva, o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios “enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime”. É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no art. 308º do Cód. Proc. Penal.
Nesta fase preliminar do processo, não se visa “alcançar a demonstração da realidade dos factos”, mas apenas sinais de que o crime se verificou, praticado por determinado arguido. Como conclui Germano Marques da Silva, “As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento”.
Não se pretende pois, uma espécie de “julgamento antecipado” nem um juízo de certeza moral e de verdade que são pressupostos da condenação, mas tão só a verificação de existência de indícios de que determinado crime se verificou e que existe uma probabilidade séria, aferida pela positiva e objectivamente, de que o mesmo foi praticado por um ou mais arguidos, e assim se apreciando a decisão do Ministério Público/assistente de acusar. Nessa verificação deverá no entanto o julgador interpretar criticamente e no seu prudente arbítrio os indícios recolhidos em sede de inquérito e instrução.
Em qualquer dos casos essa verificação da suficiência de indícios não implica a apreciação do mérito da acusação, no mesmo sentido em que tal ocorre na audiência de julgamento, mas apenas se julga da verificação dos pressupostos de que depende a abertura da fase de julgamento.
Importa agora aquilatar da existência de indícios que suportem a narrativa de uma acusação/pronúncia, assim se fazendo o controle jurisdicional da decisão de acusar ou arquivar e que é pressuposto e fim da instrução.
Temos pois, in casu, que analisar a prova produzida em sede de inquérito e de instrução e proceder ao seu enquadramento jurídico-penal.
Do crime de difamação
O art. 180º, nº 1 do Cód. Penal, o qual prevê que “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”.
Com a consagração desta norma pretende o legislador penal proteger a honra, a consideração, o bom-nome e a dignidade da pessoa.
Verifica-se, pois, que o bem jurídico protegido pela norma transcrita é um bem jurídico complexo que inclui o valor pessoal ou interior de cada um, radicado na sua própria individualidade, bem como a própria reputação ou consideração exterior – “por outras palavras, não pode ser atingido aquele núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros”.
A honra é um valor inerente à expansão da personalidade, sendo a merecida pretensão de respeito do homem enquanto ser social.
Trata-se de coisa diferente da reputação ou do self-respect, sob pena de se poder considerar que certas pessoas não são merecedoras da tutela aqui prevista ou de, inclusive alguns pretenderem uma tutela que o legislador não quis conferir.
Os elementos do tipo objectivo do crime em apreço serão constituídos por dois segmentos distintos: “um, o segmento da ofensa propriamente dita, que pode ser concretizado, por quem quer que seja – logo inexistência de qualquer limitação no que se refere ao universo dos candidatos positivos a sujeito activo – através da a) imputação de facto ofensivo da honra de outrem, b) por meio de formulação de um juízo de igual modo lesivo da honra de uma pessoa ou ainda c) pela reprodução daquela imputação ou juízo; o outro segmento, o segmento do rodeio ou do enviesamento, exige que as condutas anteriormente descritas se não façam directamente ao ofendido mas se levem a cabo dirigindo-se a terceiros” – é face a este segmento que o crime de difamação se distingue do crime de injúria, pressupondo este a violação directa da honra do visado, isto é, na presença deste.
O ponto nevrálgico é constituído pela distinção a estabelecer entre o facto e o juízo, atentas as consequências práticas evidentes ao nível da exclusão da ilicitude, prevista, designadamente, pelo próprio art. 180º do Cód. Penal.
De forma sintética, não se ignorando a dificuldade inerente à distinção a efectuar na prática, observar-se-á que o facto se reporta à realidade, representando-o naquilo que é, ao passo que o juízo consiste na apreciação ou valoração do seu objecto, reportando-se ao seu valor, sendo relevante para a destrinça, em muitas situações, a contextualização da factualidade a apreciar.
De todo o modo, poderá considerar-se ofensiva “a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menos cabo ou vilipêndio contra alguém”.
Quanto aos meios através dos quais o crime pode ser praticado, e se dúvidas houvesse, o legislador desfê-las ao prever especificamente no art. 182º do Cód. Penal que “à difamação e injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão”.
No que toca aos elementos subjectivos do tipo de ilícito em análise, “cimentou-se agora a orientação de que basta o dolo genérico, em qualquer das suas formas, de directo, necessário ou eventual, para integrar o elemento subjectivo da infracção” – ou seja, será necessário, mas suficiente, a verificação dos elementos subjectivos descritos no art. 14º do Cód. Penal.
Nos termos do art. 183º, n.º 1 al. b) do C. Penal, a pena da difamação é elevada de um terço nos seus limites mínimos e máximos se o agente conhecer a falsidade da imputação dos factos.
Analisando o caso concreto, e como ponto prévio podemos afirmar que, em regra, qualquer participação disciplinar encerra, objectivamente, uma ofensa à honra na medida em que se traduz na comunicação de facto que, na perspectiva de quem faz a denúncia, integram a prática de comportamentos ilícitos e violadores de deveres funcionais dos visados.
O trabalho, nos dias de hoje, não é apenas um meio de satisfazer as necessidades básicas. Encerra ele mesmo um potencial de realização pessoal, capaz de trazer felicidade, ou o seu oposto, à vida da pessoa.
O trabalho é nos dias de hoje visto como uma forma de autonomia e de construção do próprio espaço de satisfação pessoal, de dignidade. Uma oportunidade de o individuo dar o seu contributo à sociedade e, por via disso, ser reconhecido pelos seus pares como alguém válido.
Por isso, como referimos, ao imputarmos a alguém a violação dos seus deveres funcionais, estamos, necessariamente, a abalar uma das dimensões fundamentais da sua vida, provavelmente aquela a que, objectivamente, dedica a maior parte do seu tempo. E a que, muitas vezes, mais se reflecte na ideia que o individuo faz de si na relação com o outro.
Mas se isso é verdade, também podemos afirmar que, em regra, o direito (até mesmo dever) de participar disciplinarmente que impende sobre quem, num determinado momento, exerce funções de chefia ou controlo da actividade do funcionário, não pode ser limitado pelo risco de processo-crime. Ou, pelo menos, o preenchimento do tipo legal de difamação deve, nestes casos, exigir um particular cuidado.
Se, por um lado, o direito à honra é merecedor de garantia legal, por outro, também os interesses legítimos do Estado na existência de uma administração eficaz e no cumprimento, pelos respectivos funcionários, dos seus deveres funcionais, justifica e impõe que só em casos muitos especiais o exercício daquele direito/dever de denúncia deve conduzir à responsabilização do seu autor.
Com efeito, seriam os próprios fundamentos do Estado de Direito e, no caso particular, os interesses do Estado na boa administração da coisa pública, que ficariam em risco se um responsável de um serviço ficasse impedido, de facto, de participar um facto ilícito praticado por funcionário apenas para não correr o risco de ser alvo de processo disciplinar. Ou que tal participação pudesse ser havida como criminalmente relevante por colocar em causa a honra do funcionário.
Exige-se, por isso, na análise destas situações, um esforço de concordância prática entre os interesses em conflito.
Por um lado, o direito à honra das assistentes.
Por outro, o dever que sobre a arguida impendia de denunciar factos que, no seu juízo, entendia serem ilícitos, bem como o interesse do Estado em ter funcionários cumpridores das suas obrigações funcionais.
Por isso, aliás, prevê já o Código Penal situações em que a lesão de um bem penalmente tutelado – no caso, a honra das assistentes - é considerada, em concreto, lítica.
Com efeito, dispõe o artigo 31º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do Código Penal que «1. O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.
2. Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado: (…) b) No cumprimento de um dever».
É o que acontece, parece-nos, quando a lesão do direito de terceiros acontece por causa e no cumprimento de um dever que impendia sobre o agente dos factos. Nesses casos, resulta claramente da lei que o agente não comete o crime porquanto é o próprio legislador quem, apreciando os interesses em conflito indicou como prevalente aquele cuja tutela quer ver salvaguardada.
No caso concreto (tal como em todos os casos de denúncia disciplinar, seja no sector público, seja no privado) entendemos que o direito de denúncia disciplinar prevalece sobre o direito à honra, porquanto num Estado de Direito, e em particular na administração pública, deve assegurar-se, sobretudo a quem exerce funções de coordenação e chefia, uma possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende constituírem infracções disciplinares.
Não podemos, aliás, deixar de lembrar que muitas vezes as denúncias têm por base reclamações dos cidadãos, algumas anónimas. Pelo que se admitíssemos a possibilidade de o coordenador/superior hierárquico ser responsabilizado criminal mente pela denúncia que se limitou a remeter à entidade responsável pelo seu tratamento, estaríamos, de facto, a transformar o local de trabalho (no caso, um serviço público) num território sem regras e sem lei.
Naturalmente que, conforme referimos, a possibilidade de denúncia deverá ser quase irrestrita. Ou seja, num esforço de concordância prática entre o direito à honra dos visados numa denúncia disciplinar e o dever/direito de denúncia, deverão ser estabelecidos limites que não poderão ser ultrapassados pelo coordenador/superior hierárquico autor da denúncia.
Assim, parece para nós lógico e evidente que a denúncia não ficará a coberto de uma causa de exclusão da ilicitude se tiver sido feita dolosamente, ou seja, com consciência, da parte do agente, da sua falsidade.
E, por outro lado, o agente autor da denúncia ultrapassará claramente os limites legais se, na denúncia, não se limitar a uma narração objectiva (na medida do possível) dos factos e optar por emitir juízos de valor ou lançar epítetos ou qualificativos desnecessários sobre a personalidade e qualidades dos visados porque, nesse caso, estará a lesar a honra dos denunciados de forma desnecessária, devendo o dever de denúncia ceder no confronto com o direito à honra.
Ora, no que a este último ponto respeita, analisando o teor da acusação particular somos levados a concluir que dos factos imputados à arguida não constam asserções nem juízos de valor desnecessários ou desproporcionados.
Por outro lado, analisando todas as provas de forma critica não podemos concluir estar minimamente demonstrado que a arguida actuou dolosamente, isto é, com consciência da falsidade dos factos constantes da denúncia.
Desde logo, pela leitura do processo disciplinar cuja cópia se encontra junta, logo verificamos que parte significativa dos factos constantes da participação disciplinar foram dados como provados, o que, nos termos indiciários exigidos nesta fase processual, nos permite concluir não existir prova segura de que os mesmos são falsos e a aqui arguida elaborou a participação consciente dessa falsidade.
E mesmo quanto à assistente B…, apesar de não condenada no processo disciplinar, chegou a ser acusada, depois de feitas as necessárias averiguações, o que é bem demonstrativo de que a denúncia não era manifestamente infundada.
Acresce que a testemunha G…, a fls. 240 e ss., não só declarou ter visto a assistente D… deixar de atender o público para tratar de assuntos pessoais, nomeadamente a elaboração de contratos, como referiu que a aqui arguida sempre actuou de forma correcta com as subordinadas e as aqui assistente agiram de forma concertada entre si de modo a convergir os seus depoimentos e assim afastarem a aqui arguida daqueles serviços.
Também a testemunha H… declarou que via as assistentes D… e C…, no horário de trabalho, fazerem alguns documentos (depreende-se do seu depoimento que não se tratava de serviço do IRN). E esclareceu que as regras que a aqui arguida estabeleceu para melhorar os serviços causaram descontentamento.
Também a testemunha I…, inquirida a fls. 254 e com esclarecimentos prestados na instrução, confirmou o teor do requerimento de fls. 170 e ss. (e não da participação criminal como, por erro, consta das declarações de fls. 254) apresentado pela aqui arguida. Confirmou, entre outros aspectos, que presenciou as assistentes D… e C… a pedirem desculpa à aqui arguida por terem chegado tarde ao trabalho e terem pedido à J… para picar o ponto por elas.
A testemunha K… afirmou que era habitual as assistentes D… e C… entrarem de serviço e logo depois ausentarem-se quando, muitas das vezes, eram necessárias «para o serviço e com prejuízo para o cidadão».
A testemunha L… (fls. 257) declarou ter visto nas mesas das assistentes D… e C… papéis sem qualquer relação com o serviço do IRN e relacionados com actos processuais/jurídicos alheios àqueles serviços.
Ou seja, o que resulta inequivocamente destes depoimentos e do teor do processo disciplinar é que existiam problemas nos serviços que a aqui arguida procurou resolver e, por causa disso, criou-se um ambiente de conflito de que este processo é apenas um exemplo.
Mas não existe qualquer indício seguro que nos permita concluir que, quando apresentou a denúncia disciplinar, a aqui arguida tinha consciência que os factos nela relatados, relativos a todas as arguidas, eram falsos.
No caso dos autos inexiste, por isso, prova indiciária de que a arguida agiu com consciência da falsidade das imputações constantes da participação que apresentou contra as assistentes.
Acresce que o texto da participação não contém asserções nem juízos de valor desnecessários ou desproporcionados.
E, neste contexto, impõe-se concluir que a denúncia disciplinar apresentada pela arguida, conquanto objectivamente lesiva da honra e consideração das assistentes, se deve ter por justificada nos termos do art. 31.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal.
Decisão
Por todo o exposto não pronuncio para julgamento perante Juiz Singular a arguida F… pela prática de três crimes de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1 e 183º, n.º 1 al. b) do Código Penal.
Notifique.
Custas pelas assistentes (…)
2.2 Matéria de direito
É objecto do presente recurso a decisão instrutória de não pronúncia da arguida F…, pela prática de três crimes de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1 e 183º, n.º 1 al. b) do Código Penal, com o fundamento de que “a denúncia disciplinar apresentada pela arguida, conquanto objectivamente lesiva da honra e consideração das assistentes, se deve ter por justificada nos termos do art. 31.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal”.
As assistentes insurgem-se contra a decisão instrutória de não pronúncia, por entenderem que existem indícios bastantes e consistentes da prática dos crimes de difamação praticados pela arguida. Quanto ao fundamento concretamente invocado no despacho recorrido – verificação de uma causa de justificação, prevista no art. 31º, 1 e 2, b) do C. Penal – alegam as recorrentes que o cumprimento de um dever ali previsto pressupõe um dever e uma intenção legítimas e não a mera invocação da condição de superior hierárquico.
Este aspecto do recurso é essencial, uma vez que o fundamento da não pronúncia foi precisamente a verificação da referida causa de justificação, tendo a decisão instrutória tido o cuidado de dizer que a denúncia disciplinar apresentada era “objectivamente lesiva da honra e consideração das assistentes”. O entendimento sufragado na decisão instrutória torna assim inútil saber se as expressões usadas eram (ou não) em si mesmas idóneas a lesar a honra e consideração devidas às assistentes. Não há por isso necessidade de apreciar esse ponto, uma vez que, para a decisão recorrida, não impugnada nessa parte, a denúncia disciplinar era objectivamente lesiva da honra e consideração das assistentes e daí que, neste segmento, as assistentes nem sequer tenham ficado vencidas.
O objecto do recurso é, portanto, a decisão de não pronúncia, na parte em que julgou que os factos imputados à arguida não eram ilícitos, por terem sido cometidos no âmbito de uma causa de justificação, prevista no art. 31º, 1 e 2, b) do C. Penal.
Para avaliar a existência da referida causa de justificação e, portanto afastar a ilicitude do facto, a decisão recorrida começou por dizer que o direito de denúncia disciplinar prevalece sobre o direito à honra. A causa de exclusão da ilicitude é afastada, todavia (diz a decisão recorrida), quando a denúncia for feita dolosamente, ou seja, com consciência, por parte do agente, da sua falsidade, ou quando se não limite a uma narração objectiva dos factos e emita juízos de valor sobre os visados.
Conclui de seguida que, analisando as provas de forma crítica, não estava minimamente demonstrado que a arguida tivesse actuado dolosamente, isto é, com consciência da falsidade dos factos que denunciara, desde logo porque da leitura do processo disciplinar resulta que “parte significativa dos factos constantes da participação foram dados como provados”. E mesmo quanto à assistente B…, apesar de a mesma não ter sido condenada no processo disciplinar, chegou a ser acusada. Referiu ainda a decisão instrutória que era patente a existência de problemas nos serviços e que “a aqui arguida procurou resolver e, por causa disso, criou-se um ambiente de conflito”.
Na resposta ao recurso das assistentes, o MP transcreveu parte do relatório disciplinar proferido no processo desencadeado pela denúncia da ora arguida, onde se sublinhava incumbir à arguida (na sua qualidade de superior hierárquica das assistentes) “ assegurar a disciplina e reprimir os desvios da conduta dos trabalhadores no exercício da sua função (…) e, como dever funcional, fazer observar, rigorosamente, a lei e o regulamento, termos do n.º 1 do art. 266º da CRP, (…) participando, como fez, ao seu superior hierárquico os actos e omissões para os quais não tinha competência para instaurar procedimento disciplinar”. Sublinhou ainda que, da referida denúncia, veio a resultar a condenação das assistentes C… e D… e, muito embora a assistente B… tivesse sido absolvida, chegou a ser deduzida acusação contra ela.
As recorrentes persistem em dizer que a denúncia não se cingiu a factos e, mesmo as assistentes condenadas no procedimento disciplinar, não foram sequer acusadas de todos os factos que lhes foram imputados e a arguida bem sabia que os factos denunciados eram falsos
Vejamos.
Os factos imputados à arguida constam da acusação particular e, no essencial, reconduzem-se aos dizeres constantes de uma participação apresentada pela arguida ao Conselho Directivo do Instituto dos Registos e do Notariado IP, bem como às declarações prestadas no processo disciplinar instaurado, confirmando os factos denunciados.
Importa desde logo referir que o MP não deduziu acusação pelo eventual crime de denúncia caluniosa. Deste modo, quanto aos elementos do tipo de ilícito previsto no art. 365º, 2 do C.P, designadamente a “consciência da falsidade da imputação” temos por adquirido processualmente que a mesma se não verifica. Com efeito, perante a abstenção do MP em acusar pela prática do aludido crime, poderiam as assistentes ter requerido a abertura de instrução, uma vez que o aludido crime é público – art. 287º, 1, b) do CPP, oque não fizeram.
Importa ainda referir que – como sublinhou a arguida, quando requereu a abertura de instrução, face à acusação particular deduzida pelas assistentes – a imputação dos factos que lhe feita é algo difusa. Com efeito, a acusação descreve o conteúdo da denúncia (artigo 9º da acusação), transcreve as declarações da ora arguida no procedimento disciplinar (artigos 14º, 15º e 16º da acusação) e, perante tais descrições, refere que a arguida imputou às assistentes factos falsos e condutas que se traduziriam em infracções disciplinares e mesmo a prática (do crime) de procuradoria ilícita. A acusação não faz, portanto, uma imputação específica, colocando em destaque os concretos factos imputados, a demonstração da sua falsidade e a consciência de que a arguida sabia dessa mesma falsidade. Com esta metodologia, torna-se difícil refutar, em concreto, aquilo que em concreto não é alegado. Contudo, é possível extrair da leitura da denúncia (as declarações posteriores confirmam os factos constantes da denúncia) a imputação feita “às participadas” e que consistia no facto de as mesmas chegarem atrasadas ao serviço; alguém “picar o ponto” por elas; ausentarem-se do local de trabalho para irem tomar café; uma delas participou numa sessão, no Tribunal do Trabalho, como procuradora/representante legal de uma Seguradora; estarem inscritas na Ordem de Advogados, já depois de exercerem funções no “IRN IP”; usarem o local de trabalho para serviço pessoal e, quanto à B…, coordenadora, o facto de a mesma nada fazer para impedir tais práticas.
Como se vê, os factos denunciados eram efectivamente idóneos ao desencadeamento de um procedimento disciplinar, tanto assim que no referido processo foi deduzida acusação contra todas elas e, à excepção da assistente B…, as mesmas foram punidas disciplinarmente.
Por outro lado, a prova produzida e referida na decisão instrutória, é muito clara no sentido de que não era possível imputar à arguida a consciência da falsidade da imputação, isto é, o conhecimento de que os factos narrados na denúncia eram falsos: a testemunha G… (fls.240) declarou ter visto a assistente D… deixar de atender o público para tratar de assuntos pessoais; a testemunha H… declarou que via as assistentes D… e C…, no horário de trabalho, fazerem alguns documentos, depreendendo-se do seu depoimento que não se tratava de serviço do IRN; a testemunha I… confirmou, entre outros aspectos, que presenciou as assistentes D… e C… a pedirem desculpa à aqui arguida, por terem chegado tarde ao trabalho, e terem pedido à J… para picar o ponto por elas; a testemunha K… afirmou ser habitual as assistentes entrarem de serviço e, logo depois, ausentarem-se, quando, muitas vezes, eram necessárias para o serviço e com prejuízo para o cidadão; a testemunha L… declarou ter visto, nas mesas das assistentes D… e C…, papéis, sem qualquer relação com os serviços do IRN e relacionados com actos processuais /jurídicos, alheios àqueles serviços.
As recorrentes não põem em causa que estes depoimentos tenham sido prestados; alegam todavia que aqueles depoimentos foram contrariados por outros que a decisão instrutória não tomou em conta. Contudo, o que estava em causa, neste processo, não era propriamente saber se os factos imputados na denúncia eram ou não verdadeiros, mas sim saber se a denunciante sabia que eram falsos e os denunciou sabendo isso, apenas para difamar as assistentes. Ora, para este efeito (isto é, para afastar a consciência da falsidade da imputação), a circunstância de os factos da denúncia terem sido, no essencial, corroborados por testemunhas, ter havido acusação contra todas as assistentes e duas delas terem sido sancionadas disciplinarmente é suficiente.
Podemos pois concluir com toda a segurança que a decisão instrutória andou bem quando entendeu não estar suficientemente indiciado o conhecimento, por parte da arguida, de que os factos que denunciou não eram verdadeiros.
Finalmente importa referir que a decisão instrutória considerou verificada uma causa de justificação. Com efeito, refere-se na decisão recorrida que o facto foi praticado pela arguida no âmbito do art. 31º, 2, c) do C.P, ou seja, no “cumprimento de um dever imposto por lei”.
Em bom rigor, a arguida não agiu no cumprimento de um dever imposto por lei, tanto assim que a decisão recorrida não indica a lei que impõe o dever de denunciar factos ilícitos. De resto, nem a decisão recorrida, nem a arguida, na resposta ao recurso, indicam qual a norma legal que impõe o dever de denunciar infracções/ilícitos disciplinares. Existe, sim, a possibilidade de o fazer. É o que decorre do artigo 206º,1 da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas):
1 - Todos os que tenham conhecimento de que um trabalhador praticou infração disciplinar podem participá-la a qualquer superior hierárquico daquele.”
Deste modo, a decisão recorrida não é exacta quando afirma que a arguida agiu no cumprimento de um dever, uma vez uma vez que a lei não lhe impõe o dever de denunciar infracções disciplinares (dever legal). Agiu, todavia, no âmbito de um poder que a lei lhe reconhece e, portanto, agiu no exercício de um direito, situação que também se enquadra no âmbito de uma causa de justificação prevista no mesmo artigo 31º, 2, do C.P, embora na alínea b).
Justifica o facto (“o facto não é punível”), nos termos do referido art. 31º, 1 do C.P, quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. A situação prevista na al. b) – facto praticado no exercício de um direito - deve também ser interpretada tendo em conta a ordem jurídica no seu todo, de modo a harmonizarem-se direitos conflituantes. Em situações de conflito, como é o caso, estando em confronto o direito de denunciar factos disciplinarmente puníveis e o direito à honra e consideração, impõe-se uma especial ponderação, no sentido de saber em que termos a Ordem Jurídica exclui a ilicitude de factos que, objectivamente considerados, lesam a honra e consideração.
Este concreto conflito de direitos (direito à honra e consideração e direito de denunciar infracções disciplinares) deve ser resolvido tendo em conta, antes de mais, o que vem regulado no art. 180º, 2 do C. Penal. Resulta deste preceito (n.º 2 do art. 180º) que a conduta (ainda que objectivamente lesiva da honra e consideração) é justificada (não punível) se (i) a imputação for feita para realizar interesses legítimos e (ii) o agente provar que tinha fundadas razões para, de boa-fé, reputar os factos como verdadeiros e (iii) os factos não disserem respeito à intimidade da vida privada e familiar.
Estas três condições verificam-se claramente, no presente caso:
- A primeira, porque a arguida agiu na qualidade de coordenadora do serviço ao exercer o poder legal de denunciar, agindo desse modo na defesa de interesses legítimos: a prossecução do interesse público inerente ao bom e regular funcionamento do serviço. Agiu, pois, na prossecução de um interesse legítimo; a segunda, porque (como decorre da análise da prova produzida) a arguida tinha razões para, de boa-fé, acreditar que efectivamente as denunciadas cometeram as infracções disciplinares denunciadas; a terceira, porque os factos nada tinham a ver com a intimidade da vida privada ou familiar, sendo antes factos conexos com o concreto exercício de funções laborais.
Nestes termos, verifica-se (embora com fundamentação algo diversa) que a arguida agiu efectivamente no âmbito de uma causa de justificação (artigos 31º, 2 al. b) e 180º, 2, do C.P), impondo-se assim negar provimento ao recurso e consequentemente manter a decisão instrutória de não pronúncia.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelas assistentes, fixando a cada uma a taxa de justiça de 5 UC.

Porto, 27/09/2017
Élia São Pedro
Donas Botto