Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
485/17.6T9STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
NOVA ACUSAÇÃO
ADMISSIBILIDADE
CONDIÇÃO DE PUNIBILIDADE
Nº do Documento: RP20180207485/17.6T9STS.P1
Data do Acordão: 02/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º748, FLS.251-256)
Área Temática: .
Sumário: I - Rejeitada a acusação ao abrigo do artº 311º 2 a) CPP, por não constar ali descrita a condição objectiva de punibilidade legalmente prevista, para o crime de abuso de confiança fiscal (artº 105º RGIT), apesar de existir essa condição, para que os factos imputados fossem puníveis, o caso julgado formado é meramente formal.
II - É admissível a dedução de nova acusação num outro inquérito, onde já é alegada a condição objectiva de punibilidade que faltara naquela outra acusação rejeitada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 485/17.6T9STS.P1 – 4ªSecção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
*
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO
1.1 Por despacho proferido no Juízo Local de Santo Tirso, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, de 06/09/2017, e considerando que o Ministério Público não podia suprir a imperfeição do despacho acusatório inicialmente deduzido, submetendo nova acusação a juízo, expurgada da lacuna apontada no despacho que rejeitou a primeira acusação, transitado em julgado, ao abrigo do art.º 311º, nº1, do Código de Processo Penal foi declarada juridicamente inexistente a nova acusação, que constitui fls. 306 e ss., e, considerando que tal vício é insuscetível de sanação, assim foi julgado extinto o respetivo procedimento criminal.
1. 2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
“1 - No despacho recorrido foi declarada juridicamente inexistente a acusação deduzida pelo Ministério Público por entender que existe vício insuscetível de sanação e julgou extinto o procedimento criminal nos termos do artigo 311.°, nº 1, do Código de Processo Penal;
2 - A acusação pública deduzida contra os arguidos "B…, Sociedade Unipessoal, Lda." e C… imputa-lhes a prática, a este como autor material, na forma consumada de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. peio artigo 105.°, nº 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de junho, e à sociedade arguida, também na prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, responsabilidade que lhe advém do disposto no artigo 7º, nº 1, do citado diploma legal e punido nos termos do artigo 12º da mesma lei;
3 - No despacho recorrido, a Mma. Juiz "a quo" aduz que no âmbito do inquérito nº 960/15.7IDPRT, o Ministério Público considerou findo o inquérito e deduziu acusação contra B…, Sociedade Unipessoal, Lda. e C… imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105º, nº 1 do RGIT.
Essa acusação foi notificada aos arguidos e respetivo defensor, tendo sido efetuadas as comunicações legais e remetidos tais autos à distribuição, a aludida acusação foi rejeitada nos termos do despacho reproduzido a fls.218 e ss, transitado em julgado, por ser manifestamente infundada, pelo que o procedimento criminal foi extinto e o processo arquivado;
Na sequência desse despacho e no âmbito de novo inquérito que deu origem aos presentes autos, o Ministério Público, substituindo o despacho de acusação rejeitado, aduziu outra acusação reformulada sobre os mesmos factos (não autonomizáveis do objeto do processo), corrigindo a deficiência antes apontada.
4 - O despacho recorrido considera que o despacho que rejeitou a acusação deduzida no processo nº 960/15.7IDPRT está coberto pela força de caso julgado que impede a renovação do julgamento da mesma questão;
5 - No despacho recorrido a Mma. Juiz "a quo" declarou juridicamente inexistente a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 306 a 311 dos autos à margem referenciados, por considerar existir vício que é insuscetível de sanação, não tendo a mesma qualquer valor jurídico e consequentemente julgou extinto o procedimento criminal;
6 - É desse entendimento que discordámos porquanto a acusação deduzida nos autos, à margem referenciados, pelo Ministério Público contra os arguidos "B…, Sociedade Unipessoal, Lda." e C… pela prática, este último como autor material, na forma consumada de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho e a sociedade arguida, também na prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de junho, responsabilidade que lhe advém do disposto no artigo 7º, nº 1, do citado diploma legal e punido nos termos do artigo 12º, da mesma lei, não sofre de qualquer vício ou nulidade e por isso nada obsta a que seja recebida pelo Juiz "a quo" e consequentemente seja designada data para julgamento, nos termos das disposto nos artigos 311º e 312º, do Código de Processo Penal;
7 - Os presentes autos com o nº 485/17.6T98TS tiveram origem na certidão extraída dos autos de processo comum singular nº 960/15.7IDPRT que foi remetida para os Serviços do Ministério Público a fim de ser registada e autuada como inquérito, como resulta da promoção de fls, 294 e do despacho que sobre a mesma recaiu no sentido de ser passada a citada certidão;
8 - O Ministério Público naqueles autos n." 960/15.7IDPRT deduziu a acusação que consta de fls. 196 a 201 contra os arguidos "B…, Sociedade Unipessoal, Lda." e C… pela prática, este último como autor material, na forma consumada de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de junho e a sociedade arguida, também na prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de junho, responsabilidade que lhe advém do disposto no artigo 7º, nº 1, do citado diploma legal e punido nos termos do artigo 12º, da mesma Lei;
9 - Na sequência da remessa daqueles autos nº 960/15.7IDPRT para distribuição pelos juízos criminais, entendeu a Mma. Juiz "a quo" rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público por entender que a mesma é manifestamente infundada nos termos do artigo 311.°, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, não fazendo qualquer referência ao nº 3, daquele normativo, que enumera os casos que determinam que uma acusação é manifestamente infundada para efeitos do nº 2 do mesmo normativo. Todavia, da vasta jurisprudência elencada e exposta pela Mma. Juiz "a quo" naquele despacho de rejeição, nomeadamente do que consta do acórdão de 24.9.2013 do tribunal da Relação de Évora, a mesma quereria referir-se ao artigo 311, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea d), do Código de Processo Penal, como consta do despacho que aí foi proferido a fls. 218 a 220.
10 - A Mma. Juiz "a quo" aduz no despacho recorrido que o despacho que rejeitou a acusação no processo comum singular nº 960/15.7IDPRT fez caso julgado e na verdade aquela decisão transitou em julgado, pois que a consequência legal do não recurso dessa decisão é o seu trânsito em julgado;
11- No entanto não pode a Mma. Juiz "a quo" considerar que a consequência daquela decisão é a extinção do procedimento criminal. Desde logo, isso nunca é declarado na decisão proferida naqueles autos 960/15.7IDPRT, como se vislumbra de fls. 218 a 220 e agora refere na decisão de que se recorre;
12 - No despacho que rejeitou a acusação por ser manifestamente infundada nos termos do artigo 311º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, decidiu a Mma. Juiz "a quo" que apesar do Ministério Público ter deduzido a acusação contra B…, Sociedade Unipessoal, Lda. e C… imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105º, nº 1 do RGIT, a mesma tinha que ser rejeitada por a considerar manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, nº 2, al. a), do Código de Processo Penal;
13 - Para a Mma. Juiz "a quo" a acusação é manifestamente infundada porque não faz qualquer referência à notificação dos arguidos nos termos do disposto no artigo 105º, nº 4, b) do RGIT, com as alterações introduzidas pela Lei nº 53-A/2006, de 29/12;
14 - Assim sendo e não se mostrando descrita na acusação tal condição de punibilidade, a conduta imputada aos arguidos não tem qualquer relevância criminal, pelo que a Mma. Juiz "a quo" e uma vez que a acusação não se refere, em momento algum, à verificação da aludida condição de procedibilidade rejeitou in totum a acusação;
15 - Discordámos porquanto in casu o despacho que rejeitou a acusação por manifestamente infundada considerou que não constando da acusação que os arguidos foram notificados do disposto no artigo 105º, nº 4, alínea b), do RIGT, aquela mesma acusação não tinha condições de viabilidade, sendo manifesta a sua improcedência, quando se é verdade que daquela acusação não consta essa notificação, não podemos por isso dizer que tal condição de procedibilidade não exista, pois que a exigência da notificação prevista na al. b) do nº 4, do art.º 105º do RGIT, foi cumprida e já constava dos autos, tal como se menciona na acusação deduzida nos presentes autos com a indicação das folhas onde as referidas notificações constam "Os arguidos foram ainda notificados, nos termos do artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05.06, na redação da Lei nº 53-A/06, de 29.12, para proceder ao pagamento das retenções efetuadas em sede de IVA, nas operações realizadas no terceiro trimestre de 2015 e respetivos juros de mora e coimas – cf. fls. 94 e 95. "
16 - Desta feita, a condição objetiva de punibilidade foi cumprida e em consonância com o Acórdão do STJ de 09.04.2008 que veio fixar jurisprudência, no sentido de que "a exigência prevista na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, na redação introduzida pela Lei 53-A/06, configura uma nova condição objetiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2º, nº 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT". Foi efetivamente cumprido nos autos tal condição objetiva de punibilidade;
17 - Não existe, por isso, a aduzida insuficiência de factos;
18 - Não sufragamos do entendimento perfilhado pela Mma. Juiz "a quo" de que o constante no Acórdão Uniformador de Jurisprudência do STJ nº 7/2005, de 12.05.2005, se identifica com o caso dos autos e se aplica in casu. Não existe qualquer nulidade na acusação deduzida nos autos à margem referenciados;
19 - A acusação não deve pois ser rejeitada por manifestamente infundada nos termos do artigo 283º, nº 3 e 311º, nº 1, e nº 2, do Código de Processo Penal;
20 - Na verdade, a decisão de rejeição da acusação não apreciou do mérito dos factos imputados ao arguido na acusação. Não havendo apreciação de mérito, os factos não foram apreciados, apreciou-se apenas uma questão objetiva;
21 - O crime não procedeu naqueles autos de processo nº 960/15.7IDPRT, mas o procedimento criminal relativo ao ilícito pelo qual os arguidos foram acusados não está extinto;
22 - O Ministério Público naqueles autos optou por não recorrer da decisão, que transitou em julgado, mas foi extraída a certidão que foi remetida para os Serviços do Ministério Público para registo como inquérito;
23 - O processo regressou ao Ministério Público onde foram observados todos os passos e factos relativos ao inquérito, seguiu os trâmites legais necessários e foi deduzida nova acusação, a constante de fls. 306 a 311, com a menção da já existente e cumprida notificação prevista na al. b) do nº 4 do art.º 105º do RGIT, pelo que a condição objetiva de procedibilidade apesar de já existir nos autos, foi mencionada na acusação.
24 - Foi deduzida a acusação, ora declarada juridicamente inexistente, porque entendemos existirem todos os factos constitutivos da prática pelos arguidos do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de junho, sendo que a responsabilidade da sociedade arguida que lhe advém do disposto no artigo 7º, nº 1, do citado diploma legal e punido nos termos do artigo 12º, da mesma Lei;
25 - Apesar de não referida na acusação anteriormente deduzida nos autos nº 960/15.7IDPRT, a citada notificação, condição objetiva de punibilidade, estava cumprida e que existia;
26 - A condição objetiva de punibilidade por si só não integra o crime;
27 - O Ministério Publico exerceu convenientemente a ação penal;
28 - O Despacho da Mma. Juiz "a quo" que rejeitou a acusação por manifestamente infundada fez caso julgado relativamente à acusação deduzida naqueles autos nº 960/15.7IDPRT e o procedimento criminal parou nesses autos, mas não se extinguiu, não prescreveu, antes prosseguiu nos autos de inquérito a que deu lugar a certidão extraída e que foi registada como Inquérito nº 485/17.6T9STS, onde foi deduzida acusação e cumpridas todas as formalidades legais foram os autos remetidos para distribuição pelos juízos criminais e nada impede a realização do julgamento nestes autos;
29 - Aliás, em consonância com o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 8.4.2014, no processo 218/12.3TAABF.E1 decidindo que rejeitada acusação com o fundamento de que os factos dela constantes não integravam todos os elementos típicos do tipo de ilícito criminal, não se aplica aqui porquanto entendemos que a referência da falta de indicação da acusação não é de um dos elementos típicos do tipo de ilícito, mas antes da condição de procedibilidade. Do mesmo modo que numa causação não se indica as causas que excluem a ilicitude e a culpa.
30 - Estamos pois perante caso diverso do mencionado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.6.2017, relatado pela Sra. Desembargadora Maria dos Prazeres Silva. Não estamos, no caso em apreço perante um caso de insuficiência dos factos para o preenchimento do tipo legal do crime imputado na acusação deduzida nos autos para que a Mma. Juiz "a quo" tenha rejeitado a acusação, por manifestamente infundada, nos termos do art.º 311º, nºs 2, a) e 3, d), do Código de Processo Penal.
31 - Não foi violado qualquer comando legal. Não foi desrespeitado o Acórdão Uniformizador da Jurisprudência do STJ 09.04.2008, nem o Acórdão Uniformizador da Jurisprudência do STJ nº 1/2015, publicado no DR de 2015.01.27.
32 - Assim sendo, nada obsta a que a acusação seja recebida pelo Juiz "a quo" por não sofrer de qualquer vício ou nulidade, e sejam designadas datas para julgamento, nos termos do disposto nos artigos 311º e 312º, do Código de Processo Penal.
33 - Não se compreende como a Mma. Juiz "a quo" para além de rejeitar a acusação por manifestamente infundada no processo nº 960/15.7IDPRT, considera a acusação deduzida em processo autónomo, como juridicamente inexistente e julga extinto o procedimento criminal.
34 - Nestes termos, a decisão recorrida, violou o disposto nos artigos 311º e 312º do Código de Processo Penal;
35 - Por tudo que se deixa dito, deve o despacho que considerou a acusação deduzida nos autos à margem referenciados, como juridicamente inexistente e julgou extinto o procedimento criminal ser revogado e substituído por outro que receba aquela acusação e designe as datas para a realização do julgamento.”
1.4. O recurso foi admitido pelo despacho de fls. 360.
1.5. Não foi deduzida resposta.
1.6. O Sr. Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer no sentido de ser dado provimento ao recurso, com a natural e consequente revogação da decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra com o sentido e alcance nele pedidos.
1.7. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal.
1.7. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo Ministério Público e os poderes de cognição deste Tribunal, importa fundamentalmente apreciar e decidir se a acusação que foi objeto de rejeição sofre ou não do vício de inexistência jurídica, sendo nessa medida desprovida de qualquer valor jurídico, arvorando-se assim em fundamento para a extinção do procedimento criminal, como aliás foi decidido no despacho recorrido.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.2. Fundamentos fáctico - conclusivos e jurídicos
O questionamento a fazer, com o necessário rigor, é o de qual o valor e a eficácia jurídico-processual da primeira decisão proferida, com o objeto do que nela foi decido, e a sua relação com uma segunda decisão, isto é, a que foi posta em crise pelo presente recurso, sendo que o objeto de uma e outra será aparentemente o mesmo.
Na primeira decisão (proferida no processo de inquérito nº 960/15.7IDPRT) a acusação deduzida pelo Ministério Público contra B…, Sociedade Unipessoal, Lda., e C…, imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art.º 105º, nº 1, do RGIT, foi rejeitada por ter sido considerada manifestamente infundada, por não se mostrar descrita na acusação a condição de punibilidade prevista na al. b) do nº 4 do art.º 105º do RGIT.
Na segunda decisão, de substancial, ou até de relevante para a sua concreta fundamentação, considerou-se que a primeiramente proferida “está a coberto pela força do caso julgado, que impede a renovação do julgamento da mesma questão”, não podendo o Ministério Público suprir a imperfeição do despacho acusatório inicial “submetendo nova acusação a juízo expurgada da lacuna apontada no despacho que rejeitou a primeira acusação e que transitou em julgado.” Quanto ao mais, produzem-se em tal decisão, ora recorrida, múltiplas citações de decisões jurisprudências, que vemos como dificilmente aplicáveis à questão decidenda.
O que importa antes de mais reter, como sendo a essência do caso-problema a resolver (que o Tribunal a quo apenas en passant refere e sem que, em nosso entender, tivesse extraído desse facto as exatas ilações e consequências), é que o objeto de ambas as decisões, suscitando a admissibilidade ou não das respetivas acusações, ao abrigo do art.º 311º do CPP, teve por base um conjunto de factos, que eram no essencial os mesmos (identidade objetiva) imputados a determinados sujeitos, que eram exatamente os mesmos (identidade subjetiva), visando a sua responsabilização penal.
Ora, o chamamento para prolação de uma segunda decisão, que em relação a uma outra tenha essencialmente o mesmo objeto e os mesmos sujeitos, suscita sempre o mesmo tipo de questionamento, isto é, face ao sentido e alcance da primeira decisão proferida, transitada em julgado, está ou não eliminada a possibilidade de prolação de uma segunda decisão sobre os mesmos factos, envolvendo os mesmos sujeitos? Ou seja, põe-se-nos obviamente a questão da existência ou não da exceção de caso julgado.
Discordamos, respeitosamente, da decisão proferida pelo Tribunal a quo, quer quanto aos fundamentos, e de desde logo o modo e o questionamento posto, mas sobretudo a solução dada a um tal questionamento, nomeadamente quando afirma que a dedução da segunda acusação, na qual se descrevem os factos “de uma forma mais completa” (querendo certamente referir-se à menção nela agora feita à factualidade atinente à condição objetiva de punibilidade prevista no art.º 105º, nº 4, al. b), do RGIT) constitui um vício insuscetível de sanação, declarando-a de seguida inexistente. Sendo certo que, estando em causa uma relação lógica e cronológica entre a dedução de uma acusação e a decisão de rejeição que sobre ela recaiu, ao abrigo do art.º 311º, nº 2, al. a), do CPP, decisão essa transitada em julgado, e a dedução de uma segunda acusação, versando o mesmo objeto da primeira, sendo os mesmos o sujeitos nela implicados, a questão a resolver era então a de saber que possibilidade ou não tinham aquelas duas decisões de existir no mundo do jurídico, com a autonomia que o respetivo objeto consentisse ou não, mas de molde a poder afirmar-se que tais decisões não se contradiziam uma à outra e sobretudo que subjacente a ambas não se poderia afirmar que se estava perante a mesma “causa”, tendo sempre presente um valor fundamental de certeza e segurança jurídicas, no sentido de evitar que o tribunal fosse colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, desiderato que é objetivável por via da exceção de caso julgado – cf. art.º 580º, nº 2, do CPC.
Ou seja, o problema, a sê-lo, seria de exceção de caso julgado, e não de vício de inexistência jurídica da segunda acusação, como o considerou o Tribunal a quo.
O vício de inexistência jurídica está previsto para “casos excecionais, de gravidade superior àqueles que estão previstos como causa de nulidade”, não devendo nunca perder-se de vista que se “trata de recurso excecional, utilizado para repor a justiça em situações extremas, que quase ultrapassam as fronteiras do inimaginável” e cujo “único remédio admissível será a sua destruição, independentemente do trânsito em julgado”[1]. Sendo disso exemplo o processo penal que tenha por objeto um facto que não é penalmente ilícito ou a condenação de pessoa diferente do arguido ou a sentença não registada em documento escrito ou outro meio legalmente previsto.
Não vislumbramos, portanto, que seja este o correto enquadramento fáctico-jurídico do problema posto. E desde logo porque a questão terá de ser vista e tem solução à luz do instituto do caso julgado e mais precisamente da verificação ou não em concreto da respetiva exceção.
Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis, a decisão transitada em julgado nem sempre tem o mesmo valor ou a mesma eficácia. Referindo-se à distinção entre caso julgado material e caso julgado formal, define este último como aquele em que a decisão recai sobre a relação jurídica processual, enquanto que no primeiro a decisão recai sobre o mérito da causa, isto é, sobre a relação jurídica substancial controvertida. Sendo por isso importante, para sabermos se estamos perante um ou outro caso, apurar qual “o conteúdo da decisão e não o nome do ato”[2]. Sendo que no caso julgado material o decidido tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, enquanto o caso julgado formal apenas tem força obrigatória dentro do processo – cf. art.º 619º e 620º do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 4º do CPP. Daí o Prof. Alberto dos Reis, ao abordar a imutabilidade ou estabilidade do caso julgado formal, por ela ser restrita ao processo, dizer que a cada passo se fazia “coincidir o caso julgado formal com o fenómeno da simples preclusão”, no sentido de que tudo se reduz ao fenómeno da preclusão, porquanto a estabilidade do caso julgado formal é restrita ao processo respetivo.[3] [4]
Vertendo para o âmbito penal e processual penal as considerações acima tecidas[5] é bom de ver que a primeira decisão proferida, transitada em julgado, relativamente à primeira acusação deduzida pelo Mº Pº, não teve por objeto o mérito da causa penal, isto é, a verificação dos pressupostos da responsabilidade penal dos arguidos ali acusados, no sentido de em substância se poder afirmar que os factos imputados não constituíam crime, mas sim, tendo em vista a admissibilidade ou não da mesma acusação para sujeitar os arguidos a julgamento, a viabilidade desta, face aos factos que nela vinham alegados. Ou melhor, o Tribunal a quo, considerando que não vinha alegada na acusação a condição objetiva de punibilidade legalmente prevista para que os factos imputados àqueles arguidos fossem puníveis, entendeu que tal acusação estaria votada ao insucesso se submetida a julgamento. Decidindo por isso rejeitá-la, nos termos do art.º 311º, nº 2, al. a), do CPP.
Em bom rigor, portanto, o que estava em causa era a mera falta de alegação de pressupostos relativos à consequência jurídica de um crime que já se teria consumado, e de saber se o mesmo carecia ou não de pena, pressupostos esses que, precisamente porque situados a jusante da consumação do crime[6], nada têm a ver com a ilicitude ou a culpa que o constituem[7], mas simplesmente com a verificação do facto “extrapenal” que politico-criminalmente foi considerado como fundamento da impunibilidade, e que se traduz, objetivamente, na oportuna reparação ou não do dano causado ao Estado.
Facto “extrapenal” esse ou condição objetiva de punibilidade que a decisão recorrida não pôs em causa que existisse, como efetivamente existe, e já existia aliás à data da dedução da primeira acusação, como resulta de fls. 94 e 95 dos autos.
Apenas não foi alegada na acusação. Tendo sido esta, portanto, rejeitada, por deficiência na descrição dos factos, nãos dos constitutivos do tipo-de-ilícito em causa, mas dos factos que são condição objetiva da sua punibilidade. Sendo que em tal decisão apenas se obstou ao conhecimento do mérito da causa penal, porquanto nela se não disse que os factos descritos na acusação não constituíam crime ou que não ocorria nos autos positivamente a condição para que tais factos, ainda que constitutivos do crime imputado, fossem puníveis. Afirmação esta que nem sequer podia ser feita, pois dos autos resultava documentada a verificação positiva de tal condição.
O que foi decidido, no fundo, foi que tal acusação era deficiente na alegação dos factos que pretendia submeter a julgamento, na parte tendente à punibilidade dos mesmos.
Assim sendo, o caso julgado formado por tal decisão é meramente formal, só valendo dentro do respetivo processo, nos termos do art.º 620º, nº 1, do CPC. Não sendo assim também possível falar-se em violação do princípio non bis in idem, consagrado no art.º 29º, nº 5, do CPP, o qual proíbe o duplo julgamento e enquanto princípio constitucional objetivo “obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e definição de caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto”[8]. Julgamentos esses que entre si implicassem a invocação da exceção de caso julgado material. O que não acontece no caso dos autos.
No sentido do ora decidido, claramente, Paulo Pinto de Albuquerque, quando afirma: “Por exemplo, o despacho de rejeição da acusação manifestamente infundada faz caso julgado formal, embora não faça caso julgado material, uma vez que o juiz não chega a proferir decisão sobre o mérito da causa, pronunciando-se apenas sobre a inadmissibilidade daquela mesma acusação qua tale dada a existência de vícios estruturais na mesma”[9].
Tendo sido deduzida uma nova acusação, num outro inquérito, na qual foi suprido o vício anteriormente apontado, não vemos como possa agora essa mesma acusação ser rejeitada, porquanto o único obstáculo que lhe poderia ser colocado era a exceção de caso julgado material, que não ocorre, como vimos supra.
Nem vislumbramos ademais que outra solução jurídica se mostraria mais adequada, logica e teleologicamente para o caso-problema posto, tendo ademais presente que o direito penal e processual penal se pautam na sua concreta realização pela proteção de valores ou bens jurídicos fundamentais, cuja salvaguarda, no equilíbrio necessário, designadamente entre o interesse e a legalidade da perseguição penal, a segurança jurídica ou o respeito pelos direitos fundamentais do arguido, não pode de algum modo ser posta em causa. Mostrando-se no entendimento ora perfilhado um perfeito equilíbrio entre o dever de exercício da ação penal orientada pelo princípio da legalidade (art.º 219º, nº 1, da CRP), a certeza e a segurança jurídica na aplicação da lei penal (art.º 29º, nº 5, da CRP) e as garantias do processo penal que devem ser asseguradas aos arguidos, nos termos do disposto no art.º 32º da CRP. O que já não seria o caso se fosse mantida a decisão recorrida, porquanto levar-se-ia infundadamente o Estado a abdicar do seu poder/dever de atuação na proteção de bens jurídicos fundamentais, através da instauração e prossecução da ação penal que o ordenamento jurídico objetivamente lhe impõe, assim como o dever de pautar a sua conduta, isto é, de quem o representa, pela ideia de realização do direito e, consequentemente, da realização da justiça, sem que para tal, ou em contrário, se invocasse um qualquer valor jurídico-constitucionalmente relevante e muito menos prevalente, e que fosse, no fundo, axiológica e comunitariamente sustentável.
Razão por que deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que pondere a admissão da acusação, nos termos do art.º 311º do CPP.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e consequentemente, revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que pondere a admissão da acusação, em ordem a submeter a julgamento os factos nesta imputados aos arguidos, nos termos do art.º 311º do CPP.
Sem custas
*
Porto, 07 de fevereiro de 2018
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão
______
[1] João Conde Correia, Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, STVDIA IVRIDICA, 44, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 117, 120 e 121.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, Coimbra Editora, Lda., Coimbra, 1984, p. 156 e 157.
[3] Ibidem
[4] Cf. ainda Ac. do STJ, de 24/05/2006, Pº 06P1041, disponível in www.dgsi.pt.jstj
[5] Sem prejuízo, caso estivesse em causa nos autos a delimitação do âmbito objetivo ou subjetivo do caso julgado material, de se ter em conta as especificidades da natureza penal da causa e assim também os princípios que enformam o direito penal e processual penal - Cf. fundamentação do Assento do STJ nº 3/2000.
[6] Tratando-se de um crime omissivo puro, a sua consumação dá-se no momento em que o agente não entrega a prestação tributária a que estava adstrito, ou melhor “no momento em que chega ao fim o prazo para a entrega ao Estado das prestações tributárias deduzidas pelo substituto fiscal” – Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p. 138.
[7] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 668 e segs.
[8] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 497.
[9] Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, p. 827.