Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
451/21.7T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR DO PEDIDO
Nº do Documento: RP20210929451/21.7T8VNG.P1
Data do Acordão: 09/29/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não é fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo da alínea c) do nº 1 do art. 238º do CIRE, a circunstância de o insolvente no período de dez anos anterior à data do início do presente processo de insolvência ter formulado pedido de exoneração do passivo restante no âmbito de outro processo sobre o qual incidiu despacho inicial de admissão, mas cujo procedimento veio depois a ser declarado cessado antecipadamente por razões imputáveis ao próprio insolvente.
II - Da interpretação da alínea c) do nº 1 do art. 238º do CIRE decorre que somente a exoneração definitiva do passivo restante concedida no período de dez anos anterior ao início do processo de insolvência constitui fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 451/21.7T8VNG.P1
Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 5
Apelação
Recorrente: B…
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Carlos Querido

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
Por despacho proferido em 13.5.2021 foi indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente B… com a seguinte fundamentação:
“Nos termos do disposto no art. 238º, n.º 1, alínea c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido se o devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência.
A referida disposição legal impede, assim, que o devedor que tiver beneficiado da exoneração nos 10 anos anteriores volte a beneficiar do mesmo instituto.
No caso em apreço, como resulta dos factos, no anterior processo de insolvência não foi concedida ao insolvente a exoneração do passivo restante, devido ao facto de o mesmo ter violado os principais deveres exarados no art. 239º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
O insolvente incumpriu, pois, as obrigações a que se encontrava obrigado, nomeadamente, a obrigação prevista na alínea c) do n.º 4 do art. 239º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Tal circunstância não pode deixar de se enquadrar na alínea c) do n.º 1 do art. 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sendo, por isso, fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Na verdade, não faz sentido que no caso de ser proferido despacho final da exoneração (cfr. art. 244º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) o devedor fique impedido de requerer a exoneração do passivo restante nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do art. 238º do referido Código e tal já não se verifique no caso de ter sido recusada a concessão da exoneração nos termos do disposto nos arts. 243º, n.º 1, alínea a), e 244º, n.º 2, do referido Código, quando se concluiu que o devedor com grave negligência, no mínimo, violou as obrigações que lhe eram impostas, como ocorreu no anterior processo de insolvência.
Por outro lado, também se nos afigura que estão verificados os requisitos previstos na alínea d) do n.º 1 do art. 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. De facto, o insolvente contraiu novas dívidas, incluindo no período da cessão no anterior processo de insolvência, sendo certo que o mesmo não melhorou a sua situação patrimonial - as dívidas aumentaram, ao que não correspondeu uma valorização do seu património, tendo o insolvente acções executivas pendentes desde 2019.
Assim sendo, a pretendida exoneração do passivo restante deve ser liminarmente indeferida.”
Inconformado com esta decisão dela interpôs recurso o insolvente que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª. Vem o presente recurso interposto da douta decisão com o registo nº 423328407, de 13.05.2022, que indeferiu o Requerimento do ora Requerente, com o que não se conforma.
2ª. O Tribunal “a quo” proferiu despacho de indeferimento do pedido de exoneração do passivo pelo facto de o ora Recorrente ter beneficiado nos últimos 10 anos da exoneração do passivo restante e, assim, não estarem verificados os requisitos previstos na al. c) do artº 238º do CIRE.
3ª. Como consta dos presentes autos, o Insolvente, ora Recorrente, apresentou-se à insolvência em 18.01.2021 e requereu a exoneração do passivo restante porque não beneficiou desta medida nos 10 anos anteriores à data do início do presente processo de insolvência.
4ª. É certo que o ora Recorrente havia sido declarado insolvente, por sentença proferida em 08-09-2019, no Procº nº 3839/08.05TBGDM que correu termos no Juízo de Comércio de Santo Tirso-Juiz 3,
5ª. É igualmente certo que não tendo obtido a exoneração definitiva do passivo restante na referida insolvência, após o rateio, continuou com dívida aos credores e, assim, após o trânsito em julgado, em 16.07.2019, do despacho de não concessão da exoneração do passivo restante, de pronto, o credor C…, S.A. Sucursal em Portugal, que havia reclamado créditos no montante de €27.120,44, veio, em acção executiva, que corre termos sob o processo nº 5892/20.4T8PRT, no Juízo de Execução do Porto, Juiz 3, penhorar o seu vencimento até ser pago o montante de €26.782,68 e outros credores seguiram-na;
6ª. em consequência do que ficou a dispor de um vencimento de cerca de €1.050,00, para fazer face às despesas do seu agregado familiar, sendo que é o único membro do mesmo a auferir receita, através do seu ordenado,
7ª. sendo ainda que o seu filho que frequenta o ensino superior, necessita que os seus pais façam face às despesas respectivas, motivo por que se viu obrigado a contrair novos créditos e novas dívidas, embora de menor montante, após a anterior insolvência, o que queria cumprir e cumpriria não fora a penhora do vencimento dos credores do anterior processo de insolvência.
8ª. O Insolvente não beneficiou da exoneração definitiva do passivo restante, na anterior Insolvência, pelo que não estão preenchidos os requisitos do artº 238º al. c) nº1 do CIRE, carecendo, assim, a decisão, ora em causa, de fundamentos de facto e de direito que a justifiquem, como de resto tem sido jurisprudência deste Tribunal Superior, vide acórdão de RP202103237804/19.9T8VNG-B.P1, de 23/03/2021, e os acórdãos da Relação de Évora, datado de 06/04/2017 e da Relação de Coimbra de Coimbra, datado de 12/07/2017.
9.ª A decisão do Tribunal “a quo” viola, assim. o disposto na alínea b) do nº 1 do artº 615º, do CPC, o que é causa de nulidade, que se invoca.
10ª. O Tribunal “ a quo” apesar de conhecer a declaração de insolvência anterior, perante a nova situação que o ora Recorrente lhe apresentou, declarou-o novamente insolvente, com o que lhe concedeu uma nova oportunidade e bem assim de beneficiar, sujeitando-se aos direitos e deveres inerentes à nova situação, em que se engloba o procedimento de exoneração do passivo restante.
11ª. Com a presente apresentação à insolvência, através da exoneração do passivo restante, o ora Recorrente procurou, uma via de recuperação da sua situação económica, pois que com o seu ordenado de cerca €1050,00/mês tem que fazer face a avultadas despesas mensais, tendo mulher e filho a seu cargo.
12ª. A penhora do seu vencimento levou a que o Requerente ficasse numa situação precária, não tendo conseguido acompanhar os pagamentos aos credores, tendo que contrair novas dívidas, mas com o estritamente necessário à subsistência do seu agregado familiar e ao seu lar e de montante muito inferior às anteriores dívidas.
13ª. O ora Recorrente, na apresentação à insolvência singular fundamentou o pedido com as circunstâncias que estiveram na base da situação de insolvência, agora decretada e, consequentemente pediu a exoneração do passivo restante.
Pretende assim o prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante e que esta lhe seja concedida liminarmente.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se foi correta a decisão da 1ª Instância de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente.
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OS FACTOS
A factualidade considerada na decisão da 1ª Instância é a seguinte:
a) O devedor B… apresentou-se à insolvência a 18 de Janeiro de 2021 e, no dia 2 de Fevereiro do mesmo ano, foi proferida sentença que declarou a situação de insolvência;
b) O devedor é casado com D… e tem um filho maior, estudante universitário, sendo o agregado familiar composto pelos mesmos;
c) O devedor trabalha por conta de outrem, auferindo a retribuição base mensal de 1.770,00 euros;
d) A mulher do insolvente está desempregada, não auferindo qualquer rendimento;
e) Residem em casa arrendada, mediante o pagamento da quantia mensal de 85,00 euros;
f) Foram incluídos na lista de credores reconhecidos, a qual não foi objecto de impugnação, créditos no valor global de 73.936,61 euros;
g) Aquando da apresentação do pedido de insolvência, o devedor tinha pendentes as seguintes acções executivas:
- Acção executiva n.º 5892/20.4T8PRT, do Juízo de Execução do Porto – Juiz 3;
- Acção executiva n.º 12344/19.3T8PRT, do Juízo de Execução do Porto – Juiz 6;
- Acção executiva n.º 21422/20.5T8PRT, do Juízo de Execução do Porto – Juiz 5;
- Processo executivo fiscal n.º 1312202000680982;
h) O insolvente e a mulher foram declarados insolventes por sentença proferida no processo n.º 3839/08.5TBGDM, do Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 3;
i) No âmbito de tal processo de insolvência, a 7 de Janeiro de 2010, foi proferido despacho inicial relativo ao pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos ali insolventes;
j) Tal processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente, por despacho proferido a 22 de Novembro de 2011;
k) A 14 de Março de 2019 foi proferida decisão, transitada em julgado, que não concedeu ao insolvente B… a exoneração do passivo restante, cuja certidão foi junta com o ofício de 7 de Maio de 2021, dando-se aqui por reproduzido o seu conteúdo [o tribunal de 1ª instância não concedeu a exoneração do passivo restante a ambos os cônjuges, mas o Tribunal da Relação do Porto concedeu a exoneração ao cônjuge do ora insolvente];
l) No âmbito do processo de insolvência identificado na alínea h), relativamente aos anos de 2014 a 2016, não foi entregue a quantia de 12.066,94 euros, a título de rendimento disponível;
m) O insolvente, nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, contraiu novas dívidas.
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O DIREITO
1. O art. 238º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE) estatui que o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido se:
«a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.»
No caso dos autos a Mmª Juíza “a quo” indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente com fundamento na alínea c) do nº 1 do art. 238º do CIRE, atendendo a que no âmbito do anterior processo de insolvência a exoneração do passivo restante não lhe fora concedida por ter violado o dever constante da alínea c) do nº 4 do art. 239º do mesmo diploma.
Entendeu-se na decisão recorrida não fazer sentido que o insolvente fique impedido de requerer a exoneração do passivo restante no caso de no processo anterior ser proferido despacho final de exoneração nos termos do art. 244º do CIRE, e que já não o fique quando nesse processo lhe foi recusada a concessão da exoneração de acordo com o disposto nos arts. 243º, nº 1, al. a) e 244º, nº 2 também do CIRE, por ter violado, no mínimo com grave negligência, obrigações que lhe eram impostas.
O insolvente, em sede de recurso, veio sustentar que ao caso não é aplicável a alínea c) do nº 1 do art. 238º do CIRE porquanto, no anterior processo de insolvência, não beneficiou da exoneração definitiva do passivo restante.
Vejamos então.
2. A referida alínea c) diz-nos que o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido quando o devedor já tiver beneficiado da exoneração nos dez anos anteriores ao início do presente processo de insolvência.
Com este preceito o legislador pretende afastar o benefício da exoneração em relação a devedores que, num prazo relativamente curto, caem repetidamente em situação de insolvência, sendo, hoc sensu, reincidentes - Cfr. CARVALHO FERNANDES, “A Exoneração do Passivo Restante na Insolvência das Pessoas Singulares no Direito Português” in “Colectânea de Estudos sobre a Insolvência”, Quid Juris, pág. 281.
Consagra-se aqui uma espécie de “quarentena” entre exonerações que parece essencial para evitar que o devedor esteja permanentemente a recorrer à exoneração e assim obstar a que esta se torne um benefício fraudulento e uma válvula de escape excessivamente marcada pelo favor debitoris – cfr. LETÍCIA MARQUES COSTA, “A Insolvência de Pessoas Singulares”, Almedina, Coleção Teses, 2021, pág. 117, nota 349.
3. Ora, a questão que se coloca, no presente recurso, é a de apurar se na alínea c) do nº 1 do art. 238º do CIRE deverão caber, como fundamento de indeferimento liminar, apenas os casos em que o benefício da exoneração do passivo restante foi efetivamente concedido ao devedor insolvente no período aí assinalado ou se aí também se deverão abranger os casos em que a exoneração do passivo restante viria a ser recusada em virtude do devedor ter violado obrigações que lhe eram impostas.
A solução deste problema passa naturalmente pela interpretação da dita alínea c).
4. Tal como resulta do art. 9º, nº 1 do Cód. Civil a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
Com esta norma afasta-se o exagero dos objetivistas que não atendem sequer às circunstâncias históricas em que a norma nasceu, na medida em que se manda reconstituir o pensamento legislativo e atender às circunstâncias em que a lei foi elaborada.
Condena-se igualmente o excesso dos subjetivistas que prescindem por completo da letra da lei, para atender apenas à vontade do legislador, quando no nº 2[1] se afasta a possibilidade de qualquer pensamento legislativo valer como sentido decisivo da lei, se no texto desta não encontrar um mínimo de correspondência verbal.
E ao mesmo tempo que manda atender às circunstâncias – históricas – em que a lei foi elaborada, o preceito não deixa de expressamente considerar relevantes as condições específicas do tempo em que a norma é aplicada, consagrando uma nota vincadamente atualista.
Porém, o facto de o artigo afirmar que a reconstituição do pensamento legislativo deve fazer-se a partir dos textos não significa, de modo nenhum, que o intérprete não possa ou não deva socorrer-se de outros elementos para esse efeito, nomeadamente do espírito da lei – a “mens legis”.
Pode assim dizer-se que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.
Contudo, quando assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios de carácter objetivo, como são os que constam do nº 3 do art. 9º[2] - cfr. PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, com a colaboração de Henrique Mesquita, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., págs. 58/59.
De qualquer forma, a interpretação da norma legal não pode prescindir das próprias palavras em que a lei se expressa (elemento literal), devendo também ter-se em atenção, seguidamente, outros elementos correntemente denominados como lógicos (histórico; racional; teleológico), que permitem obter então o sentido profundo, o espírito da lei.
O elemento literal constitui sempre o ponto de partida de qualquer interpretação jurídica.
5. Ora, a expressão «exoneração do passivo restante», tendo em conta o princípio geral contido no art. 235º do CIRE, corresponde a um direito subjetivo atribuído ao devedor de “exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.”
E no art. 245º, nº 1 do CIRE, no mesmo sentido, diz-se que a exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no nº 4 do art. 217º do mesmo diploma.
Sucede que a designação «exoneração do passivo restante» corresponde igualmente a um instituto jurídico, sendo utilizada como epígrafe para o capítulo I do título XII (Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares) do CIRE, podendo ainda ser vista como procedimento, no sentido de conjunto de formalidade destinadas à expressão das posições das partes e à produção de uma decisão por parte do tribunal – cfr. arts. 236º, 237º, 238º, 239º, 243º e 244º do CIRE.
Contudo, na alínea c) do nº 1 do art. 238º a expressão «exoneração do passivo restante» é ligada ao verbo «beneficiar» que tem o significado de “gozar” ou “usufruir” de alguma coisa ou situação, sendo que a utilização deste verbo “beneficiar” e também do equivalente “conceder” é, por vezes, conectada, nesta sede, com adjetivos como “efectivo”, sinónimo de “estável” ou “permanente”, ou “definitivo”.
Assim, no art. 237º do CIRE diz-se que «a concessão efetiva da exoneração do passivo restante pressupõe que: (…)» e depois na sua alínea d) «…que (…) após o período mencionado na alínea b), e cumpridas que sejam efetivamente as referidas condições, o juiz emita despacho decretando a exoneração definitiva, neste capítulo designado despacho de exoneração.»
Conforme se refere no Ac. Rel. Porto de 23.3.2021 (proc. 7804/19.9T8VNG-B.P1, relator Fernando Vilares Ferreira, disponível in www.dgsi.pt.), cuja argumentação temos vindo e continuaremos a seguir, a utilização destes adjetivos justifica-se pela possibilidade de o regime em questão prever uma situação contraposta, de provisoriedade ou transitoriedade.
Com efeito, reportando-nos ao procedimento previsto nos arts. 236º, 237º, 238º, 239º, 243º e 244º do CIRE, não poderá deixar de se associar, tal como faz CATARINA SERRA (inO Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução”, 4.ª ed., 2010, pág. 133), o despacho inicial e a subsequente abertura do período de exoneração à concessão da liberdade condicional ao detido por bom comportamento – “uma espécie de “período experimental”, em que, se tudo correr bem, terá lugar a libertação definitiva do sujeito.”
Deste modo, há que indagar se na alínea c) do nº 1 do art. 238º se contempla a exoneração definitiva ou o período de cinco anos que a antecede subsequente ao despacho inicial necessariamente caracterizado pela provisoriedade.
Porém, o próprio art. 237º, na sua alínea d) dissipa as dúvidas quanto ao sentido a atribuir aí à palavra «exoneração», ao referir que o despacho decretando a exoneração definitiva é neste capítulo designado por «despacho de exoneração.»
Por conseguinte, perante a possibilidade da exoneração ser qualificada como provisória ou definitiva, o legislador esclarece que sempre que no capítulo I do título XII se utilize a palavra «exoneração», desacompanhada de qualquer qualificativo, ela se deverá considerar «definitiva»: atribuição de um direito subjetivo consubstanciado na exoneração (extinção) dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Com referência ao elemento literal da interpretação pode assim afirmar-se que o legislador, quando no art. 238º, nº 1, al. c), incluído no capítulo I do título XII do CIRE, diz “…beneficiado da exoneração do passivo restante” refere-se a exoneração definitiva do passivo restante, o que significa ter o devedor beneficiado do direito subjetivo consubstanciado na extinção dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
6. Todavia, não nos devemos cingir à letra da lei, uma vez que esta deve ser conjugada com o elemento racional ou teleológico, que corresponde ao fim visado pelo legislador com a elaboração da norma.
Na sequência do já atrás se escreveu a preocupação do legislador com esta norma foi a de prevenir abusos com a utilização do instituto da exoneração do passivo restante.
Sobre esta questão escreve CATARINA SERRA (inO Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução”, 4.ª ed., 2010, págs. 133/134): “O acolhimento do instituto não é de surpreender. A exoneração é uma medida de proteção do devedor. É, como já se viu, um efeito eventual da declaração de insolvência favorável ao devedor, constituindo uma verdadeira tentação para ele. Esta força atractiva da exoneração desencadeia, naturalmente, efeitos perversos: conduz a abusos de exoneração. (…) A experiência aconselha a que a disciplina da exoneração seja regulada com alguns cuidados. Seria indesejável, por exemplo, que um mesmo sujeito pudesse beneficiar de exonerações ilimitadas. Por isso é comum o estabelecimento de um limite temporal: uma espécie de “quarentena” entre exonerações”.
Ora, com a alínea c) do nº 1 do art. 238º o que o legislador pretende combater é precisamente o abuso da exoneração, mas da exoneração “efetiva” ou “definitiva”. Pois só esta – enquanto direito subjetivo consubstanciado na extinção dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste – se apresenta em toda a linha benéfica/atrativa para os devedores e simultaneamente prejudicial/indesejável para os credores.
Prosseguindo, assinalar-se-á ainda que nenhum dos outros elementos a ter em conta na interpretação da lei (histórico; sistemático) se mostra suscetível de poder conduzir a interpretação diversa deste preceito.
7. De regresso ao caso dos autos, o que se verifica é que ao devedor, nos 10 anos anteriores à data do início do presente processo de insolvência, não foi concedida exoneração definitiva dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Ou seja, o devedor, aqui recorrente, não se viu livre em definitivo das suas dívidas e, por isso, não beneficiou do recomeçar do zero, do “fresh start”.
O que ocorreu nos 10 anteriores ao início do presente processo de insolvência reconduz-se a que o insolvente, no âmbito de um outro processo de insolvência, formulou também pedido de exoneração do passivo restante que foi objeto de um inicial despacho de admissibilidade nos termos do art. 239º do CIRE, procedimento que, porém, viria a cessar antecipadamente, por razões imputáveis ao próprio insolvente, ao abrigo do art. 243º, nº 1, al. a) do mesmo diploma.
Como tal, acompanhando o já referido Ac. Rel. Porto de 23.3.2021 desta mesma secção, consideramos que não tendo o insolvente beneficiado de exoneração definitiva do passivo restante no âmbito do anterior processo de insolvência, não constitui a norma do art. 238º, nº 1, al. c) do CIRE fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante por ele agora formulado.[3]
8. E se a alínea c) não constitui fundamento para tal indeferimento liminar também não o constitui a alínea d) desse mesmo preceito. Com efeito, os elementos factuais que foram consignados na decisão recorrida e que resultam dos autos são manifestamente insuficientes para que se possam ter por preenchidos os requisitos cumulativos previstos na referida alínea d): i) que o devedor/requerente não se apresente à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência; ii) que desse atraso resulte um prejuízo para os credores; iii) que o devedor soubesse, ou pelo menos não pudesse ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Neste contexto, há que julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo insolvente com a consequente revogação da decisão recorrida, que será substituída por outra em que seja proferido despacho inicial nos termos do art. 239º, nº 1 do CIRE.[4]
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo insolvente B… e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que será substituída por outra em que seja proferido despacho inicial nos termos do art. 239º, nº 1 do CIRE.
Sem custas.

Porto, 29.9.2021
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Carlos Querido
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[1] Neste número dispõe-se o seguinte: «Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.»
[2] É a seguinte a redação deste número: «Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados
[3] Pelos motivos que se deixaram expostos, não se concorda com a posição adotada no Ac. Rel. Lisboa de 9.2.2021 (proc. 2632/19.4T8BRR-L1-1, relatora Manuela Espadaneira Lopes, disponível in www.dgsi.pt) onde se entendeu que foi intenção do legislador consagrar como fundamento para indeferimento liminar do pedido de exoneração não só as situações em que, nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência, existiu despacho final num processo de insolvência anterior a conceder a exoneração do passivo restante ao insolvente, mas também aquelas em que este, dentro do mesmo prazo, viu ser declarada a cessação antecipada do procedimento de exoneração por força do disposto no artº 243º do CIRE.
[4] De referir ainda que o recorrente na sua conclusão 9ª veio também arguir a nulidade da decisão recorrida por violação do disposto no art. 615º, nº 1, al. b) do Cód. de Proc. Civil – não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. No entanto, basta a mera leitura dessa decisão, que parcialmente se transcreveu neste acórdão, para se constatar que esta contém os fundamentos de facto e de direito em que assentou, pelo que é manifestamente infundada a arguição de tal nulidade.