Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1/09.3AABRG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL
TÉCNICO OFICIAL DE CONTAS
Nº do Documento: RP201205021/09.3aabrg-A.P1
Data do Acordão: 05/02/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: QUEBRA DE SIGILO
Decisão: DISPENSADO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O sigilo profissional dos técnicos oficias de contas visa proteger, em primeira linha, a confiança das entidades para quem trabalham, na sua discrição quanto a informações familiares, pessoais e patrimoniais.
II - Se é essa entidade que requerer o depoimento do técnico oficial de conta justifica-se, desde logo, a quebra do sigilo profissional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Quebra de Sigilo Pr.1/09.3AABRG-AP1
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Acordam, em conferência, os Juízes na 1ª Secção Criminal da Relação do Porto
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No processo com o nº. 1/09.3AABRG-AP1, que corre termos no Tribunal Judicial de Alijó, em que vêem acusados B… e “C…” da prática de um crime de introdução fraudulenta ao consumo, p. e p. pelos artigos 96º, nº 1, b), e 97º, b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, foi suscitada a intervenção deste Tribunal da Relação, nos termos do artigo 135º, nº 3, do Código de Processo Penal, para quebra do sigilo profissional invocado pela testemunha, arrolada pelos arguidos, D…, técnico oficial de contas da sociedade arguida (cfr. fls. 19).
Nos termos do artigo 135º, nº 4, do Código de Processo Penal, foi ouvida a Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, que se pronunciou no sentido de que a testemunha em causa está sujeita a dever de sigilo profissional quanto aos factos sobre que deveria depor, mas que não se opõe à quebra desse dever (cfr. fls. 38).
Neste tribunal, a representante do Ministério Público emitiu o douto parecer de fls. 45 e 46, pronunciando-se no sentido de que a quebra do sigilo profissional se mostra justificada
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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A questão a decidir consiste em apreciar se no caso dos autos deve ser ordenada a quebra do sigilo profissional.
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Nos termos do artigo 54º, nº 1, c), do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (aprovado pelo Decreto-Lei nº 452/99, de 5 de novembro e alterado pelo Decreto-Lei nº 310/2009, de 26 de outubro), constitui dever dos técnicos oficiais de contas «guardar segredo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das sua funções, dele só podendo ser dispensados por tais entidades ou por decisão judicial, sem prejuízo dos deveres legais de informação perante a Direção-Geral dos Impostos, a Inspeção-Geral de Finanças e outros organismos legalmente competentes na matéria».
Nos termos do artigo 10º do Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas (aprovado pelo Decreto-Lei nº 310/2009, de 26 de Outubro, e publicado como anexo II deste diploma), os técnicos oficiais de contas e seus colaboradores «estão obrigados ao sigilo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, devendo adotar as medidas adequadas para a sua salvaguarda»
Assim, os técnicos oficias de contas podem escusar-se a depor sobre factos objecto de segredo profissional, impondo-se ao tribunal de primeira instância que afira da legitimidade ou ilegitimidade de tal escusa. Contudo, se esse tribunal concluir no sentido da legitimidade da escusa, é solicitada ao tribunal da Relação competente a prestação de depoimento, devendo o tribunal ordená-la, com quebra do segredo profissional, sempre que entender que esta se mostra justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente, tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos (cfr. art. 135º, nºs 1 a 3, do Código de Processo Penal).
O bem jurídico tutelado pela protecção do sigilo profissional dos técnicos oficiais de contas, é, em primeira linha, o da confiança das entidades para quem trabalham na sua discrição quanto a informações familiares, pessoais e patrimoniais.
A protecção constitucional do dever de sigilo encontra a sua raiz no “direito à identidade pessoal, à imagem, à reserva da identidade da vida privada e familiar” e “às garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas (...) de informações relativas às pessoas e famílias”, a que se refere o art. 26.º da Constituição da República Portuguesa.
Por sua vez, o dever de colaboração com a administração da justiça visa satisfazer o interesse público do jus puniendi.
A respeito deste conflito de valores e interesses, afirma Costa Andrade (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra, 1999, págs. 795 e 796)):
«(...) o tribunal competente só pode impor a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. Uma fórmula que se projecta em quatro implicações normativas fundamentais:
a) Em primeiro lugar e por mais óbvia, avulta a intencionalidade normativa de vincular o julgador a padrões objectivos e controláveis, não cometendo a decisão à sua livre apreciação.
b) Em segundo lugar, resulta líquido o propósito de afastar qualquer uma de duas soluções extremadas: tanto a tese de que o dever de segredo prevalece invariavelmente sobre o dever de colaborar com a justiça penal (...), como a tese inversa, de que a prestação de testemunho perante o tribunal (penal) configura, só por si e sem mais, justificação bastante da violação do segredo profissional (...).
c) Em terceiro lugar, o apelo ao princípio da ponderação de interesses significa o afastamento deliberado da justificação, neste contexto, a título de prossecução de interesses legítimos (...). Isto é: a realização da justiça penal, só por si e sem mais (despida do peso específico dos crimes a perseguir) não figura como interesse legítimo bastante para justificar a imposição da quebra do segredo (…).
d) Em quarto lugar, com o regime do art. 135º do C.P.P., o legislador português reconheceu à dimensão repressiva da justiça penal a idoneidade para ser levada à balança da ponderação com a violação do segredo: tudo dependerá da gravidade dos crimes a perseguir (...)».
Confrontando-se, nos autos, dois interesses conflituantes - a tutela do sigilo profissional e o dever de colaboração com a administração da justiça penal - nos termos do supra citado artigo 135º, nº 3, do Código de Processo Penal, deverá este Tribunal da Relação decidir no sentido da solicitada quebra de sigilo profissional, caso esta se mostre justificada face ao princípio da prevalência do interesse preponderante e segundo um critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como o impõe o nº 2 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.
No caso vertente, o depoimento em causa versa sobre matéria de que a testemunha terá tido conhecimento no âmbito das suas funções de técnico oficial de contas. Estará, assim, esta testemunha sujeita a dever de sigilo profissional. Há que considerar, porém, que ela é arrolada pela própria entidade para quem prestou tais serviços (a C…), assim como pelo respetivo gerente, ambos arguidos nos autos, que entendem ser tal depoimento essencial à sua defesa e à descoberta da verdade.
Ora, sendo o interesse protegido pelo sigilo profissional, em primeira linha (e sendo certo que não deixa de ser protegido um interesse mais amplo de tutela da confiança comunitária nos serviços dos técnicos oficiais de contas), relativo à entidade para quem o técnico oficial de contas em causa presta, ou prestou, serviços, e sendo, no caso vertente, essa mesma entidade a requerer o depoimento em causa, justifica-se, neste caso desde logo por este motivo, a quebra do sigilo profissional.
Além disso, sempre o interesse da descoberta da verdade e da correta administração da justiça (que supõe a consideração do que é sustentadamente alegado pela defesa) poderia justificar tal quebra.
Entende-se, assim, face ao disposto no artigo 135º, nºs. 2 e 3, do Código de Processo Penal, que a testemunha D… deve ser dispensada do cumprimento do dever de sigilo profissional, no que se refere ao seu depoimento requerido nos autos em apreço pelos arguidos.
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Nos termos expostos, acordam os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em dispensar do dever de sigilo profissional a testemunha, arrolada pelos arguidos, D…, determinando que esta preste o depoimento requerido no âmbito do processo nº 1/09.3AABRG-AP1.
Sem tributação.

Porto, 2/5/2012
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Maria Godinho Vaz Pato
Eduarda Maria de Pinto e Lobo