Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0713247
Nº Convencional: JTRP00040474
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: TÍTULO DE TRANSPORTE
CRIME
BURLA
CONTRA-ORDENAÇÃO
Nº do Documento: RP200707040713247
Data do Acordão: 07/04/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 494 - FLS 24.
Área Temática: .
Sumário: A Lei 28/2006, de 4/07, não revogou o art. 220º, n.º1, al. c) do C. Penal, continuando por isso a ser punido, nos termos aqui previstos, quem, com intenção de não pagar, utilizar meio de transporte ou entrar em qualquer recinto público sabendo que tal supõe o pagamento de um preço e se negar a solver a dívida contraída.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

Na comarca de Matosinhos, o MP deduziu acusação contra a arguida B………., imputando-lhe factos que qualificou como um crime de burla para obtenção de serviços do artº 220º, nº 1, alínea c), do CP.

Distribuído o processo ao .º juízo do Tribunal Judicial da comarca de Matosinhos, o senhor juiz entendeu que os factos descritos na acusação integram, com a vigência da Lei nº 28/2006, de 4 de Julho, não o crime aí referido, mas uma contravenção, sendo que, não estando previstos como tal na data da sua prática e não se lhe aplicando a norma transitória do artº 14º deste último diploma, não têm actualmente sanção. Em consequência, julgou extinto o procedimento criminal.

Dessa decisão interpôs recurso o MP, sustentando, em síntese, na sua motivação:
-A Lei nº 28/2006 não revogou o artº 220º, nº 1, alínea c), do CP, sendo diferente o âmbito de aplicação daquele diploma e desta norma.
-Aquela lei limita-se a transformar as anteriores contravenções em contra-ordenações, não interferindo com a previsão da referida norma criminal.
-Deve por isso revogar-se a decisão recorrida.

O recurso foi admitido.
Não houve resposta.
O senhor procurador-geral-adjunto foi de parecer que o recurso merece provimento.
Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação:
A única questão a decidir é a de saber se, no que concerne à utilização de meio de transporte colectivo de passageiros, o artº 220º, nº 1, alínea c), foi revogado pela Lei nº 28/2006.
Diz-se nesse artº 220º:
1. Quem, com intenção de não pagar:
a) (...).
b) (...).
c) Utilizar meio de transporte ou entrar em qualquer recinto público sabendo que tal supõe o pagamento de um preço;
e se negar a solver a dívida contraída é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias.
2. (...).
3. (...).
Por sua vez, a Lei nº 28/2006, dispõe no seu artº 7º:
1 – A falta de título de transporte válido, a exibição de título de transporte inválido ou a recusa da sua exibição na utilização do sistema de transporte colectivo de passageiros, em comboios, autocarros, troleicarros, carros eléctricos, transportes fluviais, ferroviários, metropolitano e metro ligeiro, é punida com coima de valor mínimo correspondente a 100 vezes o montante em vigor para o bilhete de menor valor e de valor máximo correspondente a 150 vezes o referido montante, com o respeito pelos limites máximos previstos no artigo 17º do regime geral do ilícito de mera ordenação social e respectivo processo, constante do Decreto-Lei nº 433/82 (...).
(...).
6 – A negligência é punível, sendo reduzidos de um terço os limites mínimos e máximos das coimas aplicáveis nos termos deste artigo.
São estas as situações que encontram sanção nesta lei.
Logo por aqui se vê que a previsão do artº 220º, nº 1, alínea c), na parte em causa, se mantém intocada.
Efectivamente, enquanto o nº 1 do artº 7º da Lei nº 28/2006 se satisfaz com «a falta de título de transporte, a exibição de título de transporte inválido ou a recusa da sua exibição», o artº 220º, nº 1, alínea c) exige muito mais, ou seja, que o agente utilize o meio de transporte já «com intenção de não pagar» e se negue a «solver a dívida contraída».
É certo que a referida norma da Lei nº 28/2008 abrange também situações de dolo, mas situações diferentes das que preenchem a previsão do artº 220º, nº 1, alínea c), do CP. Assim, aquele que entra num meio de transporte colectivo de passageiros sabendo que se exige e não tem título válido, cometerá a contra-ordenação além prevista se estiver na disposição de pagar no caso de ser encontrado nessa situação pelos agentes de fiscalização, mas praticará o crime de burla para obtenção de serviços se tiver a intenção de não pagar e efectivamente não vier a pagar.
A lei 28/2006, como logo se vê do título que a encima – «aprova o regime sancionatório aplicável às transgressões ocorridas em matéria de transportes colectivos de passageiros» – veio regular em moldes diferentes as situações que anteriormente caiam sob a alçada do DL nº 108/78, de 4 de Maio, e do nº 1 do artº 43º do Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo DL nº 39780, de 21 de Agosto de 1954, que expressamente revogou. De substancial o que mudou foi a qualificação como contra-ordenações das situações que no regime anterior constituíam contravenções ou transgressões. E já se tinha tornado pacífico que os diplomas agora revogados tinham um âmbito de aplicação que não colidia com o do artº 220º, nº 1, alínea c), do CP.
Em reforço deste entendimento pode apontar-se ainda o artº 14º da referida Lei nº 28/2006:
1 – As contravenções e transgressões praticadas antes da data da entrada em vigor da presente lei são sancionadas como contra-ordenações, sem prejuízo da aplicação do regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, nomeadamente quanto à medida das sanções aplicáveis.
2 – Os processos por factos praticados antes da data da entrada em vigor da presente lei pendentes em tribunal nessa data continuam a correr os seus termos perante os tribunais em que se encontrem, sendo-lhes aplicável, até ao trânsito em julgado da decisão que lhes ponha termo, a legislação processual relativa às contravenções e transgressões.
3 – Os processos por factos praticados antes da data da entrada em vigor da presente lei, cujas instauração seja efectuada em momento posterior, correm os seus termos perante as autoridades administrativas competentes.
4 – (...).
Se neste regime transitório são acauteladas apenas as situações que antes constituíam contravenções e transgressões é porque o diploma nada alterou em matéria criminal.
Deve, pois, dar-se provimento ao recurso.

Decisão:
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação, no provimento do recurso, em revogar a decisão recorrida por outra, no pressuposto de que a Lei nº 28/2006 deixou incólume o âmbito de vigência do artº 220º, nº 1, alínea c), do CP.
Sem custas.

Porto, 4 de Julho de 2007
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva
Francisco Marcolino de Jesus