Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8747/17.6T9LSB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: CRIME DE DIFAMAÇÃO
TITULAR DE CARGO POLÍTICO
RESERVA DA VIDA PRIVADA
Nº do Documento: RP201909118747/17.6T9LSB.P1
Data do Acordão: 09/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFRÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º840, FLS.70-91)
Área Temática: .
Sumário: I - O bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime de difamação (artigo 180º do Código Penal) é compreendido no contexto de uma relação social dinâmica, necessariamente concreta e por vezes conflituante, como forma de garantir o desenvolvimento da pessoa humana ao permitir uma participação livre dentro do espaço político-social de que faz parte, de modo a permitir não só o seu próprio desenvolvimento, como o progresso da própria comunidade.
II - O escrutínio público de titulares ou ex-titulares de cargos políticos em Portugal envolve, também, o seu comportamento público e o seu património, de modo a assegurar a confiança entre eleitos e eleitores, entre os cidadãos e o próprio regime político republicano e democrático.
III - Os políticos ou ex-políticos não têm o direito à reserva da “vida pública”, onde se inclui não só a sua atividade profissional e política, mas também a sua imagem pública compreendida enquanto conduta pública.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 8747/17.6T9LSB.P1
Data do acórdão: 11 de Setembro de 2019

Relator: Jorge M. Langweg
Adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa

Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira
Sumário:
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Acordam, em conferência, os juízes acima identificados
do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos em que figura como recorrente o assistente B… e recorridos o Ministério Público e a arguida C…;
I - RELATÓRIO
1. No dia 20 de Fevereiro de 2019 foi proferida a decisão instrutória que terminou com a não pronúncia da arguida C… pela prática dos factos constantes da acusação particular contra a mesma deduzida nos autos pelo assistente acima referido, integrantes da prática, por aquela, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, nº. 1 do Código Penal.
2. Para tanto, foram considerados suficientemente indiciados os seguintes factos:
1 - No dia 23 de junho de 2017, a arguida escreveu e publicou um artigo de Opinião na edição escrita do Jornal F... desse dia, disponível online no endereço: https://www.F....pt/2017/06/23/politica/opiniao/um-bentley-em-K...-1776579, com o teor constante de fls. 10 a 15, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.
2- Tal artigo veio a ser partilhado, pelo menos, 2769 vezes nas redes sociais.
3 - Da leitura do artigo em causa decorre que o assistente usava um veículo automóvel de marca Bentley, situação que a arguida sugere que não se compadece com o vencimento que o assistente auferia de “mais ou menos 4000 euros brutos” como autarca.
4 - A arguida refere, entre o mais: “Não sabemos se B... prevaricou ou traficou influência – e infelizmente vamos ter de esperar muito tempo para ter respostas. Mas sabemos que em Portugal não existe sequer uma lei que criminalize o enriquecimento injustificado, nem mesmo uma simples lei que defina regras sobre os valores máximos dos presentes que os titulares de cargos políticos podem receber”.
5 - A arguida reportou-se a situações de ofertas a titulares de cargos públicos, referindo também que “O “seu” Bentley ... não era seu. Está em nome de um empresário seu conhecido. O ex-presidente da Câmara só andava com ele”.
6 - No processo denominado “D...”, onde figura como arguido o aqui assistente, foi arrestado um Bentley.
7- O veículo Bentley arrestado no âmbito do processo denominado “D...” encontra-se na titularidade de outro arguido nesse processo, concretamente E....
8- No processo de Inquérito nº. 448/16.9 T9VFR, denominado “D...”, o aqui assistente foi constituído arguido, conjuntamente com outros indivíduos, tendo aí sido arrestados vários bens.
9- Em tal processo ao aqui assistente é imputada indiciariamente a prática dos seguintes ilícitos criminais: 8 crimes de corrupção passiva para acto ilícito, ps. e ps. pelo art. 17º, nº. 1 da Lie nº. 34/87 de 16.07; 2 crimes de tráfico de influência, ps. e ps. pelo art. 335º, nº. 1, al. a) do Código Penal; 1 crime de peculato, p. e p. pelo art. 20º da Lei nº. 34/87 de 16.07; 13 crimes de corrupção activa para acto ilícito, ps. e ps. pelo art. 18º, nº. 1 da Lei nº 34/87 e art. 374º, nº. 1 do Código Penal.

3. Contribuindo para a prolação do despacho de não pronúncia, foi considerada não suficientemente indiciada a seguinte factualidade.
“Todos os demais elencados na Acusação Particular deduzida e, em particular:
1- Com a leitura do artigo em causa os leitores puderam ficar convencidos que o assistente é proprietário de um “Bentley ..., o modelo topo de gama que custa quase meio milhão de euros”.
2 - O assistente conduzia pelas ruas de K... um Bentley.
3 - O assistente não conduzia pelas ruas de K... um Bentley.
4 - A arguida inventou que o assistente possuía ou usufruía do veículo Bentley.
5 - A propósito do processo em que o aqui assistente foi constituído arguido o facto mais comentado pela generalidade das pessoas foi a referência ao Bentley efectuada no artigo da aqui arguida.
6 - O texto escrito pela arguida apenas se destinou a fazer um pré-julgamento do aqui assistente, em praça pública, declarando-o culpado.
7 - A arguida agiu com intenção de ofender o bom nome, a honra, a consideração e a reputação do assistente.
8 - A arguida agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta lhe era proibida por lei e que com a mesma atentava contra a honra e consideração do assistente.
9 - Era do inteiro conhecimento da arguida a falsidade dos factos mencionados no seu artigo, no que ao uso do veículo Bentley se refere, e a arguida não tinha fundamento para os tomar como verdadeiros.
4. Inconformado com o despacho de não pronúncia da arguida, o assistente interpôs recurso do mesmo, concluindo a respetiva motivação nos seguintes termos:
No dia 23 de junho de 2017, a arguida C…, que é jornalista, escreveu e publicou um artigo de opinião na edição escrita do Jornal F….
Nesse artigo, a arguida escreveu, além do mais, que o aqui recorrente é proprietário de um "Bentley …, o modelo topo de gama que custa quase meio milhão de euros” situação que sugere que não se compadece com o vencimento-base de "mais ou menos 4000 euros brutos que afirma que o recorrente auferia enquanto autarca, sugerindo também que, assim sendo, o automóvel foi, garantidamente, adquirido ilicitamente, ou pelo menos injustificadamente, pois, pese embora ainda não se saiba "se B… prevaricou ou traficou influência (...) sabemos que em Portugal, não existe sequer uma lei que criminalize o enriquecimento injustificado, nem mesmo uma simples lei que defina as regras sobre os valores máximos dos presentes que os titulares de cargos públicos podem receber."
Acrescentou, ainda, que, "quando ganha cerca de 50% do vencimento base atribuído ao Presidente da República, ou seja, mais ou menos 4000 euros brutos, não deixa de ser curioso que tenha um carro igual ao de G…, o célebre jogador de futebol italiano que não é conhecido por ser pobre." Ademais, procurando reforçar as suas afirmações, "ilustrou" esta com outras alegadas situações de ofertas a titulares de cargos públicos e com a referência à alegada circunstância de o Bentley não estar registado em nome do denunciante mas sim "em nome de um empresário seu conhecido. O ex-presidente da Câmara só andava com ele". Ora,
Sendo falso que o recorrente tivesse ou alguma tenha utilizado, sequer, um Bentley, facto que a arguida cria e enquadra num contexto de práticas criminosas, o recorrente sentiu-se ofendido no seu bom nome, na sua honra, na sua consideração e na sua reputação, tendo, por isso, apresentado queixa e deduzido, posteriormente, acusação particular. Acontece que, realizada a instrução (que não contou com qualquer diligência probatória), fase processual impulsionada pela arguida, foi proferida decisão, que concluiu pela ausência de indícios da prática do crime de difamação e, por conseguinte, não pronunciou a arguida.
Não pode o recorrente concordar, nem conformar-se, com a fundamentação do Tribunal a quo, que se traduz, em suma, no entendimento de que a arguida emitiu uma opinião acerca da atuação política de uma figura pública, o que fez, ainda que com ironia e alguma causticidade, ao abrigo do seu direito de informação, e de emitir opiniões, e com base numa informação cuja fonte não revela, nem tem que revelar.
Desde logo se diga que, situação diferente da emissão de uma opinião, é aquela a que se reportam os presentes autos. A arguida não achou que o recorrente tivesse um automóvel cujo valor é incompatível com os seus rendimentos. A arguida não achou que o recorrente conduzisse um carro de mais ou menos um milhão de euros. A arguida não achou que a propriedade do automóvel só é possível num quadro de práticas criminosas (ou pelo menos injustificadas).
A arguida afirmou tudo isto!! A arguida imputou tudo isto ao recorrente!!
E afirmou, tudo isto, sabendo muito bem que era falso o facto de que partia, tanto mais que, no final do seu texto, a arguida acaba por dizer que o automóvel não é, afinal, do recorrente.
Repare-se, pois, que, se é certo que com este epílogo pretendeu a arguida inculcar nos leitores a ideia de que o recorrente tinha um testa de ferro, com isso reforçando a atuação criminosa que vinha de sugerir ao recorrente, a verdade é que acabou por confessar que sabe que não é verdadeira a afirmação em que radica o seu texto.
De resto, sempre se diga que o texto da arguida, de opinião, pouco ou nada tem.
Tudo o que nele se lê para além dos factos imputados ao aqui recorrente são meras considerações com laivos de ironia, que servem para ornamentar as imputações que faz ao arguido mais do que para demonstrar uma qualquer opinião que a senhora jornalista possa ter sobre o que quer que seja. Com efeito, ao dizer que o recorrente tem e utiliza um determinado automóvel, a arguida está a imputar um facto, e ao enquadrar tais situações (de propriedade e utilização de um carro) num contexto de práticas ilícitas, na medida em que, desde logo, um autarca não tem rendimentos para tanto, a arguida está também a imputar um facto. Não está, assim, seguramente, a emitir uma opinião sobre a atuação política de uma figura pública. Perante o que,
Para além de ser manifesto que do que aqui se trata é da imputação de factos e não da emissão de uma opinião - distinção que o Tribunal a quo não alcançou -, é também evidente que a arguida escreveu sobre um facto que sabia ser falso, circunstâncias que, pelo menos no plano indiciário, que é o plano em que o Tribunal a quo foi chamado a intervir, revelam que se mostram indiciariamente preenchidos os pressupostos, previstos no artigo 180, n.° 1 do CPP, da possível responsabilidade da arguida,
Porquanto a arguida, dirigindo-se a terceiro (com recurso, de resto, a um meio de comunicação social, facilitando a sua difusão — o artigo foi partilhado pelo menos 2769 vezes nas redes sociais), imputou ao aqui recorrente factos que, sendo falsos, e na medida em que se induz que neles assentem as premissas do juízo de valor que a arguida pretende que os leitores façam acerca do recorrente, são ofensivos do bom nome, da honra, da consideração e da reputação deste. Por outro lado,
Também cumpre apontar à decisão do Tribunal a quo a falta de rigor na avaliação que fez quanto às regras que se impunham ser observadas pela arguida na produção do texto.
É que, desde logo, das duas uma: ou o texto da arguida se traduz numa peça jornalística e, nessa medida, poderia, eventualmente, a autora estar protegida pelo direito constitucional e estatutário, que tem, enquanto jornalista, de não revelar as suas fontes, mas então nesse caso, porque é jornalista e se trata de um trabalho jornalístico, a arguida encontrava-se vinculada a todo um conjunto de deveres que não observou, designadamente o de contactar o visado ou: o texto da arguida se traduz num trabalho de opinião, nesse caso irrelevando que a autora seja jornalista ou não, pois não atuou nessa sua qualidade (porque, atuando, estava, além do mais, impedida de imiscuir a sua opinião na informação que pretendia dar), ficando, por isso, não só obrigada a explicar que interesses legítimos visava realizar, como onerada com a prova da veracidade do facto imputado ou com a prova de que podia, em boa-fé, reputar de verdadeiro o facto imputado, circunstâncias que a obrigavam a expor as suas (alegadas) fontes. Dito isto,
Não pode querer colher-se o melhor dos dois mundos, fazendo do texto aqui em causa um mero mas puro artigo de opinião - afastado dos deveres jornalísticos - e, ao mesmo tempo, um trabalho jornalístico - beneficiando a autora do direito, jornalístico, de não revelar as suas fontes que, de todo o modo, não constitui regra, antes exceção. Repare-se que,
Do ponto de vista dos deveres a que se encontra vinculada enquanto jornalista, o texto da arguida é não mais do que um repositório de ilegalidades. Todos os deveres descritos no artigo 14 do Estatuto do Jornalista foram violados pela arguida. Ora, estes deveres servem, precisamente, o propósito de balizar a atuação jornalística, impedindo interferências abusivas e injustificadas, e por isso geradoras de responsabilidade não só disciplinar como criminal, na esfera de direitos de todos quantos possam por ela ser visados.
Tal balizamento não se confunde com qualquer censura ou limitação da liberdade de expressão e de informação, constituindo, antes, uma harmonização desta liberdade com outros direitos igualmente fundamentais à paz social e à vida democrática. Deste modo, pretendendo dar-se ao texto aqui em causa o cunho de peça jornalística, produzida por uma jornalista, é evidente que se impunha mostrarem-se respeitados todos aqueles deveres.
Ao invés desse respeito, o que se constata é que a arguida disse o que bem entendeu sobre o aqui recorrente, num registo sensacionalista, que lhe é vedado, refugiando-se no direito de não revelar as suas fontes. Tal refúgio, utilizado pela arguida e suportado pelo Tribunal a quo, não é, porém, admissível. Tanto porque a regra é a de o jornalista revelar as suas fontes, não tendo a arguida apontado nenhuma circunstância que a faça afastar desse dever, como porque o recurso a esse direito visou a obtenção de benefícios ilegítimos (a impunidade neste processo!).
Outrossim, pese embora não revele as suas fontes, certo é que a arguida não contactou o visado, aqui recorrente, nem nenhuma pessoa próxima deste, para indagar da veracidade da putativa informação, que pudesse ter obtido, de o mesmo ser proprietário e/ou utilizador de um Bentley de mais ou menos um milhão de euros. É que, se contactado o aqui recorrente, ou alguém que lhe fosse próximo, a arguida teria ficado imediatamente sem matéria para o texto que escreveu.
Por outro lado, com o seu texto, mediante o qual faz um pré-juízo de culpabilidade do arguido, a arguida ofendeu o dever, que tem, de respeitar a presunção de inocência, pretendendo-se com a consagração estatutária deste dever evitar, precisamente, que os jornalistas influenciem a opinião pública e, até, a atuação da justiça. Noutra perspetiva,
Querendo retirar-se ao texto da arguida o cunho de peça jornalística, eximindo-a de todas as responsabilidades e deveres estatutários inerentes à atuação jornalística, não poderia, então, ter sido considerada, sequer, a possibilidade de lhe assistir o direito de não revelar as suas fontes, nem qualquer outra benesse da atuação jornalística, que é onde o Tribunal a quo faz radicar a improbabilidade de a arguida vir a ser condenada, por se mostrar excluída da tutela penal a sua conduta, quer seja por exclusão da ilicitude, quer seja por exclusão da culpa, assim suportando a extinção do processo com a decisão de não pronunciar a arguida. Ora,
Não se vislumbrando qualquer interesse legítimo na veiculação de informação, que é falsa, que não seja a ofensa e o amesquinhamento, indiciariamente propositados, do recorrente, a imputação de factos, que lhe é feita, constitui uma ingerência tão só ofensiva, na esfera de direitos do recorrente, que a arguida, pretendendo afastar a sua responsabilidade criminal, terá que se defender em moldes distintos daqueles que o Tribunal a quo avançou. Com efeito,
Qualquer que seja a qualificação mais rigorosa do texto da arguida, a verdade é que, em cada um e em ambos os casos, o texto é só um, e é ofensivo (não cabendo a ninguém, por ora, se não ao recorrente, medir a ofensa, daí tratar-se de um crime em que apenas caiba a quem se sinta ofendido o dever de submeter o agente a julgamento.), e por isso encontram-se indiciados factos que consubstanciam a prática, pela arguida, do crime de difamação, tanto bastando para que o processo prossiga para o julgamento, sendo essa a sede própria da verificação, ou não, em termos definitivos, da responsabilidade criminal da arguida. Acresce que,
A circunstância de o automóvel se encontrar apreendido no mesmo processo em que o recorrente foi constituído arguido mas na esfera patrimonial de outra pessoa, deu ao Tribunal a quo o sinal, bastante, de que as afirmações da arguida - que sabia, até, que o automóvel estava registado na propriedade não do recorrente mas de um empresário seu conhecido!!! - não resultam de qualquer equívoco procedente de informações incorretas. A arguida, tendo todos os dados disponíveis para descobrir a verdade, quis, não obstante, produzir um texto sensacionalista, ignorando, propositadamente, as indicações, de que dispunha, de ser redondamente falso o que se preparava para escrever e difundir, daí resultando, pelo menos indiciada, a culpa, que se junta, assim, aos elementos objetivos do tipo de ilícito em causa, tudo redundando na existência de indícios suficientes que obrigam à pronúncia da arguida. Assim,
Sendo falsos os factos imputados pela arguida ao aqui recorrente - falsidade que apenas na fase de julgamento cumprirá provar cabalmente -, todo o conteúdo do texto daquela é altamente ofensivo do bom nome, da honra, da consideração e da reputação do queixoso, bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora do artigo 180, n.° 1 do Código Penal, pelo que, encontrando-se indiciariamente preenchidos os pressupostos de que depende a responsabilidade criminal da arguida, o Tribunal a quo fez uma incorreta aplicação do artigo 308, n.° 1 do CPP, bem como uma incorreta avaliação e antecipação das causas de exclusão da ilicitude previstas no n° 2 da norma incriminadora, impondo-se, ao invés da decisão de que se recorre, a pronúncia da arguida pela prática do crime de difamação, nos exatos termos em que vinha acusada.

5. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo.
6. A arguida apresentou resposta à motivação de recurso do assistente, defendendo a manutenção da não pronúncia, essencialmente, com base na fundamentação constante da decisão instrutória[1], impugnando as considerações de facto e de direito plasmadas pelo recorrente e podendo sintetizar-se a sua posição na conclusão de que o artigo de opinião foi redigido ao abrigo da liberdade de expressão e de opinião da sua autora, no contexto de uma imprensa livre, como é próprio de um regime democrático.
7. O Ministério Público também respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, reiterando, substancialmente, a fundamentação da decisão instrutória.
8. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer quanto ao mérito do recurso nos seguintes termos:
“(…)
Com o acervo probatório existente no processo é altamente provável que não seja feita em julgamento a demonstração de que a arguida proferira as expressões que lhe são imputadas com intuito ofensivo mas para realizar interesses legítimos tendo fundamento para ter como verdadeiros os factos por si divulgados.
E tal conduziria, em julgamento, a uma mais que provável absolvição da arguida caso fosse pronunciada.
Assim, bem decidiu o Tribunal "a quo" ao proferir despacho de não pronúncia uma vez que, na acepção do disposto nos arts. 308º e 283º, nº 2 do Código de Processo Penal, não existem indícios suficientes de se ter verificado crime.
Assim, a decisão instrutória que, consequentemente, se impunha proferir era de não pronunciar a arguida C… como autores de um crime de difamação, p. e p. pelos art 180.° do Código Penal.”
9. Apenas o assistente respondeu ao teor do parecer, alegando, no essencial, que “Sendo falsos os factos imputados pela arguida, todo o conteúdo do texto daquela é altamente ofensivo do bom nome, da honra, da consideração, e da reputação do recorrente, bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora do artigo 180º, nº 1, do Código Penal, pelo que estando indiciariamente preenchidos os pressupostos de que depende a responsabilidade criminal da arguida, o Tribunal fez uma incorreta aplicação do artigo 308º, nº 1, do CPP, impondo-se, ao invés da decisão recorrida, a pronúncia da arguida pela prática do crime de difamação, nos exatos termos em que vinha acusada.
10. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].
*
Questão a decidir
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [2] e a jurisprudência [3] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir a questão substancial a seguir concretizada – sem prejuízo de outras de conhecimento oficioso -, que sintetiza as conclusões do recorrente, constituindo, assim, o objeto do recurso:
- Da existência de indícios da prática, pela arguida, de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, nº. 1 do Código Penal, nos termos descritos na acusação particular;
II – OS FACTOS PROCESSUAIS RELEVANTES
Perante a questão suscitada no recurso da decisão instrutória, torna-se essencial - para a devida apreciação do seu mérito – recordar, primeiramente, o teor da fundamentação do despacho de não pronúncia.
Extrato da fundamentação concreta respeitante à não pronúncia do arguido, mediante a apreciação crítica da prova indiciária recolhida, de modo a apurar os factos indiciados e não indiciados descritos nos pontos 2 e 3 do relatório do presente acórdão:
“2. Fundamentação:
2.1 As finalidades da instrução:
A fase de instrução visa a “comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” – art. 286º, nº. 1 - ”, cabendo ao juiz de instrução praticar todos os actos necessários à realização desta finalidade, para o que dispõe de poderes autónomos de investigação – art. 288º, nº. 4 e 289º, nº. 1, todos do Código de Processo Penal.
Realizadas as diligências tidas por úteis e necessárias à descoberta da verdade material, conforme consta do art. 308º, n.º 1, do Código de Processo Penal “ se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere um despacho de não pronúncia.”.
O critério da suficiência de indícios é o mesmo que subjaz ao da acusação - art. 283º, nº. 2 do Código de Processo Penal, por força do art. 308º, nº. 2 do mesmo diploma que considera como suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
Por indícios suficientes deve entender-se, assim, o “conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputáveis (...); vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer que há crime e é o arguido responsável por ele; porém, para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma a que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado” – Ac. RC de 31/03/93, CJ, T. II, p. 65.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Vol. I, “(...) os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”.
Ou seja, se no âmbito do julgamento, o julgador tem de fazer um juízo de certeza, já na instrução deve haver um juízo de probabilidade séria, no sentido de que, com toda a probabilidade o arguido será condenado, ou seja, a possibilidade razoável de condenação tem de ser uma possibilidade mais positiva do que negativa, tem de haver uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição, caso contrário deverá elaborar-se despacho de não pronúncia.
Contudo, “Não se basta a lei, (...), com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação” - cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 183.
Não se visa a demonstração da realidade dos factos, as provas recolhidas nestas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas antes de mera decisão processual quanto à persecução do processo até à fase de julgamento. Como refere António Augusto Tolda Pinto, in ob. cit. a instrução visa a formulação de um juízo de probabilidade para legitimar a sujeição do arguido a julgamento.
Cumpre, pois, aferir, após a realização do Debate Instrutório, da suficiência ou insuficiência dos indícios da prática pela arguida dos factos denunciados e do crime imputado.
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2.2. Dos Factos Suficientemente Indiciados:
Atendendo aos elementos documentais que instroem os presentes autos, em conjugação com as declarações prestadas pelo assistente e pela arguida, e atendendo às regras da experiência, encontram-se indiciados os seguintes factos:
1 - No dia 23 de junho de 2017, a arguida escreveu e publicou um artigo de Opinião na edição escrita do Jornal F… desse dia, disponível online no endereço: https://www.F....pt/2017/06/23/politica/opiniao/um-bentley-em-K..., com o teor constante de fls. 10 a 15, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.
2 - Tal artigo veio a ser partilhado, pelo menos, 2769 vezes nas redes sociais.
3 - Da leitura do artigo em causa decorre que o assistente usava um veículo automóvel de marca Bentley, situação que a arguida sugere que não se compadece com o vencimento que o assistente auferia de “mais ou menos 4000 euros brutos” como autarca.
4 - A arguida refere, entre o mais: “Não sabemos se B… prevaricou ou traficou influência – e infelizmente vamos ter de esperar muito tempo para ter respostas. Mas sabemos que em Portugal não existe sequer uma lei que criminalize o enriquecimento injustificado, nem mesmo uma simples lei que defina regras sobre os valores máximos dos presentes que os titulares de cargos políticos podem receber”.
5 - A arguida reportou-se a situações de ofertas a titulares de cargos públicos, referindo também que “O “seu” Bentley … não era seu. Está em nome de um empresário seu conhecido. O ex-presidente da Câmara só andava com ele”.
6 - No processo denominado “D…”, onde figura como arguido o aqui assistente, foi arrestado um Bentley.
7 - O veículo Bentley arrestado no âmbito do processo denominado “D…” encontra-se na titularidade de outro arguido nesse processo, concretamente H….
8 - No processo de Inquérito nº. 448/16.9 T9VFR, denominado “D…”, o aqui assistente foi constituído arguido, conjuntamente com outros indivíduos, tendo aí sido arrestados vários bens.
9 - Em tal processo ao aqui assistente é imputada indiciariamente a prática dos seguintes ilícitos criminais: 8 crimes de corrupção passiva para acto ilícito, ps. e ps. pelo art. 17º, nº. 1 da Lie nº. 34/87 de 16.07; 2 crimes de tráfico de influência, ps. e ps. pelo art. 335º, nº. 1, al. a) do Código Penal; 1 crime de peculato, p. e p. pelo art. 20º da Lei nº. 34/87 de 16.07; 13 crimes de corrupção activa para acto ilícito, ps. e ps. pelo art. 18º, nº. 1 da Lei nº. 34/87 e art. 374º, nº. 1 do Código Penal.
2.3 Dos Factos Não Suficientemente Indiciados:
Todos os demais elencados na Acusação Particular deduzida e, em particular:
1 - Com a leitura do artigo em causa os leitores puderam ficar convencidos que o assistente é proprietário de um “Bentley …, o modelo topo de gama que custa quase meio milhão de euros”.
2 - O assistente conduzia pelas ruas de K… um Bentley.
3 - O assistente não conduzia pelas ruas de K… um Bentley.
4 - A arguida inventou que o assistente possuía ou usufruía do veículo Bentley.
5 - A propósito do processo em que o aqui assistente foi constituído arguido o facto mais comentado pela generalidade das pessoas foi a referência ao Bentley efectuada no artigo da aqui arguida.
6 - O texto escrito pela arguida apenas se destinou a fazer um pré-julgamento do aqui assistente, em praça pública, declarando-o culpado.
7 - A arguida agiu com intenção de ofender o bom nome, a honra, a consideração e a reputação do assistente.
8 - A arguida agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta lhe era proibida por lei e que com a mesma atentava contra a honra e consideração do assistente.
9 - Era do inteiro conhecimento da arguida a falsidade dos factos mencionados no seu artigo, no que ao uso do veículo Bentley se refere, e a arguida não tinha fundamento para os tomar como verdadeiros.
2.4. Motivação e Crimes Imputados:
À arguida é imputada a prática, em autoria material, de Um Crime de Difamação, p. e p. pelo art. 180º do Código Penal.
Dispõe o art. 180º nº. 1 do CP que “ Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido (...)”.
O nº. 2 do mesmo normativo legal exclui a punição da conduta quando “a imputação for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”.
Por seu turno o nº. 3 do citado artigo preceitua que “Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do nº. 2 do artigo 31º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar”.
O bem jurídico protegido por estas tipificações legais é, pois, a honra e a consideração, reflexos do direito ao nome e reputação, constitucionalmente consagrado.
A honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale; a consideração representa o conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa mesma pessoa ao desprezo público.
Mas, não basta a imputação de factos ou palavras, exigindo-se que estas sejam adequadas a ofender o bem jurídico protegido, de modo a provocar a injúria.
A aferição dessa adequação da expressão proferida para atingir o bem protegido deve ser feita, não de acordo com susceptibilidade pessoal do indivíduo concretamente visado, antes tendo em conta a dignidade individual a que todos têm direito.
Importa reter, ainda, que a o legislador consagrou, no nº. 2 do art. 180º, casos especiais de certas condutas que integrariam a previsão legal do nº. 1, mas que, por terem subjacentes motivos sérios e de grande relevo, se devem considerar não puníveis. Assim, estará excluída a punibilidade quando:
- a imputação visar a realização de interesses legítimos;
- se faça a prova da verdade da imputação ou a mesma seja tida, em boa fé, como verdadeira (a boa fé estará afastada, segundo o nº. 4 do mesmo artigo, quando o agente omitir os cuidados de informação acerca da verdade da imputação).
Estas duas circunstâncias são exigidas cumulativamente, para se verificar a exclusão da punibilidade.
Como se refere no Acórdão do TR do Porto de 05.11.2008, in www.dgsi.pt “No Código Penal anotado de Simas Santos e Leal-Henriques, Vol. II, pag. 318, são elencadas circunstâncias que poderão excluir, de per si, o propósito injurioso ou difamatório, como seja os tradicionalmente conhecidos animus jocandi (o propósito não é ofender a honra, mas sim brincar, gracejar, desde que não seja ultrapassada a limite de uma normal conduta jocosa); animus consulendi (o fim do agente é aconselhar, advertir ou informar, e desde que não haja excesso neste processo informatório, a acção não é censurável); animus corrigendi (o propósito é repreender ou admoestar alguém sobre quem se tem o poder de autoridade); animus narrandi (relato a terceiro do que se viu ou sentiu, desde que não se ultrapasse a fidelidade da transmissão); animus defendendi (a própria defesa do agente é que está em causa, e não qualquer ofensa a terceiro).
Afinal, em situações deste tipo, deve ponderar-se o que assume ou não dignidade penal, sendo certo que o legislador não pretendeu, por certo, incluir na previsão legal todas as situações acima descritas.
Voltando às hipóteses consagradas no nº. 2 do preceito legal, como não puníveis, a verdade é que a admissibilidade da prova da verdade das imputações funciona como regra, constituindo uma inovação do Código Penal de 1982.
Na esteira do Prof. Eduardo Correia, assenta na “ideia de que a paz social não deve ser conseguida com o sacrifício da verdade nas relações sociais, única base viável de uma paz autêntica entre os homens”.
“A exceptio veritatis (exclusão da ilicitude penal por prova da verdade dos factos) é hoje aceite na maioria das legislações modernas, na medida em que oferece um controlo salutar pela opinião pública de comportamentos que se cuida censuráveis”. Cfr. Código Penal anotado, Simas Santos e Leal-Henriques, vol. II, pag. 319”.
Como se refere no Acórdão do TR do Porto de 11.11.2015, in www.dgsi.pt “A protecção penal conferida à honra só encontra justificação nos casos em que objectivamente as expressões que são proferidas não têm outro sentido que não seja o de ofender, que inequívoca e em primeira linha visam gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome de alguém”.
De facto, no aludido Acórdão refere a este propósito que “É próprio da vida social a ocorrência de algum grau de conflitualidade entre os membros da comunidade. Fazem parte do seu estatuto ontológico as desavenças, diferentes opiniões, choques de interesses incompatíveis que causam grandes animosidades.
Estas situações, entre outros meios, expressam-se ao nível da linguagem, por vezes de forma exagerada ou descabida. Onde uns reconhecem firmeza, outros qualificam de gritaria, impropérios, má educação ou indelicadeza.
Mas como se escreveu em muitos acórdãos desta Relação e Secção, “o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função” – Ac. de 12.6.02, Recurso 332 /02, de que foi relator o Des. Dr. Manuel Braz.
Não cabe aos tribunais avaliar se uma afirmação é justa, razoável ou grosseira. Apenas há um limite: não pode ser atingida a honra do visado – um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior - Comentário Conimbricense, Tomo I, pág. 607. Também esta ideia do Prof. Faria Costa a ter em conta: o facto de a honra ser um bem jurídico pessoalíssimo e imaterial, a que não temos a menor dúvida em continuar a assacar a dignidade penal, mas um bem jurídico, apesar de tudo, de menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe. Uma prova evidente de tal realidade pode encontrar-se nas molduras penais - de limites extraordinariamente baixos - que o legislador considerou adequadas para a punição das ofensas à honra. E a explicação para tal “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico, para uma certa perda da sua importância relativa, pode justificar-se, segundo cremos, de diferentes modos e por diferentes vias. Por um lado, julgamos poder afirmar-se uma sua verdadeira erosão interna, associada à autonomização de outros bens jurídicos que até algumas décadas estavam misturados com essa pretensão a ser tratado com respeito em nome da dignidade humana que é o núcleo daquilo a que chamamos honra. Referimo-nos a valores como a privacidade, a intimidade ou a imagem, que hoje já têm expressão constitucional e específica protecção através do direito penal.
Por outro lado, cremos ser também indesmentível a erosão externa, a que a honra tem sido sujeita, quer por força da banalização dos ataques que sobre ela impendem - tão potenciados pela explosão dos meios de comunicação social e pela generalização do uso da internet, quer por força da consequente consciencialização colectiva em torno do carácter inelutável de tais agressões e da eventual imprestabilidade da reacção criminal – págs. 104-105, “Direito Penal Especial”, Coimbra Editora, 2004”.
De salientar também que do ponto de vista subjectivo, o ilícito criminal em causa configura um crime doloso, traduzindo-se o elemento subjectivo na vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal acto é proibido por lei.
Como também melhor se refere no Acórdão do TR de Évora de 29.03.2016, in www.dgsi.pt “como referem Leal Henriques e Simas Santos nos crimes em análise não se protege a susceptibilidade pessoal de quem quer que seja, mas apenas a dignidade individual da pessoa, sendo uma das suas características a da sua relatividade, o que significa que o carácter injurioso ou difamatório de determinada palavra ou acto é fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre. (sublinhado nosso)
Para apreciar se os factos, palavras e escritos são injuriosos será de ter em conta os antecedentes do facto, o lugar, ocasião, qualidade, cultura e relações entre ofendido e agente, de modo que factos, palavras e escritos que em determinadas circunstâncias se reputam gravemente injuriosos, podem não ser de considerar ofensivos ou tão-somente constitutivos de injúria leve.
Ou como se referiu no Ac. da Relação do Porto, de 14/07/08, no Processo nº. 0841633, a protecção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos que atentem contra esses bens jurídicos, só se justifica em situações em que objectivamente as palavras proferidas não têm outro conteúdo ou sentido que não a ofensa, ou em situações em que, uma vez ultrapassada a mera susceptibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são, indubitavelmente, lesivas da honra e da consideração do lesado.
Em suma, para que se considere cometido um crime contra a honra, as expressões utilizadas têm que ser apreciadas no contexto situacional em que são proferidas e alcançar um patamar mínimo de gravidade que lhes confira dignidade penal.
“As pessoas, normalmente, quando estão em círculos privados e fechados, em que sabem que só são escutadas pelo destinatário ou destinatários presentes e relativamente aos quais existe um mínimo de confiança no relacionamento que se estabelece - como parece ser o caso dos autos -, falam à vontade, dizem disparates, queixam-se, exageram, troçam de terceiros, dizem mal deles, qualificando-os, muitas vezes, de forma pouco civilizada, “confessam-se”, afirmam coisas da boca para fora, no calor da conversa ou discussão, e tudo isso porque contam com a discrição dos seus interlocutores para a confidencialidade de algumas das coisas referidas e a compreensão e o inevitável “desconto” para as demais – Acórdão do TR de Lisboa de 03.07.2012, in www.dgsi.pt, no qual se continua afirmando, “Uma das inúmeras vertentes em que se desdobra o direito fundamental e constitucional da liberdade de expressão e opinião é aquela que normalmente se define como uma conversa privada entre familiares e/ou amigos, num ambiente restrito e reservado”.
Conforme se alude no Acórdão do TR do Porto de 05.11.2008, in www.dgsi.pt “… o facto de o agente proferir uma expressão objectivamente injuriosa, apesar de fazer presumir a existência de dolo da sua parte, consubstancia uma presunção ilidível desse dolo.
No dizer de Cavaleiro de Ferreira, “os crimes contra o pudor, a honra, etc., são conceitos que só se compreendem após uma prévia valoração da realidade”.
Como também referido na decisão instrutória proferida no âmbito do processo nº. 25/15.1 T9CPV, deste Juízo Central de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira, J2, Comarca de Aveiro, que, por se ter debruçado sobre matéria muito similar à aqui em apreciação, e por economia processual, atenta à forma exaustiva como aí se expuseram as questões, passamos a citar, “não pode, todavia, prescindir-se, numa análise mais apurada, da consideração dos limites à punibilidade da conduta típica previstos no próprio tipo, aquilo que José Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, pag. 614, qualifica de causa de exclusão da ilicitude.
Assim é que, nos termos do nº. 2 do art. 180º, aplicável ao crime de injúria por via do nº. 2 do art. 181º, sempre que se trate da imputação de factos, a conduta não é punível quando:
a) - A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) - O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
Os nºs. 3 e 4 deste preceito, também remissivamente aplicáveis, ditam ainda o seguinte:
3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do nº. 2 do artigo 31º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4 - A boa fé referida na alínea b) do nº. 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.
Para além desta específica causa de exclusão de ilicitude, há que contar ainda com previsão geral do art. 31º que, no seu nº. 1, reza: o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade, relevando ainda em particular na enumeração feita no nº. 2, a actuação no exercício de um direito (alínea b). E dentro dessa ordem jurídica merecem especial destaque no concerto das normas aplicáveis, pelo lugar ocupado na sua hierarquia, a Constituição da República Portuguesa e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que aquela Constituição acolhe por via do art. 8º, nº. 2.
Começando pela Constituição, verificamos que, assim como consagra na panóplia dos seus direitos fundamentais, sob o art. 26º, o direito ao bom nome e à reputação, coloca no mesmo plano, sob o art. 37º/1, o direito, que a todo o cidadão assiste, de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem restrições.
E estes direitos estão, por natureza, amiúde em conflito: o exercício da liberdade de expressão pode, na verdade, contender, em maior ou menor medida, com o bom nome e a reputação das pessoas.
Neste quadro, o problema que se põe é o de saber qual a linha de fronteira que permite distinguir o exercício legítimo da liberdade de expressão daquilo que será já a ofensa injustificada do direito ao bom nome e à reputação.
Traçar essa linha em abstracto, e depois evidenciá-la no caso concreto, não constitui uma tarefa fácil.
Em primeiro lugar, porque não está estabelecida uma hierarquia entre estes direitos: ambos são direitos fundamentais e com o mesmo valor de princípio, como decorre, a nosso ver da lógica sistemática imprimida à Constituição, e da Declaração Universal dos Direitos do Homem, acolhida na Lei Fundamental por via do art. 16º/2 da Constituição, ali se consagrando um e outro destes direitos sob os seus arts. 12º e 19º, sem aparente sobrevalorização de qualquer deles.
E em segundo lugar, porque não existem na nossa Constituição regras que permitam de forma clara e indiscutível resolver todos os casos de colisão entre direitos fundamentais.
A doutrina que nesta matéria reputamos mais autorizada, tem vindo a afirmar que o direito constitucional de conflitos tem de construir-se com base num esforço de harmonização de direitos e, no caso de isso ser necessário, na prevalência de um deles em relação ao outro, o que só em face das circunstâncias concretas se poderá fazer, pois só nessas circunstâncias concretas será legítimo dizer que um dos direitos tem mais peso que o outro.
Para obter essa harmonização ou prevalência de direitos, é inelutável a restrição ou compressão de um em função do outro, para o que será essencial o recurso pelo intérprete ao princípio da proporcionalidade, verdadeiro “fiel da balança”, erigido pela doutrina como o núcleo central dos requisitos materiais exigidos às restrições aos direitos fundamentais.
O princípio da proporcionalidade, também comummente designado por princípio da proibição do excesso, está consagrado no art. 18º/2 e 3 da Constituição e desdobra-se em três subprincípios:
O subprincípio da necessidade, que supõe a verificação de uma circunstância que torne necessária uma restrição a um bem juridicamente protegido; o subprincípio da adequação, que requer uma correspondência entre a restrição e o fim visado; e o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, que exige uma relação de justa medida entre a restrição e o objectivo tido em vista; por fim, haverá em qualquer caso que procurar salvaguardar o conteúdo essencial do direito objecto da restrição.
Do que fica exposto, permitimo-nos concluir que, no plano constitucional:
- todas as soluções estão, por princípio, em aberto;
- impõe-se sempre uma ponderação das concretas circunstâncias factuais do caso a dirimir;
- a solução do caso requer um exame à luz do princípio da proporcionalidade.
E este exame não pode também prescindir, em face do disposto no art. 8º/2 da Constituição, da consideração do que a propósito dita a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Com efeito, a Convenção consagra no seu art. 10º/1 o direito à liberdade de expressão, compreendendo esta a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas.
Não deixa, porém, de logo no nº. 2 do mesmo preceito, elencar os casos em que a liberdade de expressão pode ceder, seguindo o seguinte critério: o exercício da liberdade de expressão pode sofrer uma restrição, desde que, estando prevista na lei, se trate de uma providência necessária numa sociedade democrática, de entre outras hipóteses que ora não relevam, para a protecção da honra ou dos direitos de outrem.
É assim, o próprio texto da CEDH que, admitindo a possibilidade de existir um conflito entre a liberdade de expressão e o direito à honra, reconhece que, em certos casos, aquela liberdade de expressão poderá ter que ceder perante o direito à honra.
Para tanto, essa restrição terá que:
- estar prevista na lei;
- ser necessária numa sociedade democrática.
Como se evidencia, será no labor doutrinário e jurisprudencial que poderá buscar-se, com um mínimo de precisão, o que deve entender-se por restrição necessária numa sociedade democrática.
Neste contexto, é crucial o contributo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, definindo nos seus arestos quais são as características básicas que definem uma sociedade democrática e o papel que nela desempenha a liberdade de expressão.
Aquela alta instância não se tem cansado, pois, de repetir, decisão após decisão, que o regime democrático é o único compatível com o sistema instituído pela Convenção Europeia, o que de resto decorre desde logo do próprio preâmbulo desta, como tem ainda sublinhado que de entre as características básicas de um qualquer regime democrático estão as noções de pluralismo, de tolerância e de espírito de abertura.
Mais: nesta linha de reconhecimento do valor do confronto livre de ideias, tem o Tribunal Europeu sustentado consistentemente que a liberdade de expressão, e em particular a liberdade de imprensa, está no coração de um regime democrático.
Assim se compreende que a jurisprudência do Tribunal Europeu tenda a ser muito liberal na protecção da liberdade de expressão, particularmente no domínio político, e isso, mesmo que a linguagem empregue seja objectivamente ofensiva e até algo provocatória, ou ainda que se trate de ideias que choquem ou perturbem.
A ilustrar esta tendência protectora da liberdade de expressão, pela afirmação do seu papel preponderante numa sociedade democrática, temos um conjunto exemplificativo de acórdãos em que o Tribunal Europeu condenou o Estado Português, por violação da liberdade de expressão: vejam-se os acórdãos Roseiro Bento, de 18/07/2006, Colaço Mestre/SIC, de 26/04/2007, Almeida Azevedo, de 23/01/2007 e Lopes Gomes da Silva, de 28/09/2000. De tudo o que vimos de expor resulta a ideia de que, na lógica da Convenção, as excepções à liberdade de expressão, nomeadamente para proteger a honra de outrem, devem ser interpretadas restritivamente e a necessidade das restrições deve ser determinada de modo convincente; sobretudo em matéria de discurso político ou de questões de interesse geral pouco espaço há para restrições à liberdade de expressão.
Com efeito, e com realce para o plano da discussão política, restringir a liberdade de expressão de um político, no contexto da luta política, em homenagem ao direito à honra do visado poderia contribuir para fazer perigar o próprio regime democrático, visto que retiraria à sociedade uma ferramenta essencial de escrutínio da actuação dos seus dirigentes. Dir-se-á: os dirigentes políticos são também titulares do direito à honra e não têm que suportar a fragilização desse seu direito na praça pública apenas porque desempenham ou pretendem desempenhar um cargo público.
Os políticos, à semelhança de todos os cidadãos, mantêm não obstante essa sua actividade, o seu direito à honra, a um bom nome e reputação.
Assim sucede quando o direito à honra dos políticos é afrontado com o insulto gratuito ou numa área que em nada contende com o exercício das funções públicas em que estão investidos ou a que pretendem aceder, podendo aqui a liberdade de expressão ter que ceder – aqui será adequado, proporcional e compatível com um espírito verdadeiramente democrático restringir a liberdade de expressão em homenagem ao direito à honra.
A situação será já tendencialmente diversa quando o direito à honra da personalidade política é atingido numa área abrangida pela sua actuação política; aí, entramos em maior ou menor medida no campo do debate político, a que a própria personalidade visada pode facilmente aceder; e neste domínio, os limites da crítica admissível são mais amplos que os que se tolerariam no caso de uma personalidade não política.
Mas mesmo aqui, quando no âmbito do debate político de questões que são do interesse geral, são imputados a outro político factos concretos graves, subsumíveis a um ilícito penal, sem que exista qualquer fumus veritatis, como puro ataque a um adversário, é o próprio Tribunal Europeu que, pese embora o tratamento, tendencialmente prevalente dado à liberdade de expressão, afasta a verificação do requisito da necessidade numa sociedade democrática e, por isso, a violação do art. 10º da CEDH – veja-se neste sentido, com interesse, o acórdão Barata Monteiro da Costa Nogueira e Patrício Pereira/Portugal, de 11/01/2011”.
Feitas estas considerações de carácter geral, importa, pois, proceder ao enquadramento das afirmações feitas pela arguida, no texto por si produzido e publicado, a que o assistente atribui carácter injurioso à sua pessoa.
Para tal, cumpre considerar com relevo os seguintes pontos:
- O aqui assistente exerceu, ao longo de vários anos, várias funções públicas, entre as quais a de autarca, sendo uma figura pública e política;
- O aqui assistente foi constituído arguido no processo de Inquérito nº. 448/16.9 T9VFR, denominado “D…”, conjuntamente com outros indivíduos;
- Em tal processo ao aqui assistente é imputada indiciariamente a prática dos seguintes ilícitos criminais: 8 crimes de corrupção passiva para acto ilícito, ps. e ps. pelo art. 17º, nº. 1 da Lie nº. 34/87 de 16.07; 2 crimes de tráfico de influência, ps. e ps. pelo art. 335º, nº. 1, al. a) do Código Penal; 1 crime de peculato, p. e p. pelo art. 20º da Lei nº. 34/87 de 16.07; 13 crimes de corrupção activa para acto ilícito, ps. e ps. pelo art. 18º, nº. 1 da Lei nº. 34/87 e art. 374º, nº. 1 do Código Penal;
- Em tal processo denominado “D…” foi arrestado um Bentley.
- O veículo Bentley arrestado no âmbito do processo denominado “D…” encontra-se na titularidade de outro arguido nesse processo, concretamente H….
E é neste enquadramento circunstancial que temos que ler o artigo escrito e publicado pela aqui arguida.
Mas, ainda, antes façamos uma resenha de alguns Acórdãos que sobre questões similares se debruçaram e cujas ideias aí defendidas têm aplicação ao presente caso: Com efeito, é pacífico que os limites da crítica admissível são mais amplos em relação a personalidades públicas visadas nessa qualidade, nomeadamente políticos, do que em relação a um simples particular – vide neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07.03.2017, in www.dgsi.pt.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.11.2017, in www.dgsi.pt “…mesmo a tutela penal do direito à honra e à consideração há-de sofrer (I) limitações gerais (aplicáveis a todos os indivíduos, sem excepção) e (II) limitações especiais (aplicáveis a determinado tipo ou classe de indivíduos).
I – Na primeira circunstância estão em causa aspectos que se prendem com a apreciação da capacidade efectiva dos factos ou do juízo para causar a ofensa, de modo a expurgar essa análise de cambiantes meramente subjectivas, atribuindo-lhe um cariz mais objectivo, seguindo critérios de normalidade, expurgando-a de meras susceptibilidades pessoais injustificáveis. «Com uma visão exacta, ensina JANITTI PIROMALLO que: “os crimes contra a honra ofendem um sujeito, mas não devem ter-se em conta os sentimentos meramente pessoais, senão na medida em que serão objectivamente merecedores de tutela.” Em conclusão: não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais.» (José Beleza dos Santos, ‘Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria’, RLJ, Ano 92, nº. 3152, pag. 167).
II – Na segunda consideram-se aspectos que se prendem com a natureza do cargo ou ofício desempenhado pelo queixoso ou a sua notoriedade pública. Com efeito, diferente será a abordagem criminal dos factos conforme o ofendido se encontre ou não numa dessas situações pessoais. Será mais exigente a análise se os factos ou juízos se referem à ‘esfera íntima da vida privada’ por contraposição às referências a factos ou juízos atinentes ao cargo ou à exposição pública.
«No que respeita a pessoas revestidas de notoriedade, a lei entendeu satisfazer o interesse do público em conhecer a sua imagem. A rigorosa determinação de tais pessoas não se apresenta fácil, mas, de um ponto de vista geral, as pessoas objecto daquela publicidade podem identificar-se sobretudo pela notoriedade na arte, na ciência, no desporto, na política. Elas consentem, de uma forma geral, tacitamente, na difusão da sua imagem, que consideram uma consequência natural da própria notoriedade, mas, mesmo que se pudesse provar o contrário, seria isso irrelevante dado o reconhecido interesse público por parte da lei. De qualquer modo, mesmo as pessoas revestidas de notoriedade conservam o direito à imagem relativamente à esfera íntima da sua vida privada, em face da qual as exigências de curiosidade pública têm que deter-se. A limitação estabelecida pela lei deve entender-se, por sua vez, com esta restrição. O cargo público exercido é incluído pela lei entre os casos de limitação legal do direito à imagem. O interesse da sociedade estende-se sobre todos os que desempenham uma função pública de notável importância e que são rodeados, a tal título, de notoriedade.» (De Cupis, ‘Os Direitos da Personalidade’, Lisboa, 1961, pag.s 137 e 138).
Ora, estabelecendo o necessário paralelo entre a tutela do direito à imagem e o direito à honra e á consideração pessoal, logo se constata que os cidadãos com uma exposição pública da sua imagem devem ter de suportar maiores ataques do que o cidadão comum que, precisamente por não se querer submeter a essa exposição, deve beneficiar de maior tutela penal.
Como diz Beleza dos Santos, (op. e loc. Cit.) «neste juízo individual ou do público, acerca do que pode ser ofensivo da honra e da consideração, é comum a todos os meios e países a exigência de respeito de um mínimo de dignidade e de bom nome. Para além deste mínimo, porém, existe certa variedade de concepções, da qual resulta que palavras ou actos considerados ofensivos da honra, decoro ou bom nome em certo país, em certo ambiente e em certo momento, não são assim avaliados em lugares e condições diferentes. O que pode ser uma ofensa ilícita em certo lugar, meio, época ou para certas pessoas, pode não o ser em outro lugar ou tempo».
A tudo isto acresce que a pretensa ofensa terá sido cometida através do uso de meios de comunicação social, o que, por outro lado, colocará a questão da controvérsia direito de informação/direito à honra, em termos de determinação de qual deles deve prevalecer, já que ambos merecem tutela constitucional. Esta procura alcançar «a exigível composição dos interesses ou bens jurídicos em conflito – em obediência ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, vinculante em matéria de restrição de direitos fundamentais e segundo o qual se deve obter a “harmonização” ou “concordância prática” dos bens em colisão, a sua “optimização”, traduzida na mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível?» (Figueiredo Dias, in “Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português”, RLJ, nºs 3697 e seg.s, pag.102).
E, tal harmonização deve ser feita de tal modo que não sejam beliscados quer a tutela da honra referente àquela ‘esfera íntima da vida privada’ quer o constitucional direito de liberdade de imprensa. «Esta, para não incorrer em actividade criminal (e, sobretudo, face ao receio de que tal lhe possa suceder), ver-se-á pouco menos que impedida de publicar críticas ou simples notícias, ou de emitir juízos de valor desde que aquelas e estes possam revelar-se adequados a lesar a honra (…) de quem deles seja objecto. Com o que ficaria irremediavelmente prejudicada, não só a legitima “esfera publicitária e privada” da imprensa, mas também a sua função pública enquanto “instituição moral e política” que justamente lhe confere a dignidade de objecto de protecção constitucional.» E, a pag. 135: «em matéria de tutela da honra porque casos há – e mesmo em relação a “homens públicos” – em que a imputação pela imprensa de factos verdadeiros mas ofensivos da sua honra deve ser punível. Em matéria de direito de informação porque casos há também em que a imputação pela imprensa de factos falsos ofensivos da honra das pessoas não deve ser punível.»
Também como se refere no Acórdão do STJ de 17.09.2009, in www.dgsi.pt “Embora a liberdade de imprensa deva respeitar no seu exercício o direito fundamental do bom nome e da reputação, o jornalista não está impedido de noticiar factos verdadeiros ou que tenha como verdadeiros, em séria convicção, desde que justificados pelo interesse público na sua divulgação, podendo este direito prevalecer sobre aqueles desde que adequadamente exercido.
O conceito de “verdade jornalística” não tem que se traduzir numa verdade absoluta, pois, o que importa em definitivo é que a imprensa não publique imputações que atinjam a honra das pessoas e que saiba inexactas, cuja exactidão não tenha podido comprovar ou sobre a qual não tenha podido informar-se convenientemente. Mas esta comprovação não pode revestir-se das exigências da própria comprovação judiciária, antes e apenas utilizar as regras derivadas das legis artis dos jornalistas, das suas concepções profissionais sérias, significando isto que ele terá de utilizar fontes de informação fidedignas, por forma a testar e controlar a veracidade dos factos.
A densificação do conceito de boa fé na divulgação, pela imprensa, de notícias de factos não verdadeiros é de crucial relevo para ajuizar se os réus (jornalistas) dela poderão beneficiar, em termos de excluir a ilicitude duma conduta passível de violação do bom nome e crédito do autor, enquanto imputando a este factos que não se provou ter cometido e em si lesivos da sua reputação, revestindo alguma complexidade.
De acordo com alguma doutrina, transportável para a responsabilidade civil, essa boa fé é composta dos seguintes elementos fundamentais: 1) os factos inverídicos têm de ser verosímeis, ou seja, têm de ser portadores de uma aparência de veracidade susceptível de provocar a adesão do homem normal e não só do informador; 2) o informador terá de demonstrar que procedeu a uma averiguação séria, segundo as regras e os cuidados que as concretas circunstâncias do caso razoavelmente exigiam, provando se necessário que a fonte era idónea ou que chegou a confrontar as informações com várias fontes; 3) o informador terá de demonstrar que agiu com moderação nos seus propósitos, ou seja, que se conteve dentro dos limites da necessidade de informar e dos fins ético-sociais do direito de informar, evitando o sensacionalismo ou os pormenores mais ofensivos ou com pouco valor informativo; 4) o informador deverá demonstrar a ausência de animosidade pessoal em relação ao ofendido a fim de que a informação inverídica não possa considerar-se ataque pessoal”.
Por outro lado, devemos de ter por certo que “Há difamação quando o “leitor médio”, ao ser confrontado com tais expressões, retira claramente do seu conteúdo um significado de achincalhamento, de rebaixamento, de ataque gratuito e de menorização do bom nome e da reputação pessoal, social e política do assistente” – vide Acórdão do TR de Coimbra de 12.10.2016, in www.dgsi.pt.
Acresce que, não se pode olvidar que, como se defende no Acórdão do TR de Coimbra de 21.06.2017, in www.dgsi.pt “A verdade noticiosa não significa, porém, verdade absoluta: o critério de verdade deve ser mitigado com a obrigação que impende sobre qualquer jornalista de um esforço de objetividade e seguindo um critério de crença fundada na verdade, sendo inderrogável o interesse em dar a conhecer aos cidadãos uma matéria que, encontrando-se porventura sujeita ao segredo de justiça, releva do cometimento de irregularidades graves passíveis de configurar a prática de crimes.
Aliás, a liberdade de expressão não pressupõe sequer um dever de verdade perante os factos, mas uma averiguação tanto séria quanto possível e, como é óbvio, salvaguardando sempre o direito de não dar a conhecer as fontes de informação, pois se a verdade de uma afirmação publicada não abonatória, relativa a uma qualquer pessoa singular ou colectiva, estivesse sujeita a uma averiguação posterior da sua veracidade como forma de aferir a sua eventual ilicitude, paralisar-se-ia a actividade jornalística, nomeadamente na área da investigação, em razão de queixas crime, acções cautelares, etc., e assim limitar-se-ia a liberdade de expressão e de informação”.
Também como se alude no Ac. do STJ de 03.06.2009, in www.dgsi.pt “Se as expressões utilizadas pelo demandado no seu escrito constituem um ataque directo à pessoa do demandante, nada têm a ver com uma crítica da sua actuação, pois esta, por muito contundente que seja, exige sempre uma relação com o objecto criticado, e uma relação lógica, racionalmente fundada, o que não exclui a ironia, o humor, mesmo corrosivo, e o tom sarcástico.
Criticar é tomar o objecto da crítica e julgá-lo, pois a crítica tem uma vertente judicativa. Não se exigindo que a actividade judicatória seja necessariamente sisuda e circunspecta, sendo compatível com uma multiplicidade de registos, desde o sério ao cómico, o que é certo é que ela tem de manter uma relação lógica com o objecto criticado e não descambar para o ataque pessoal, sobretudo quando tal ataque entre no domínio da ofensa à honra e consideração das pessoas. Se é verdade que o exercício da liberdade de expressão e de comunicação exigem, muitas vezes, um recuo da tutela da honra, esse recuo há-de ser justificado como meio necessário, adequado e proporcional para o exercício eficaz daquele direito.
O mesmo se diga em relação ao direito de emitir opinião num artigo opinativo. Sendo a opinião de tónica subjectiva, a verdade é que ela tem de partir de um substrato objectivo e manter com ele uma ligação lógica. Podendo expender-se uma opinião, tanto sobre um facto, um acontecimento, como sobre uma pessoa, esta última é sempre mais difícil de aceitar, sobretudo quando se traduz numa opinião desfavorável, porque aí é mais fácil o resvalamento para o domínio do ilícito.
Uma tradição longamente firmada no seio das democracias admite com largueza a crítica e a opinião em certos domínios sociais e sobretudo políticos, aqui envolvendo mesmo os protagonistas. Todavia, a crítica e a opinião não podem ter como único sustentáculo, mesmo aí, o ataque pessoal, sobretudo quando esse ataque é imotivado, cego, ditado pela paixão ideológica ou por um espírito de vindicta ou de ajuste de contas”.
Importa, aqui também, destacar o mencionado no Ac. do TR de Lisboa de 05.06.2012, in www.dgsi.pt ao referir “I - Resulta, designadamente, dos artigos 26.º, 37.º e 38.º da CRP e 70.º do Código Civil, conjugados com o artigo 18º da Constituição, que não deve estabelecer-se em abstracto qualquer relação de hierarquia entre o direito à honra e ao bom nome, por um lado, e o direito de informação, por outro, pois ambos têm idêntica dignidade constitucional: nem o direito de informar é superior ao direito à honra e ao bom nome, nem este é superior àquele, pelo que a prevalência de um direito sobre o outro só pode ser apreciada e valorada perante o caso concreto.
Numa sociedade livre e plural, a existência duma opinião pública bem informada é essencial à convivência em democracia, sendo que, para a formação dessa opinião pública, a liberdade de expressão e de informação constituem elemento fundamental.
Mas o direito à honra, ao bom nome e reputação constitui também pilar fundamental de uma sociedade justa, livre, democrática e defensora dos direitos dos cidadãos.
IV - Com efeito, se numa qualquer sociedade, sob o pretexto da defesa do direito à liberdade de expressão e de informação, fosse possível pôr em causa o direito à honra e ao bom nome, seguramente essa sociedade não seria livre nem democrática e, muito menos, baseada na dignidade da pessoa humana.
V - Não obstante a liberdade de imprensa ter como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei, a verdade é que ela tem de ser exercida de forma a salvaguardar o rigor e objectividade da informação e a garantir o direito ao bom nome e à reserva da intimidade privada.
VI - O direito de informação não é, pois, um direito absoluto, estando limitado por outros direitos igualmente legítimos e constitucionalmente protegidos, pelo que tem de ser exercido com grande preocupação cívica e com respeito pelos seus destinatários, que são os cidadãos em geral.
VII - Em caso de conflito entre o exercício do direito de informar, por um lado, e o direito à honra e ao bom nome, por outro, deve a questão ser resolvidas à luz do princípio da ponderação de interesses, tendo-se sempre em consideração o caso concreto, devendo prevalecer o que se mostre mais relevante e digno de maior protecção jurídica.
VIII - Assim, face a uma notícia que objectivamente seja considerada ofensiva da honra e do bom nome de determinada pessoa, deve ponderar-se desde logo se a notícia prossegue um interesse legítimo, ou seja, digno de protecção jurídica. Se se concluir que a informação prossegue um interesse legítimo (a ausência deste interesse afasta de imediato o exercício do direito de informar), importa analisar se a concreta notícia é verdadeira ou se, pelo menos objectivamente, havia razões para assim ser considerada.
IX - Concluindo-se pela afirmativa (se a notícia é falsa e não havia razões objectivas para a reputar como verdadeira, é manifesta a ilicitude da conduta e a ausência da causa de justificação), impõe-se verificar se a concreta notícia se mantém nos limites necessários e suficientes para o exercício do direito de informar com clareza e completude ou se pelo contrário, de modo desnecessário e desproporcionado, foram utilizados conteúdos e/ou formas que nada esclarecendo ou completando a informação, apenas denigrem o visado na sua honra ou bom nome.
X - Não pode ser considerada ofensiva da honra e bom nome uma notícia publicada num jornal Diário (ainda que não fosse verdadeira), segundo a qual, o Presidente da … se tinha reunido com o …, a quem teria feito a entrega duas queixas-crime, visando uma delas um exvogal da …, uma vez que, perante as circunstâncias do caso, a jornalista tinha fundadas razões para pensar que a notícia era verdadeira e teve o cuidado de não identificar o visado pelo nome”.
Por fim, como se alude no Acórdão do TR de Évora de 01.07.2014, in www.dgsi.pt “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem na recente decisão Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo c. Portugal (3 de Abril 2014, § 36) é claro em considerar que o ordenamento jurídico português contém um remédio específico para a protecção da honra e da reputação no art. 70.º do Código Civil, pelo que a penalização por difamação se deve entender hoje como residual”.
Ora, efectuada esta resenha jurisprudencial, analisados os factos indiciários, cremos que, muito embora a aqui arguida tenha usado de ironia e alguma causticidade no seu texto, a mesma pretendeu exercer o seu direito de emitir opiniões, fazendo-o sobre a actuação política de uma figura pública – o aqui assistente.
Não se olvide que o aqui assistente, ex-autarca, havia sido constituído arguido, num processo crime, detido e sujeito à aplicação de medidas de coacção, pela indiciação de crimes também inerentes às suas funções públicas, como supra referido.
Claro está que trespassa da leitura do dito texto publicado que a arguida faz referência ao uso de um veículo Bentley por parte do assistente.
Afirma o aqui assistente que tal nunca sucedeu.
Refere a arguida que obteve tal informação junto das fontes que utilizou e não pretende divulgar, afirmando serem testemunhas e fontes relacionadas com o dito processo que, atento o estado da investigação não pôde consultar.
Não se apurou, com certeza, nestes autos, se a verdade reside na afirmação do assistente ou do referido pela arguida, relativamente ao uso do dito veículo.
Porém, o que se apurou é que no âmbito do aludido processo denominado “D…” foi arrestado um veículo Bentley, encontrando-se este na titularidade de outro indivíduo, igualmente arguido em tais autos.
Nesse contexto, mesmo a considerar-se que o assistente nunca terá feito uso de tal veículo (o que se admite ser de difícil demonstração), não seria credível ou verossímil a afirmação do contrário que a arguida refere ter obtido?
Cremos que a resposta se impõe positiva e que o texto em causa, atento o contexto já explanado se conteve dentro dos limites dos direitos de informação e de opinião, constitucionalmente consagrados.
A arguida afirma ter tomado como séria e verossímil a informação por si obtida de que o assistente fazia uso de um veículo Bentley. Escuda-se, porém, no seu direito/dever de não divulgação das fontes para não identificar as pessoas por si ouvidas que lhe terão prestado tal informação.
Resulta, contudo, a arguida terá feito diligências no sentido de aferir da existência do veículo Bentley mencionado, tanto mais que ilustrou o seu texto com fotografia da viatura, sendo certo que o mesmo foi efectivamente arrestado no aludido processo “D…”, e no contexto supra descrito seria plenamente verossímil assumir essa informação como verídica.
Acresce referir que muito embora seja evidente que a menção efectuada no texto em causa de que o assistente fazia uso de um veículo Bentley pode ter servido para corroborar a opinião da arguida vertida no aludido texto sobre o desempenho das funções de autarca por parte do assistente, parece-nos claro, igualmente, que as suspeitas de actuação ilícita e até criminosa por parte do assistente nessas mesmas funções e as repercussões dessas mesmas suspeitas na imagem pública da pessoa do assistente e na consideração social de que goza, não advieram, para a opinião pública, de tal menção ao uso da viatura automóvel, mas sim do facto do assistente ter sido constituído arguido no âmbito de um processo crime, ter sido detido, presente para 1º Interrogatório Judicial de arguido detido e sujeito a medidas de coacção pela indiciação da prática de crimes vários, de corrupção passiva para acto ilícito, de tráfico de influência, de peculato e de corrupção activa para acto ilícito, como sucedeu e foi amplamente noticiado pelos meios de comunicação social à data.
Por fim, parece-nos, igualmente, de efectuar uma última alusão ao facto de sendo a referência inverídica efectuada no texto da arguida à circunstância do assistente fazer uso de um Bentley, à mesma o assistente poderia ter-se insurgido de imediato, nomeadamente publicitando, pelo mesmo meio, um artigo em resposta, dando conta da inverdade de tal facto mencionado no texto de opinião, podendo, assim, chegar aos leitores do artigo da arguida, pelo mesmo meio, repondo a verdade sobre esse concreto aspecto.
Parece-nos, ainda, que não resulta indiciado qualquer tipo de intenção de amesquinhamento da pessoa do assistente por parte da arguida através do seu escrito, reportando-se esta à sua actuação pública e política e não à esfera pessoal e íntima do assistente.
Assim se deve concluir que no caso concreto e no confronto entre os direitos à honra (com garantia constitucional no art. 26º da CRP) e a liberdade de expressão, de informação e de liberdade de imprensa (artºs. 37º e 38º da CRP) se mostra justificada a prevalência dos últimos sobre o primeiro, já que a ofensa praticada não atingiu aquele restrito núcleo da esfera da vida privada e apenas muito limitadamente atingiu a esfera de exposição pública do visado.
Aqui chegados, somos a entender que todos os indícios colhidos nos autos apontam para que a actuação da arguida se reveste de um manto de licitude, quer à luz da Constituição, quer à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
E visto que uma e outra têm um valor supra-legal, não pode a conduta da arguida ser objecto de censura pelo Código Penal, visto que este cede perante a Constituição, como é consabido, mas cede ainda diante a Convenção Europeia.
Seja como for, ainda à luz do Código Penal, tendo a arguida actuado no exercício de um direito, a eventual ilicitude penal da sua actuação sempre acabaria por ser excluída, quer por força do funcionamento das dirimentes previstas pelo art. 31º, nºs. 1 e 2, al. b) do Código Penal, quer por via da verificação da específica causa de exclusão da ilicitude prevista no nº. 2 do art. 181º do mesmo Código.
Com efeito, tal como resulta de toda análise acabada de expor, tudo indica que a arguida actuou para realizar interesses legítimos, tendo fundamento para, em boa fé, reputar de verdadeiras as imputações realizadas.
Não podemos, neste quadro, deixar de considerar como altamente improvável uma condenação criminal da arguida em sede de julgamento, podendo o assistente ver noutra sede protegidos os seus direitos, tanto mais que, como supra se disse, a penalização por difamação se deve entender hoje como residual.
Em face desta prova produzida nos autos, entendemos que não resultaram suficientemente indiciados “in casu”, todos os elementos típicos do crime que vem imputado à arguida.
Assim, impõe-se concluir que nos autos não existem indícios suficientes em relação a factos susceptíveis de preencher todos os elementos do crime imputado, apresentando-se como altamente provável a absolvição da arguida, caso fosse submetida a julgamento pelos factos constantes da Acusação Particular deduzida pelo Assistente.
Em conformidade com o exposto, ao abrigo do art. 308º, nº. 1, parte final, do Código de Processo Penal, o Tribunal decide Não Pronunciar a arguida C… pela prática dos factos e, segundo a qualificação jurídica constantes da Acusação Particular contra a mesma deduzida nos autos pelo Assistente. (…)”
III – FUNDAMENTAÇÃO
A - Do objeto do recurso
A decisão recorrida constitui um despacho de não pronúncia.
O assistente recorrente pretende, por via do recurso, que tal decisão seja revogada e determinada a pronúncia da arguida pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de difamação tipificado no artigo 180º, n° 1 do Código Penal, conforme plasmado na acusação particular.
Os sujeitos processuais recorridos – o Ministério Público e a arguida – pugnaram pela confirmação do despacho de não pronúncia.
B - Da decisão instrutória
§ 1 - Conforme constitui entendimento pacífico nos autos, o despacho de não pronúncia recorrido é proferido após o debate instrutório sempre que não existam indícios suficientes que justifiquem a submissão de arguido a julgamento - artigo 308.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal -.
Por seu turno, o artigo 308° do Código de Processo Penal estatui que há lugar a despacho de pronúncia, se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Só a apreciação crítica das provas indiciárias recolhidas no inquérito e na instrução permite fundamentar uma convicção de probabilidade de uma futura condenação ou não, não bastando um mero juízo de carácter subjetivo, antes se exigindo um juízo objetivo fundamentado em relação àquelas provas documentadas nos autos.
É precisamente na avaliação de tais indícios e na sua valoração jurídica à luz da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, da Constituição da República Portuguesa e do Código Penal, que o recorrente sustenta uma posição divergente daquela que foi decidida pelo tribunal “a quo”.
Por conseguinte, impõe-se concretizar o que a lei considera constituírem indícios suficientes.
§ 2 - Dos indícios suficientes
A sua noção legal encontra-se na redação do número 2 do artigo 283° do Código de Processo Penal, considerando o legislador suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de à arguida vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
Compreende-se que essa seja uma das soluções possíveis, uma vez que a fase processual de instrução – que termina com a prolação da decisão instrutória - visa a comprovação judicial de acusar ou não acusar, isto é, pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada à arguida uma pena pelos factos e ilícitos que lhe são imputados, in casu, na acusação particular.
Não se verificando tais indícios, há lugar à prolação de um despacho de não pronúncia.
Essa verificação e subsequente formação da convicção não devem ser proferidas de forma apressada ou precipitada.
Para ser proferido despacho de pronúncia, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes de modo que, logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade da arguida, impondo um juízo de probabilidade no que respeita aos factos que lhe são imputados.
Tal exigência de análise é reforçada pela importância social e pessoal de alguém ser sujeito a julgamento de natureza penal, gerando sequelas proporcionais ao grau de inocência das pessoas injustamente pronunciadas. Num estado de direito democrático, tratando-se de um(a) jornalista a quem foi dirigida uma acusação particular pela prática de um crime de difamação por causa de uma peça jornalística, importa ter também presente que a sua sujeição a julgamento em processo penal só pode ter lugar caso se verifiquem, efetivamente, indícios da prática criminosa imputada, uma vez que uma avaliação menos exigente e, consequentemente, uma pronúncia leviana, poder fazer perigar a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão, que caracterizam o sistema político consagrado no artigo 1º da Constituição da República Portuguesa[4]. Isto, naturalmente, sem prejuízo de garantir os direitos pessoais dos cidadãos garantidos pelo artigo 28º do mesmo texto legal[5]
Também a prova indiciária é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, com a amplitude prevista no artigo 127º do Código de Processo Penal, tendo enquanto pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e de lógica do homem médio.
Exercendo a sua liberdade de convicção, o juiz de instrução criminal apenas tem de indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre a prova indiciária.
Na decisão recorrida, o tribunal identificou o objeto da prova e concretizou na sua fundamentação uma apreciação crítica substancial e fundamentada, contendo os elementos exigidos pelo disposto no artigo 283º, 2 e 3, do Código de Processo Penal, ex vi dos artigos 307º, 1 e 308º, 2, do mesmo texto legal.
§ 3 - Da suficiência ou insuficiência indiciária concreta:
Em primeiro lugar importa referir que não compete ao Tribunal da Relação substituir-se ao tribunal de primeira instância na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia, mas apenas e tão-só apreciar o mérito do recurso, decidindo com base na prova indiciária recolhida, se a mesma é suficiente para a prolação de um despacho de pronúncia ou se, pelo contrário, a mesma justifica a não pronúncia da arguida, conforme decidido.
Conforme já referido, o crime que constitui o objeto do procedimento criminal “in iudicium”, que se encontra na fase de recurso da decisão instrutória, circunscreve-se ao crime de difamação tipificado no artigo 180º, n° 1 do Código Penal, com a base factual descrita na acusação particular.
Importa delimitar os termos das teses em confronto na avaliação da prova indiciária recolhida nos autos.
a) A solução do tribunal recorrido:
O texto publicado da autoria da arguida conteve-se dentro dos limites dos direitos de informação e de opinião, constitucionalmente consagrados.
O assistente poderia ter-se insurgido de imediato, nomeadamente publicitando, pelo mesmo meio, um artigo em resposta, dando conta da inverdade de tal facto mencionado no texto de opinião, podendo, assim, chegar aos leitores do artigo da arguida, pelo mesmo meio, repondo a verdade.
Não resulta indiciado qualquer tipo de intenção de amesquinhamento da pessoa do assistente por parte da arguida através do seu escrito, reportando-se esta à sua atuação pública e política do assistente e não à esfera pessoal e íntima.
No confronto que se estabelece, “in casu”, entre os direitos à honra (com garantia constitucional no artigo 26º da Constituição da República Portuguesa) e a liberdade de expressão, de informação e de liberdade de imprensa (artigos 37º e 38º do mesmo texto legal) mostra-se justificada a prevalência dos últimos sobre o primeiro, já que a ofensa praticada não atingiu aquele restrito núcleo da esfera da vida privada e apenas muito limitadamente atingiu a esfera de exposição pública do visado.
De resto, tendo a arguida atuado no exercício de um direito, a eventual ilicitude penal da sua conduta sempre acabaria por ser excluída, quer por força do funcionamento das dirimentes previstas pelo artigo 31º, 1 e 2, al. b) do Código Penal, como através da verificação da causa de exclusão da ilicitude prevista no nº 2 do artigo 181º do mesmo Código.
Com efeito, tal como resulta de toda análise acabada de expor, tudo indica que a arguida atuou para realizar interesses legítimos, tendo fundamento para, em boa fé, reputar de verdadeiras as imputações realizadas.
Por conseguinte, conclui-se ser altamente improvável uma condenação criminal da arguida em sede de julgamento, podendo o assistente ver noutra sede protegidos os seus direitos, tanto mais que, como supra se disse, a penalização por difamação se deve entender hoje como residual.
Em face da prova produzida nos autos, o tribunal concluiu não terem resultado suficientemente indiciados, “in casu”, todos os elementos típicos do crime que o assistente imputou à arguida.
A conduta indiciada da arguida é lícita, quer à luz da Constituição, quer à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
b) A tese do recorrente:
No dia 23 de junho de 2017, a arguida C…, que é jornalista, escreveu e publicou um artigo de opinião na edição escrita do Jornal F…, em que escreveu, além do mais, que o assistente é proprietário de um "Bentley …, o modelo topo de gama que custa quase meio milhão de euros” situação que sugere que não se compadece com o vencimento-base de "mais ou menos 4000 euros brutos que afirma que o recorrente auferia enquanto autarca, sugerindo também que, assim sendo, o automóvel foi, garantidamente, adquirido ilicitamente, ou pelo menos injustificadamente, pois, pese embora ainda não se saiba "se B… prevaricou ou traficou influência (...) sabemos que em Portugal, não existe sequer uma lei que criminalize o enriquecimento injustificado, nem mesmo uma simples lei que defina as regras sobre os valores máximos dos presentes que os titulares de cargos públicos podem receber."
Acrescentou, ainda, que, "quando ganha cerca de 50% do vencimento base atribuído ao Presidente da República, ou seja, mais ou menos 4000 euros brutos, não deixa de ser curioso que tenha um carro igual ao de Mario Balotelli, o célebre jogador de futebol italiano que não é conhecido por ser pobre."
Ora, sendo falso que o recorrente tivesse ou alguma tenha utilizado, sequer, um Bentley, facto que a arguida gera e enquadra num contexto de práticas criminosas, o recorrente sentiu-se ofendido no seu bom nome, na sua honra, na sua consideração e na sua reputação, tendo, por isso, apresentado queixa e deduzido, posteriormente, acusação particular.
Não pode o recorrente concordar, nem conformar-se, com a fundamentação do Tribunal “a quo”, que se traduz, em suma, no entendimento de que a arguida emitiu uma opinião acerca da atuação política de uma figura pública, o que fez, ainda que com ironia e alguma causticidade, ao abrigo do seu direito de informação, e de emitir opiniões, e com base numa informação cuja fonte não revela, nem tem que revelar.
Porém, a arguida não se limitou a opinar:
a) mas a afirmar algo que sabia ser falso, pois acaba por dizer que o automóvel não é, afinal, do recorrente;
b) além dos factos imputados ao assistente, limitou-se a fazer meras considerações com laivos de ironia, em vez de emitir uma opinião sobre a atuação política de uma figura pública;
c) é evidente que a arguida sabia serem falsos os factos que imputou ao assistente;
O recorrente conclui, assim, quanto ao essencial, mostrarem-se reunidos os indícios da prática do crime tipificado no artigo 180º, n° 1 do Código Penal.
c) A tese do Ministério Público e da arguida:
Os sujeitos processuais recorridos defenderam a manutenção da não pronúncia, essencialmente, com base na fundamentação constante da decisão instrutória, impugnando as considerações de facto e de direito plasmadas pelo recorrente e podendo sintetizar-se a sua posição na conclusão de que o artigo de opinião foi redigido ao abrigo da liberdade de expressão e de opinião da sua autora, no contexto de uma imprensa livre, como é próprio de um regime democrático.
*
Apreciando e decidindo.
Cumpre caracterizar o ilícito criminal identificado pelo assistente – sendo certo que, quanto aos contornos jurídicos do tipo legal de crime, tanto o Tribunal, como recorrente e recorridos estão de acordo - e analisar a prova indiciária junta aos autos, de modo a aferir se, de acordo com a motivação do recurso, a mesma é apta a fundamentar um despacho de pronúncia ou antes, conforme decidido pelo Tribunal “a quo”, um despacho de não pronúncia.
Comete o crime de difamação (artigo 180º do Código Penal) quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduza uma tal imputação ou juízo.
O crime de difamação, inserido no capítulo dos crimes contra as pessoas, é um crime, por natureza, doloso.
O bem jurídico tutelado pela sua incriminação, é constituído pela honra[6] e consideração - que a Constituição da República Portuguesa garante aos cidadãos, nos termos do disposto no seu artigo 28º -.1, devendo ser compreendido no contexto de uma relação social dinâmica, necessariamente concreta e por vezes conflituante, como forma de garantir o desenvolvimento da pessoa humana ao permitir uma participação livre dentro do espaço político-social de que faz parte, de modo a permitir não só o seu próprio desenvolvimento, como o progresso da própria comunidade[7].
Um facto é algo real, objetivo, enquanto um juízo é sempre uma representação conclusiva e, por isso, eminentemente pessoal.
Relativamente aos elementos subjetivos do tipo legal de crime, os mesmos mostram-se preenchidos quando o agente atua com consciência de que a sua conduta - isto é, o facto ou juízo imputados a terceiro -, é objetivamente adequado a desacreditá-lo socialmente, sendo como tais compreendidos pelos destinatários”.
A jurisprudência entende, de forma atualmente unívoca, que basta o dolo genérico, em qualquer uma das suas formas (direto, necessário ou eventual) previstas no artigo 14º, 1, 2 e 3, do Código Penal.
No entanto, conforme entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência, tanto nacional, como estrangeira, "o juízo de valor desonroso não é ilícito quando resulta do exercício da liberdade de expressão (…) numa sociedade democrática e tolerante. (acórdão do TRP, de 31.1.1996, in C.J. XXI, 1, 242). (…) Nestes casos, de crítica legítima, o visado pela crítica não pode apelar à tutela da sua reputação como parte integrante da sua "vida privada" pelo artigo 8º da CEDH (acórdão do TEDH Karako v. Hungria, de 28.4.2009, que distingue claramente entre a reputação e a "integridade pessoal").
Importa assegurar a liberdade de expressão até ao limite a partir do qual deixa de constituir um instrumento ao serviço do estado de direito democrático para passar a ser uma forma de achincalhamento da integridade pessoal.
A decisão instrutória concretiza os factos considerados indiciados e não indiciados:
Factos indiciados:
1 - No dia 23 de junho de 2017, a arguida escreveu e publicou um artigo de Opinião na edição escrita do Jornal F… desse dia, disponível online no endereço: https://www.F....pt/2017/06/23/politica/opiniao/um-bentley-em-K...-1776579, com o teor constante de fls. 10 a 15, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.
2 - Tal artigo veio a ser partilhado, pelo menos, 2769 vezes nas redes sociais.
3 - Da leitura do artigo em causa decorre que o assistente usava um veículo automóvel de marca Bentley, situação que a arguida sugere que não se compadece com o vencimento que o assistente auferia de “mais ou menos 4000 euros brutos” como autarca.
4 - A arguida refere, entre o mais: “Não sabemos se B… prevaricou ou traficou influência – e infelizmente vamos ter de esperar muito tempo para ter respostas. Mas sabemos que em Portugal não existe sequer uma lei que criminalize o enriquecimento injustificado, nem mesmo uma simples lei que defina regras sobre os valores máximos dos presentes que os titulares de cargos políticos podem receber”.
5 - A arguida reportou-se a situações de ofertas a titulares de cargos públicos, referindo também que “O “seu” Bentley … não era seu. Está em nome de um empresário seu conhecido. O ex-presidente da Câmara só andava com ele”.
6 - No processo denominado “D…”, onde figura como arguido o aqui assistente, foi arrestado um Bentley.
7- O veículo Bentley arrestado no âmbito do processo denominado “D…” encontra-se na titularidade de outro arguido nesse processo, concretamente E….
8 - No processo de Inquérito nº. 448/16.9 T9VFR, denominado “D…”, o aqui assistente foi constituído arguido, conjuntamente com outros indivíduos, tendo aí sido arrestados vários bens.
9 - Em tal processo ao aqui assistente é imputada indiciariamente a prática dos seguintes ilícitos criminais: 8 crimes de corrupção passiva para acto ilícito, ps. e ps. pelo art. 17º, nº. 1 da Lei nº 34/87 de 16.07; 2 crimes de tráfico de influência, ps. e ps. pelo art. 335º, nº. 1, al. a) do Código Penal; 1 crime de peculato, p. e p. pelo art. 20º da Lei nº. 34/87 de 16.07; 13 crimes de corrupção activa para acto ilícito, ps. e ps. pelo art. 18º, nº. 1 da Lei nº. 34/87 e art. 374º, nº. 1 do Código Penal.
Factos não suficientemente indiciados:
Todos os demais elencados na Acusação Particular deduzida e, em particular:
1 - Com a leitura do artigo em causa os leitores puderam ficar convencidos que o assistente é proprietário de um “Bentley …, o modelo topo de gama que custa quase meio milhão de euros”.
2 - O assistente conduzia pelas ruas de K… um Bentley.
3 - O assistente não conduzia pelas ruas K… um Bentley.
4 - A arguida inventou que o assistente possuía ou usufruía do veículo Bentley.
5 - A propósito do processo em que o aqui assistente foi constituído arguido o facto mais comentado pela generalidade das pessoas foi a referência ao Bentley efetuada no artigo da aqui arguida.
6 - O texto escrito pela arguida apenas se destinou a fazer um pré-julgamento do aqui assistente, em praça pública, declarando-o culpado.
7 - A arguida agiu com intenção de ofender o bom nome, a honra, a consideração e a reputação do assistente.
8 - A arguida agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta lhe era proibida por lei e que com a mesma atentava contra a honra e consideração do assistente.
9 - Era do inteiro conhecimento da arguida a falsidade dos factos mencionados no seu artigo, no que ao uso do veículo Bentley se refere, e a arguida não tinha fundamento para os tomar como verdadeiros.
O tribunal concretizou uma análise crítica dos indícios recolhidos no processo, de modo a apurar a factualidade indiciada e, com base nessa avaliação, optou pela não pronúncia da arguida pela prática do crime de difamação.
Importa, ora, aferir os argumentos aduzidos pelo recorrente.
Procurando sintetizar as passagens da motivação de recurso que relevam para o objeto do processo, de modo a salientar o seu conteúdo substancial, o teor do artigo de opinião publicado no jornal diário «F…», da autoria da arguida, revela que esta não se limitou a “opinar”, mas a produzir de forma deliberada e consciente afirmações que sabia serem falsas, concretamente, que o assistente é proprietário e usufrui de um veículo da marca Bentley, modelo …, cujo preço de aquisição ronda meio milhão de euros - apesar de se encontrar em nome de uma terceira pessoa -, enquadrando a arguida tal propriedade num contexto de práticas criminosas.
Em consequência dessa imputação, o recorrente afirmou-se ofendido no seu bom nome, na sua honra, na sua consideração e na sua reputação.
Porém, como bem decidido pelo tribunal “a quo”, tal facto não resultou indiciado, mostrando-se o recorrente claramente equivocado.
Basta ler o teor da peça jornalística em discussão, para se perceber que a única referência a um dono de um Bentley do modelo é referente a David Beckham – e este não é o assistente B… -.
Em segundo lugar, para sustentar que a arguida sabia ser falsa a imputação de tais factos, o assistente limita-se a sustentar a motivação de recurso no seguinte:
a. a arguida acaba por reconhecer, no mesmo artigo, que o automóvel não é, afinal, do recorrente;
b. é evidente que a arguida sabia serem falsos os factos que imputou ao assistente.
Para tanto, concretiza uma interpretação pessoal, subjetiva, do teor da publicação que, por ser objetiva, deve ser valorada pelo seu texto – e não à luz das considerações arrojadas do recorrente -, como adiante se concretizará.
Finalmente, com interesse quanto ao dever, ou não, da autora do texto publicado revelar as fontes jornalísticas em que se baseou para afirmar a factualidade acima exposta, o assistente também discorre sobre a natureza do artigo publicado no jornal, discordando tratar-se de um artigo de opinião, uma vez que a arguida, jornalista de profissão, limitou-se a fazer meras considerações com laivos de ironia, em vez de emitir uma opinião sobre a atuação política de uma figura pública.
O recorrente conclui, assim, quanto ao essencial, mostrarem-se reunidos os indícios da prática do crime tipificado no artigo 180º, n° 1 do Código Penal.
Porém, sem a menor razão, pelas razões a seguir concretizadas:
O autodenominado artigo de opinião redigido pela arguida, jornalista de profissão[8], tem um teor preciso, que importa escalpelizar – não enquanto análise estilística, mas enquanto ao seu teor substancial -: um escrito, enquanto instrumento de comunicação, tem de ser compreendido enquanto tal. Não importa, diretamente, para efeitos de preenchimento do tipo legal de crime, qualificar o texto em causa enquanto “notícia” elaborada por jornalista – sujeita, por isso, aos deveres deontológicos dos jornalistas[9] – ou como artigo de opinião.
Nem cumpre explicitar neste patamar de análise jurídico-penal se a senhora jornalista está ou não sujeita aos seus deveres deontológicos, quando se limita a publicar no jornal onde exerce a sua atividade profissional um “mero” artigo de opinião, em que também acaba por plasmar factos que podem ser classificados de notícia.
O que importa para decidir o objeto do recurso é compreender o teor do texto publicado e interpretá-lo, de modo a aferir, primeiramente, se estão ou não reunidos, indiciariamente, os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de difamação – e, só no caso de se obter uma resposta positiva a essa questão, analisar se o caso evidencia alguma causa de exclusão de culpa ou de ilicitude -.
O cerne do texto alude a factos concretos, que o ora assistente e recorrente não impugna, antes confirma:
“(…) B…, que foi deputado, dirigente nacional do I…, secretário de Estado do Desporto de J… e presidente da Câmara K… entre 2009 e 2016, foi detido esta semana por suspeita de crimes de corrupção, prevaricação, peculato e tráfico de influência. Com ele, foram também detidos L…, que o sucedeu na autarquia, um funcionário da câmara e quatro empresários. A Polícia Judiciária arrestou 15 imóveis, seis milhões de euros e seis carros de luxo. Um deles é um Bentley …, o que os especialistas definem como “modelo de entrada”, ou seja, o Bentley mais barato. Custa entre 234 mil e 314 mil euros. (…) ”

Depois o mesmo artigo alude à circunstância do ora assistente guiar um Bentley, o que o ora assistente refutou como sendo verdade:

“(…) O que B… guiava é bem mais discreto do que o Bentley … de Paris Hilton, o Bentley … de David Beckham, o Bentley descapotável de Schwarzenegger e Sylvester Stallone, ou o Bentley … do príncipe William. Nada a dizer sobre isso. E nada a dizer sobre quem ganha para comprar um Bentley. Mas quando um autarca ganha cerca de 50% do vencimento-base atribuído ao Presidente da República, ou seja, mais ou menos 4000 euros brutos, não deixa de ser curioso que tenha um carro igual ao de Mario Balotelli, o célebre jogador de futebol italiano que não é conhecido por ser pobre.(…)”

Porém, contrariando a tese do recorrente, a decisão instrutória considerou não indiciado que o assistente não tenha conduzido pelas ruas de K… um veículo da marca Bentley - e, também, o seu oposto -. Em suma, não se apurou nos autos se esse facto relatado no artigo de jornal corresponde, ou não, à verdade.
Apesar disso, o assistente recorrente alega ter a arguida inventado tal facto. Tal alegação na motivação de recurso constitui uma impugnação da decisão em matéria de facto indiciada contida no despacho de não pronúncia. Porém, fê-lo, sem o menor suporte probatório indiciário, o que determina a confirmação daquela decisão, que se mostra devidamente fundamentada.
O recorrente manifestou ainda na sua motivação de recurso que a arguida enquadrou a utilização do aludido veículo, pelo assistente, num contexto de práticas criminosas.
Porém, em oposição ao sustentado pelo recorrente, o texto evidencia uma realidade diametralmente distinta:
“(…) Não sabemos se B… prevaricou ou traficou influência — e infelizmente vamos ter de esperar muito tempo para ter respostas. Mas sabemos que em Portugal não existe sequer uma lei que criminalize o enriquecimento injustificado, nem mesmo uma simples lei que defina regras sobre os valores máximos dos presentes que os titulares de cargos políticos podem receber. (…)

Apesar de não ter feito uma associação expressa da utilização do automóvel de luxo a práticas criminosas do arguido, a arguida não deixou de levantar tal suspeição. No entanto, a mesma compreende-se no contexto global do artigo, em que refere a detenção do ora assistente por suspeita de crimes de corrupção, prevaricação, peculato e tráfico de influência, bem como a apreensão do já muito citado veículo automóvel.
Esta última passagem do texto citada é esclarecedora quanto ao preenchimento, ou não, dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime que o assistente imputou, indiciariamente, à arguida na sua acusação particular - não acompanhada pelo Ministério Público e cujos termos foram reiterados na motivação de recurso -: a arguida declarou, expressamente, não saber se o ora assistente “prevaricou ou traficou influência” (tipos de crime pelos quais o ora assistente foi detido, na semana de publicação do artigo, por suspeita da prática de crimes de corrupção, prevaricação, peculato e tráfico de influência).
Tendo a arguida feito constar do texto desconhecer se a condução do veículo muito dispendioso estará, ou não, relacionada com as práticas criminosas pelas quais o ora assistente foi detido, por ser (mero) suspeito, não se poderá concluir, contrariamente ao proposto pelo recorrente, que tais referências possam ser consideradas ofensivas da sua honra e dignidade. Importa ter também presente que o recorrente não é um cidadão comum, tratando-se de uma personalidade pública sujeita a grande exposição e, por conseguinte, escrutinado também publicamente por jornalistas, comentadores e demais concidadãos.
É neste enquadramento que se integra o texto que é objeto da controvérsia suscitada pelo ora assistente: contrariamente ao afirmado pelo recorrente, toda a construção da peça jornalística evidencia uma intenção comunicacional da autora, que exclui, indiciariamente, o dolo exigido pelos elementos subjetivos do tipo legal de crime de difamação, uma vez que todas as referências ao arguido são meramente instrumentais: a mensagem central que o texto publicado no jornal evidencia é a seguinte: “(…) em Portugal não existe sequer uma lei que criminalize o enriquecimento injustificado, nem mesmo uma simples lei que defina regras sobre os valores máximos dos presentes que os titulares de cargos políticos podem receber.”.
Tendo o ora assistente sido detido por suspeitas de crimes de corrupção, prevaricação, peculato e tráfico de influência (beneficiando, necessariamente, da presunção de inocência - que a autora do texto também não coloca em causa, ao escrever “(…) Não sabemos se B… prevaricou ou traficou influência (…) - )”[10], o que constitui o facto principal, mais apto a colocar em causa a sua imagem pública, não se compreende como a sua honra e consideração possam ter ficado apenas afetadas pelo acessório (a utilização de um veículo muito dispendioso, inacessível a quem apenas aufira o vencimento de um cargo de Presidente de Câmara Municipal). É que tal luxo pode ser explicado, designadamente, por outros rendimentos lícitos – como a própria arguida acaba por admitir no seu texto, salientando, apenas, tratar-se de uma curiosidade com interesse para reforçar a sua opinião, ao defender a introdução de uma lei em Portugal que criminalize o enriquecimento injustificado ou uma mera lei que defina regras para recebimentos de presentes por titulares de cargos públicos.
O escrutínio público de titulares ou ex-titulares de cargos políticos em Portugal envolve, também, o seu comportamento público e o seu património, de modo a assegurar a confiança entre eleitos e eleitores, entre os cidadãos e o próprio regime político republicano e democrático. Os políticos ou ex-políticos não têm o direito à reserva da “vida pública”, onde se inclui não só a sua atividade profissional e política, mas também a sua imagem pública compreendida enquanto conduta pública.
O artigo não chega a imputar ao ora assistente, em termos objetivos, qualquer suspeita, facto, ou juízo, ofensivo da sua honra e consideração, quando analisado no seu devido contexto. Limita-se a levantar, substancialmente, questões relacionadas com política legislativa, inspiradas pela detenção do ora assistente por suspeitas de diversos crimes, já aludidos e contextualizados com a apreensão de diversos bens de elevado valor, entre os quais o veículo automóvel de luxo referenciado, que não pertence formalmente ao ora assistente, mas que a articulista se declara convencida pertencer-lhe.
O facto descrito no artigo suscetível de colocar em causa a honra e consideração do ora assistente é a notícia da sua detenção por suspeitas da prática dos crimes já aludidos.
Porém, não foi esse que o ora assistente valorou como ofensivo.
A mera notícia da condução de um veículo especialmente dispendioso por um titular ou ex-titular de cargo público, cujo preço de aquisição é incomportável para quem aufere apenas o vencimento do exercício da função pública – facto que a autora do texto classificou de estranho – não pode ser considerado ofensivo da sua honra e consideração, mas apenas uma “curiosidade”, tal como referido pela articulista.
Essa conclusão é reforçada pela circunstância de se desconhecer, em termos indiciários, se tal facto descrito no artigo jornalístico corresponde, ou não à verdade, fragilizando ainda mais as pretensões do recorrente.
Pelo exposto, não foram apurados indícios do preenchimento do elemento objetivo do tipo do crime de difamação.
Por outro lado, a intenção da arguida, ao escrever o artigo, resulta objetivamente do texto publicado no jornal, visando, objetivamente, fundamentar a sua opinião expressa que defende a necessidade de uma reforma legislativa quanto ao enriquecimento injustificado ou uma mera lei que defina regras para recebimentos de presentes por titulares de cargos públicos.
O texto não indicia qualquer modalidade de dolo respeitante ao facto ou juízo imputado ao ora assistente, que possa ser considerado objetivamente adequado a desacreditá-lo socialmente e, por conseguinte, também não se mostra preenchido o elemento subjetivo do tipo legal de crime que constituiu objeto da acusação particular.
Por conseguinte, impõe-se julgar o recurso não provido, confirmando-se o despacho de não pronúncia.

Das custas
Sendo o recurso julgado não provido, o recorrente deverá ser condenada no pagamento das custas [artigos 515º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal e 8º, nº 9, do R.C.P., tendo por referência a Tabela III anexa a este texto legal], fixando-se a taxa de justiça individual, de acordo com o grau de complexidade médio do recurso, em 4 (quatro) unidades de conta.
*
IV – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes subscritores, por unanimidade e em conferência:
a) negar provimento ao recurso do assistente B….
b) condenar o assistente no pagamento das custas pelo decaimento no recurso, fixando-se a respetiva taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.
Porto, em 11 de Setembro de 2019.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
_________________________
[1] “(…) Em obediência ao princípio da economia processual, dá-se por integralmente reproduzida a fundamentação da decisão de não pronúncia na medida em que fez uma correcta aplicação do direito aos factos em apreço, rejeitando os esforços censórios do assistente que procura, em concreto, silenciar, intimidar e castigar uma opinião livre, mas também intimidar todos aqueles que tenham a veleidade”. (…)”
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[3] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme por todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[4] “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.”
[5] “A todos são reconhecidos os direitos (…) ao bom nome e reputação, à imagem (…) à reserva da intimidade da vida privada (…).”
[6] A honra é vista (...) como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação e ou consideração exterior”- José Faria Costa, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Vol. I, p. 607.
[7] Conforme referido no nosso acórdão relatado em 23 de Janeiro de 2019 (processo nº 2252/16.5T9VNG.P1).
[8] Redatora principal do jornal, segundo consta no endereço https://www.F....pt/autor/C..., da rede digital global.
[9] Com interesse neste âmbito, recorda-se o ponto 1 do Código Deontológico do Jornalista, aprovado em 4 de maio de 1993, em assembleia-geral do Sindicato dos Jornalistas:
1. O jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.
[10] Num processo em que, segundo noticiado e não impugnado, há mais arguidos e foram apreendidos 15 imóveis, seis milhões de euros e seis carros de luxo, entre eles o veículo referenciado nos autos.