Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1559/15.3PBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL SOARES
Descritores: DIREITO AO SILÊNCIO
ARGUIDO
PROIBIÇÃO DE PROVA
Nº do Documento: RP201706211559/15.3PBMTS.P1
Data do Acordão: 06/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º722, FLS.1-6)
Área Temática: .
Sumário: Não viola a proibição do artº 343º nº 1 CPP, o entendimento de que os indícios de culpabilidade do arguido apurados na audiência de julgamento, só poderiam ser infirmados se existisse uma hipótese explicativa alternativa revelada na produção de prova, seja esta as declarações do arguido ou outra prova.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1559/15.3PBMTS
Comarca do Porto
3ª Secção do Juízo Local Criminal de Matosinhos
Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório
1.1 Decisão recorrida
Por sentença proferida em 25 de Janeiro de 2017 foi o arguido B… condenado pela prática de um crime de furto qualificado, previsto nos artigos 202º e 204º nº 1 al. b), do Código Penal (CP), na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, com execução suspensa por igual período.
1.2 Recurso
O arguido interpôs recurso pedindo a revogação da sentença e a sua absolvição. Impugnou o julgamento da matéria de facto alegando no essencial que não foi feita prova que permita imputar-lhe a autoria do crime, tendo sido violado o princípio in dubio pro reu e a presunção de inocência, uma vez que a condenação se apoiou apenas num indício – a existência de uma impressão palmar e digital do arguido – que pode ter outras explicações plausíveis.
O Ministério Público respondeu pronunciando-se pela improcedência do recurso e dizendo resumidamente que a prova pericial, a localização e posição da impressão palmar e digital, o facto de o arguido e a vítima não se conhecerem e a inexistência de qualquer explicação alternativa dada pelo arguido são indícios suficientes para estabelecer a autoria do crime.
Na Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, remetendo para os fundamentos da resposta do Ministério Público no tribunal recorrido.
2. Questões a decidir no recurso
O que temos de decidir é apenas saber se houve erro de julgamento da matéria de facto ao se considerar provado que o crime foi cometido pelo arguido.
3. Fundamentação
3.1. Factualidade provada
Começamos por transcrever os factos provados e não provados e a fundamentação da decisão da matéria de facto:
Factos provados:
a) No dia 13.11.2015, entre as 21:00 e as 23:45 horas, o arguido aproximou-se do automóvel de matrícula ..-QA-.., que se encontrava estacionado na Avenida …, junto ao nº .. em …, Matosinhos, propriedade de C…, SA, mas distribuído a D… e utilizado por este, e após quebrar o vidro triangular traseiro, do lado direito, logrou aceder ao interior do automóvel e apropriar-se dos seguintes bens, propriedade do ofendido, que ali se encontravam, guardados:
- 1 Iphone 4S;
- 1 carteira em pele;
- 1 cartão de cidadão;
- 1 carta de condução;
- 2 cartões de crédito;
- 1 cartão de débito;
- 1 pasta vermelha, contendo dois blocos de apontamentos;
- um trolley, de marca Samsonite;
bens estes avaliados globalmente em 850€.
b) Na posse destes bens o arguido ausentou-se do local fazendo-os seus.
c) O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, com a intenção de se apropriar de bens que sabia não lhe pertencerem e de assim obter uma vantagem patrimonial ilícita.
d) Não desconhecia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
e) O trolley, pasta vermelha e documentos vieram a ser recuperados pelo ofendido, no dia seguinte, tendo sido localizados escondidos numa carrinha de caixa aberta, estacionada em Vila do Conde, entre a cabine e o depósito de combustível.
f) O arguido é montador de andaimes e desde Outubro de 2016 trabalha no estrangeiro, residindo em casa fornecida pela sua entidade patronal.
g) Aufere 1550€ (brutos)
h) É pai de 2 filhos, que vivem em Portugal com as respectivas mães, contribuindo o arguido com 100 e 150€ para o sustento de casa um.
i) O arguido foi condenado anteriormente por crime de condução sem habilitação legal, cometido em 2003 em pena de multa; condução sem habilitação legal, cometido em 2004 em pena de prisão substituída por multa; condução sem habilitação legal e tráfico de estupefacientes, cometidos em2004 em 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa na execução, cometido em 2003 em pena de multa; condução sem habilitação legal, cometido em 2006 em pena de 7 meses de prisão; falsidade de testemunho, cometido em 2007, em pena de multa; condução sem habilitação legal, cometido em 2007 em pena de multa; tráfico de estupefacientes de menor gravidade, cometido em 2008 em 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na execução; injúria agravada, cometido em 2012 em pena de multa.
Factos não provados:
Com pertinência ao objecto do processo não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contrário dos supra referidos, designadamente que o ofendido tivesse ficado desapropriado de 2 cartões de débito.
A convicção do Tribunal
O arguido não prestou declarações, falando apenas das suas condições de vida.
O ofendido relatou que era o utilizador do carro, que lhe estava distribuído pela sua entidade patronal, e que no dia em causa estacionou-o, em … por volta das 20h 45m. Quando regressou do jantar de trabalho em que tinha estado, perto da meia noite, deparou-se com o vidro do carro partido, com os assentos descidos e com a falta dos bens que elencou e que estão descritos nos factos assentes, sendo que o Iphone o tinha escondido num compartimento "secreto" junto a uma das portas. Avaliou o telefone em 490€ e o trolley Sansonite, que era seu e o usava no seu trabalho em 300€, valendo a carteira em pele cerca de 50€. Disse que foi logo apresentar queixa à polícia, de madrugada, e durante a manhã levou o carro para ser sujeito a inspecção lofoscópica.
Esclareceu como conseguiu reaver alguns dos bens.
A fls. 3 dos autos consta a denúncia efectuada e a partir de fls. 22 a 34 constam fotografias da viatura, recolha de impressões digitais e resultados destas. Ora na chapa exterior da viatura, junto ao vidro partido, foi recolhida impressão palmar e digital do arguido, sendo certo que a viatura estava estacionada na rua, que a impressão digital ali estava aposta antes de o ofendido apresentar queixa, já que depois levou o carro para a polícia e que, expostos ao tempo invernoso, os vestígios não duram muito. O ofendido não conhecia o arguido, pelo que a existência destes vestígios não decorre de nenhuma proximidade pessoal entre as duas pessoas. Não tendo o arguido fornecido qualquer explicação alternativa para a existência de vestígios seus no carro do ofendido, conclui-se que o arguido se aproximou do carro, mexeu nele, encostou-lhe a mão e os dedos e fê-lo justamente junto do local onde o vidro apareceu partido, colocando as mãos onde quem teria partido o vidro colocaria para se apoiar, designadamente, do que resulta, apreciando a situação descrita à luz das regras de experiência comum, que foi o arguido que partiu o vidro e desenvolveu a conduta descrita nos factos assentes.
O demais referente aos seus antecedentes criminais e condições de vida do arguido resultou da análise do CRC junto aos autos e das declarações do próprio.
Os descritos meios de prova, analisados à luz das regras de experiência, serviram para formar a convicção supra expressa.
3.2. Erro no julgamento da matéria de facto
O fundamento do recurso é a impugnação ampla da matéria de facto por erro de julgamento, enquadrável nas regras do artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP.
Foi cumprido de forma suficiente o ónus de alegação imposto pelo nº 3 do referido artigo 412º, interpretado de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/2012, de 18 de Abril[1].
Os factos provados impugnados são os dos pontos a), b), c) e d) nos quais se estabeleceu a autoria do furto.
Não se indicam segmentos de prova testemunhal por referência à sua localização no registo áudio porque está em causa, na óptica do recurso, a violação do princípio in dubio pro reo. A invocada dúvida sobre a verdade do facto não é identificável em passagens específicas dos depoimentos. A verificação da desconformidade entre a prova e o facto tem de ser feita analisando globalmente os depoimentos e não certas passagens destacáveis.
Estamos portanto em condições de ver se o tribunal errou ao julgar que foi o arguido recorrente a pessoa que cometeu o furto.
É sabido que os poderes de cognição do tribunal de recurso para alterar a decisão da matéria de facto do tribunal de primeira instância não são ilimitados. O sistema de reapreciação dos erros de julgamento em recurso tem de levar em conta um princípio de maior fidedignidade da apreciação da prova em primeira instância, decorrente da regra da imediação, que garante a relação de contacto pessoal e directo entre o julgador e os meios de prova. O juiz que intervém na decisão assiste pessoalmente à recolha de toda a prova na audiência – salvo situações excepcionais em que mesmo assim se estabelecem mecanismos de garantia da imediação (artigo 328º-A do CPP); tem o poder de analisar provas diferentes daquelas que lhe foram apresentadas se isso for necessário para a boa decisão (artigo 340º do CPP); pode examinar directa e pessoalmente os depoimentos das testemunhas (artigo 348º nº 5 do CPP) e, salvo casos excepcionais, só pode formar a sua convicção em provas que foram produzidas ou analisadas diante de si em audiência (artigo 355º do CPP). Ao contrário, em segunda instância, a reapreciação da matéria de facto faz-se, em regra, sem imediação, com a audição e visualização do registo das provas sugeridas no recurso e apenas se renovando provas sob impulso dos sujeitos processuais (artigos 412º nºs 3 a 6 e 417º nº 7 al. b) do CPP).
É pois claro que a forma de procedimento da avaliação da prova em primeira instância, com imediação e completude, dá mais garantias de fidedignidade na descoberta da verdade, quando posta em confronto com a avaliação indirecta, parcial e mediata a que procede o tribunal de recurso. Daí que a reapreciação da prova em recurso não equivalha a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes. Apenas garante que a parte vencida pode obter do tribunal superior a fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto, através do reexame parcial da prova.
Por outro lado, é também determinante considerar que o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação estabelecido no artigo 127º do CPP. Esta regra significa que o julgador tem uma ampla margem de discricionariedade para valorar as provas, através de um exame crítico vinculado a critérios objectivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum. Na fundamentação da sentença, o tribunal tem de explicitar o percurso desse exame crítico e as razões das conclusões a que se chegou, explicitando os motivos porque considerou demonstrado um certo facto e não demonstrado o seu contrário.
A regra da livre apreciação da prova está porém limitada por um critério positivo que decorre do princípio in dubio pro reu. A formação da convicção positiva sobre a veracidade do facto controvertido com base numa operação de racionalidade discricionária só é admissível se não existirem factores de dúvida séria intransponível. Essa dúvida não é a dúvida subjectiva do julgador sobre o facto, mas sim a dúvida objectiva resultante da avaliação das provas.
O critério da dúvida razoável, como factor de análise da prova limitador do princípio da livre apreciação, significa que a convicção sobre a veracidade do facto incriminatório só é admissível se não existir uma situação intransponível de dúvida fundada e motivada na razão; isto é, uma dúvida que seja compreensível de acordo com uma avaliação racional e sensata. Para vencer essa dúvida não basta que a prova da culpabilidade seja preponderante sobre a prova da inocência. A culpabilidade não pode ser determinada com base apenas numa plausibilidade do facto, entre outras possíveis; tem de ser determinada com base num juízo de certeza. Se o tribunal der como provados factos desfavoráveis ao arguido que sejam razoavelmente duvidosos, haverá violação do princípio in dubio pro reu e dos parâmetros da livre apreciação da prova.
Portanto, à luz destas regras, a possibilidade de sindicar em recurso o erro de julgamento da matéria de facto por violação do princípio in dúbio pro reu ocorrerá nas situações em que se verifique que a convicção extraída da prova não teve em conta a existência de uma plausibilidade razoável de o arguido se encontrar inocente.
Vejamos então à luz destes princípios se o arguido tem razão.
O tribunal considerou provada a autoria do crime com base na conjugação dos seguintes indícios: (i) existência de impressão palmar e digital do arguido no automóvel assaltado; (ii) localização dessa impressão, na chapa, junto ao vidro que foi partido para permitir o acesso aos bens furtados, sugerindo que se apoiou aí para partir o vidro ou retirar os bens; (iii) pré-existência daquela impressão em relação ao momento da queixa e presença recente dos indícios no local, dado que o tempo invernoso não permitiria que perdurassem muito tempo; (iv) inexistência de relação entre o arguido e a vítima, que desse qualquer explicação alternativa para a presença daquela impressão e (v) inexistência de qualquer explicação alternativa dada pelo arguido para a existência da impressão naquele local. Tais indícios, disse o tribunal, apreciados à luz das regras da experiência comum, permitem concluir que foi o arguido que partiu o vidro e retirou os objectos.
Do acabado de expor, resulta já que não tem razão o arguido quando afirma no recurso que o tribunal baseou a sua convicção apenas no indício retirado da existência da impressão palmar e digital. Como vimos, esse indício foi conjugado com outros que com ele estão correlacionados e que dão consistência à ilação que o tribunal retirou.
E ainda se pode acrescentar outro indício relevante, que resulta da prova e de factos notórios do conhecimento comum. Entre o local da residência do arguido e o local do furto distam cerca de 12 quilómetros. A probabilidade de o arguido ter tocado no vidro do automóvel em circunstâncias fortuitas naquela noite é bem menor do que sucederia se o automóvel estivesse estacionado próximo da sua residência ou em local que fizesse parte do seu percurso habitual.
Do exame pericial lofoscópico resulta, sem poder ser questionado, que o arguido recorrente tocou no automóvel em momento próximo do furto e em posição corporal compatível com a autoria do mesmo.
É certo que estamos no plano da prova da culpabilidade assente predominante ou exclusivamente na chamada prova indiciária[2], em que o meio de prova não incide na demonstração directa do facto-objecto (o facto descrito no tipo legal) mas sim na demonstração dos factos-indiciantes, dos quais se pode inferir o facto-objecto. Esta prova exige uma operação intelectual de avaliação e conjugação de indícios, de verificação das relações de causalidade entre indícios e factos, que permitem tirar ilações e de interpretação do significado desses indícios à luz das regras da experiência. Se realizada criteriosamente, com pleno respeito pelo princípio da presunção de inocência, a prova indiciária permite chegar a um juízo de plausibilidade sobre o facto provado equivalente àquele que pode resultar da ponderação de provas directas.
Os factos-indiciantes relevantes são os resultantes do vestígio lofoscópico do arguido no local do furto, contemporâneo do furto e em circunstâncias que não podiam ter sido outras que não as acolhidas na sentença recorrida. Há uma relação de causalidade entre o facto-indiciante e o facto-objecto que permite extrair a ilação probatória segura, suportada por um raciocínio lógico-dedutivo, baseado nas regras da experiência, de que o arguido se apoiou no automóvel quanto partiu o vidro e retirou os objectos furtados do seu interior. E por fim não existe qualquer contra-indício que suscite uma hipotética ilação alternativa sobre o facto-objecto, que seja plausível segundo as mesmas regras de avaliação.
No recurso sugerem-se explicações alternativas para a presença da impressão palmar e digital no automóvel: “o arguido podia estar a passar perto da viatura e espreitou para dentro desta para ver se dentro desta se encontrava algum bem que pudesse subtrair, espreitou para dentro da viatura ao ver o vidro partido por simples curiosidade ou mesmo para daí subtrair bens que eventualmente lhe interessasse, desconhecendo-se se antes já tinham sido subtraídos bens por quem partiu o vidro”. Mas estas explicações alternativas não têm qualquer apoio na prova; são apenas conjecturas lançadas no recurso, que o silêncio do arguido em julgamento torna fúteis.
Na verdade, assalta-nos uma pergunta que ao tribunal também se colocou. Se existisse alguma hipótese alternativa à da autoria do furto para a presença da impressão palmar e digital no automóvel, o arguido não a teria declarado? Esta questão remete-nos para uma outra, que é a de saber se, face à proibição de desfavorecimento constante do artigo 343º nº 1 do CPP, é juridicamente válido e admissível o seguinte raciocínio exposto na sentença: “não tendo o arguido fornecido qualquer explicação alternativa para a existência de vestígios seus no carro do ofendido, conclui-se [em conjunto com os outros indícios] que o arguido se se aproximou do carro, mexeu nele (…) do que resulta, apreciando a situação descrita à luz das regras da experiência comum, que foi o arguido que partiu o vidro e desenvolveu a conduta descrita nos factos provados”.
A possibilidade de retirar ilações desfavoráveis do silêncio do arguido tem vindo a ser admitida pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em casos excepcionais. Das decisões dos casos John Murray v. United Kingdom[3], Beckles v. United Kingdom[4] e Telfner v. Austria[5] resulta que o TEDH não considera contrária à Convenção Europeia dos Direitos Humanos a possibilidade de retirar ilações desfavoráveis do silêncio do acusado, quando tal silêncio se deva considerar fútil; isto é, quando em face das circunstâncias do caso e das regras da experiência for de esperar do acusado uma explicação. No essencial, essa possibilidade, quando admitida, é excepcional e assenta nos seguintes pressupostos: (i) as ilações desfavoráveis retiradas do silêncio só podem ser valoradas como elemento instrumental de corroboração de outras provas e nunca para estabelecer directa e isoladamente de forma determinante a culpa do acusado; podem também ser um elemento relevante para verificar a credibilidade da versão alternativa à acusação apresentada pelo acusado; (ii) as ilações desfavoráveis só podem resultar de um silêncio que seja fútil; quando do raciocínio lógico e da experiência comum resulte a conclusão de que um acusado em condições normais e nas mesmas circunstâncias apresentaria uma versão alternativa credível, se a tivesse – são, por exemplo, os casos de detenção em flagrante delito, de presença do acusado no local, de posse de objectos relacionados com o crime, de marcas físicas do crime, de fuga à polícia, etc., em que as provas indiciam a culpa com forte probabilidade e “clamam” por uma explicação (cry out for an explanation); (iii) este raciocínio probatório só é admissível se o acusado tiver sido informado das circunstâncias em que o seu silêncio pode vir a ser objecto de valoração pelo tribunal e tiver feito essa opção com liberdade e devidamente assistido por defensor[6].
Entre nós não tem tido qualquer acolhimento a possibilidade, admitida pelo TEDH, de em circunstâncias o tribunal poder retirar ilações do silêncio do arguido. O referido artigo 343.º n.º 1 proíbe expressamente que o juiz atribua ao silêncio do arguido qualquer significado probatório desfavorável para o estabelecimento da culpabilidade. O mais que tem sido admitido é que o exercício do direito ao silêncio, quando dele resulte que o arguido renunciou a fornecer ao tribunal informação potencialmente favorável ao seu interesse e que só ele conhece, acabe por ter um efeito reflexo de desfavorecimento objectivo, impedindo o afastamento da culpabilidade. Não se trata de uma consequência probatória do silêncio mas apenas do resultado inevitável de o tribunal não poder considerar circunstâncias que desconhece.
O princípio de que o exercício do direito ao silêncio não pode beneficiar o arguido está consolidado na nossa jurisprudência. O arguido não pode esperar que o seu silêncio reforce a presunção de inocência, anulando o valor das outras provas demonstrativas da culpabilidade. Pode manter-se em silêncio sem que tal atitude o desfavoreça, mas não pode pretender que daí surja um agravamento do ónus da prova imposto ao Ministério Público ou um especial direito à absolvição com base no princípio in dubio pro reo. Este raciocínio encontrou apoio designadamente nos acórdãos do STJ de 05.02.1998[7], de 20.10.2005[8], de 14.06.2006[9], de 27.04.2006[10], de 24.10.2006[11], de 15.02.2007[12] e de 12.03.2008[13], do TRC de 15.10.2008[14] e do TRE de 02.02.2016[15] e de 28.02.2012[16] (todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Ora, se repararmos bem, afinal é isso que o arguido verdadeiramente pretende; que do seu silêncio resulte um agravamento do ónus de prova imposto ao Ministério Público. Ao ponto de invocar contra-indícios não resultantes da prova, como se, diante do silêncio do arguido, que se abstém de prestar declarações sobre uma circunstância relevante que só ele poderia explicar, o Ministério Público estivesse obrigado fazer prova que inviabilizasse todas as hipóteses alternativas conjecturáveis em abstracto, por mais inverosímeis ou improváveis que fossem, para provar a culpabilidade do arguido.
Nessa medida, o raciocínio do tribunal, entendido no sentido de que os indícios de culpabilidade só poderiam ser infirmados se existisse uma hipótese explicativa alternativa revelada na produção da prova (declarada pelo arguido ou resultante de outra prova), não viola a proibição do artigo 343º nº 1 do CPP. O tribunal não retirou do silêncio do arguido uma ilação de prova desfavorável. O que fez foi afirmar que desse silêncio não se podem extrair contra-indícios hipotéticos sobre a sua inocência.
Tendo em conta estes princípios norteadores, não podemos ter qualquer dúvida de que foi o arguido quem praticou o crime. Não existem elementos de dúvida minimamente suficientes para abalar a razoabilidade da convicção do tribunal. A prova foi analisada criticamente, à luz dos critérios legais e do princípio da livre apreciação e estabeleceu os factos provados que fundamentou de maneira razoável, totalmente plausível e conforme às regras da experiência.
Concluímos portanto que o tribunal não errou no julgamento da matéria de facto e que não foram violados os parâmetros de decisão de acordo com o princípio da livre apreciação nem os princípios in dubio pro reu e da presunção de inocência
Improcede assim o recurso.
4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso e em confirmar a sentença recorrida.
Fixa-se em 3,5 UC a taxa de justiça devida pelo arguido.

Porto, 21 de Junho de 2017
Manuel Soares
João Pedro Nunes Maldonado
________
[1] DR nº 77, série I, de 18ABR2012
[2] Sobre esta matéria podem consultar-se, entre outros com igual relevo, os seguintes Acórdãos do STJ, de 23FEV2011 e 9DEZ2012:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7bd6487210b697f5802578ca00497ce1?OpenDocument
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c7f26d0a9df74890802579e6002f8560?OpenDocument
E os seguintes estudos:
- “A compatibilidade da prova indiciária com as garantias constitucionais” – Alexandre Peinado Praetzel Porto, Porto Alegre, 2012: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/67307
- “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, Santos Cabral: Revista Julgar, nº 17, pag.13
- “Prova indiciária (contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente)”, Euclides Dâmaso, Revista Julgar, nº 2, pag. 203
[3] In: “http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-57980”.
[4] In: “http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-60672”.
[5] In: “http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-59347”.
[6] Ver com mais desenvolvimento, Manuel Soares – Proibição de desfavorecimento do arguido em consequência do silêncio em julgamento – a questão controversa das ilações probatórias desfavoráveis, na Revista Julgar, nº 32, Almedina.
[7] Colectânea de Jurisprudência (STJ), 1998-I, página 190.
[8] Proferido no processo n.º 05P2939.
[9] Proferido no processo n.º 06P2175.
[10] Proferido no processo n.º 06P794.
[11] Proferido no processo n.º 06P3163.
[12] Proferido no processo n.º 07P015.
[13] Proferido no processo n.º 08P694.
[14] Proferido no processo n.º 400/06.2GCAVR.C1.
[15] Proferido no processo n.º 65/14.8GCSTB.E1.
[16] Proferido no processo n.º 65/14.8GCSTB.E1.