Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
246/10.3TYVNG-AC.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL
INCIDENTE DE INTERVENÇÃO DE TERCEIRO
INTERVENÇÃO DA SEGURADORA
Nº do Documento: RP20181025246/10.3TYVNG-AC.P1
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º149, FLS.291-295)
Área Temática: .
Sumário: I – Destinando-se a acção a efectivar a responsabilidade civil do administrador da insolvência, nos termos do art.º 59.º do CIRE, porque segundo o Estatuto de Administrador Judicial, estes devem contratar seguro de responsabilidade civil obrigatório que cubra o risco inerente ao exercício das suas funções, o lesado tem direito de exigir o pagamento da indemnização directamente à seguradora.
II – Nesses casos de seguro obrigatório e nas acções instauradas contra o tomador do seguro, a seguradora tem um interesse próprio, que é paralelo ao do tomador e que é substancialmente conexo com a relação material controvertida que se estabelece entre o tomador do seguro e o lesado.
III – Não sendo a seguradora demandada inicialmente, porque estamos numa situação em que seria possível o litisconsórcio voluntário inicial, ela deve/pode ser chamada a intervir nos autos através do incidente de intervenção principal provocada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 246/10.3TYVNG-AC.P1 – 3ª Secção (Apelação)[1]
Rel. Deolinda Varão (1184)
Adj. Des. Freitas Vieira
Adj. Des. Madeira Pinto
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
MASSA INSOLVENTE DE B…, SA, instaurou acção declarativa, com forma de processo comum, contra C…, destinada a efectivar a responsabilidade da ré, enquanto administradora da insolvência, nos termos do artº 59º do CIRE.
A ré contestou e deduziu incidente de intervenção principal provocada, além do mais, de D… - SUCURSAL EM PORTUGAL.
Como fundamento da requerida intervenção, alegou, em síntese, que celebrou com aquela seguradora um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, por meio do qual transferiu para a mesma os riscos inerentes ao desempenho da sua actividade profissional de administradora da insolvência, até ao limite de €1.000.000,00.
Posteriormente, a ré rectificou o pedido de intervenção para pedido de intervenção acessória.
De seguida, foi proferido despacho que admitiu a intervenção acessória da seguradora D….

A interveniente D… recorreu daquele despacho, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
1ª – A ora recorrente, na qualidade de seguradora da ré, foi admitida a intervir na lide como parte acessória, ao invés de parte principal.
2ª – Tal decisão causa prejuízo directo à ora recorrente, na medida em que, na qualidade de parte acessória, beneficia do estatuto de mera assistente, subordinada processualmente à parte principal, quer no que respeita às questões que pode discutir (cfr. artºs 321º, nº 2 do CPC), quer na delimitação da estratégia processual (artº 328º, nº 2 ex vi artº 323º, nº 1 do CPC), quando poderia e deveria beneficiar do estatuto de parte principal, atento o interesse directo que tem em contradizer a presente lide, pelo que tem legitimidade para apresentar o presente recurso nos termos do nº 2 do artº 631º do CPC.
3ª – A recorrente tem interesse próprio paralelo ao da ré em contradizer a presente lide, na medida em que esta transferiu para si a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiros decorrentes da sua actividade profissional, através da celebração de um contrato de seguro.
4ª – O contrato de seguro de responsabilidade civil apresenta a estrutura de um contrato a favor de terceiro (artº 444º do CC), nos termos do qual a seguradora obriga-se, para com o lesado, a satisfazer a indemnização devida.
5ª – No caso em apreço, tratando-se de um seguro de responsabilidade civil obrigatório, decorrente do nº 8 do artº 12º do Estatuto do Administrador Judicial, a própria lei que regula o regime jurídico do contrato de seguro (DL 72/08, de 16.04), prevê a possibilidade de o lesado demandar directa e isoladamente a Seguradora.
6ª – Ainda que assim não fosse, a jurisprudência, tendo em consideração a referida configuração do contrato de seguro como um contrato a favor de terceiro, tem vindo a considerar que o lesado tem o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário.
7ª – Por outro lado, a mesma jurisprudência tem defendido que perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis, nos termos do artº 497º do CC, na medida em que o segurado não fica desonerado perante o terceiro-lesado por virtude da existência de um contrato de seguro.
8ª – O reconhecimento de que a ora recorrente tem interesse próprio em contradizer a demanda, apresentando autonomamente os seus meios de defesa – pois ela poderia ser demandada sozinha como parte principal-, como aliás resulta da própria decisão recorrida, basta para afastar a intervenção acessória, por faltar o pressuposto previsto na 2ª parte do nº 1 do artº 321º do CPC.
9ª – Ainda que assim não se considere, poderia fazê-lo sempre no âmbito do artigo 317º do CPC, caso em que a lei prevê expressamente que, para além do objectivo prosseguido com a intervenção litisconsorcial provocada passiva – operar uma defesa conjunta no confronto do credor, opondo-lhe os meios de defesa que forem pertinentes –, a intervenção tenha também por objectivo acautelar o direito de regresso.
10ª – A intervenção acessória é subsidiária em relação à intervenção principal, só podendo ser admitida quando o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal, o que manifestamente não se verifica no caso em apreço.
11ª – Ao ter admitido a intervenção da ora recorrente como parte acessória e não como parte principal, violou a decisão recorrida o disposto nos artigos 321º, nº 1 e 316º, nº 3, al. a) do CPC.
12ª – Tendo a ré rectificado a configuração da intervenção por si suscitada como intervenção acessória, caberia ao juiz, no âmbito do princípio da adequação formal (cfr. artº 547º CPC) convolar a intervenção acessória em principal.
13ª – Na verdade, a ré assentou o seu pedido no facto de ter transferido para a ora recorrente a obrigação de indemnizar, quadro factual esse que é decisivo para se impor a intervenção da ora recorrente na lide como parte principal, podendo nela opor todos os meios de defesa que tenha à sua disposição.
14ª – Pelo que violou a decisão recorrida o disposto nos artºs 6º e 547º, nº 1 do CPC, devendo ser revogada e substituída por outra que admita a recorrente a intervir nos presentes autos como parte principal.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
Os elementos com interesse para a decisão do recurso são os que constam do ponto I.
*
III.
A questão a decidir – delimitada pelas conclusões da alegação da apelante (artºs 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC) – é a seguinte:
- Se a intervenção da apelante, nos presentes autos, deve ser admitida como intervenção principal.

Diz o artº 311º do CPC – Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem – que, estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objecto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artºs 32º, 33º e 34º.
Os artºs 32º, 33º e 34º prevêem, respectivamente, as situações de litisconsórcio voluntário, litisconsórcio necessário e legitimidade conjugal.
Nos termos do artº 32º, há litisconsórcio voluntário quando a relação material controvertida respeitar a várias pessoas, podendo a acção respectiva ser proposta por todos ou contra todos os interessados.
Como se diz no artº 312º, o interveniente principal faz valer um direito próprio, paralelo ou do autor ou do réu.
Nos termos do artº 316º, nº 3, o chamamento pode ser deduzido por iniciativa do réu quando este mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida (al. a) ou quando pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor (al. b).
O artº 317º, nº 1 estipula ainda que, sendo a prestação exigida a algum ou alguns dos condevedores solidários, o chamamento pode ter por fim o reconhecimento e a condenação na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir a assistir, se tiver de realizar a totalidade da prestação.
Se o chamado intervier no processo, a sentença apreciará o seu direito e constituirá caso julgado em relação a ele (artº 320º, nº 1).
Como resulta do preâmbulo do DL 329-A/95, de 12.12, a forma ou tipo de intervenção de terceiros em processo pendente, abarca “– os casos em que o terceiro se associa, ou é chamado a associar-se, a uma das partes primitivas, com o estatuto de parte principal, cumulando-se no processo a apreciação de uma relação jurídica própria do interveniente, substancialmente conexa com a relação material controvertida entre as partes primitivas, em termos de tornar possível um hipotético litisconsórcio ou coligação iniciais: é este o esquema que define a figura da intervenção principal, caracterizada pela igualdade ou paralelismo do interesse do interveniente com o da parte a que se associa;”.

Diz o artº 321º, nº 1 que o réu que tenha acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal [ou seja, fora da situação prevista no artº 317º, nº 1].
Nos termos do nº 2 daquele artº 321º, a intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento.
Na reforma do CPC introduzida pelo DL 329-A/95, optou-se por colocar o terceiro contra quem o réu tenha direito de regresso numa posição de auxiliar daquele, relativamente à discussão das questões que possam ter repercussão na acção de regresso ou indemnização invocada como fundamento do chamamento (cfr. nº 2 do citado artº 321º).
No relatório do DL 329-A/95 justifica-se aquela opção, considerando que o titular da relação de regresso não é sujeito da relação material controvertida, mas de uma relação conexa com aquela – invocada pelo réu como causa do chamamento – e, por isso, nunca pode ser condenado caso a acção proceda, “... ficando tão somente vinculado, em termos reflexos, pelo caso julgado, relativamente a certos pressupostos daquela acção de regresso, a efectivar em demanda ulterior”: daí que não se justifique a sua intervenção na causa como parte principal.

A presente acção destina-se a efectivar a responsabilidade da ré, enquanto administradora da insolvência, nos termos que estão previstos no artº 59º do CIRE.
Diz o artº 12º, nº 8 do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ) aprovado pela Lei 22/13, de 26.08, que os administradores judiciais devem contratar seguro de responsabilidade civil obrigatório que cubra o risco inerente ao exercício das suas funções.
Nos termos do artº 146º, nº 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro estabelecido pelo DL 702/08, de 16.04, nos casos de seguro obrigatório, o lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador.
Aquela norma estabelece uma relação directa entre o lesado e a seguradora, permitindo que o primeiro instaure acção judicial contra a segunda, o que implica a possibilidade de a seguradora ser condenada a pagar indemnização ao lesado.
Do exposto decorre que, nos casos de seguro obrigatório, é nítido que, nas acções instauradas contra o tomador do seguro, a seguradora tem um interesse próprio, que é paralelo ao do tomador de seguro e que é substancialmente conexo com a relação material controvertida que se estabelece entre o tomador do seguro e o lesado.
Estamos, assim, perante uma situação em que teria sido possível o litisconsórcio voluntário inicial, pelo que se verificam os requisitos da intervenção principal provocada previstos nos artºs 311º, 312º e 316º, nº 3.
E também perante uma situação de direito de regresso, mas enquadrável na norma do artº 317º, nº 1 e não na norma do artº 321º, nº 1, precisamente porque, como já vimos, a seguradora tem legitimidade para intervir como parte principal na acção instaurada pelo lesado contra o tomador de seguro, podendo, por força do disposto no artº 146º, nº 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, vir a ser condenada nessa acção (condenação que nunca teria lugar na intervenção acessória).

Tratando-se, no caso, de uma situação de seguro obrigatório, não nos pronunciamos sobre a situação do seguro facultativo, relativamente à qual, como é sabido, a jurisprudência se tem mostrado dividida acerca do tipo de intervenção admissível.
No entanto, não podemos deixar de referir a fundamentação do Ac. da RG de 06.01.11[2], citado pela apelante nas suas alegações, no qual, argumentando-se com a natureza do contrato de seguro, se concluiu que, mesmo nos casos de seguro facultativo, a seguradora deve ser admitida a intervir como parte principal:

(…).
Através do contrato de seguro, a seguradora obriga-se a suportar o risco. Ou seja, como contrapartida do recebimento do prémio, a seguradora passa a estar disponível para fazer face às consequências da eventual realização do sinistro.
Desta forma, pode afirmar-se que, por força do contrato, nas relações internas, a seguradora coloca-se na posição de quem é obrigada a indemnizar e o segurado na posição de quem tem que demonstrar o dano, a sua relação com o sinistro, bem como a sua extensão e valorização.
Porém, atenta a natureza do contrato de seguro de responsabilidade civil, assumidamente concebido como um contrato a favor de terceiro (art. 444º, do Código Civil), a seguradora obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida, ficando aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário (considerando que o contrato de seguro de responsabilidade civil consubstancia um contrato a favor de terceiro podem ver-se, entre outros, os Acs. do STJ de 16.01.1970, BMJ, nº 193, pág. 359, e de 30.03.1989, BMJ, nº 385, pág. 563, e o Acs. da RL de 07.11.2006, proc. 7576/2206-7, e da RP de 06.07.2009, proc. 721/08.0TVPRT-A.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt; na doutrina cfr. Vaz Serra, RLJ, ano 99º, pág. 56, nota 1; Diogo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, 1991, págs. 13 a 16, Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 6ª ed., pág. 372 e segs.; José Vasques, Contrato de Seguro, pág. 258 e 259)
Acresce que, perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis, nos termos do art. 497º, do Código Civil, pelo que o segurado não fica desonerado perante o terceiro-lesado por virtude da existência de um contrato de seguro. Na verdade, pelo contrato de seguro apenas se transferiu o pagamento do quantum indemnizatório para a seguradora, mas não a responsabilidade jurídica pelo evento (cfr. Ac. STA de 01.02.2000, Acórdãos Doutrinais, 466º-1231).
(…).
Daí que ao objectivo normalmente prosseguido com a intervenção litisconsorcial provocada passiva – operar uma defesa conjunta no confronto do credor, opondo-lhe os meios de defesa que forem pertinentes – acresça o interesse do réu em acautelar eventual direito de regresso.
Tratando-se de obrigação solidária, admite-se expressamente que a finalidade do chamamento possa também consistir – para além do objectivo de possibilitar defesa comum – em o réu obter o reconhecimento eventual do direito de regresso que lhe assistirá, se for compelido a pagar a totalidade do débito.
(…).”.

Por todas as razões expostas, conclui-se que a apelante deve ser admitida a intervir na causa como parte principal.

O facto de a ré ter inicialmente pedido a intervenção principal da apelante e de, posteriormente, ter rectificado o pedido para o de intervenção acessória, não obsta ao deferimento do pedido de intervenção principal, pois que, como é jurisprudência corrente, ao abrigo do princípio da economia processual (actualmente, integrado no dever de gestão processual – artº 6º, nº 1), o juiz pode convolar o pedido para o incidente que julgar adequado[3].
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IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e, em consequência:
- Admite-se a apelante D… - SUCURSAL EM PORTUGAL a intervir nos presentes autos como parte principal.
Sem custas.
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Porto, 25 de Outubro de 2018
Deolinda Varão
Freitas Vieira
Madeira Pinto
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[1] Acção de Processo Comum – Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de V. N. de Gaia – Juiz 1
[2] www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, ver, entre outros, os Acs. desta Relação de 15.10.07, 25.10.11 e 31.01.13, todos em www.dgsi.pt.