Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1024/10.5TYVNG-N.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO VILARES FERREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR JUDICIAL
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL
Nº do Documento: RP202304181024/10.5TYVNG.P1
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; DECISÃO REVOGADA.
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A remuneração do Administrador Judicial integra uma componente fixa e uma componente variável.
II – A majoração de 5% prevista no art. 23.º, n.º 7, do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ) deve ser calculada sobre o montante disponível para a satisfação dos créditos (montante dos créditos satisfeitos) e não sobre a percentagem dos créditos verificados que venha a ser satisfeita com o mesmo montante.
III – O limite de 100.000€ previsto no art. 23.º, n.º 10, do EAJ, representa o teto máximo para a remuneração variável no seu todo, e não apenas o limite da componente da remuneração sem a majoração.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO N.º 1024/10.5TYVNG-N.P1
[Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 4]

Relator: Fernando Vilares Ferreira
Adjunto: Alberto Taveira
Adjunta: Maria da Luz Seabra


SUMÁRIO:
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EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Desembargadores da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I.
RELATÓRIO
1.
No processo principal de insolvência de pessoa coletiva n.º 1024/10.5TYVNG:
1.1 - Em 03.06.2022, veio o Senhor Administrador da Insolvência apresentar o cálculo da sua remuneração variável, considerando para o efeito as alterações introduzidas ao Estatuto do Administrador Judicial (EAJ) pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, pedindo a final a fixação da mesma no montante de 238.065,92€, acrescida de IVA à taxa legal em vigor (54.800,94€), perfazendo o total de 293.065,92€, seguindo-se a apresentação de proposta de rateio final em conformidade.
1.2 – Em 09.06.2022, veio a Credora Banco 1... (Banco 1...) impugnar o mapa de rateio, sustentando não poder a remuneração do Senhor Administrador Judicial ser calculada de acordo com a nova lei, pedindo consequentemente a reformulação em conformidade.
1.3 – Em 29.09.2002, o Senhor Escrivão de Direito elaborou o seguinte “termo de apreciação da proposta de rateio”:
[(…) nos termos do nº 4 do artº. 182 do CIRE, o Contador apreciou as propostas de cálculo de remuneração variável e de rateio final apresentadas pelo Sr. AI em 03.06.2022 (refs. 32460560 e 32460567) e pronuncia-se nos seguintes termos:
Proposta de remuneração variável: salvo melhor opinião, o cálculo da RV apresentado pelo Sr. AI, não estará de acordo com a nova fórmula de cálculo instituída pela Lei 9/2022 de 11 de janeiro, que entrou em vigor em 11.04.2022 e que procedeu à alteração do Estatuto do Administrador Judicial, uma vez que:
- no item - Majoração da Remuneração Variável do A.I. - art.º 23º, nº 7, EAJ – do cálculo ora apresentado, não foi apurado o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, nos termos do disposto no nº 7 do artº. 23 do EAJ na redação dada pela lei acima mencionada, mas apenas aplicada uma percentagem de 5%, sobre o valor dos créditos a satisfazer;
Salvo melhor opinião, a operação de majoração deverá assentar na consideração de dois fatores:
1º - o grau de satisfação dos créditos reclamados e reconhecidos;
2º - aplicação de uma percentagem de 5% sobre o valor dos créditos satisfeitos depois de apurado o grau de cobertura dos créditos admitidos e reconhecidos;
No caso em apreço, o cálculo apresentado, ao não considerar o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, limita-se "grosso modo" a um cumular da aplicação da percentagem de 5% + 5% sobre o resultado da liquidação.
Proposta de Mapa de Rateio Final: uma vez que a RV influencia o valor a ratear, o rateio final estará sempre dependente da decisão que recair sobre aquela, sendo certo, que o mapa de rateio final respeita a graduação decidida por sentença proferida no apenso C.]
1.4 – O Ministério Público manifestou concordância com aquele “termo de apreciação de proposta de rateio”.
1.5 – Após prolação de despacho em 17.10.2022, nova decisão foi proferida em 13.12.2022, esta nos seguintes termos:
[Refª 33780754 de 7/11/2022: o despacho proferido a 17/10/2022 pretendia ser de mero expediente, instigando o senhor Administrador da Insolvência a refazer o cálculo da remuneração variável e mapa de rateio em conformidade, caso com isso concordasse.
Por esse motivo, não foi sequer fundamentado.
Tal despacho não é susceptível de recurso, nos termos do art. 630º, nº 1 do Código de Processo Civil, pelo que não admito o recurso em apreço.
Notifique.
*
Considerando que o senhor Administrador da Insolvência não aceitou refazer o cálculo da remuneração variável e mapa de rateio passamos agora a elaborar decisão explicando os fundamentos pelos quais entendemos que o seu cálculo não se mostra correcto, decisão, essa sim, de que poderá recorrer, caso entenda.
A 11 de janeiro de 2022 foi publicada a Lei nº 9/2022, que alterou, para além do próprio Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, também o Estatuto do Administrador Judicial.
De entre as várias alterações, houve uma que tem levantado especial discussão, e que tem a ver com o cálculo da remuneração variável dos senhores Administradores da Insolvência em processo de insolvência.
Quanto a esta matéria, dispõe agora o art. 23º, nº 4 do Estatuto do Administrador Judicial que “Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
a) 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;
b) 5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6”.
O nº 6 desta norma estabelece o que se considera ser o resultado da liquidação como “o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência”.
Finalmente, acrescenta o nº 7 que “O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles”.
E é sobre esta majoração que incide a divergência entre o senhor Administrador da Insolvência e a Secção.
No cálculo apresentado pelo senhor Administrador da Insolvência verificamos que este não considera o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, limitando-se a uma aplicação da percentagem de 5% + 5% sobre o resultado da liquidação (deduzidas das despesas, custas e remuneração).
Ora, não podemos de todo acompanhar esta posição, que se nos afigura contrária à letra da lei.
Da leitura deste nº 7 resulta de forma clara que a majoração prevista na norma obedece a um factor que não pode ser escamoteado, sob pena de se negar o que está escrito na lei: a majoração é efectuada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, concretamente, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos.
Assim, em resumo, o cálculo da remuneração variável assenta na realização de duas operações:
a) a primeira, prevista no nº 4, sobre o resultado da liquidação da massa insolvente deduzida dos montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência;
b) a segunda, prevista no nº 7, que implica uma majoração em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, através da aplicação de uma percentagem (5%) sobre o montante dos créditos satisfeitos.
O cálculo apresentado pelo senhor Administrador da Insolvência não obedece à letra da lei, pois não realiza esta segunda operação.
Deve, por isso, ser corrigida.
Termos em que indefiro o cálculo da remuneração variável realizado pelo senhor Administrador da Insolvência.
Proceda a Secção ao cálculo da remuneração variável, nos termos supra expostos, isto é, considerando o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, nos termos determinados pelo nº 7 do art. 23º do Estatuto do Administrador Judicial.]
2.
Não se conformando com a dita decisão de 13.12.2022, o Sr. Administrador da Insolvência, AA, veio interpor o presente recurso de apelação, com subida em separado e efeito devolutivo, assente nas seguintes CONCLUSÕES:
I) O presente recurso fundamenta-se na desajustada interpretação/aplicação do direito tecida no douto Despacho com a refª: 443115787, proferido em 14-12-2022, o qual foi notificado ao aqui Recorrente sob a refª: 443258538, no âmbito do qual foi determinado o indeferimento do cálculo do montante da remuneração variável oportunamente impetrado nos autos pelo Sr. Administrador de Insolvência, Dr. AA, aqui Apelante.
II) Nessa conformidade o presente recurso fundamenta-se numa desajustada interpretação/aplicação do direito efetuada em sede do douto Despacho de que se recorre, maxime, relativamente ao entendimento ali propugnado acerca dos critérios aplicados no cálculo da remuneração variável, verbi gratia: sobre as disposições conjugadas dos n.ºs 1, 2 e 3 do art.º 9.º do Código Civil, e bem assim do preceituado nos n.ºs 1, 4, 5, 6, 7, 8 e 10 do art.º 23.º da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro (EAJ), n.º 1 do art.º 129.º do CIRE.
III) No pregresso dia 03/06/2022 o aqui Apelante, apresentou nos Autos um requerimento sob a refª 42472287 com o pedido de fixação da Remuneração Variável do AI.
IV) Em sentido divergente, foi elaborado pelo Sr. Escrivão de Direito, de seu nome, BB, um Termo de Apreciação da Proposta de Rateio, sob a refª: 440580045.
V) O predito Termo de Apreciação da Proposta de Rateio, sob a refª: 440580045, foi objecto de visto por parte do Digníssimo Magistrado do Ministério Público, refª: 440857826, o qual acompanhou o mesmo.
VI) Nesta decorrência, foi proferido o Despacho sob a refª: 441038502 com data de elaboração de 17/10/2022, o qual foi notificado ao aqui Recorrente sob a refª: 441268103, cujo qual e em súmula, indeferiu o cálculo da Remuneração Variável apresentado por aquele à luz do texto normativo do EAJ, na redação conferida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro.
VII) Mais sucedeu que o Despacho vindo de referir-se, foi objeto da interposição de um primevo recurso por parte do ora Apelante, o qual deu entrada em juízo no pregresso dia 07/11/2022, sob a refª 33780754, o qual foi liminarmente indeferido pelo Tribunal “a Quo”.
VIII) Os motivos da discordância radicam na circunstância do regime da remuneração variável do administrador judicial visar estimular a criação de condições que permitam ao devedor alcançar a melhor situação líquida possível ou, em caso de liquidação, a satisfação dos credores do devedor na maior medida possível.
IX) Também o regime da majoração previsto no art.º 23.º, n.º 7, do EAJ visa criar incentivos para que o administrador judicial atue de forma diligente procurando a satisfação de um montante mais elevado dos créditos reclamados e admitidos.
X) Tudo isto com um limite máximo quanto à remuneração variável calculada segundo o disposto no art.º 23.º, 4, b), do EAJ, que não pode ultrapassar os 100.000€ (art.º 23.º, 10, do EAJ), e através da possibilidade de o juiz poder realizar ajustes quando o total da remuneração exceder 50.000€ por processo.
XI) No âmbito de um processo de insolvência de liquidação, a majoração a efetuar nos termos do art.º 23.º, 7, do EAJ deve ser calculada a partir do montante dos créditos satisfeitos, aplicando-se a esse montante a percentagem de 5%.
XII) O montante dos créditos satisfeitos é o montante a distribuir pelos credores quanto aos seus créditos reclamados e admitidos, mas antes de retirado o próprio valor da majoração.
XIII) Tratando-se de processos de recuperação, na majoração prevista no art.º 23.º, 7, também terão de ser considerados os créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.
XIV) Assim, a referência a um «grau» de satisfação feita no n.º 7 do art.º 23.º do EAJ não significa que tenha de efetuar-se uma primeira operação para reduzir o valor sobre o qual incidirá a percentagem de 5% ou uma primeira operação para reduzir o valor da percentagem a aplicar ao montante dos créditos satisfeitos.
XV) E muito menos há que aplicar a tabela que surgia no Anexo II da Portaria 51/2005.
XVI) Somos conduzidos à leitura acima defendida, antes de mais, pelo elemento literal da interpretação, pois o art.º 27.º, 3, do EAJ estabelece que a majoração ali prevista corresponde a 5% do montante dos créditos satisfeitos.
XVII) O facto de o art.º 23.º, 7, do EAJ estabelecer que a majoração é realizada «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» não significa que, onde está escrito que a majoração tem lugar «em 5% do montante dos créditos satisfeitos», deva ler-se outra coisa.
XVIII) Com efeito, a expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» pretende tornar claro, desde logo, que os créditos satisfeitos que contam para a majoração são os que se incluam nos créditos reclamados e admitidos.
XIX) Tanto mais que, como resulta do art.º 129.º, 1, do CIRE, créditos há que podem vir a ser satisfeitos e que não foram reclamados e admitidos.
XX) Assim, os 5% da majoração referidos no art.º 23.º, 7, do EAJ nunca poderão incidir sobre um valor que exceda o montante dos créditos reclamados e admitidos, assim se criando estímulos que visam impedir comportamentos oportunísticos.
XXI) O facto de a majoração em causa ter lugar em 5% do montante dos créditos satisfeitos ainda significa que é calculada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pois quanto maior for o montante dos créditos satisfeitos, maior será o valor da majoração.
XXII) O que não tem apoio na letra da lei é a leitura segundo a qual 5% do montante dos créditos satisfeitos são 5% ou menos dos créditos satisfeitos.
XXIII) A leitura acima defendida quanto ao sentido do art.º 23.º, 7, do EAJ encontra ainda apoio no elemento histórico da interpretação, pois aquele preceito já não faz qualquer referência a uma portaria que determinasse o modo de proceder à majoração.
XXIV) A Portaria 51/2005, de 20 de janeiro, não pode considerar-se convocada pelo art.º 23.º, 7, do EAJ e, por isso não pode condicionar hoje a leitura da expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» que surge naquele preceito.
XXV) Também o elemento sistemático da interpretação dá apoio à leitura do art.º 23.º, 7, do EAJ sustentada pelo Recorrente, pois o art.º 23.º, 8, daquele Estatuto já prevê a possibilidade de o juiz ter em conta, designadamente, os resultados obtidos para determinar que a remuneração devida para além de 50.000€ seja inferior à que resultaria dos critérios legais.
XXVI) Se o art.º 23.º, 7, do EAJ significasse que a majoração teria lugar por aplicação de uma percentagem de 5% ou inferior, consoante a proporção dos créditos satisfeitos, o interesse do administrador judicial em receber uma remuneração justa e equitativa seria prejudicado duas vezes sem razão para tal: seria prejudicado uma vez pela redução da percentagem que incidiria sobre o montante dos créditos satisfeitos e outra vez pela redução da remuneração que excedesse o montante de 50.000€ por processo por determinação do juiz tendo em conta os resultados obtidos.
XXVII) O elemento teleológico da interpretação confere ainda mais apoio à posição sufragada pelo Apelante, pois a Lei n.º 9/2022 pretendeu transpor para a ordem jurídica nacional a Directiva 2019/1023 e o art.º 27.º, 4, desta última estabelece que os «Estados-Membros asseguram que a remuneração dos profissionais se reja por regras que sejam compatíveis com o objetivo de uma resolução eficiente dos processos».
XXVIII) E a remuneração dos administradores judiciais cria maiores estímulos a esses profissionais no sentido de uma resolução eficiente dos processos quando o montante daquela aumenta de forma clara e transparente à medida que aumenta o montante dos créditos satisfeitos.
XXIX) É isso que se consegue com a interpretação do art.º 23.º, 7, do EAJ acima defendida.
XXX) Os estímulos que são enviados aos administradores judiciais têm também de levar em conta a acrescida complexidade da sua atividade: não só em resultado das circunstâncias económicas com que devem lidar, mas também devido ao ambiente jurídico em que se movem (desde logo, na parte relativa à regulamentação da sua própria atividade).
XXXI) Uma remuneração adequada é também a forma de procurar garantir a independência dos administradores judiciais, como o é de igual modo, por exemplo, para os Magistrados Judiciais e do Ministério Público ou para os Notários.
XXXII) A interpretação defendida para o art.º 23.º, 7, do EAJ não significa uma necessária duplicação de valores quanto aos montantes da remuneração variável apurados nos termos do art.º 23.º, 4, do mesmo Estatuto: esta última tem como ponto de partida a situação líquida (al. a)) ou o resultado da liquidação (al. b)), enquanto a majoração prevista no art.º 23.º, 7, tem por base o montante dos créditos satisfeitos.
XXXIII) A conclusão a retirar é, sem qualquer dúvida, pela adoção da posição propugnada pelo ora Apelante atinente à remuneração variável do administrador da insolvência, que deveria ter sido fixada, “ta quale” foi oportunamente impetrado pelo aqui Recorrente, impondo-se, assim, a revogação da decisão recorrida, a qual aqui expressamente se requer.
XXXIV) Atento tudo quanto se deixou antecedentemente arrimado, e mercê do disposto no n.º 1 do art.º 665.º n.º 1 do CPC, conquanto encontram-se disponíveis nos autos todos os elementos necessários para o efeito, vem expressamente impetrar-se que, em juízo de substituição, seja fixada a remuneração do Sr. Administrador da Insolvência, aqui Recorrente, à luz da aplicação dos enunciados critérios interpretativos sobre o art.º 23.º do EAJ.
XXXV) Assim, e recorrendo aos elementos dos autos, nomeadamente o apenso de prestacã̧o de contas, de reclamação de créditos e o processo principal, ressuma de modo inequívoco que para ser determinada a primeira parcela da remuneração variável, nos termos da alínea b) do n.º 4 e no n.º 6 do artigo 23.º do EAJ, importa determinar o resultado da liquidação da Massa Insolvente.
XXXVI) Nos presentes Autos o resultado da liquidação da Massa Insolvente ascendeu a 3.058.365,46€ que resulta do seguinte: 14/01/2022 foram apresentadas as contas da liquidação da Massa Insolvente (apenso M – ref. citius 40998821, 41000788, 41001262 e 41001588), nos quais constavam receitas de 3.270.251,60€ e despesas totais de 171.878,44€, com o consequente saldo de 3.098.373,16€.
XXXVII) Por sentença proferida a 15/03/2022 no apenso M, foram julgadas como boas as contas apresentadas pelo Administrador de Insolvência, com exceção da taxa da CAAJ, no valor de 100,00€.
XXXVIII) Que por requerimento junto ao apenso M nesta data de 31/05/2022 (ref. citius 42430771), o Administrador de Insolvência remeteu uma Adenda à Prestação o de Contas, a qual incluiu receitas obtida pela Massa Insolvente após o envio da prestação de contas aos Autos, respeitantes a juros bancários, no valor de 12,80€, assim como o pagamento da conta de custas, no valor de 40.120,50€.
XXXIX) Do supra exposto resulta que as contas apresentadas a 14/01/2022 e aditadas a 31/05/2022 passaram a incluir receitas no valor de 3.270.264,40€ (3.270.251,60€ + 12,80€) e despesas no valor de 211.898,94€ (171.878,44€ + 40.120,50€ - 100,00€), perfazendo assim o saldo de 3.058.365,46€ (3.270.264,40€ - 211.898,94€).
XL) Assim, conforme supra se referiu, o saldo da liquidação da Massa Insolvente ascende a 3.058.365,46€, pelo que, para efeitos do cálculo da remuneração variável do Administrador de Insolvência deverá ser adicionado a este valor a quantia de 2.460,00€ inclusa na Conta de Custas relativo ao pagamento da remuneração fixa do Administrador de Insolvência (n.º 6 do artigo 23.º do EAJ), resultando o valor de 3.060.825,46€.
XLI) Destarte, a primeira parcela da remuneração variável do Administrador de Insolvência, calculada em harmonia com a alínea b) do n.º 4, do n.º 6, e com o limite previsto no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ, fixa-se no valor de 100.000,00€ (5% de 3.060.825,46€, com o limite de 100.000,00).
XLII) Por seu turno, a segunda parcela da remuneração variável do Administrador de Insolvência, prevista no n.º 7 do artigo 23.º do EAJ, estabelece que o Administrador de Insolvência tem ainda direito a 5% dos créditos satisfeitos, ou seja, ao resultado da liquidação, calculado nos termos previstos no n.º 6 do artigo 23.º do EAJ, há que deduzir a remuneração fixa e a primeira parcela da remuneração variável.
XLIII) Pelo que, nos presentes Autos, sendo o resultado da liquidação de 3.060.825,46€, importa deduzir o valor da remuneração fixa já paga ao Administrador de Insolvência (2.460,00€), a primeira parcela da remuneração variável (100.000,00€), bem como o IVA relativo à primeira parcela da remuneração variável (23.000,00€), determinando-se assim o valor de onde sairá o montante da segunda parcela da remuneração variável do Administrador de Insolvência e dos créditos satisfeitos ascendem, num total de 2.935.365,46€.
XLIV) Resulta assim que o montante efetivamente disponível para satisfazer os Credores ascende a 2.765.299,54€ [2.935.365,46€/(1+0,05*1,23)].
XLV) Resulta também que a segunda parcela da remuneração variável do Administrador de Insolvência, em conformidade com o previsto no n.º 7 do artigo 23.º do EAJ, fixa-se em 138.264,98€ (5% de 2.765.299,54€).
XLVI) Nesta conformidade, a remuneração variável do Administrador de Insolvência ascende e deverá ser fixada em 238.264,98€ (100.000,00€ + 138.264,98€), à qual acresce IVA à taxa legal em vigor (54.800,94€), perfazendo o total de 293.065,92€.
3.
Contra-alegou a Credora Banco 1..., pugnando pela improcedência do recurso, deixando para tanto formuladas as seguintes CONCLUSÕES:
1.ª – Entendem Apelante e o Tribunal “a quo“ que apesar do apenso de liquidação ter sido encerrado em 17.10.2021, o cálculo da remuneração variável do AI terá que ser feito de acordo com os artigos 5º, designadamente o artigo 23º do EAJ, e 10 ª da Lei 9/2022 de 11 de Janeiro, por se aplicar aos processos pendentes.
2.ª – Ora, por um lado, entendemos que o artigo 5º da Lei 9/2002 de 11 de Janeiro, designadamente o artigo 23º DO EAJ, e o seu direito transitório estipulado no artigo 10º é inconstitucional por violação do princípio da não retroatividade consagrado no artigo 12-1 do C.Civil e por violação do Princípio da Confiança e da Segurança Jurídica (artigo 2º da CRP). Com efeito,
3.ª – A Banco 1..., credora com direito de crédito protegido constitucionalmente no seu artigo 62º, esperava que a remuneração da AI fosse apenas de cerca € 50.000,00 (€59.910.23) e não de € 293.065,92 (6 vezes superior), o que lhe permitiria receber cerca de € 250.000,00 a mais caso a nova lei não fosse aplicada.
4.ª – A diferença é tal que viu as suas expectativas, frustradas de forma tão acentuada, opressiva ou arbitrária, pelo que os princípios não retroatividade e da segurança e da confiança jurídica saem efetivamente violados.
5.ª – Aquela disposição legal e o seu direito transitório contrariam de forma ostensiva e intolerável a estabilidade e a segurança jurídica dos cidadãos; há retroatividade por envolverem violação do princípio de direito transitório que deve respeitar o princípio da conservação das situações jurídicas, a proteção da confiança e da segurança jurídica através da proibição de leis retractivas.
6.ª – Ao aplicar-se imediatamente o cálculo da remuneração variável do AI de acordo com a lei nova, a qual tem como causa ou pressuposto direto o resultado da liquidação que se já se encontrava finda aquando da sua entrada em vigor, a aplicação da lei nova aos efeitos de uma relação constituída com base num facto passado representa uma nova valoração desse facto passado, pelo que existe retroatividade.
7.ª – Por fim, o princípio da proibição do excesso ou princípio da proporcionalidade em sentido restrito (principio da justa medida”), significa que uma lei mesmo adequada e necessária, pode ser inconstitucional quando adote cargas coativa de direitos, liberdades e garantias desmedidas, desajustadas, excessivas ou desproporcionadas em relação aos resultados obtidos.
8.ª – Sucede que, e como acima se se aludiu a aplicação da lei nova produz um acréscimo significativo e desmesurado de sacrifício da Banco 1... e um acréscimo significativo de beneficio do AI.
9.ª – Temos pois um aumento de cerca de 5 vezes superior, o que não é uma justa medida, pois é gravosamente e excessiva, irrazoável e desproporcional.
10.ª – Pelo que a interpretação normativa e a aplicação que o Apelante e Tribunal “a quo” fazem do artigo 5º, designadamente o artigo 23º DO EAJ, e artigo 10º da Lei 9/2022, de 11 de Janeiro, é também inconstitucional por violação do artigo 18-2, da CRP.
11.ª – Por outro lado, apesar do Estatuto do AI o designar como um servidor da justiça, ele é um profissional liberal, pelo que tal como num contrato de prestação de serviços a sua remuneração variável é em função dos serviços prestados.
12.ª – E como a liquidação e os serviços prestados pelo AI foram prestados ao abrigo da lei antiga, a sua remuneração terá que ser calculada de acordo com a lei então vigente, tal como acontece num contrato de prestação de serviços ou num contrato de trabalho, ou seja, o regime jurídico do cálculo da remuneração do AI tem que contemporânea dos serviços prestados.
13.ª – Assim, a interpretação normativa e aplicação que se faz daqueles preceitos legais é também violadora do princípio da igualdade (artigo 13º, CRP), pois permite tratar de forma diferente o que é igual.
14.ª – Com efeito, basta supor que num outro processo de insolvência em que tenham sido prestados os mesmos serviços, com obtenção do mesmo resultado final e cuja liquidação também tinha sido encerrada antes da entrada em vigor da nova lei, um AI receberia determinado valor consoante a sua remuneração fosse paga antes de 11/01/2022, e um outro AI receberia um valor manifestamente superior se a sua remuneração fosse paga após aquela data.
15.ª – Por outro lado, a Apelada Banco 1... entende que a versão da lei 9/2022 impõe um limite máximo de remuneração de €100.000,00, salvo os casos de particular de especial complexidade, que certamente não é o caso dos autos.
16.ª – Por fim, mesmo que assim não seja entendido, a remuneração variável do Sr. Administrador deverá ter em conta a percentagem de 5 dos créditos satisfeitos.
4.
Também o Ministério Público respondeu ao recurso, CONCLUINDO assim:
I. Dispõe o artigo 60.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que «O administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis», definindo o Estatuto do Administrador da Insolvência, nos artigos 22.º e 23.º, a remuneração devida, e distinguindo entre remuneração fixa e remuneração variável.
II. O recorrente discorda da decisão que indeferiu a fixação da remuneração variável apresentada pelo mesmo.
III. Invoca que a interpretação do Tribunal a quo, no que diz respeito à aplicação do n.º 7 do artigo 23.º do Estatuto dos Administradores Judiciais, na redação introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, é incorreta.
IV. A sua discordância prende-se essencialmente com a forma como é feita a operação majorativa a que se refere o aludido artigo 23.º, n.º 7 do Estatuto dos Administradores Judiciais.
V. Interpretando os n.ºs 4, 6 e 7 do aludido artigo 23.º de modo conjugado, constata-se que, caso se procedesse conforme é entendimento do recorrente – e não obstante o mesmo negar tal efeito -, desconsiderando a percentagem dos créditos admitidos satisfeita – ou, no dizer da lei, ‘o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos’ -, estar-se-ia a cumular as duas operações de cálculo a que se referem as normas aludidas.
VI. Com efeito, estar-se-ia a fazer incidir as duas operações distintas, previstas nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 23.º, sobre o resultado da liquidação, dessa forma ignorando a variável do ‘grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos’.
VII. Grau de satisfação esse que, como nos parece lógico, não pode deixar de expressar-se em termos de percentagem, de modo a poder aquilatar-se de tal ‘grau’.
VIII. Assim sendo e pelo exposto, não pode o Ministério Público deixar de entender que não houve qualquer violação do disposto no artigo 23.º, n.ºs 4, 6 e 7 do Estatuto dos Administradores Judiciais, na redação introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro.
IX. Não podemos, assim, concordar com a interpretação em que o recorrente ancora os seus argumentos, antes julgando que os mesmos permitem exatamente a conclusão inversa.
X. Não assiste, pelo exposto, qualquer razão ao recorrente, devendo-se manter o despacho judicial recorrido.
II.
OBJETO DO RECURSO
Considerando as conclusões das alegações apresentadas pelo Apelante (desnecessariamente prolixas, devemos dizer), e sem prejuízo das questões passíveis de conhecimento oficioso, a questão estrutural carecida de solução passa pela determinação dos critérios legais a que deverá obedecer a fixação da remuneração variável do Administrador Judicial no presente caso, e mais especificamente no que respeita à aplicação da “majoração” prevista no art. 23.º, n.º 7, do EAJ., e em função disso concluir se se justifica a pretensão do Apelante em ver fixada a dita remuneração em 238.264,98€, acrescida de IVA à taxa legal em vigor (54.800,94€), perfazendo o total de 293.065,92€.
III.
FUNDAMENTAÇÃO
1.
Nos termos do preceituado nos artigos 60.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e 22.º do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ), o administrador da insolvência (AI) tem direito, pelo exercício das funções que lhe são cometidas, à remuneração prevista no seu estatuto, quando for nomeado pelo juiz, ou à remuneração prevista na assembleia de credores, quando for eleito por esta, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento daquelas funções.
A remuneração do AI e o reembolso das despesas constituem dívidas da massa insolvente (art. 51.º, n.º 1, al. b), do CIRE) e são suportadas por esta (art. 29.º do EAJ), a não ser nas situações expressamente previstas na lei.
A remuneração do AI nomeado por iniciativa do juiz – como sucedeu no presente caso – é fixada nos termos previstos no artigo 23.º do EAJ, na redação introduzida pelo artigo 5.º da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, que entrou em vigor no dia 11.04.2022, norma imediatamente aplicável aos processos pendentes - situação em que se encontram os presentes autos -, nos temos da norma transitória consagrada no seu artigo 10.º, n.º 1[1].
O cit. art. 23.º dispõe assim:
“1 - O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de 2000 (euro).
2 - Caso o processo seja tramitado ao abrigo do disposto no artigo 39.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a remuneração referida no número anterior é reduzida para um quarto.
3 - Sem prejuízo do direito à remuneração variável, calculada nos termos dos números seguintes, no caso de o administrador judicial exercer as suas funções por menos de seis meses devido à sua substituição por outro administrador judicial, aquele apenas aufere a primeira das prestações mencionadas no n.º 2 do artigo 29.º
4 - Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
a) 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;
b) 5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.
5 - Para os efeitos do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.
6 - Para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
7 - O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.
8 - Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50 000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.
9 - À remuneração devida ao administrador judicial comum para os devedores que se encontrem em situação de relação de domínio ou de grupo, nomeado nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 52.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplica-se o limite referido no número anterior acrescido de (euro) 10 000 por cada um dos devedores do mesmo grupo.
10 - A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro).
11 - No caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data.”
Numa primeira leitura do normativo vindo de citar, podemos afirmar que para além da remuneração fixa, cujo valor não é objeto de discussão neste recurso, o AI tem direito a uma remuneração variável, correspondente a 5% do resultado da liquidação da massa insolvente, o qual é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, com o limite máximo de 100.000,00€, sem prejuízo de o valor assim obtido poder ser reduzido quando exceda 50.000€ por processo.
Nas palavras de Catarina Serra[2], “[c]ompreende-se a intenção do legislador: a parte fixa permite maior certeza na remuneração e a parte variável constitui como que uma motivação para o bom exercício da actividade», pois a (parte variável da) remuneração será tanto mais elevada quanto maior for o resultado da liquidação e a satisfação dos créditos reclamados.
2.
No caso que nos ocupa, em que teve lugar a liquidação do património da insolvente, é pacífico que a parcela da remuneração variável do AI, calculada em harmonia com o preceituado no cit. art. 23.º, n.ºs 4, b), 6 e 10, resulta no valor máximo admissível de 100.000,00€.
Apesar disso, aquele montante não satisfaz o Apelante, reclamando ainda a aplicação sobre o mesmo da “majoração” prevista no n.º 7 do cit. art. 23.º - “O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles”.
O Tribunal a quo, sem questionar a aplicação de “majoração” sobre o dito montante de 100.000€, limitou-se a determinar o respetivo cálculo em termos que divergem dos que são defendidos pelo Recorrente.
Com efeito, enquanto o Tribunal a quo entende que a aplicação da percentagem de 5% deve incidir sobre o valor dos créditos satisfeitos depois de apurado o grau de cobertura dos créditos admitidos e reconhecidos (consideração do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos), o Apelante defende que a majoração em questão deve ser calculada a partir do montante dos créditos satisfeitos, aplicando-se simplesmente a esse montante a percentagem de 5%.
Neste âmbito, a discussão do problema reconduz-se à controvérsia jurisprudencial em torno do cálculo da remuneração do AI, que se vem mantendo acesa desde a entrada em vigor das alterações legislativas introduzidas pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro.
Adiantamos desde já que nesta matéria perfilhamos o entendimento jurisprudencial que vai de encontro ao defendido pelo Apelante, por a nosso ver melhor se coadunar com o respeito pelas regras da interpretação jurídica plasmadas no art. 9.º do CCivil.
Tal entendimento jurisprudencial encontra expressão, entre outros, no recente acórdão desta Relação, de 7.2.2023[3], que por tratar de forma exaustiva a matéria em discussão, passamos a transcrever no que nos parece mais essencial:
[A leitura que o Tribunal a quo faz da norma do artigo 23.º, n.º 7, do EAJ, na sua actual redacção, é tributária ou, pelo menos, é influenciada pelas operações de cálculo da majoração previstas na lei pregressa.
De acordo com o artigo 20.º do estatuto do administrador da insolvência estabelecido na Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho (que viria ser revogada pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro), a remuneração do AI nomeado pelo juiz era igualmente composta por uma parte fixa, regulada no n.º 1 daquele artigo por remissão para uma portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça, e uma parte variável, regulada no n.º 2 por remissão para a mesma portaria, acrescentando-se ainda o seguinte no n.º 4: «O valor alcançado por aplicação da tabela referida no n.º 2 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1».
Esta Portaria veio a ser publicada em 20 de Janeiro de 2005, com o n.º 51/2005, prevendo-se no seu artigo 1.º o valor fixo da remuneração (já então de 2 mil euros) e aprovando-se no seu artigo 2.º as tabelas, anexas à mesma Portaria, que estabeleciam a remuneração variável do AI nos termos dos n.ºs 2 e 4 do referido artigo 20.º.
A tabela constante do Anexo II, a que se referia aquele n.º 4, era composta por duas colunas, constando da primeira diversas linhas com a “percentagem dos créditos admitidos que foi satisfeita” apresentada por ordem crescente (“até 5”, “de mais de 5 até 10”, “de mais de 10 até 20”, etc.) e constando da segunda coluna o mesmo número de linhas com o corresponde “factor aplicável” (“1”, “1,05”, “1,10”, etc.).
A majoração da remuneração variável era, assim, calculada através da aplicação de um determinado factor, que variava com consoante a percentagem dos créditos satisfeitos.
Com a entrada em vigor da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, a remuneração do administrador judicial nomeado pelo juiz, aí se incluindo o administrador da insolvência, passou a estar regulada no artigo 23.º do EAJ.
Na sua redacção inicial, a majoração estava prevista no seu n.º 5, nos seguintes termos: «O valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.ºs 2 e 3 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria [dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da justiça e da economia] referida no n.º 1».
Sucede que esta Portaria nunca chegou a ser publicada, pelo que as tabelas anexas à Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro, continuaram a ser utilizadas, ainda que de forma não consensual e não isenta de dúvidas, por serem a única forma de cálculo prevista em acto normativo cuja formulação se adequava aos critérios consagrados no novo EAJ.
Com as alterações introduzidas neste estatuto pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, o artigo 23.º deixou de remeter para quaisquer outros actos normativos, passando a definir directamente os critérios aplicáveis ao cálculo das diversas parcelas que integram a remuneração do administrador judicial.
Ficou, assim, definitivamente arredado o recurso aos critérios previstos na Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro, a qual, de resto, não é invocada na decisão recorrida nem no parecer que a precedeu (apenas o sendo, paradoxalmente, na proposta formulada pelo AI).
Perante a actual redacção do n.º 7, do artigo 23.º, do EAJ, não vislumbramos qualquer fundamento legal para se fazer apelo ao valor percentual dos créditos satisfeitos e, muito menos, para o fazer incidir sobre os «5% do montante dos créditos satisfeitos» a que aquela norma alude ou, o que é a mesma coisa, fazer incidir este valor de 5% apenas sobre aquela percentagem dos créditos satisfeitos, assim reduzindo a majoração a 5% desta percentagem.
Embora a redacção da norma em apreço não prima pela clareza, o que dela se extrai é que a majoração corresponde a 5% dos créditos satisfeitos.
Na verdade, a expressão “em 5% do montante dos créditos satisfeitos” contida no actual artigo 23.º, n.º 7, do EAJ, serve para concretizar o conceito de majoração “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, não traduzindo estas duas expressões critérios distintos, cumuláveis ou complementares.
O mesmo já sucedia com o anterior artigo 20.º, n.º 4, da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho, cuja expressão “pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1” servia igualmente para concretizar o conceito de majoração “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”. Nesta norma também não se fazia qualquer alusão à “percentagem de créditos admitidos que foi satisfeita”, expressão que apenas surgia na Portaria n.º 51/2005, não como factor de majoração, mas apenas para definir esse factor – entre 1 e 1,60 – pelo qual era multiplicado o valor a majorar, daí resultando que a majoração poderia ir de zero (se a percentagem dos créditos satisfeitos não excedesse os 5%) a sessenta por cento do valor base da remuneração variável (se a percentagem dos créditos satisfeitos excedesse os 70%).
Da redacção do artigo 20.º, n.º 4, da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho, tal como da redacção originária do artigo 23.º, n.º 7, do EAJ, jamais se poderia extrair qualquer referência ao valor percentual dos créditos satisfeitos como elemento relevante para a majoração da remuneração variável, o que apenas sucedia por força da Portaria n.º 51/2005 e, ainda assim, repetimos, apenas por via indirecta, ou seja, não como factor de majoração, mas apenas enquanto elemento de referência do factor de majoração a aplicar.
Nestes termos, não vemos como se possa ver na norma em apreço a consagração de dois critérios distintos – de um lado o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos e, do outro lado, 5 % do montante dos créditos satisfeitos. O que a lei diz com clareza é que a majoração é feita em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos e, na concretização deste critério – que antes era feita por Portaria – esclarece que a mesma corresponde a 5 % do montante dos créditos satisfeitos.
Por esta razão, discordamos do ac. do TRL, de 20.12.2022 (proc. n.º 7269/14.1T2SNT-F.L1-1, rel., Manuela Espanadeira Lopes), quando afirma que a tese aqui preconizada se traduz numa interpretação ab-rogante da norma do artigo 23.º, n.º 7, do EAJ, na medida em que desconsidera um segmento da mesma, e do ac. do TRC, de 25.10.2022 (proc. 318/12.0TBCNT-V.C1, rel. Emídio Francisco Santos), onde se afirma que «nenhum dos sentidos em confronto é excluído pela letra do n.º 7 do artigo 23.º do estatuto», pois «a letra da lei tanto relaciona a majoração da remuneração variável com o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos como a associa ao montante créditos satisfeitos», mas conclui que só a interpretação adoptada na decisão recorrida «dá conteúdo útil a tudo que se afirma no preceito», ao passo que a outra solução «despreza um dos segmentos» do mesmo. Discordamos igualmente do ac. do TRC, de 28.09.2022 (proc. n.º 2495/20.7T8ACB.C1, rel. Maria Catarina Gonçalves), quando considera haver uma contradição insanável entre a segunda parte daquele n.º 7 (reconhecendo que a sua literalidade «parece apontar para uma remuneração que corresponderia (em qualquer caso) a 5/prct do valor dos créditos satisfeitos») e a primeira parte do mesmo número. Muito pelo contrário, cremos que a interpretação que preconizamos é a única que confere coerência à forma como ao legislador expressou o seu pensamento (cfr. artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Sem conceder, ainda que se entendesse que o legislador quis, efectivamente, consagrar dois critérios distintos e cumuláveis, não vemos qualquer fundamento sólido para afirmar que o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos” se traduz no “valor percentual dos créditos satisfeitos”, a não ser por recurso a uma Portaria já revogada e, ainda assim, conferindo a este critério uma relevância que o mesmo não tinha mesmo quando essa Portaria estava em vigor.
No sentido da solução por nós preconizada se pronunciou o ac. do TRL, de 20.12.2022 (proc. n.º 415/13.4TYLSB-E.L1-1, rel. Fátima Reis Silva), onde, depois de se afirmar e fundamentar desenvolvidamente que «grau não equivale a percentagem», se escreve o seguinte: «O n.º 1 do art. 23º deixou de remeter para qualquer Portaria, passando a regular, ele próprio o modo de cálculo. No que aqui nos releva, foi completamente eliminada qualquer referência à percentagem de créditos satisfeitos que nos permita continuar a entender que o grau de satisfação dos créditos referido ainda no nº 7 do art. 23º é a percentagem de satisfação dos créditos e não apenas um maior grau de satisfação de créditos não relacional. A esta leitura acresce uma questão, para nós essencial: eliminada a portaria, o passo material dos cálculos que acha a percentagem dos créditos satisfeitos e faz incidir sobre o valor desta os 5% da remuneração, não está, rigorosamente, previsto. O que a lei prevê é, apenas que se aplique 5% ao montante dos créditos satisfeitos – sendo este montante, como já vimos, um grau de satisfação de créditos».
Deste modo, afirma-se no mesmo acórdão que, diferentemente do que é asseverado no ac. do TRE, de 29.09.2022 (proc. n.º 260/14.0TBTVR.E1, rel. Tomé de Carvalho), a letra da nova lei não indica que o legislador não pretendeu alterar o modo de cálculo anteriormente previsto. E acrescenta-se que os trabalhos preparatórios apontam nesse sentido, identificando como fonte inspiradora da norma que veio a ser aprovada um projecto de lei, cuja formulação previa como critério de majoração o grau de satisfação dos créditos, e um projecto de portaria, que concretizava o respetivo cálculo pela aplicação de 5% ao montante dos créditos satisfeitos, eliminando-se, pela revogação expressa e pela abolição de qualquer referência expressa, a ligação à percentagem de créditos satisfeitos.
Acrescenta-se no mesmo acórdão que «[e]ste elemento indicativo não retira à inserção da norma na Lei nº 9/2022, a sua ligação com a transposição da Diretiva 1023/2019 e com as finalidades ali enunciadas de assegurar que “a remuneração dos profissionais se reja por regras que sejam compatíveis com o objetivo de uma resolução eficiente dos processos.” – cfr. art. 24º nº4 da Diretiva. Esta constatação, ligada com a evidência de que o legislador pretendeu aumentar a remuneração dos profissionais de insolvência e incentivar a diligência na composição e liquidação da massa insolvente, permitem-nos confirmar a interpretação do n.º 7 que vimos defendendo, numa perspetiva de interpretação teleológica e sistemática – o legislador, prosseguindo estes objetivos, claramente rompeu com um modelo de cálculo anterior, nomeadamente escolhendo passar a regular, diretamente na lei, esse modelo, rasurando o anterior modelo regulamentar. E fê-lo mediante a eleição de regras de cálculo que se desligam dos créditos reclamados, do passivo do devedor, valorando exclusivamente o produto do trabalho do administrador, ou seja, a composição e valor da massa insolvente».
Afirmar que o propósito legislativo de manter o regime ou os critérios anteriormente vigentes é revelado pela similitude entre a anterior e a actual redacção do n.º 7, do artigo, 23.º do EAJ, revela-se um argumento pobre, pois é inegável que a existência ou a ausência de remissão para uma Portaria ou outro acto normativo pode fazer – e fez – toda a diferença.
Contra a solução interpretativa aqui adoptada não se argumente que, se fosse esse o pensamento do legislador, este teria escrito apenas que “o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles”. Tal argumento é totalmente reversível: se o legislador quisesse manter o recurso ao valor percentual do grau de satisfação dos créditos admitidos tê-lo-ia simplesmente trasladado da Portaria revogada para a nova lei, o que não fez.
Não se argumente, também, que o critério aqui preconizado potencia a atribuição de remunerações excessivas, tendo em conta o trabalho efectivamente desenvolvido, assim prejudicando os interesses da massa insolvente e dos seus credores, o que não pode ter estado no propósito do legislador. A verdade é que o legislador se preocupou em afastar esse risco e em garantir a correcção dos desequilíbrios que o critério de cálculo adoptado seria susceptível de gerar, consagrando um tecto remuneratório de 100 mil euros (cfr. artigo 23.º, n.º 10, do EAJ) e a possibilidade de redução da remuneração superior a 50 mil euros «tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções» (cfr. n.º 8 do mesmo artigo). Saber se estes mecanismos são os mais ajustados ou eficazes, tal como saber se a opção do legislador foi a mais correcta do ponto de vista da política legislativa, são questões que extravasam a tarefa do julgador.
Em conclusão, por tudo quanto ficou exposto, entendemos que o critério de majoração adoptado na decisão recorrida não corresponde ao actualmente vigente, afigurando-se mais consentâneo com a mesma o critério propugnado pelo recorrente (…)].
No mesmo sentido se pronunciou muito recentemente esta Relação, nomeadamente por via dos acórdãos de 7.2.2023 e 28.02.2023, ainda inéditos, relatados por Pedro Damião e Cunha e Alexandra Pelayo nos processos 910/10.7TVPRT-C.P1 e 1208/21.0T8AMT-E.P1, respetivamente, e ambos subscritos enquanto adjunto pelo aqui relator.
Defendendo o mesmo entendimento, na doutrina, NUNO MARCELO DE NÓBREGA DOS SANTOS DE FREITAS ARAÚJO, “A remuneração do Administrador Judicial depois das alterações da Lei n.º 9/2002, de 11-11, Parte II – A Remuneração Variável”[4].
Explicitado o sentido com que, a nosso ver, deverá prevalecer, em qualquer caso, a norma do n.º 7 do art. 23.º do EAJ, a questão que se nos coloca agora é se no caso em apreço se justifica a aplicação da dita majoração.
Trata-se de uma questão que em bom rigor não foi concretamente conhecida pelo Tribunal a quo, mas que deveria ter sido, por se mostrar essencial, se configurarmos, como cremos que se impõe, a decisão recorrida como decisão final definidora do quantitativo global devido ao AI a título de remuneração.
Por outro lado, estando em questão uma remuneração que excede o montante de 50.000€, sempre se impunha ao Tribunal recorrido que apreciasse a questão à luz do preceituado no n.º 8 do cit. art. 23.º, reduzindo ou afastando a possibilidade de redução do montante remuneratório resultante da aplicação dos critérios legais previstos nos números que precedem aquele n.º 8, conhecimento que também foi omitido.
O não conhecimento das ditas questões pelo Tribunal recorrido, num processo em que o princípio do inquisitório é prevalecente (cf. art. 11.º do CIRE), redunda a nosso ver em nulidade da decisão, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPCivil.
Contudo, porque os autos contêm todos os elementos que nos permitem conhecer daquelas questões em substituição da 1.ª instância, iremos fazê-lo de seguida, ao abrigo do disposto no art. 665.º, n.º 3, do CPCivil.
Tendo sido dada oportunidade às partes para exercerem o prévio contraditório, apenas se pronunciou o Apelante, nos termos que aqui damos por reproduzidos.
A nossa resposta à questão que deixámos enunciada não pode deixar de ser negativa, pelas razões que passamos a explicar.
Como dissemos, do disposto no art. 23.º, n.º 10 do EAJ resulta um limite máximo, porquanto a remuneração calculada nos termos da al. b) do n.º 4 não pode ser superior a 100.000€.
Na leitura que fazemos, aquele valor de 100.000€ representa o teto máximo para a remuneração variável no seu todo, e não apenas o limite da componente da remuneração sem a majoração.
Perfilhamos também nesta matéria o entendimento do acórdão da Relação de Lisboa de 20.12.2022[5] - “O limite previsto no art. 23º nº 10 do Estatuto do Administrador Judicial é aplicável à remuneração variável total, compreendendo a majoração, nos processos em que a remuneração variável seja calculada sobre o resultado da liquidação da massa insolvente, funcionando como limite da mesma e não apenas da parcela achada com a operação de cálculo prevista na al. b) do nº 4 e no nº 6 do mesmo artigo” -, assente, essencialmente, em fundamentos de ordem sistemática e racional, assim sintetizados por NUNO MARCELO DE NÓBREGA DOS SANTOS DE FREITAS ARAÚJO[6]: [a) Primeiramente, porque quando se refere à remuneração, o legislador pretende reportar-se ao seu valor global, uma vez que, com todas as suas componentes, “a remuneração variável integra a remuneração do administrador judicial (…) e todas estas aceções da remuneração se integram na remuneração global, de acordo com a norma do nº 1 do art. 60.º do CIRE”. b) Por outro lado, atenta a organização do art. 23.º do EAJ e o lugar em que foi introduzido o limite máximo de € 100.000,00, visto que “a sistemática do preceito, inserindo esta norma no nº 10, após a previsão de todas as (demais) operações de cálculo da remuneração, incluindo a majoração do nº 7, aponta no sentido de que o legislador se estará a referir a um limite absoluto à remuneração a aplicar depois de todas as operações antes previstas”. c) Para além disso, um argumento simultaneamente de ordem sistemática e racional, que radica na manutenção da norma do nº 8 do preceito, que prevê a redução, por decisão do juiz, do valor da remuneração que supere 50.000,00€, e que notoriamente visa o seu montante global, pois não faria “qualquer sentido limitar a primeira parcela de uma remuneração a cem mil euros e depois (…) de lhe somar uma segunda parcela (…), permitir ao julgador que reduza a soma das duas parcelas a € 50.000,00. Finalmente, com recurso a um argumento histórico, o aresto compara o texto do projecto da portaria de 2019 com a redacção final da lei, afirmando que no art. 2.º daquele, “o nº3 tinha uma redação similar ao atual art. 23.º, nº 10, mas o uso da expressão remuneração, naquele local, não deixava qualquer dúvida de que o limite compreendia todas as parcelas da remuneração variável”].
Tudo o que deixámos exposto nos leva a concluir que assistindo embora razão ao Apelante no que concerne à interpretação a dar à norma do n.º 7 do art. 23.º do EAJ, daí não decorre sem mais que lhe assista o direito a auferir da almejada remuneração variável de 238.264,98€, e pela simples razão de que este valor excede o teto máximo de 100.000€ previsto no n.º 10 do mesmo artigo.
Assiste-lhe simplesmente o direito a auferir o montante de 100.000€ a tal título, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, valor que julgamos não ser merecedor de redução em qualquer medida ao abrigo do preceituado no n.º 8 do cit. art. 23.º, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções, elementos que encontram cabal concretização nas alegações de recurso e com suporte documental nos autos.
Finalmente, diga-se que não vemos que a interpretação que aqui deixamos afirmada para o art. 23.º, n.º 10, do EAJ, possa violar qualquer norma ou princípio constitucional, nomeadamente o direito dos trabalhadores, na dimensão retributiva, consagrado no art. 59.º, n.º 1, al. a) da Constituição da República Portuguesa, porquanto se nos afigura inteiramente legítimo a fixação de um teto remuneratório máximo para o exercício da atividade em causa, que no caso poderá ser tudo menos “condigno”, sendo certo de que dentro de tal teto é sempre possível ajustar a remuneração concreta em função do efetivo trabalho e resultados alcançados.
3.
As custas deste recurso são da responsabilidade do Recorrente e da Massa Insolvente na proporção do respetivo decaimento (arts. 303.º e 304.º do CIRE, e 527.º, nºs 1 e 2, do CPCivil).
IV.
DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, anulamos a decisão recorrida e, em sua substituição, decidimos:
a) Fixar em 100.000€ (cem mil euros), acrescido de IVA à taxa legal em vigor, o valor global da remuneração devida ao Senhor Administrador Judicial, aqui Recorrente; e
b) Condenar o Apelante e a Massa Insolvente no pagamento das custas do recurso, na proporção do respetivo decaimento.
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Porto, 18 de abril de 2023
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Vilares Ferreira
Alberto Taveira
Maria da Luz Seabra
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[1] Neste sentido, vide o ac. do TRL, de 20.09.2022, relatado por FÁTIMA REIS SILVA no proc. n.º 9849/14.6T8LSB-E.L1-1, acessível em www.dgsi.pt.
[2] Lições de Direito da Insolvência, 2021, 2.ª Edição, p. 81.
[3] Relatado por ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA no processo 965/15.8T8AMT-E.P1, ainda inédito.
[4] In DataVenia, n.º 14, Ano 2023, acessível em https://www.datavenia.pt/ficheiros/edicao14/datavenia14_p027_076.pdf
[5] Relatado por FÁTIMA REIS SILVA no processo 22770/19.2T8LSB-F.L1-1, acessível em www.dgsi.pt.
[6] Ob. cit.