Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
852/18.8T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: ACIDENTES DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Nº do Documento: RP20211115852/18.8T8OAZ.P1
Data do Acordão: 11/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A descaracterização do acidente de trabalho, exonerando o empregador de reparar os danos decorrentes do acidente, pode ter fundamentos diferentes, não confundíveis entre si, que se verificam nas situações enunciadas nas alíneas a) e b), do n.º1, do art.º 14.º, da Lei 98/2009. Uma coisa é a violação, sem causa justificativa, das regras de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; outra bem diferente, a actuação do trabalhador que subsuma ao conceito de negligência grosseira, dado depois pelo n.º3, do mesmo artigo.
II - A causa excludente do direito à reparação do acidente a que se alude na segunda parte da alínea a) do n.º 1, a conjugar com o n.º2, do artigo 14.º, da Lei n.º 98/2009, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (a) que se trate de uma conduta do acidentado, seja ela por acção, seja por omissão; (b) que essa conduta seja representativa de uma vontade do mesmo iluminada pela intencionalidade ou dolo na adopção dela; (c) que inexistam causas justificativas, do ponto de vista do acidentado, para a violação das condições de segurança; (d) que existam, impostas legalmente ou por estabelecimento da entidade empregadora, condições de segurança que foram postergadas pela conduta do acidentado.
III - A violação das regras de segurança, só por si, não é bastante que operar a descaracterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave do sinistrado.
IV - A violação das regras de segurança, por parte do trabalhador, pode ter outras causas justificativas para além das dificuldades daquele em conhecer ou entender a norma legal ou estabelecida pelo empregador.
V - Para que se considere que há “negligência grosseira”, para os efeitos do art.º 14.º n.º1, al. b) e n.º3, é necessário estar-se perante uma conduta do sinistrado que se possa considerar temerária em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, que ofenda as mais elementares regras de senso comum e que não se materialize em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 852/18.8T8OAZ.P1

SECÇÃO SOCIAL

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I. RELATÓRIO
I.1 No Tribunal da Comarca de Aveiro – Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis -, B… intentou a presente acção especial, emergente de acidente de trabalho, contra C…, SA, pedindo a condenação desta no pagamento das prestações seguintes:
- As despesas de tratamento, tratamentos se necessários ou a Pensão anual e vitalícia, pagável por remissão, em duodécimos no seu domicílio, de acordo com a incapacidade permanente que lhe vier a ser fixada, face ao resultado da Junta Médica, capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no montante de €954,91, devida a partir de 04-06-2017, calculada com base na retribuição anual ilíquida de €8.400,00 e na IPP de 16,24%;
O montante de ITA desde dezembro de 2016 a maio de 2017 no total da quantia de €1.643,22 referente a diferenças indemnizatórias pelos períodos de incapacidade temporária sofridos.
A quantia de €20,00, respeitante a despesas de transporte, com as suas mencionadas deslocações obrigatórias.
A petição inicial foi apresentada na sequência de não se ter logrado o acordo das partes na fase conciliatória, na tentativa de conciliação tendo a seguradora declinado a responsabilidade pela reparação do acidente, alegando ter havido incumprimento das normas de segurança, nomeadamente por falta uso de qualquer equipamento de proteção individual e/ou coletivo.
Na petição inicial, o Autor alegou, no essencial, ter sido vítima de acidente de trabalho, ocorrido em 05-12- 2016, quando se encontrava no exercício da sua atividade de gerente da empresa D…, Lda., cuja responsabilidade infortunística se encontrava transferida para a E… S. A, em função da retribuição anual ilíquida de €8.400,00 (€600,00 x 14 meses).
O acidente consistiu em ter caído de uma altura de cerca de 6 metros, em consequência tendo sofrido as lesões e incapacidades descritas no relatório de perícia singular de avaliação do dano corporal, no âmbito do qual tendo o Senhor Perito arbitrado um coeficiente de desvalorização de 2,9055%, a título de I.P.P., com o qual não concordou na tentativa de conciliação, visto ser portador de uma IPP de 16,24%.
Mais alega que a seguradora não lhe pagou qualquer indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos, despesas de transporte para as deslocações.
Notificado da pendência da causa, o Instituto da Segurança Social, IP, deduziu pedido de reembolso no montante de €418,80 que pagou ao sinistrado pelo período de baixa por doença entre 5/12/2016 e 15/01/2017.
Contestou a ré seguradora, alegando, em síntese, que o acidente ficou a dever-se a negligência grosseira do sinistrado que, tendo caído o seu telemóvel, se desprendeu da linha de vida e circulou sobre as telhas de fibrocimento, ainda numa distância considerável, havendo um risco muito elevado de queda, que o autor conhecia, porque tinha muita experiência na área e as telhas estavam degradadas. Refere, ainda, que o sinistrado agiu por sua determinação e desrespeitou as regras de segurança, que bem conhecia, pois era o gerente da empresa encarregada de substituir as telhas de fibrocimento.
Conclui, defendendo que o acidente encontra-se descaracterizado nos termos das alíneas a) e b), do n.º1, do art.º 14.º da Lei 98/2009, de 04/09, pelo que a acção deve improceder.
Findos os articulados, o Tribunal a quo procedeu ao saneamento dos autos e à delimitação dos temas de prova.
Nessa sede, nos termos do disposto nos arts. 131.º, n.º 1, alínea e) e 132.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, foi ordenado o desdobramento do processo e a consequente abertura do apenso de fixação da incapacidade, no âmbito do qual foi efectuado exame por junta médica, vindo a ser proferida decisão final que fixou a incapacidade permanente parcial do sinistrado em 9,6265%.
Realizou-se o julgamento, com observância do legal formalismo.
I.2 Subsequentemente foi proferida sentença, concluída com o dispositivo seguinte:
« Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a ação e, em consequência, declaro que o autor sofreu um acidente de trabalho em 5 de dezembro de 2016 que lhe determinou uma incapacidade de 9,6265% com consolidação das lesões em 15 de junho de 2017 e, por conseguinte, condeno a ré a pagar ao autor as seguintes quantias: O capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de €566,04 com vencimento em 16 de junho de 2017 acrescida de juros desde esta data até integral pagamento; e A quantia de €2.119,27, a título de indemnização por incapacidades temporárias, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento. No mais, julgo improcedente a ação e, em consequência, absolvo a ré do pedido.
Condeno ainda a ré a pagar ao ISS, IP, a quantia de €418,80 acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido de reembolso até integral pagamento.
Mais condeno a ré no pagamento das custas.
Valor da causa: €10.627,98. Valor do pedido de reembolso: €418,80.
(..)».
I.3 Inconformada com a sentença, a Ré seguradora apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados. As alegações foram sintetizadas nas conclusões seguintes:
………………….
………………….
………………….
Conclui pedindo a procedência do recurso, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por decisão que considere descaraterizado o acidente e absolva a recorrente dos pedidos.
I.4 O recorrido não apresentou contra-alegações.
I.5 A Digna Procuradora- Geral Adjunta nesta Relação, emitiu o parecer a que alude o art.º 87.º3, do CPT, pronunciando-se pela improcedência do recurso, na consideração, no essencial, do seguinte:
-“ Reportando-nos ao concreto caso dos autos e com arrimo nos factos assentes, há que reconhecer que existiam medidas especiais de segurança e que o trabalhador as estava a cumprir, mas reconhecer, também, que embora seja evidente a existência de um ato do sinistrado que é causal em relação ao acidente - o facto de ter desengatado o gancho do seu cinto da corda de linha de vida e de ter dado apenas um passo sobre a telha que partiu e que provocou a queda (factos 9 e 11) – não pode, seguramente, afirmar-se que esse gesto momentâneo constitui uma injustificada e indesculpável imprudência.
Na verdade, face ao circunstancialismo apurado é de considerar que a eventual inobservância momentânea de regra de segurança resulta claramente da falta de reflexão sobre as circunstâncias que produziu a convicção de que a atuação seguida seria segura, o que não é suficiente para afastar a obrigação de reparação dos danos decorrentes do acidente de trabalho. Não basta a mera violação das regras de segurança pelo sinistrado, para que o acidente seja descaracterizado, pois é necessário que essa infração ocorra por culpa grave do trabalhador, ou seja que este tenha consciência da violação. Naturalmente, que a culpa tem de ser aferida sempre em concreto e não em abstrato. É certo que de acordo com a factualidade assente (facto 13) o autor sabia que tinha de deslocar-se mantendo-se preso à linha de vida e caminhar sobre as telhas na parte em que estas estão apoiadas na estrutura, mas também se demonstrou que o telhado não apresentava sinais de desgaste, quase não tinha inclinação e era atravessado por uma estrutura de suporte das telhas com pouco mais de um metro de distância entre suportes.
Tudo termos em que me parece que se não verifica, in casu, a causa excludente prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da LAT.
2. Quanto à eventual verificação da situação prevista na alínea b) do mesmo normativo, para que se verifique a exclusão do direito à reparação pelo acidente, é necessário o preenchimento dos seguintes requisitos:
- que se demonstre a negligência grosseira do sinistrado
- e que essa negligência grosseira constitua a causa exclusiva do acidente.
Como vem referindo a jurisprudência, a utilização da expressão “provier exclusivamente”, utilizada pelo legislador, implica a existência de um nexo de causalidade adequada e exclusiva entre o comportamento caracterizável como negligência grosseira, assumido pelo sinistrado, e o evento lesivo.
[..]
Revertendo ao caso dos autos e como esclarecidamente se afirma na decisão recorrida, “… podendo afirmar-se a negligência do autor, que se desprendeu da linha de vida quando estava em cima de telhas de fibrocimento numa altura de quase 6 metros, consideramos que a negligência não é grosseira, pois o autor fê-lo por um breve instante, confiando que não haveria problema, tendo em conta o estado das telhas, a pouca inclinação do telhado e a existência de uma estrutura de suporte que, efetivamente, não era muito espaçada, sendo certo que, tendo em conta o local da queda, o autor tinha que estar próximo dessa estrutura de suporte. É certo que o autor é gerente da empresa, responsável pela implementação das medidas de segurança, mas, por um lado, existiam efetivamente medidas de segurança e, por outro lado, estamos perante um instante, um momento de descuido e o autor, sendo gerente, não deixa de ser um trabalhador que estava a trabalhar ao lado dos outros trabalhadores, correndo os mesmos riscos e fazendo o mesmo trabalho e, por isso, nesta situação concreta, deve ser tratado como tal, estando sujeito à habituação ao perigo que muitas vezes leva a que este tipo de acidentes ocorram, mas que não deixa de apontar para uma negligência não grosseira…
o estado do telhado, a pouca inclinação e a existência de uma estrutura de suporte pouco espaçada, levam-nos a afirmar que a conduta do autor, ainda que fosse um gerente, mais igualmente um trabalhador, deve integrar a esfera de habituação ao perigo típica de situações de negligência não grosseira que, em nosso modesto entendimento, não é suficiente para fundamentar a descaraterização do acidente como de trabalho.
I.7 Foram colhidos os vistos legais e determinou-se que o processo fosse inscrito para ser submetido a julgamento em conferência.
I.8 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] as questões suscitadas consistem em saber se o Tribunal a quo errou o julgamento na aplicação do direito aos factos, por não ter concluído pela descaracterização do acidente de trabalho, quer por violação das regras de segurança pelo sinistrado, quer por o acidente se ter ficado a dever a negligência grosseira daquele, violando o disposto no art.º 14.º n.º1, alíneas a) e b), da Lei 98/2009.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 - MOTIVAÇÃO DE FACTO
O elenco factual fixado pelo tribunal a quo consiste no que passa a transcreve.
A] De facto.
1. Factos provados:
1. No dia 05-12- 2016, cerca das 17:00 horas, em Vale de Cambra, foi vítima de um acidente, tendo sofrido uma queda de cerca de 6 metros de altura.
2. Encontrava-se no exercício da sua atividade de gerente da empresa D…, Lda.
3. A responsabilidade infortunística encontrava-se transferida para a E… SA, em função da retribuição anual ilíquida de €8.400,00 (€600,00 x 14 meses), através de contrato de seguro titulado pela apólice n° ……….
4. O Perito do GML de Entre Douro e Vouga fixou a consolidação médico-legal das suas lesões no dia 03-06-2017 e lhe arbitrou um coeficiente de desvalorização de 2,9055%, a título de IPP.
5. O autor encontrava-se sobre o telhado de cobertura de um armazém, sensivelmente a meio e na parte mais alta, para proceder à substituição de telhas de fibrocimento por painéis de Sanduiche.
6. O autor utilizava uma rebarbadeira das pequenas para cortar os parafusos das telhas de fibrocimento para as remover.
7. Ao executar as suas tarefas, o telemóvel do autor, colocado num bolso do colete, caiu.
8. O autor decidiu ir buscar o telemóvel.
9. Quando deu um passo sobre as telhas, uma das telhas partir e o autor caiu no interior do armazém.
10. Na obra tinha sido montada uma corda de linha de vida e o autor tinha o cinto colocado e montado nessa corda.
11. Para chegar ao telemóvel, o autor desengatou previamente o gancho do seu cinto da corda de linha de vida.
12. O autor tinha conhecimento dos riscos de caminhar sobre a zona dessas telhas.
13. O autor sabia que tinha de deslocar-se mantendo-se preso à linha de vida e caminhar sobre as telhas na parte em que estas estão apoiadas na estrutura, mas confiou na solidez do telhado que não apresentava sinais de desgaste, o telhado quase não tinha inclinação e era atravessado por uma estrutura de suporte das telhas com pouco mais de um metro de distância entre suportes.
14. O autor fazia estas tarefas há alguns anos.
15. Em consequência do acidente, o autor sofreu as lesões e incapacidades descritas nos autos de juntas médicas.
16. Em consequência do acidente o autor ficou afetado com ITA entre 6.12.2016 e 30.04.2017, ITP 30% entre 1.05.2017 e 31.05.2017 e ITP 15% entre 1.06.2017 e 15.06.2017.
17. Em consequência das lesões sofridas resultantes do acidente de trabalho ocorrido em 05 de Dezembro de 2016, o autor esteve com baixa médica subsidiada de 05/12/2016 a 15/01/2017, o que levou o ISS, IP, a pagar-lhe, a título de subsídio de doença, a quantia de €418,80.
2. Factos não provados:
1. O telemóvel caiu para dentro do armazém, no espaço entre uma telha de fibrocimento e um painel sanduiche.
2. O autor estava a dirigir-se para a zona de acesso ao telhado, ainda com telhas antigas e gastas de fibrocimento.
3. As telhas de fibrocimento encontravam-se visivelmente danificadas e eram antigas.
4. O autor gastou a quantia de €20,00 em despesas de transporte, com as suas deslocações obrigatórias ao aludido Gabinete Médico-Legal e a este Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis.

II.2 - MOTIVAÇÃO DE DIREITO
A recorrente insurge-se contra a sentença, pugnando pela descaracterização do acidente de trabalho com a consequente exclusão do direito à reparação, sustentando-se em duas linhas de argumentação distintas:
I - O acidente ficou a dever-se a violação das regras de segurança por parte do sinistrado, estando descaracterizado nos termos do art.º 14.º n.º al. a), da LAT;
II - Concomitantemente, o acidente ficou a dever-se a negligência grosseira do sinistrado, estando igualmente descaracterizado à luz do disposto no art.º 14.º n.º al. b), da LAT.
Na fundamentação da sentença recorrida, pronunciando-se sobre
1.1 [..].
1.2 No entanto, a ré invoca factos tendentes à descaracterização do acidente como de trabalho.
O artigo 14.º, da LAT, trata a questão da descaracterização do acidente de trabalho, reconduzindo-se à questão de saber em que medida o comportamento culposo do sinistrado assume relevância na medida em que permite a definição da esfera de risco assumida pelo próprio sinistrado. Nos termos do n.º 1 da referida norma «O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação. Por sua vez, o n.º 2, estabelece que se considera «que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la». Acresce que o n.º 3 precisa o conceito de negligência grosseira como «o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão».
Interessa-nos a causa de descaracterização prevista na segunda parte da alínea a), do n.º 1, do artigo 14.º, da LAT, nos termos da qual o acidente é descaracterizado se «provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei». Esta causa de descaraterização do acidente resulta da configuração da esfera de tutela normativa do risco profissional para o risco de autoridade ou empresarial e se o sinistrado, sujeito ao dever de obediência, se subtraía à esfera do risco de autoridade, desobedecendo às ordens emitidas pela entidade patronal, então ficaria a descoberto da proteção resultante do regime de reparação dos acidentes de trabalho. Esta asserção manifesta-se na violação das condições de segurança resultantes da lei ou estabelecidas pelo empregador, não bastando que o sinistrado se afaste do exercício das funções que integram a sua categoria profissional. Para que se verifique uma descaraterização do acidente é necessário que a violação das condições de segurança seja a causa do acidente ou do dano e não apenas o contexto em que este ocorreu, afastando-se as situações em que, de facto, o sinistrado viola uma condição de segurança, mas se possa concluir que mesmo que a tivesse cumprido, o dano ocorreria de qualquer forma. Assim, sucintamente, temos que estar perante uma violação, por ação ou omissão, das condições de segurança, a inexistência de causa justificativa para a violação, a existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade empregador ou previstas na lei e o acidente ter sido consequência necessária do ato ou omissão do sinistrado 4. Esta violação tem que ocorrer sem causa justificativa, considerando-se como tal as situações em que «o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la».
O regime apresenta uma diferenciação relativamente ao regime da responsabilidade civil, mais concretamente no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, em sede de apreciação da culpa do trabalhador pois o que é relevante é a culpa em concreto do sinistrado e não a sua culpa apreciada em abstrato, atendendo ao padrão do bom pai de família [culpa como deficiência da conduta e não da vontade], ainda que colocado na posição ou nas circunstâncias concretas do trabalhador em causa. A justificação desta diferente modalidade de apreciação da culpa ou da formação do juízo de censura que esta encerra encontra-se no facto da atividade laboral configurar, em regra, uma atividade repetitiva em que fatores como o cansaço, o ritmo de trabalho, o stress laboral e a concentração, devem ser ponderados. Mas qual o grau de culpa na violação das regras de segurança pelo sinistrado que se exige para ocorrer uma descaracterização do acidente? A posição de Pedro Romano Martinez é a de que a violação das condições de segurança implica a descaraterização do acidente de trabalho desde que ocorra sem justificação, não sendo necessária uma negligência grosseira do sinistrado nessa violação, bastando uma negligência consciente que se entende já assumir a gravidade suficiente para o preenchimento deste pressuposto 5. Os fundamentos desta menor exigência ao nível da apreciação da conduta do sinistrado resultam da circunstância da negligência grosseira resultar já como causa autónoma de descaracterização do acidente de trabalho e, como tal, a violação de condições de segurança sem justificação tem que assumir diferente âmbito ou conteúdo normativo. Daí que esteja em causa uma negligência consciente que, por isso mesmo, já assume gravidade suficiente para justificar a descaraterização do acidente de trabalho, ou seja, impõe-se a verificação de dois requisitos: primeiro o conhecimento das condições de segurança pelo trabalhador e, segundo, a violação negligente destas regras de segurança da empresa. Contudo, esta posição não é isenta de críticas. Desde logo, há quem fale em violação “dolosa” 6 ou em “intencionalidade ou dolo” 7. Por um lado, João Nuno Calvão da Silva defende que “só a culpa qualificada 8 do trabalhador na violação das condições de segurança poderá interromper o nexo causal e afastar ou diminuir a responsabilidade do empregador”, sendo que a mesma tem que ser apreciada no âmbito do artigo 570.º, do Código Civil 9. Por outro lado, Júlio Gomes argumenta, numa primeira linha, que não estão em causa apenas violações de regras de segurança específicas da entidade empregadora pois a norma fala claramente em condições de segurança previstas na lei. Acresce, numa segunda linha, que a tese referida implica a necessidade de distinção entre formas ou modalidades de negligência, designadamente entre negligência inconsciente e consciente, grave e grosseira que tenha sido causa exclusiva do acidente, sem que estas distinções tenham um reflexo normativo. Por fim e, numa terceira linha, o resultado a que se chega com a teoria referida é exatamente o oposto da finalidade com que “foi desenvolvida em França a noção de `faute inexcusable´, mais tarde, `importada´ para o nosso ordenamento como `culpa grave e indesculpável´ 10 e convertida, finalmente, em negligência grosseira, a saber, a de que apenas uma culpa extremamente grave do trabalhador serviria para `descaracterizar´ o acidente” 11. Na sequência destas críticas, Júlio Gomes apresenta uma interpretação alternativa, apelando, desde logo, ao elemento sistemático de interpretação pois esta causa de descaraterização do acidente de trabalho não está normativamente refletida em norma autónoma, mas antes surge associada aos comportamentos dolosos do trabalhador, o que significa que temos que estar perante situações suficientemente graves para surgirem quase equiparadas a situações dolosas. Acresce que historicamente a exclusão da responsabilidade surgia associada a situações de dolo, violações propositadas de ordens expressas emitidas pelo empregador ou atos que diminuam as condições de segurança no trabalho estabelecidas pela entidade patronal ou exigidas pela natureza particular do trabalho 12, violação não justificada das condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal 13 e depois as violações das condições de segurança estabelecidas na lei 14, o que significa que a violação de regras de segurança foi sempre tratada como uma situação de desobediência próxima do dolo e não propriamente próxima da negligência. Para além disso, em matéria de acidentes de trabalho, em geral, “o trabalhador está inserido num ambiente que, no essencial, não controla” e que é propício à ocorrência de acidentes, em que a prevenção individual não pode ser mais importante do que a prevenção coletiva e, por isso, uma violação de condições de segurança sem negligência grosseira 15, não deve ser punida, por desproporcionalidade, com a “privação da reparação por acidentes de trabalho” mas apenas no plano disciplinar 16. Pelo que, a culpa que está em causa no presente preceito, parece ser mais próxima da falta indesculpável, da imprudência, desleixo ou descuido inútil, embora não intencional, ou seja, a negligência grosseira 17, sendo que a compatibilização com a norma prevista na alínea b) terá que ser feita a propósito da exclusividade causal dessa negligência grosseira para a ocorrência do acidente. Assim, temos que ter, no caso, uma violação, sem causa justificativa, por negligência grosseira [ainda que, causalmente, não exclusiva] de uma regra de segurança prevista na lei.
Nos termos do artigo 44.º do Decreto n.º 41821 de 11 de agosto de 1958, «no trabalho em cima de telhados que ofereçam perigo pela inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeito de condições atmosféricas, tomar-se-ão medidas especiais de segurança, tais como a utilização de guarda-corpos, plataformas de trabalho, escadas de telhador e tábuas de rojo». Não há dúvida que a natureza do telhado [placas de fibrocimento ou lusalite] pode aconselhar medidas de segurança, pois é feito de material cuja consistência não é concebida para a circulação de pessoas e a verdade é que, por algum motivo, uma telha fraturou e o autor caiu, mas não podemos afirmar que, só por isso [natureza do material] o telhado não tem consistência suficiente para, sem mais, suportar o peso de um homem a trabalhar, sem qualquer outro reforço e durante pouco tempo. Por outro lado, o autor estava a usar equipamento de segurança contra quedas em altura, mais concretamente estava preso a uma linha de vida com um arnês, o que demonstra que o autor, enquanto trabalhador e gerente da empresa, não é imprevidente, pelo contrário, revela conhecimento e cuidado com a segurança no trabalho. De qualquer forma, a verdade é que, por força de uma eventualidade – a queda do seu telemóvel – o autor, por um momento, para chegar ao telemóvel, soltou o arnês da linha de vida, tendo dado um passo sobre uma telha que quebrou, dando lugar ao acidente. Em rigor, a utilização do equipamento em causa não evitava o acidente, porque a telha sempre quebraria, mas certamente atenuava as consequências, pois o autor não teria embatido no chão, ficando pendurado, eventualmente com algum tipo de lesões, mas sempre mais ligeiras. No entanto, entendemos que, podendo afirmar-se a negligência do autor, que se desprendeu da linha de vida quando estava em cima de telhas de fibrocimento numa altura de quase 6 metros, consideramos que a negligência não é grosseira, pois o autor fê-lo por um breve instante, confiando que não haveria problema, tendo em conta o estado das telhas, a pouca inclinação do telhado e a existência de uma estrutura de suporte que, efetivamente, não era muito espaçada, sendo certo que, tendo em conta o local da queda, o autor tinha que estar próximo dessa estrutura de suporte. É certo que o autor é gerente da empresa, responsável pela implementação das medidas de segurança, mas, por um lado, existiam efetivamente medidas de segurança e, por outro lado, estamos perante um instante, um momento de descuido e o autor, sendo gerente, não deixa de ser um trabalhador que estava a trabalhar ao lado dos outros trabalhadores, correndo os mesmos riscos e fazendo o mesmo trabalho e, por isso, nesta situação concreta, deve ser tratado como tal, estando sujeito à habituação ao perigo que muitas vezes leva a que este tipo de acidentes ocorram, mas que não deixa de apontar para uma negligência não grosseira. Logo, consideramos que não podemos falar em negligência grosseira na violação de uma regra de segurança prevista na lei e efetivamente implantada pela empresa, pois o estado do telhado, a pouca inclinação e a existência de uma estrutura de suporte pouco espaçada, levam-nos a afirmar que a conduta do autor, ainda que fosse um gerente, mais igualmente um trabalhador, deve integrar a esfera de habituação ao perigo típica de situações de negligência não grosseira que, em nosso modesto entendimento, não é suficiente para fundamentar a descaraterização do acidente como de trabalho. Em suma, consideramos que não há lugar à descaracterização do acidente de trabalho».
II.2.1 Concordamos, no essencial, com esta fundamentação e, como logo se percebe, com a conclusão final a que conduziu, significando isso, em consequência, que não reconhecemos razão à recorrente.
Contudo, impõe-se justificar esta asserção, mas sublinhando-se, desde já, que a descaracterização do acidente de trabalho, exonerando o empregador de reparar os danos decorrentes do acidente, pode ter fundamentos diferentes, não confundíveis entre si, que se verificam nas situações enunciadas nas alíneas a) e b), do n.º1, do art.º 14.º, da Lei 98/2009. Uma coisa é a violação, sem causa justificativa, das regras de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; outra bem diferente, a actuação do trabalhador que subsuma ao conceito de negligência grosseira, dado depois pelo n.º3, do mesmo artigo. Assentando em pressupostos distintos, ainda que em determinadas situações em concreto possam existir pontos de contacto, uma dessas causas há-de prevalecer, ou seja, quando há exclusão do direito à reparação tal terá subjacente a verificação de uma causa única.
Uma nota mais, para referirmos que na fundamentação que segue acompanha-se de perto o acórdão desta Relação de 26 de Outubro de 2017, relatado pelo aqui relator e com intervenção do excelentíssimo primeiro adjunto [Proc.º n.º 586/12.7TTGDM.P1, disponível em www.dgsi.pt].
O art.º 2.º da Lei n.º 98/2009, consagra o direito do trabalhador e dos seus familiares à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho, nos termos nela previstos.
Segundo o conceito dado pelo n.º1 do art.º 8.º, da mesma lei, “É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.
Casos há, porém, em que apesar de ter ocorrido um acidente de trabalho, a lei exclui o direito à reparação. Para tanto é necessário que se verifique uma causa excludente daquele direito, nos termos previstos taxativamente na lei, que conduz à denominada “Descaraterização do acidente”. Na actual lei ocupa-se desses casos o art.º 14.º, estabelecendo, no que aqui releva, o seguinte:
[1] O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
[2] Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
[3] Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
Para determinar o sentido e alcance destes normativos, mostra-se pertinente atentar nas correspondentes normas que nos anteriores regimes jurídicos de acidentes de trabalho, nomeadamente, a Lei nº 2127, de 8 de Agosto de 1965, e a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, antecederam as aqui em causa.
II.2.2 Debrucemo-nos, pois, sobre a causa de exclusão do direito à reparação por violação das regras de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei [art.º 14.º n.º1, al. a) e n.º2, da Lei 98/2009].
Na Lei n.º 2127, a Base VI, com a epígrafe “Descaracterização do acidente”, sobre essa causa de exclusão do direito à reparação estabelecia seguinte:
[1] “Não dá direito a reparação o acidente:
a) Que for dolosamente provocado pela vítima ou provier de seu acto ou omissão, se ela tiver violado, sem causa justificativa, as condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal”.
A propósito da parte final dessa norma, Cruz de Carvalho, na sua incontornável obra de anotação à Lei n.º 2127, referindo estarem aí previstos “(..) os casos de violação injustificada das condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal – que o podem ser, quer em regulamento de empresa ou de serviço, quer em ordem especial”, defendeu que para se verificar essa hipótese “(..) não exige a lei, que a violação das condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal seja propositada, intencional - por isso que fala em acto ou omissão –mas exige que tenha sido sem causa justificativa. Assim, não estão ali compreendidos não só os actos involuntários, como até os cometidos com violação daquelas condições de segurança, por espírito de abnegação e sentimento de caridade ou impulso meramente instintivo ou altruísta de salvar outrem, ou o intuito de beneficiar o patrão, ou ainda os devidos a imprudência ou imprevidência resultante do longo hábito ao contacto diário com o perigo”. E, após elucidar sobre a necessidade de demonstração de um nexo de causalidade entre o acto ou omissão violador das condições de segurança e o acidente, concluiu o seguinte:
- “Para que se verifique a hipótese prevista na 2.ª parte da alínea a), é necessária a prova cumulativa (que compete à entidade patronal): 1.º) da existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal; 2.º) da existência de acto ou omissão da vítima que os viola; 3.º) que tal acto seja voluntário, embora não intencional, e sem causa que o justifique; 4.º) que o acidente tenha sido consequência desse acto ou omissão”. [Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Legislação Anotada, 2.ª Edição, Livraria Petrony, Lisboa, 1983, pp. 50/51].
Como se sabe, àquela lei sucedeu a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, na qual as causas excludentes do direito à reparação do acidente de trabalho encontram-se no art.º 7.º, igualmente com a epígrafe “Descaracterização do acidente”, no que aqui releva, dispondo o seguinte:
[1]”Não dá direito a reparação o acidente:
a) Que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei;
Por seu turno, o art.º 8º n.º 1 do D.L. n.º 143/99 (correspondente ao n.º2, do actual art.º 14.º), ao regulamentar o preceito transcrito, estipula como segue:
Para efeitos do disposto no artigo 7º da Lei, considera-se existir causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pela entidade empregadora da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la”.
Confrontando essas normas, vê-se que na evolução da Lei n.º2127, para a lei 107/97, as únicas inovações consistiram em acrescentar – na alínea a) - que a violação das condições de segurança pode incidir quer sobre as estabelecidas pela entidade empregadora (na terminologia anterior, entidade patronal), quer em relação às “previstas na lei”; e, para além disso, que foi acrescida uma norma procurando clarificar quando se deve entender “existir causa justificativa da violação das condições de segurança” (o art.º 8º n.º 1 do D.L. n.º 143/99). Por último, constata-se que daquela última lei para a actual não resultou qualquer inovação, apenas havendo alterações de redação e terminologia (empregador, em vez de entidade empregadora), para além da inclusão do n.º 2, no art.º 14.º, em resultado da opção legislativa pela inclusão de normas regulamentadoras na própria lei, deixando de existir um diploma regulamentador autónomo.
Feita esta constatação, é seguro afirmar-se que mantêm inteira validade e actualidade os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais suscitados pela interpretação e aplicação desta causa excludente do direito à reparação, desde a mais longínqua Lei 2127, passando pela mais recente, mas também já revogada, Lei n.º 100/97.
Na esteira do que já era entendido na Lei n.º 2127, acima expresso pelas palavras de Cruz de Carvalho, há um entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, respaldado também na doutrina, no que respeita à causa excludente do direito à reparação, a que se reporta a al. a), do art.º 7.º da lei n.º 100/97. Elucida-o o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Dezembro de 2012, onde a propósito se pode ler o seguinte:
- «Assim, a causa excludente do direito à reparação do acidente a que se alude na segunda parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º, tal como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 17 de Maio de 2007 (Revista n.º 53/2007, da 4.ª Secção), exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; (ii) acto ou omissão do sinistrado que importe a violação dessas condições de segurança; (iii) voluntariedade desse comportamento, ainda que não intencional, e sem causa justificativa; (iv) nexo causal entre o acto ou omissão do sinistrado e o acidente».
Nas palavras do professor Pedro Romano Martinez [Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 851-852], neste caso, «o legislador exige somente que a violação careça de “causa justificativa”, pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 7.º da LAT (correspondentes às mesmas alíneas do n.º 1 do artigo 290.º do Código do Trabalho) tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras.»
E, mais adiante, conclui, «[s]e o trabalhador, conhecendo as condições de segurança vigentes na empresa, as viola conscientemente e, por força disso, sofre um acidente de trabalho, não é de exigir a negligência grosseira do sinistrado nessa violação para excluir a responsabilidade do empregador. Contudo, a responsabilidade não será excluída se o trabalhador, atendendo ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento das condições de segurança ou se não tinha capacidade de as entender (artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 143/99)».
Note-se, que na mesma linha fundamental de entendimento, o sobredito acórdão de 17 de Maio de 2007, referindo-se à segunda situação prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º, afirma que «[s]e a lei se basta, na espécie, com o pressuposto assinalado — ausência de causa justificativa — é porque recai sobre o trabalhador um especial dever de observar […] as condições de segurança que lhe são impostas», dever especial que «é tanto mais evidente quanto é certo que a lei só justifica a omissão quando seja de concluir que o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento da norma impositiva ou tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la — artigo 8.º, n.º 1, supra citado».
[Proferido no processo 827/06.0TTVNG.P1.S1, Pinto Hespanhol; no mesmo sentido, vejam-se, ainda os Acórdãos do STJ seguintes: 17-05-2007, Proc.º 07S053, Sousa Grandão;22-11-2007, Proc.º 07S3657, Pinto Hespahol; 19-12-2007, Proc.º 07S3381, Bravo Serra; 25-03-2009, Proc.º 09S0227, Pinto Hespanhol; 3-06-2009, Proc.º 1321/05.1TBAGH.S1, Bravo Serra; 9-12-2010, Proc.º 838/06.5TTMTS.P1.S1, Mário Pereira;18-05-2011, Proc.º 1368/05.8TTVNG-C1.S1, Pinto Hespanhol; 3-10-2012, Proc.º 54/03.8TBPSR.E1, Gonçalves Rocha; 28-11-2012, Proc.º 181(07.2TVFIG.C1.S1, Pinto Hespanhol, todos eles disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj].
Aquele mesmo autor, pronunciando-se em obra mais actual [Direito do Trabalho, 6ª Edição, Almedina, 2013, p. 819 e segs.], sobre a violação das condições de segurança sem causa justificativa, referida no art.º 14.º, n.º 1, alínea a), da Lei 98/2009, reafirma aquele entendimento, escrevendo o seguinte:
- «Neste caso, o legislador exige somente que a violação careça de “causa justificativa”, pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.º 1, do art.º 14.º, do Regulamentação do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras.
As condições de segurança, quando estabelecidas pela entidade patronal, podem constar de regulamento interno de empresa, de ordem de serviço ou de aviso afixado em local apropriado na empresa. As condições de segurança podem igualmente encontrar previsão na lei e, neste caso, incluem-se não só as regras de segurança no trabalho, como as que respeitam à segurança em outros sectores, nomeadamente na circulação rodoviária.
Se o trabalhador, conhecendo as condições de segurança vigentes na empresa, as viola conscientemente e, por força disso, sofre um acidente de trabalho, não é de exigir a negligência grosseira do sinistrado nessa violação para excluir a responsabilidade do empregador”.
Mas releva também assinalar que em qualquer das obras citadas, ao debruçar-se sobre as causas de exclusão e de redução da responsabilidade emergente de acidente de trabalho e a propósito da culpa do trabalhador, o Professor Pedro Romano Martinez antecede a posição acima transcrita, referindo que a “exclusão ou a redução da responsabilidade por acidentes de trabalho pode advir de motivos imputáveis à vítima. Corresponde a uma autorresponsabilização do trabalhador pela sua conduta”, mas depois afirmando que “não é qualquer atuação menos cuidada por parte do trabalhador que acarreta a exclusão ou a redução da responsabilidade; torna-se necessário que a falta tenha alguma gravidade.
Começando por assinalar que a interpretação dessa posição não é, para si, tarefa fácil, o Professor Júlio Manuel Vieira Gomes [O Acidente de Trabalho, O acidente in itinere e sua descaracterização, Coimbra Editora, p. 224 e sgts], debruçando-se sobre a mesma, escreve o seguinte:
- «Em primeiro lugar, parece-nos que PEDRO ROMANO MARTINEZ não se basta, claramente, com uma negligência inconsciente do trabalhador, na violação das regras de segurança, para que haja uma descaracterização do acidente de trabalho, exigindo que o trabalhador “conhecendo as condições de segurança” as viole conscientemente.
Mas a posição adoptada (..) parece ser a de que basta aqui, na violação das condições de segurança, esta negligência consciente – que parece ser, para alguns, automaticamente grave – não se exigindo uma negligência grosseira, como na alínea b), do n.º1 do art.º 14.º. Ou seja, não se exige negligência grosseira, mas apenas negligência grave (seja qual for a diferença…) ou, porventura, negligência consciente, na violação das regras de segurança para que opere a descaraterização do acidente. Com a consequência, é claro, de que não se aplicaria aqui a parte final do n.º3 do artigo 14.º que atende à habitualidade no perigo do trabalho executado, à confiança na experiência profissional para permitir afastar, no caso concreto, a negligência grosseira.
(..)
A tese do Autor acarreta, com efeito, a necessidade de distinguir, dentro da negligência, a negligência inconsciente (que não relevaria para descaracterizar o acidente), a negligência consciente ou, porventura, a negligência grave (que seria tudo o que se exigiria para que a violação das condições de segurança sem causa justificativa descaracterizasse o acidente) e a negligência grosseira, causa exclusiva do acidente. A história conhece exemplos de graduações de culpa (..). Esta distinção, contudo, não só não tem qualquer apoio na letra da lei – em matéria de acidentes de trabalho a nossa lei nunca se refere a uma negligência grave do trabalhador, que se contraponha ou distinga de negligência grosseira (…)».
O Professor Júlio Manuel Vieira Gomes prossegue a sua análise, fazendo uma incursão pelos antecedentes da atual legislação e debruçando-se sobre vários arestos da jurisprudência dos tribunais superiores que se debruçaram sobre a questão da descaracterização do acidente de trabalho por violação das regras de segurança, para em jeito de conclusão dizer parecer-lhe que «(..) tanto pelas razões históricas já atrás aduzidas, como para garantir a coerência do sistema face às consequências extremamente severas da descaracterização - com a exclusão de todas as prestações, ressalvando-se apenas o dever de prestar primeiros socorros e pedir auxílio – não pode ser o mero facto da violação das regras de segurança que opera a descaracterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave, ao que acresce que outras «justificações» poderão ser relevantes. Terá, por conseguinte, que verificar-se, também aqui, uma culpa grave do trabalhador, tão grave que justifique a sua exclusão, mesmo que ele esteja a trabalhar, a executar a sua prestação, do âmbito de tutela dos acidentes de trabalho. Essa culpa deverá ser aferida em concreto e não em abstrato, e não poderá deixar de atender a fatores como o excesso de confiança induzido pela própria profissão, a eventual passividade do empregador perante condutas similares no passado – até porque muitos especialistas sublinham que o desrespeito por regras de segurança resulta, muitas vezes, de o trabalhador tentar encontrar “atalhos” para produzir mais rapidamente, sobretudo quando lhe são impostos ritmos de produção muito elevados ou de o trabalho ter sido, anteriormente, elogiado ou apreciado, apesar de o empregador bem saber que tinha sido prestado com violação das condições de segurança – e, simplesmente, fatores fisiológicos e ambientais, como o cansaço, o calor ou o ruído existentes no local de trabalho. Destarte, deve considerar-se, (..) que a violação das regras de segurança pode ter outras causas justificativas para além das dificuldades do trabalhador em conhecer ou entender a norma legal ou estabelecida pelo empregador» [Op. cit., p.240/246].
Acompanha-se esta posição do Professor Júlio Manuel Vieira Gomes, pois, conforme se assinala no Ac. do STJ de 11/05/2017 [Proc.º 1205/10.1TTLSB.L1.S1, Conselheiro Chambel Mourisco, disponível em www.dgsi.pt], compagina-se “com os objetivos de uma lei que se pretende que seja o mais amplamente reparadora dos acidentes de trabalho”, aceitando-se que o mero facto da violação das regras de segurança não é bastante que operar a descaracterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave, bem assim que a violação das regras de segurança, por parte do trabalhador, possa ter outras causas justificativas para além das referidas no n.º 2, do art.º 14, da Lei 98/2009.
Em suma, de tudo isto retira-se o seguinte:
i) A causa excludente do direito à reparação do acidente a que se alude na segunda parte da alínea a) do n.º 1, a conjugar com o n.º2, do artigo 14.º, da Lei n.º 98/2009, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (a) que se trate de uma conduta do acidentado, seja ela por acção, seja por omissão; (b) que essa conduta seja representativa de uma vontade do mesmo iluminada pela intencionalidade ou dolo na adopção dela; (c) que inexistam causas justificativas, do ponto de vista do acidentado, para a violação das condições de segurança; (d) que existam, impostas legalmente ou por estabelecimento da entidade empregadora, condições de segurança que foram postergadas pela conduta do acidentado; e) que se verifique um nexo causal entre o acto ou omissão do sinistrado e o acidente.
ii) Sendo um dos requisitos exigidos a voluntariamente na violação das regras de segurança, quer legais quer estabelecidas pela entidade patronal, ficam excluídos da descaracterização os actos ou omissões que resultem as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes ou não da habituação ao risco.
iii) A violação das regras de segurança, só por si, não é bastante que operar a descaracterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave do sinistrado.
iv) A violação das regras de segurança, por parte do trabalhador, pode ter outras causas justificativas para além das dificuldades daquele em conhecer ou entender a norma legal ou estabelecida pelo empregador.
II.2.3 Prosseguimos para a segunda causa de descaracterização do acidente de trabalho prevista na lei, com a consequente exclusão do direito à reparação, isto é, quando o acidente provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado [art.º 14.º n.º1, al. b) e n.º 3, da Lei 98/2009].
Na Lei n.º 2127, a Base VI, com a epígrafe “Descaracterização do acidente”, no que aqui interessa, dispunha o seguinte:
[1] Não dá direito a reparação o acidente:
a) (..)
b) Que provier exclusivamente da falta grave e indesculpável da vítima.
A propósito da parte final dessa norma, Cruz de Carvalho observa que a lei considera «[..] indemnizáveis os acidentes resultantes de negligência, imprudência, imprevidência, imperícia, distracção, esquecimento de uma ordem e comportamentos análogos, abrangidos na figura jurídica de culpa em sentido genérico, como a simples e involuntária inobservância daquele diligência que se deveria ter empregado, e que se tivesse sido empregada teria impedido a realização do facto danoso», defendendo que para aplicação dessa norma “[..] é preciso que haja um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, uma impudência e temeridade inútil, indesculpável, mas voluntária embora não intencional, e além disso que tal comportamento seja a causa única do acidente, como resulta do advérbio “exclusivamente”; (..)» [Op. cit. p. 51].
Releva assinalar, que o Decreto-lei n.º 360/71, de 21 de Agosto, diploma que regulamentou aquela lei, veio estabelecer no art.º 18.º - reportando-se à Base VI n.º1 al. a) da Lei - o seguinte: ”Não se considera falta grave e indesculpável da vítima do acidente o acto ou a omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes das profissões”.
Face ao disposto na Base VI da Lei 2127 e no art.º 18.º do respectivo regulamento, era entendimento dominante da doutrina e da jurisprudência, exigir-se um comportamento temerário, que revestisse as características de indesculpabilidade e de inutilidade ou desnecessidade. Para que tal sucedesse, impunha-se o comportamento fosse reprovado por um elementar sentido de prudência, por evidenciar de forma manifesta uma temeridade voluntária, não necessariamente intencional, mas inútil e indesculpável. Para afastar o direito à reparação, não bastava, portanto, um acto de mera negligência ou imprudência, a culpa simples (leve ou levíssima), sendo necessário que a negligência revestisse a natureza de negligência grosseira [nesse sentido, entre outros, Acórdãos do STJ de 1-3-85, Ac. Doutr. n.º 282, p.749; de 24-01-85, BMJ n.º 361, p. 268; de 30-01-87, BMJ n.º 363, p. 378; de 19-06-87, Ac. Doutr. n.º 308/309, p. 1219; de 3-03-88, Ac. Doutr. 322, p. 1297; e de 20-09-88, Ac. Doutr. n.º 324, p. 1594].
Na Lei 100/97, de 13 de Setembro, usualmente designada por LAT, esta matéria constava regulada no art.º 7 [Descaracterização do acidente], com o texto seguinte:
[artigo 7.º ]
1 - Não dá direito a reparação o acidente:
(..)
b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
(..)».
Por seu turno, o n.º 2 do art.º 8.º, do DL 143/99 de 30 de Abril, que regulamentou a LAT, veio estabelecer: “Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”.
Confrontando estas disposições com os correspondentes normativos do precedente regime de reparação dos acidentes de trabalho, constata-se que os mesmos não trouxeram qualquer alteração essencial, apenas procurando integrar, com novas redacções, aquele entendimento desenvolvida pela doutrina e pela jurisprudência.
Justamente por isso, no que respeita à causa excludente do direito à reparação, a que se reporta a al. b), do art.º 7.º da Lei n.º 100/97, aquela linha de entendimento afirmada desde a Lei 2127 manteve-se pacífica na jurisprudência dos tribunais superiores. Elucidam-no os sumários dos Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (disponíveis em www.dgsi.pt), que se passam a transcrever:
i) “I -Para que um acidente de trabalho provenha exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, é necessário: (i) que se verifique uma acentuada e indesculpável falta de cuidados, diligência e zelo, face ao circunstancialismo rodeador da actuação, por tal forma que, num juízo de prognose póstuma, se alcance um juízo segundo o qual um homem já dotado de boa diligência, se estivesse colocado na posição do sinistrado, não teria prosseguido idêntico comportamento; (ii) que o comportamento verificado seja causa adequada e exclusiva do sinistro. [Acórdão de 22-11-2007, Recurso n.º 3659/07, Conselheiro Bravo Serra].
ii) “ II - A negligência grosseira a que alude o art. 7.º, n.º 1, al. b) da LAT/97 e o n.º 2 do art.º 8º do RLAT traduz um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, comportamento esse que só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser assumido, revestindo as características da indesculpabilidade e da inutilidade ou desnecessidade” [Acórdão de 22-04-2009, proc.º 08S1901, Conselheiro Mário Pereira];
ii) “I- Para excluir o direito à reparação de acidente de trabalho, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (LAT), é indispensável que o evento seja imputado, em termos de causalidade adequada, exclusivamente, a comportamento temerário em alto e relevante grau do sinistrado (n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril), o que implica, por um lado, a prova de que o acidente se deveu a conduta inútil, indesculpável, sem fundamento, e de elevado grau de imprudência, da vítima, e, por outro lado, a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção.
(..)
IV - O ónus da prova dos factos que integram a negligência grosseira e a imputação do nexo de causalidade, a título exclusivo, entre ela e o evento danoso, recai, por serem factos impeditivos do direito à reparação, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, sobre a parte demandada” [Ac. de 17-09-2009, proc.º n.º 451/05.4TTABT.S1, Conselheiro Vasques Dinis].
Avançando para a actual Lei 98/2009, sendo certo que as correspondentes disposições, acima transcritas, acolhem os normativos da Lei 100/97, é seguro afirmar-se que mantêm inteira validade e actualidade os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais suscitados pela interpretação e aplicação desta causa excludente do direito à reparação, desde a Lei 2127.
Em suma, para que se considere que há “negligência grosseira”, para os efeitos do art.º 14.º n.º1, al. b) e n.º3, é necessário estar-se perante uma conduta do sinistrado que se possa considerar temerária em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, que ofenda as mais elementares regras de senso comum e que não se materialize em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.
Compete à entidade que invoca a descaracterização do acidente por negligência grosseira do sinistrado, alegar e provar os factos que a integram, bem assim a imputação do nexo de causalidade, a título exclusivo, entre ela e o evento danoso, nos termos gerais da repartição do ónus de prova, por serem factos impeditivos do direito à reparação (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).
II.3 Revertendo ao caso, defende o recorrente verificar-se a exclusão do direito à reparação prevista na al. a) do n.º1 do art.º 14.º da LAT, alegando que o autor violou as medidas de segurança implementadas em conformidade com o Regulamento de Segurança no Trabalho de Construção Civil - DL 41 821, de 11-08-1958 -, as quais até foram por si determinadas na qualidade de gerente da empresa que executava a obra, dado que ao proceder à substituição de telhas de fibrocimento por painéis de sanduiche, desengatou previamente o gancho do seu cinto de segurança da corda da linha de vida para se deslocar em cima do telhado da cobertura.
Sustenta que o sinistrado agiu de forma voluntária e sem causa justificativa, pois não era imperioso que se deslocasse sem proteção só para apanhar o telemóvel. Foi nessas circunstância, ao dar um passo, que uma dessas telhas partiu-se e o autor caiu no interior do armazém, existindo nexo de causalidade entre a violação da medida de segurança e o acidente.
Com base naqueles mesmos factos, refere ainda que o autor fazia aquelas tarefas há anos, para defender que “o autor tinha especiais conhecimentos dos riscos que enfrentava e experiência dessas tarefas, pelo que a sua violação da medida de segurança é de especial gravidade e censurabilidade, constituindo um comportamento temerário, arriscado, imprudente, em alto e relevante grau de risco, razão pela qual ocorre negligência grosseira”, nessa consideração concluindo verificar-se igualmente a exclusão do direito à reparação, nos termos previstos na al. b), do n.º1, do art.º 14.º da Lei 98/2009.
Os factos relevantes para apreciação das questões suscitadas pela recorrente são os seguintes:
5. O autor encontrava-se sobre o telhado de cobertura de um armazém, sensivelmente a meio e na parte mais alta, para proceder à substituição de telhas de fibrocimento por painéis de sanduiche.
7. Ao executar as suas tarefas, o telemóvel do autor, colocado num bolso do colete, caiu.
8. O autor decidiu ir buscar o telemóvel.
9. Quando deu um passo sobre as telhas, uma das telhas partir e o autor caiu no interior do armazém.
10. Na obra tinha sido montada uma corda de linha de vida e o autor tinha o cinto colocado e montado nessa corda.
11. Para chegar ao telemóvel, o autor desengatou previamente o gancho do seu cinto da corda de linha de vida.
12. O autor tinha conhecimento dos riscos de caminhar sobre a zona dessas telhas.
13. O autor sabia que tinha de deslocar-se mantendo-se preso à linha de vida e caminhar sobre as telhas na parte em que estas estão apoiadas na estrutura, mas confiou na solidez do telhado que não apresentava sinais de desgaste, o telhado quase não tinha inclinação e era atravessado por uma estrutura de suporte das telhas com pouco mais de um metro de distância entre suportes.
14. O autor fazia estas tarefas há alguns anos.
A recorrente tem razão quando alega que existiam regras de segurança definidas e conformes às exigência legais, atento o facto de os trabalhos decorrerem em altura e sobre telhado, bem assim ao defender que o sinistrado agiu de forma voluntária e que existe nexo causal entre a violação da medida de segurança e o acidente. De resto, o Tribunal a quo afirma-o.
É também verdade que não era imperioso que o sinistrado se deslocasse sem proteção para apanhar o telemóvel. Certamente haveria outra solução que permitiria recolher o telemóvel sem correr o risco de queda ou, pelo menos, sem estar desprotegido para essa eventualidade.
Contudo, contrariamente ao que pretende sustentar a recorrente, acompanhando-se o Tribunal a quo, cremos não poder concluir-se pela descaracterização do acidente de trabalho por violação das regras de segurança.
Como refere o Tribunal a quo o sinistrado, enquanto gerente da empresa que assegurava aqueles trabalhos determinou a implementação do meio de segurança que estava a ser utilizado, nomeadamente, arnês de segurança com ligação à denominada linha de vida. Pode não ser suficiente para evitar uma queda naquelas condições de trabalho, mas garante que nesse caso o trabalhador fique suspenso, não havendo um embate no solo e, logo, minimizando substancialmente o risco de lesões graves. Daí referir o Tribunal a quo, com pertinência, que a existência desse meio de segurança, por determinação do sinistrado, demonstra que este tinha preocupações com a observância de regras de segurança na execução daqueles trabalhos.
Como provado, é também certo que o autor tinha conhecimento dos riscos de caminhar sobre a zona dessas telhas, sabendo que tinha de deslocar-se mantendo-se preso à linha de vida e caminhar sobre as telhas na parte em que estas estão apoiadas na estrutura.
Não há dúvida que a conduta do sinistrado é censurável. Ciente de tudo isso, deveria ter agido serena e sensatamente, procurando outra solução para apanhar o telemóvel, ao invés de decidir ir buscá-lo, para tanto desligando-se da linha de vida.
Não obstante, como consta provado tomou essa decisão confiando na solidez do telhado que não apresentava sinais de desgaste e, também, na consideração de que o telhado quase não tinha inclinação e era atravessado por uma estrutura de suporte das telhas com pouco mais de um metro de distância entre suportes. É inegável, que fui uma decisão desacertada, mas na perspectiva do sinistrado é de crer que considerou, ainda que mal, numa avaliação em que teve em conta aqueles factores e ponderou a situação de acordo com a sua experiência, que não iria correr o risco de uma telha se quebrar, provocando-lhe uma queda de cerca de seisa metros de altura para o interior do armazém. A exposição habitual aos riscos e perigos de uma actividade, é susceptível de conduzir a avaliações de risco menos exigentes, levando a confiar em sinais de aparente segurança.
Atendendo a este circunstancialismo, cremos não poder concluir-se que a conduta do sinistrado, ainda que culposa, assuma um grau de gravidade que exija considerar-se descaracterizado o acidente de trabalho, com a consequente perda do direito à reparação.
Neste sentido, para além das referências acidam deixadas, pronunciou-se o ST,J em recente acórdão de 13-10-2021 [Proc.º 3574/17.3T8LRA.C1.S1, Conselheira Paula Sá Fernandes, disponível em www.dgsi.pt], em cujo sumário consta o seguinte:
I - Ocorre descaracterização do acidente de trabalho com o fundamento estabelecido na segunda parte da alínea a), do n.º 1, do art.º 14.º, da LAT, se o acidente provier de ato ou omissão da vítima, se ela tiver violado, sem causa justificativa, as condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal.
II - Assim, não basta a mera violação das regras de segurança para que o acidente seja descaraterizado. É necessário que essa infração ocorra por culpa grave do trabalhador e que este tenha consciência da violação.
III - Na situação dos autos, apurou-se que, imediatamente antes da ocorrência do acidente, o Autor retirou o arnês do qual fazia uso, porquanto pretendia descer pela plataforma de acesso à cobertura, a fim de se deslocar à casa de banho, só não o tendo feito porque ao ver o seu colega a transportar um painel, foi auxiliá-lo na sua colocação, altura em que escorregou e caiu para o solo, a cerca de 5 metros de altura.
IV - A matéria de facto apurada não permite concluir que o Autor tenha atuado com culpa de tal modo grave ou de modo injustificado, como, se exige na segunda parte, da al. a), do nº 1, do art.º 14º, da LAT, a fim de se poder falar da descaracterização do acidente cuja prova incumbia à Seguradora.
Avançando para a segunda linha de argumentação da recorrente, valem aqui as considerações que se deixaram acima relativamente à conduta do sinistrado e ao circunstancialismo envolvente.
Ora, diremos mesmo que de forma bem clara, contrariamente ao que pretende sustentar a recorrente, da matéria provada não resulta o necessário para se concluir estar-se perante uma conduta do sinistrado que se enquadre na noção de negligência grosseira, ou seja, como se acima se concluiu, uma conduta que se possa considerar temerária em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, que ofenda as mais elementares regras de senso comum e que não se materialize em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.
Há uma conduta culposa, censurável, mas fruto de uma má avaliação do risco que a situação envolvia, à qual está subjacente a excessiva confiança do sinistrado na ponderação dos sinais, levando-o a confiar na solidez do telhado.
Ora, essa conduta não pode de todo enquadrar-se na nocão de negligência grosseira.
Concluindo, improcede o recurso, não merecendo a sentença censura.

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença.

Custas do recurso a cargo da Ré Seguradora, atento o decaimento (art.º 527.º do CPC)

Porto, 15 de Novembro de 2021
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira