Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1897/14.2T2AGD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: INÊS MOURA
Descritores: CONTRATO FINANCEIRO
CLAÚSULAS CONTRATUAIS GERAIS
CLÁUSULA CROSS DEFAULT
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP201709271897/14.2T2AGD-A.P1
Data do Acordão: 09/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º105, FLS.109-122 VRS.)
Área Temática: .
Sumário: I - A denominada cláusula cross default que hoje é utilizada em contratos financeiros ou bancários é aquela que permite ao credor exigir de imediato a prestação do devedor no contrato que a prevê, com fundamento na verificação do incumprimento de uma outra obrigação do devedor noutro contrato celebrado.
II - Para a aplicação do regime de protecção previsto no diploma que regula as cláusulas contratuais gerais, mais do que saber se estamos ou não perante um contrato de adesão o que releva é saber se a cláusula em questão constitui uma cláusula com um conteúdo pré-elaborado e insusceptível de ser influenciado ou negociado pela parte.
III - O nosso ordenamento jurídico admite a possibilidade do vencimento antecipado da dívida, em algumas circunstâncias específicas, bem como considera que o benefício do prazo é matéria não subtraída à autonomia ou liberdade contratual das partes.
IV - A cláusula que prevê que “se não for pontualmente cumprida pelo devedor qualquer obrigação, ainda que não pecuniária, emergente de qualquer outro contrato celebrado ou a celebrar com o Banco ou com qualquer outra instituição de crédito”, vai manifestamente além do que são as garantias razoáveis que podem ser exigidas pelo credor em nome de um princípio de tutela da confiança, pondo em causa o equilíbrio de interesses das partes contratantes, sendo excessiva, desproporcionada e desequilibrada e por isso contrária à boa fé.
V - Não há abuso de direito pela parte contratante, que não excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, ao invocar a invalidade de uma cláusula nula que não negociou, não se apurando que a mesma tenha criado na parte contrária uma expectativa sólida de que isso não aconteceria.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 1897/14.2T2AGD-A.P1
Apelação 1ª

Relator: Inês Moura
1º Adjunto: Francisca Mota Vieira
2º Adjunto: Paulo Dias da Silva
Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do C.P.C.)
1. A denominada cláusula cross default que hoje é utilizada em contratos financeiros ou bancários é aquela que permite ao credor exigir de imediato a prestação do devedor no contrato que a prevê, com fundamento na verificação do incumprimento de uma outra obrigação do devedor noutro contrato celebrado.
2. Para a aplicação do regime de protecção previsto no diploma que regula as cláusulas contratuais gerais, mais do que saber se estamos ou não perante um contrato de adesão o que releva é saber se a cláusula em questão constitui uma cláusula com um conteúdo pré-elaborado e insusceptível de ser influenciado ou negociado pela parte.
3. O nosso ordenamento jurídico admite a possibilidade do vencimento antecipado da dívida, em algumas circunstâncias específicas, bem como considera que o benefício do prazo é matéria não subtraída à autonomia ou liberdade contratual das partes.
4. A cláusula que prevê que “se não for pontualmente cumprida pelo devedor qualquer obrigação, ainda que não pecuniária, emergente de qualquer outro contrato celebrado ou a celebrar com o Banco ou com qualquer outra instituição de crédito”, vai manifestamente além do que são as garantias razoáveis que podem ser exigidas pelo credor em nome de um princípio de tutela da confiança, pondo em causa o equilíbrio de interesses das partes contratantes, sendo excessiva, desproporcionada e desequilibrada e por isso contrária à boa fé.
5. Não há abuso de direito pela parte contratante, que não excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, ao invocar a invalidade de uma cláusula nula que não negociou, não se apurando que a mesma tenha criado na parte contrária uma expectativa sólida de que isso não aconteceria.
Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
Vêm os executados B…, S.A., C… e D… deduzir os presentes embargos de executado contra Banco E…, S.A., pugnando pela sua procedência e consequente extinção da execução e subsidiariamente pedem a redução da quantia exequenda, considerando o accionamento da garantia bancária por parte do banco.
Alegam, em síntese, que subjacente à livrança exequenda está uma contrato de mútuo celebrado entre a 1ª embargante e o exequente ao abrigo da linha de crédito PME – Inves VI/QREN, tendo sido emitida a livrança em branco e assim avalizada, para garantia do cumprimento das obrigações decorrentes de tal contrato. Não obstante no seu requerimento executivo, o exequente alegar como fundamento da resolução contratual e accionamento da garantia bancária também associada a tal contrato, o não pagamento de prestações de capital e juros pela 1ª executada, não existe qualquer incumprimento de tal obrigação, nem foi este o fundamento invocado para a resolução contratual, que segundo carta enviada pelo exequente se operou ao abrigo da cláusula 15ª, nº2 alínea c) do contrato, que lhe permitia por termo ao contrato e considerar imediatamente vencido, independentemente de interpelação para cumprimento, a totalidade do capital em dívida, cujo pagamento se tornará imediatamente exigível, acrescido dos juros remuneratórios e/ou moratórios devidos, bem como os demais encargos ou despesas legal ou contratualmente exigíveis, podendo ainda o banco promover a execução das garantias constituídas para assegurar as responsabilidades do mesmo emergente no caso de não ser pontualmente cumprida pela mutuária qualquer obrigação ainda que não pecuniária, emergente de qualquer outro contrato celebrado ou a celebrar com o banco ou com qualquer outra instituição de crédito. Alegam que, não obstante a resolução operada, o contrato estava a ser cumprido e a 1ª embargante continuou a cumprir o contrato de mútuo. Invocam os embargantes a nulidade da cláusula em questão, pois que tratando-se de uma cláusula contratual geral, tendo sido unilateralmente redigida pelo banco exequente, sem que tenha sido objeto de prévia negociação contratual encontra-se abrangida pelo regime do DL 446/85, cláusula que viola o artigo 15.º do mesmo diploma legal, por ser contrária à boa-fé. Acresce que para além do contrato de mútuo em causa, a 1ª embargante havia celebrado com o exequente um contrato de abertura de crédito com a referência nº………, dois contratos de permuta de taxa de juros ou swap e um contrato de conta de depósitos à ordem, nº………. No que toca ao contrato de abertura de crédito, a referida embargante encontrava-se em situação de incumprimento, o que motivou a resolução do contrato pelo banco, mas encontrando-se pago ao banco exequente a quantia que se encontrava em dívida, no total de 375.282,19€. Quanto aos contratos de swap, um deles mantém-se vigente, enquanto o outro foi resolvido pela sociedade executada com fundamento na verificação de uma alteração superveniente das circunstâncias, que o banco não reconheceu, tendo dado origem a acção judicial. No que toca à conta de depósitos à ordem que a 1ª embargante mantém aberta junto do exequente, apresenta-se pontualmente a descoberto, sempre com valores de pouca monta, que a executada vem sempre a regularizar, depositando os valores acrescidos de juros, comissões e imposto de selo. O pacto de preenchimento da livrança exequenda previa o seu preenchimento caso se verificasse o incumprimento por parte da 1ª embargante de qualquer das obrigações assumidas ao abrigo do contrato de mútuo a ela subjacente, pelo que ao ter sido preenchida sem se verificar tal condição, foi violado.
Admitidos os embargos de executado, foi notificado o exequente para contestar, o que veio fazer concluindo pela sua improcedência. Alega que já se havia discutido a resolução contratual operada e que o contrato em causa já tinha sido objecto de duas alterações, designadamente quanto ao período de carência, pelo que ainda não estavam a ser pagas as prestações inicialmente devidas. Defende que a cláusula 15.º n.º 2 alínea c) do contrato de mútuo não se integra no regime das cláusulas contratuais gerais, porquanto o contrato foi livremente celebrado pela executada, com aquele clausulado, ao abrigo do protocolo designado de Linha de Crédito PME Invest VI, beneficiando de tudo o que o contrato lhe permitiria, e na altura não discutiu a validade da disposição que agora tenta colocar em crise, não se podendo classificar o contrato como de adesão, mas sim perante um contrato devida e demoradamente negociado pelos executados, que conheciam toda e cada uma das cláusulas e tiveram o tempo que quiseram para analisarem e solicitarem os esclarecimentos que entendessem, os quais foram todos prestados. O contrato foi renegociado por duas vezes, não sendo verdade que o clausulado do mesmo fosse fixo. Conclui que, de qualquer forma, não se verifica a indeterminabilidade e desproporcionalidade da cláusula em causa, nem a mesma é abusiva, uma vez que estamos perante ocorrências verificadas no âmbito do relacionamento entre as partes e que têm significado na economia da relação contratual, levando ao justo receio do credor relativamente ao pontual cumprimento das obrigações, ou seja, à perda de confiança, pelo que mesmo que a cláusula seja nula, seria válida a resolução operada. Quanto à redução da quantia exequenda, já procedeu à redução do valor da quantia exequenda em 34.000,00€, pedindo a redução do seu valor agora em mais 17.000,00€, considerando o último pagamento feito pela executada no ano de 2015.
Foi realizada a audiência prévia, onde se afirmou a validade e regularidade da lide, se identificou o objecto do litígio e se enunciaram os temas da prova.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento com observância do legal formalismo.
Foi proferida decisão que julgou procedentes os embargos deduzidos e determinou a extinção da execução.
É com esta decisão que o Exequente não se conforma e dela vem interpor recurso, apresentando para o efeito as seguintes conclusões, que se reproduzem:
A. Na opinião da Recorrente, a sentença ora recorrida violou por errada interpretação e aplicação, as seguintes normas: artigos 1.º, 2.º, 12.º, 15.º e 16.º, do DL. 446/85, de 25 de Outubro, artigos 236.º a 239.º, 405.º, 762.º, 779.º, 780.º, 781.º, 782.º, 798.º e 1147.º, do Código Civil, artigos 608.º e 732.º, do Código de Processo Civil e ainda o artigo 10.º, da Lei Uniforme das Letras e Livranças, que deverão ser interpretadas e aplicadas conforme abaixo descrito
B. Na base da presente acção está a execução de uma livrança, subscrita pelo Recorrente no âmbito de um contrato de empréstimo, celebrado a 16.09.2010 entre este e a 1.ª Recorrida, com garantia mútua e avalizada pelos 2.º e 3.º Recorridos, tendo este contrato sido objecto de dois aditamentos, em resultado de outras tantas renegociações.
C. Nos termos da sentença recorrida, a procedência da presente execução depende directamente do preenchimento lícito da livrança exequenda.
D. Aos Recorridos foi-lhes atribuído tempo bastante para que analisassem e se pronunciassem sobre o contrato, que incluía a cláusula 15.ª, n.º 2, alínea c), invocada pelo Recorrente para operar a resolução do Contrato e o vencimento antecipado da dívida, e que constitui uma cláusula de “cross-default”.
E. Entre os Recorridos e o Recorrente tinham já sido celebrados outros contratos: um contrato de abertura de crédito, dois de permuta de taxa de juro (ou swap) e um de abertura de conta de depósitos à ordem.
F. De onde resulta que os Recorridos eram já conhecedores e experientes, tendo aceitado conscientemente a cláusula referida.
G. O contrato de empréstimo em causa não pode ser perspectivado de forma isolada, mas sim no contexto da relação bancária complexa em que se insere e à luz dos princípios específicos deste ramo de Direito.
H. Entre nós vigora a regra do “numerus apertus negotiorum”, mas esta é contrabalançada pelas exigências de normalização bancária, através do pré-estabelecimento de tipos admissíveis de figuras e cláusulas contratuais, o que legitima o recurso frequente, porque necessário, à inserção de cláusulas contratuais gerais nos contratos bancários.
I. No mesmo sentido postulam os princípios bancários da rapidez e da ponderação bancária.
J. Se do princípio da rapidez resulta a referida normalização bancária, do princípio da ponderação determina a interpretação segundo o primeiro entendimento, eminentemente objectiva, valendo os actos pelo que neles estiver exarado.
K. No âmbito da relação bancária complexa, e à medida que são celebrados negócios bancários entre as duas entidades, a relação existente intensifica-se, daí derivando deveres de conduta, decorrentes da boa-fé, dos usos ou de acordos parcelares, constituindo a confiança um pilar fundamental na relação bancária.
L. O facto de, inicialmente, o cliente ter mais informação do que a entidade bancária relativamente à sua situação financeira, é a razão pela qual as garantias constituem parte intrínseca do tráfego bancário.
M. Contudo, é discutido hoje na doutrina nacional e internacional que o sistema jurídico dito Continental tem revelado inaptidão para, “de per si”, fazer face às exigências do tráfego e do comércio jurídico internacional, o que tem motivado o recurso frequente a figuras e institutos do sistema anglo-saxónico.
N. Para uma segurança efectiva e eficaz não são suficientes hoje os meios tradicionais de conservação que implicam o recurso aos tribunais e a verificação e prova de requisitos legais apertados, que tornam inoperante a tutela do património do devedor como garantia geral.
O. Existem, por isso, nos dias de hoje, no tráfego jurídico continental, em particular o português, cláusulas contratuais, não previstas expressamente na lei, mas criadas a partir da praxis, no âmbito do princípio da liberdade contratual, prevista no art.º 405 do Código Civil.
P. Em especial, tem-se assistido ao surgimento das chamadas cláusulas de garantia ou segurança, entre as quais se inclui a designada cláusula de “cross-default”, como meio de reforço da tutela geral decorrente da lei.
Q. Esta cláusula justifica-se pelo seu papel enquanto cláusula de garantia e/ou segurança, essencial para a manutenção da relação de confiança na execução de uma relação bancária complexa, sendo indispensável para que a entidade financiadora contorne o risco do incumprimento e conceda crédito ao candidato a financiado, não sendo suficiente para tal a segurança que resulta do património do devedor e dos mecanismos legais de tutela.
R. A inclusão de cláusulas pré-elaboradas em contratos bancários é, hoje, frequente e tida como legítima.
S. Contudo, ao contrário da solução jurídica adoptada na sentença de que se recorre, só residualmente o diploma que estabelece o regime das cláusulas contratuais gerais será susceptível de aplicação.
T. Mesmo que se entenda que a cláusula 15.ª, n.º2, alínea c), do Contrato, é uma cláusula de adesão (sendo-lhe aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais), não se concede que o Tribunal entenda que a mesma seja nula, por contrária à boa-fé.
U. Isto porque este tipo de clausulado é típico e recorrente em contratos de financiamento, sendo essencial para o funcionamento do mercado e para a salvaguarda das instituições financeiras, mas também porque os Recorridos nunca pediram qualquer esclarecimento ou a alteração da referida cláusula, ainda que dominem e compreendam bem a realidade do mercado financeiro e tenham renegociado o Contrato duas vezes.
V. De forma que a análise das cláusulas de “cross-default” não pode ser meramente reconduzida para o regime das cláusulas contratuais gerais, sendo necessário avaliar o seu contexto, regime e finalidade.
W. No caso concreto, a cláusula de “cross-default” reconhece ao Recorrente a possibilidade de exigir o vencimento antecipado do montante em dívida e ainda de resolver o contrato pelo facto de a 1.ª Recorrida ter incumprido outro contrato perante a mesma ou outra instituição financeira, a qual, de acordo com a melhor doutrina, é uma formulação típica e frequentemente utilizada para a elaboração deste tipo de clausulado, já se encontrando implantada no comércio e tráfego jurídico nacional e internacional.
X. A acrescer, esta cláusula apenas coloca a perda do benefício do prazo e a resolução do Contrato dependente de factos que são susceptíveis de violar outros contratos com instituições de crédito.
Y. Sendo assim, esta cláusula permite compelir o devedor ao cumprimento pontual de todas as suas obrigações contratuais e ainda a realizar uma gestão cuidadosa do seu património, podendo corresponder apenas a um alargamento dos casos de vencimento antecipado da dívida ou também a uma cláusula resolutiva expressa.
Z. A cláusula cross default, se perspectivada como cláusula que determina a perda do benefício do prazo, tem pleno acolhimento no ordenamento jurídico português.
AA. De facto, de acordo com o artigo 780.º do CC, as partes nunca poderão restringir a tutela do crédito, mas é-lhes lícito convencionar um regime mais favorável ao credor.
BB. Devendo caber ao credor a decisão sobre a conveniência ou inconveniência de recorrer a tais mecanismos, uma vez que a estipulação do prazo tem por pressuposto a confiança do credor na solvabilidade do devedor e estão em causa situações em que os seus interesses resultam ameaçados.
CC. De onde se conclui que, uma vez adoptada esta perspectiva sobre a cláusula cross default, sempre se teria de concluir pela legitimidade do preenchimento da livrança, pois que a dívida era imediatamente exigível e executável.
DD. No primeiro entendimento do Recorrente e dos Recorridos, a referida cláusula consagra não só o direito de exigir antecipadamente o montante em dívida, mas também constitui uma cláusula resolutiva expressa.
EE. A classificação de uma cláusula de “cross-default” como uma cláusula resolutiva expressa tem apoio da melhor doutrina, com fundamento nos princípios da liberdade contratual e da autonomia da vontade.
FF. Por sua vez, as cláusulas resolutivas expressas têm fundamento na lei, sendo expressamente admitido pelo artigo 431.º, n.º 1, do Código Civil, que as partes convencionem que determinado evento constitui um incumprimento do contrato, independentemente da verificação de qualquer causa resolutiva legal.
GG. Esta possibilidade permite às partes salvaguardarem-se perante a possibilidade de modificações ou de quaisquer perturbações na execução de um contrato cuja execução se prolongue por um longo período de tempo, de modo a evitar que o vínculo contratual se torne demasiado oneroso e a desvinculação demasiado morosa e complexa por ter de ser submetida à ponderação e valoração judicial.
HH. A acrescer, pelo que se pode constatar, nunca existiu qualquer dúvida na jurisprudência, na doutrina e na lei relativamente à aceitação da presença de cláusulas resolutivas expressas em contratos.
II. De todo o modo, não obstante a admissibilidade da cláusula de “cross-default” enquanto cláusula resolutiva expressa, cumpre evidenciar que, no caso em concreto, o exercício do direito de resolução deveu-se não a um qualquer incumprimento, longínquo e inconsequente, mas a um incumprimento num Contrato de Abertura de Crédito, celebrado igualmente com o Recorrente, o qual levou à resolução do contrato respectivo, por a dívida ter ascendido, a dado momento, à avultada quantia de €375.282,19.
JJ. O direito de resolução advém do facto da 1ª Recorrida incumprir diversos contratos com o Recorrente como, não satisfeita, ainda ter intentado acção judicial contra o Recorrente.
KK. Com efeito, mesmo que se entenda que a cláusula resolutiva expressa não é válida, isso não afastaria a possibilidade, consagrada pela jurisprudência, de o incumprimento constituir, por si, e em face da lei, uma causa de resolução contratual.
LL. Afinal, o Recorrente e os Recorridos celebraram, em alturas próximas, cinco contratos que constituem uma grande operação de financiamento, sendo interdependentes entre si.
MM. Com efeito, as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar sofreu uma alteração anormal e imprevista, em virtude do incumprimento sucessivo pelos Recorridos dos contratos celebrados, o que tornou a sua manutenção insustentável para o Recorrente.
NN. A douta sentença de que se recorre errou ao não considerar abusiva a invocação da nulidade pelos Recorridos.
OO. A figura do abuso de direito encontra-se prevista no artigo 334.º do Código Civil, consistindo no exercício ilegítimo de um direito, por excesso dos limites impostos pela boa fé, bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito em causa.
PP. Agir de boa-fé, no âmbito desta figura jurídica, consiste em agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte e ter um comportamento honesto, correcto, leal, desde logo no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança e expectativa dos outros.
QQ. Em particular, no que respeita à modalidade de “venire contra factum proprium”, esta configura-se como o exercício de uma posição jurídica de forma contraditória face a uma conduta assumida previamente pelo agente, susceptível de basear uma situação objectiva de confiança.
RR. São também pressupostos desta modalidade de abuso de direito a existência de um investimento de confiança e o nexo de causalidade entre a situação objectiva de confiança e o investimento realizado.
SS. No presente caso, os Recorridos aceitaram de forma ponderada e consciente a cláusula 15.º, n.º 2, nunca tendo levantado qualquer questão quanto ao seu teor e consequências.
TT. Nem mesmo aquando das duas ocasiões em que se procedeu à renegociação do contrato, a 11.11.11 e a 14.05.2013.
UU. Gerou-se, dessa forma, a confiança no Recorrente de que os Recorridos tinham aceitado plena e conscientemente o clausulado contratual, o que levou, designadamente, aquela a atribuir à 1ª Recorrida sucessivos períodos de carência.
VV. É, portanto, manifestamente contrário à boa-fé e violador da confiança gerada no Recorrente que a 1ª Recorrida apenas suscite tal questão quando esta lhe é inconveniente, não tendo encontrado problema algum enquanto a relação contratual lhe correu de feição.
Os Executados não vieram responder ao recurso interposto.
II. Questões a decidir
- da (in)validade da cláusula “cross-default” constante do contrato celebrado;
- do abuso de direito pelos Recorridos ao invocarem a nulidade da cláusula “cross-default”.
III. Fundamentos de Facto
Não tendo sido impugnada a matéria de facto e não havendo qualquer alteração à mesma, remete-se para decisão do tribunal de 1ª instância, que se reproduz:
A)Foi dada à execução a livrança, cujo original se encontra junto a fls. 27 PP dos autos principais.
B) A livrança tem como local de emissão Lisboa, data de emissão 16.09.2010, data de vencimento 06.06.2014, o valor de 209.257,60€ e no campo referente à assinatura do subscritor encontra-se o carimbo da 1ª embargante, a sociedade B…, SA e assinatura dos seus legais representantes.
C) No verso da livrança, e a seguir às expressões “Bom para aval à subscritora” encontra-se a assinatura dos demais embargantes.
D) Subjacente a tal livrança está o contrato celebrado entre a sociedade referenciada e o exequente, em 16.09.2010, denominado de contrato de empréstimo, com o nº…….., PME invest VI/QREN, com garantia mútua, nos termos do qual o E… concedeu à 1ª executada uma facilidade de crédito sob a forma de empréstimo destinado ao reforço do fundo de maneio da empresa.
E) Por efeito do referido contrato, o exequente emprestou o valor de 500.000,00€, quantia da qual a sociedade executada se confessou devedora.
F) O contrato foi celebrado pelo prazo de 60 meses a contar da data da sua assinatura, devendo capital ser amortizado em 18 prestações constantes e iguais, trimestrais e postcipadas, vencendo-se a 1ª em 16 de junho de 2011.
G) A cláusula 10, sob a epigrafe “Garantias, no seu nº1 prevê o seguinte: “Em garantia do cumprimento das obrigações pecuniárias assumidas pela empresa no âmbito do presente empréstimo, é entregue ao banco nesta data garantia autónoma à primeira solicitação, emitida pela F…, SA, destinada a garantir até 50% do capital em dívida em cada momento do tempo do restante empréstimo, a qual será acionada se qualquer dos montantes garantidos não for pago pela empresa, total ou parcialmente no momento do respetivo vencimento.
H) E o nº2 da referida cláusula prevê que “Nesta data a empresa constitui ainda a favor do banco para garantia das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo e em “pari passu” a favor deste, da SGM, para garantia do bom cumprimento das responsabilidades que para a empresa beneficiária emergente da prestação da garantia autónima, e do G…, neste caso para recuperação de montantes bonificados por esta entidade em caso de caducidade da bonificação, a(s) seguinte(s) garantia(s): a) Subscrição pela empresa de livrança em branco e avalizada por D… (…) e C… (…), ficando o banco autorizado a, através de qualquer dos seus funcionários, completar o seu preenchimento, designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, ao local de pagamento e aos montantes até ao limite das responsabilidades emergentes deste contrato e assumidas pela empresa, acrescido de quaisquer encargos com a selagem, caso se verifique incumprimento pela parte da empresa de qualquer das obrigações assumidas ao abrigo do presente contrato.”
I) A cláusula 15, nº2, alínea c) do referido contrato prevê o seguinte: “Fica expressamente convencionado que o Banco poderá, ainda, por termo ao presente contrato e considerar imediatamente vencido, independentemente de Interpelação para cumprimento, a totalidade do capital em dívida, cujo pagamento se tornará, então, consequente e imediatamente exigível, acrescido dos juros remuneratórios e/ou moratórios devidos, bem como dos demais encargos ou despesas legal ou contratualmente exigíveis, podendo, ainda o Banco promover a execução da(s) garantia(s) constituídas para assegurar as responsabilidades do mesmo emergente nos seguintes casos: Se não for pontualmente cumprida pela Mutuária qualquer obrigação, ainda que não pecuniária, emergente de qualquer outro contrato celebrada ou a celebrar com o Banco ou com qualquer outra instituição de crédito.”
J) Foi celebrado um aditamento a este contrato em 11 de novembro de 2011, que fixou o valor do capital em dívida em 444,444,46€, alargou o prazo do empréstimo para um período de 12 meses, incluiu um período de carência de 12 meses e a alteração do spread aplicável para 4,62500% durante o período de carência.
K) Em 14 de maio de 2013, o contrato sofreu novo aditamento, que fixou o valor do capital em dívida em 388,888,92€, alargou o prazo do empréstimo para um período de 12 meses, incluiu um período de carência de 12 meses e a alteração do spread aplicável para 4,81300% durante o período de carência.
L) O contrato referenciado e os aditamentos foram negociados entre a sociedade embargante e o banco exequente, no que toca às cláusulas referentes ao prazo do empréstimo, período de carência, taxa de juro e spread aplicáveis, sendo as demais pré determinadas pelo banco exequente.
M) Antes da assinatura do contrato, a minuta do clausulado foi apresentada aos executados, para que fosse por eles analisado e para que solicitassem os esclarecimentos necessários.
N) Em 27 de fevereiro de 2014, o banco exequente enviou carta registada com AR a sociedade embargante, com o seguinte teor: “(…) O Banco E…, SA tendo celebrado com V. Exªs em 16 de setembro de 2010 o contrato supra identificado, vem por este meio e para os efeitos previstos na cláusula décima quinta do aludido contrato declarar o vencimento antecipado da dívida. Tornando-se exigível a totalidade do crédito do Banco, assistindo desse modo ao Banco o direito de acionar todas as garantias de que é beneficiário.”
O) Na mesma data, enviou carta registada com aviso de receção aos demais embargantes, com o seguinte teor:” Vimos pela presente informar V. Exª, na qualidade de avalista, que na presente data, enviamos carta à sociedade B… SA” comunicando o vencimento antecipado da dívida decorrente do “Contrato de Empréstimo ao Abrigo da Linha de Crédito PME Investe VI/QREN com Garantia Mútua” – N/ Refª CLS ………. Assim, considere tal comunicação extensível a V. Exª, na qualidade de avalista, das responsabilidades assumidas pela empresa perante o Banco.”
P) Em 14 de março de 2014, a sociedade embargante, através do advogado Dr. H… enviou carta à Direção de Recuperação Especializada do banco exequente co mo seguinte teor: “(…) A B… não reconhece que exista fundamento para a resolução do contrato nos termos em que V.Exas. o fazem. Daquela comunicação, de resto, não resulta claro quais os factos que fundamentam a resolução, pelo que a mesma não procede. Reitera, por fim, a disponibilidade para continuar a cumprir pontualmente o contrato, tal como tem acontecido até esta data, e nos exatos termos acordados.”
Q) O banco exequente respondeu a esta carta em 31 de março de 2014, nos seguintes termos: “Relativamente à informação solicitada na mesma, vem o BANCO E…, SA, Sociedade Aberta, informar V.Ex.ª que operou a resolução do contrato em apreço ao abrigo do disposto na cláusula décima quinta, nº2, alínea c). Mais informa o Banco E… Banco que, à presente data, o montante em dívida decorrente já responsabilidade identificada em assunto ascende a €394.897,78, correspondente à totalidade do capital em dívida, juros vencidos e de mora e demais encargos. A dívida em causa deverá ser impreterivelmente liquidada no prazo máximo de cinco dias a contar da data da emissão da presente carta sob pena de serem promovidas todas as diligências já encetadas tendo em vista a cobrança dos créditos do Banco.”
R) A sociedade B… respondeu a tal carta por outra datada de 16 de abril de 2014 em que dizia “Agradecemos desde já o prezado esclarecimento de V. Exas. quanto ao concreto fundamento da resolução contratual operada, a saber, a cláusula décima quinta, nº2, alínea c) do contrato acima melhor identificado. Tal cláusula prevê a possibilidade, para o Banco, de pôr termo ao contrato e considerar imediatamente vencida a totalidade do capital em dívida se, nomeadamente, não for pontualmente cumprida pela Mutuária qualquer obrigação, ainda que não pecuniária, emergente de qualquer outro contrato celebrado ou a celebrar com o Banco ou com qualquer outra instituição de crédito’’. Julgamos que não será certamente desconhecida desta instituição bancária a invalidade deste tipo de cláusulas contratuais, era virtude da sua indeterminação, generalidade, desproporção e manifesto desequilíbrio. Salientamos, ainda, que este juízo não se trata de uma mera opinião nossa mas, antes, de um entendimento sufragado já judicialmente, nomeadamente pela nossa mais elevada instância jurisdicional. Assim, rogamos a V. Exas para que reconsiderem a resolução contratual operada com fundamento na referida cláusula e, em consequência, tenham por vigente o contrato de empréstimo em causa, tanto mais que o mesmo não se encontrava nem encontra em incumprimento pela B…, SA. Neste caso, permitimo-nos desde já manifestar junto de V. Exªas o nosso verdadeiro e sério intuito de cumprimento pontual e escrupuloso do plano contratual acordado entre a B…, SA e o Banco E…, SA. Caso mantenham a determinação radical de resolução, com o consequente desencadeamento das diligência de cobrança já anunciadas, naturalmente não deixaremos de invocar, entre outros aspetos, a invalidade acima referida.”
S) O banco exequente respondeu à sociedade executada por carta registada com aviso de receção datada de 29 de abril de 2014, nos seguintes temos: “Pela carta datada de 16 de Abril, pretendem V.Exas, bem sabendo da fundamentação invocada para o efeito, questionar a decisão do Banco de, ao abrigo das cláusulas contratuais negociadas para o efeito, exercer os seus mais legítimos direitos. Curiosamente a preocupação com a invocada indeterminação e desproporção da cláusula, só nasce nesta fase em que V. Exas se constituíram em incumprimento perante o E1… e não com a formalização do contrato ao abrigo do qual obtiveram avultado financiamento em condições preferenciais e excecionais. Tanto mais que das condições de aprovação da operação – com as quais V. Exas concordaram e que, por isso, estão plasmadas no contrato – já constava a possibilidade de fazer operar a resolução do contrato com base no incumprimento de outros financiamentos celebradas com o E1…. Ate porque, sendo o apoio concedido a V. Exas com base em Fundo participado por diversas entidades financiadoras, mal se compreenderia que estas mesmas entidades estivessem obrigadas a beneficiar quem com elas não cumpre. Justifica-se, também por isso, a inclusão da referida alínea, bem como todas as demais alíneas previstas na cláusula décima quinta do contrato, e sendo V. Exas profissionais experientes, compreenderam bem o alcance de todas as condições inerentes a este tipo de financiamento, incluindo a que agora, e só agora, entendem pôr em causa. Em face do exposto, o E1… reitera o teor da sua carta de 31 março em que se informava o montante em divida subjacente ao Contrato Empréstimo celebrado ao abrigo da linha de crédito PME Investe VI/QREN com Garantia Mútua CLS nº……… e que não sendo a divida em causa (€394.897,78) impreterivelmente liquidada no prazo máximo de cinco dias a contar da data de emissão daquela carta o Banco promoveria as diligências necessárias tendo em vista a cobrança dos seus créditos.
T) Por carta datada de 17 de abril de 2014, a F…, Garantia Mútua deu conhecimento à sociedade embargante de que “o beneficiário. Banco E…, SA, no âmbito da garantia n° ………., emitida pela F…. S.A. solicitou-nos o pagamento de €194.444,46, correspondente a 50,00% do valor do capital em dívida, tendo em conta o vencimento antecipado do mesmo, declarado por aquela instituição. Em cumprimento da aludida garantia autónoma procedemos ao pagamento daquele montante no dia 17 de abril de 2014. Nos termos do contrato subjacente à emissão da garantia bancária nº……….. celebrado com V. Exas., em 2010-09-16, V. Exas. deverão proceder ao pagamento de todos os montantes que a F…, S.A.. efetue em vosso nome no prazo estabelecido nesse mesmo contrato. Assim, de acordo com o previsto contrato celebrado, deverão V. Exas. proceder ao pagamento de €194.444,46, até ao dia 2014-04-28. Caso o pagamento não seja efetuado até à data acima indicada procederemos à execução judicial correspondente para cobrança do montante em dívida acrescidos dos juros moratórios que sejam devidos, além de procedermos à comunicação dos valores devidos, como responsabilidades efetivas para efeitos da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal.”
U) O banco exequente preencheu a livrança exequenda com o capital de 206.044,38€, juros no valor de 2.083,62€, imposto de selo no valor de 83,34€ e selagem do título no valor de 1.046,26€.
V) A sociedade embargante procedeu à entrega de 17.000,00€ ao banco exequente para amortização do capital em dívida em 30 de junho de 2014, dando disso conhecimento ao exequente por carta datada de 26.06.2014.
W) A sociedade embargante procedeu à entrega de 17.000,00€ ao banco exequente para amortização do capital em dívida em 17 de outubro de 2014, dando disso conhecimento ao exequente por carta datada de 01.10.2014.
X) A sociedade embargante procedeu à entrega de 17.000,00€ ao banco exequente para amortização do capital em dívida, dando disso conhecimento ao exequente por carta datada de 31.12.2014.
Y) A além do contrato de mútuo em causa, a sociedade executada havia celebrado com o banco Exequente: (i) Contrato de abertura de crédito com a referência nº………; (ii) Dois contratos de permuta de taxa de juro ou swap; (iii) Contrato de abertura da conta de depósitos à ordem nº……….
Z) Quanto ao contrato de abertura de crédito, a sociedade executada encontrava-se em situação de incumprimento, o que motivou a resolução do contrato pelo banco Exequente, por comunicação igualmente datada de 27 de fevereiro 2014.
AA) Quanto aos contratos de swap, enquanto um deles se mantém vigente, o outro foi resolvido pela sociedade executada com fundamento na verificação duma alteração superveniente das circunstâncias por comunicação que chegou ao poder do banco exequente em 11 de dezembro de 2013.
AB) Como o banco exequente não reconheceu os efeitos da resolução operada, recusando-se a restituir à Executada uma quantia superior a duzentos e trinta mil euros, esta propôs uma acção declarativa comum de condenação contra aquele, que co seus termos no Tribunal da Comarca de Lisboa, Instância Central, Secção Cível, Juiz 4, sob o número de processo nº691/14.5TVLSB.
AC) A conta de depósitos à ordem aberta junto do banco Exequente mantém-se ainda hoje, apresentando-se pontualmente a descoberto.
AD) Em 27 de fevereiro de 2014, a sociedade embargante ainda não se encontrava a pagar as prestações de reembolso do contrato referido em D), em virtude dos aditamentos mencionados em J) e K), atendendo ao alargamento do prazo e período de carência do mesmo.
IV. Razões de Direito
- da (in)validade da cláusula “cross-default” constante do contrato celebrado
Invoca a Recorrente a validade da cláusula 15.º n.º 2 al. c) do contrato celebrado com a Embargante, na qual fundamentou a exigibilidade imediata do seu crédito pelo vencimento antecipado da dívida, insurgindo-se contra a decisão proferida que considerou tal cláusula sujeita ao regime das cláusulas contratuais e concluiu pela sua nulidade, por desproporcionada e contrária à boa fé.
O Decreto-Lei 446/85 de 25 de Outubro vem estabelecer o regime a que estão sujeitas as cláusulas contratuais gerais. Esta regulamentação surge perante a constatação de que a negociação dos contratos, assente no princípio da igualdade formal das partes, não corresponde, muitas vezes, à realidade concreta. A massificação do comércio jurídico levou ao surgimento de contratos que não são precedidos de fase negocial, limitando-se a liberdade contratual à aceitação ou não de determinada proposta apresentada. Tal regime pretende salvaguardar os interesses da parte contratualmente mais fraca, surgindo como uma emanação do princípio da boa fé.
A designação de contrato de adesão deriva do facto do consumidor ou cliente não ter intervenção na preparação das cláusulas do contrato que lhe é apresentado, limitando-se a aceitar a proposta que lhe é feita e assim a aderir a um conteúdo unilateralmente fixado pela contraparte. Os chamados contratos de adesão apresentam-se como “contratos padrão” e, sendo o seu conteúdo, em regra, formado por cláusulas contratuais gerais, estão sujeitos ao regime estabelecido no Decreto-Lei 446/85 de 25 de Outubro.
Na previsão do art.º 1.º n.º 1 do diploma mencionado, cláusulas contratuais gerais são aquelas que são “elaboradas sem prévia negociação individual”, ou seja, são prévia e unilateralmente definidas por um dos contraentes, tendo em vista uma generalidade e pluralidade de pessoas que não as vão negociar e influenciar, no âmbito de um padrão negocial uniformizado.
Dizem-nos Almeida Costa e Menezes Cordeiro, in. Cláusulas Contratuais Gerais, anotação ao Decreto-Lei 446/85 de 25 de Outubro, em anotação ao art.º 1.º que: “As cláusulas contratuais gerais manifestam as características seguintes: a) são pré-elaboradas, existindo disponíveis antes de existir a declaração que as perfilha; b) apresentam-se rígidas, independentemente de obterem ou não a adesão das partes, sem possibilidade de alterações; c) podem ser utilizadas por pessoas indeterminadas, quer como proponentes, quer como destinatários.”
O art.º 1.º do diploma referido, com a alteração que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 220/95 de 31 de Agosto e DL 249/99 de 7 de Julho, dispõe:
1 – As cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respetivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma.
2 – O presente diploma aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar.
3 – O ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo.”
Estamos assim perante um contrato de adesão quando as suas cláusulas resultam da imposição de uma das partes, sendo pré fixadas e insusceptíveis de serem negociadas.
De notar, no entanto, que nos termos do n.º 2 do art.º 1.º do Decreto-Lei referido, o regime estabelecido neste diploma aplica-se também às cláusulas inseridas em contratos individualizados, desde que o seu conteúdo seja pré-elaborado e que a parte não pode influenciar.
Assim, e uma vez que esta regulamentação se aplica também às cláusulas contratuais gerais inseridas em contratos individualizados, mais do que saber se estamos ou não perante um contrato de adesão o que releva, é saber se a cláusula em questão constitui uma cláusula contratual geral, ou seja, saber se o seu conteúdo é pré-elaborado e insusceptível de ser influenciado ou negociado pela parte. Se assim for, tal cláusula, ainda que inseridas em contrato individualizado, encontra-se sujeita ao regime de protecção previsto neste diploma. Daí que importe avaliar a cláusula contratual, independentemente do tipo de contrato em que a mesma está inserida, seja ou não contrato de adesão.
Como nos diz o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/11/2012, in. www.dgsi.pt: “Uma cláusula geral pode integrar um contrato de clausulado massificado como pode surgir nos chamados contratos individualizados, isto é, adaptados à relação concreta, o que, de certo modo, não representa já um produto dirigido a um universo de potenciais aderentes. Temos assim como seguro que o regime de favor estabelecido para o contraente “não negociante” pode existir independentemente de ele se encontrar ou não diante de um contrato de adesão, no sentido rigoroso: na verdade, basta que uma ou mais cláusulas não sejam susceptíveis de negociação, na acepção de modificação ou exclusão, para que em relação a elas seja permitido invocar a disciplina das ….
A denominada cláusula cross default, expressão inglesa que tem o significado mais literal na tradução de falta/falha cruzada insere-se na categoria das chamadas cláusulas de garantia ou de segurança e é hoje de comum utilização nos contratos financeiros ou bancários, reportando-se às situações em que o credor pode antecipar o vencimento da prestação no contrato que a prevê, quando o devedor não cumpre outras obrigações noutros contratos que tenha celebrado.
A cláusula cross default caracteriza-se assim pelo facto de permitir ao credor exigir de imediato a prestação contratualizada, antecipando o cumprimento do contrato, provocando o imediato vencimento da prestação, quando se verifica o incumprimento de uma outra obrigação do devedor ou a ocorrência de um outro evento nela especificado, em qualquer outro contrato celebrado.
Por força de uma cláusula como esta, o incumprimento de um contrato pelo devedor pode ter efeitos noutro ou noutros contratos, celebrados com o mesmo credor ou com terceiro, podendo vir repercutir-se noutras relações contratuais do devedor.
Diz-nos L. Miguel Pestana de Vasconcelos, in. Direito das Garantias, pág. 588: “Esta cláusula traduz um reforço da posição do credor pelo seu carácter compulsório. Efectivamente, o incumprimento do devedor provoca, ou pode provocar – uma vez que o credor que beneficie desta cláusula poderá, ou não, exigir o cumprimento imediato da obrigação (podendo mesmo utilizar este direito para renegociar, a seu favor, esse contrato) – o vencimento da generalidade (ou de grande parte) das obrigações do devedor. O que significa que se este incumprir fica numa situação de grande debilidade. A pressão para não o fazer é muito grande e esse é o cerne da tutela do credor.
Estas cláusulas constituem hoje uma prática a que frequentemente os bancos recorrem, sendo que estas instituições se servem amiúde de cláusulas contratuais gerais. Quando assim acontecer, naturalmente que tais cláusulas têm de considerar-se submetidas à protecção do regime estabelecido pelo Decreto-Lei 446/85 de 25 de Outubro.
A cláusula contratual em questão, cuja validade é controvertida nos autos, é a 15 n.º 2 al. c) do contrato, ao abrigo da qual o Banco considerou imediatamente exigível o seu crédito para com a mutuária, inserindo-se na categoria das cláusulas cross default e tem a seguinte redacção: “Fica expressamente convencionado que o Banco poderá, ainda, por termo ao presente contrato e considerar imediatamente vencido, independentemente de Interpelação para cumprimento, a totalidade do capital em dívida, cujo pagamento se tornará, então, consequente e imediatamente exigível, acrescido dos juros remuneratórios e/ou moratórios devidos, bem como dos demais encargos ou despesas legal ou contratualmente exigíveis, podendo, ainda o Banco promover a execução da(s) garantia(s) constituídas para assegurar as responsabilidades do mesmo emergente nos seguintes casos: Se não for pontualmente cumprida pela Mutuária qualquer obrigação, ainda que não pecuniária, emergente de qualquer outro contrato celebrada ou a celebrar com o Banco ou com qualquer outra instituição de crédito.”
Conforme se apurou, o contrato de empréstimo celebrado entre as partes, ao abrigo do qual foi entregue ao banco como garantia a livrança dada à execução, veio a ser objecto de dois aditamentos. Foram negociados entre a sociedade embargante e o banco exequente as cláusulas referentes ao prazo do empréstimo, período de carência, taxa de juro e spread aplicáveis, sendo as demais pré determinadas pelo banco Exequente, conforme resultou provado (al. L da decisão de facto) e não é posto em causa pelo Recorrente.
A cláusula 15 n.º 2 al. c) é uma das que faz parte das diversas condições do contrato que não foram objecto de negociação entre as partes, antes tendo sido prévia e unilateralmente fixadas pelo Banco e plasmadas em impresso uniforme, sem que a parte destinatária tenha tido a possibilidade de interferir no seu conteúdo.
Não resultou provado nos autos que tal cláusula resultou de prévia negociação entre as partes, sendo certo que, de acordo com o art.º 1.º n.º 3 do DL 446/85 de 25 de Outubro, o ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo. Não basta que a parte tenha conhecimento do seu teor, o que releva é que a parte tenha a possibilidade de negociar ou influenciar o seu conteúdo.
Nesta medida, não restam dúvidas de que à cláusula em questão, tendo sido previamente fixada pelo Banco e não tendo sido objecto de negociação entre as partes, deve aplicar-se o regime das cláusulas contratuais gerais, como bem concluiu a decisão recorrida.
Importa então avaliar da sua (in)validade, à luz do art.º 15.º do diploma referido, que veio a fundamentar a decisão contra a qual o Recorrente se insurge.
O art.º 15.º estabelece o princípio geral de proibição das cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé. Coloca-se assim a boa fé como princípio orientador das cláusulas contratuais gerais.
Este princípio é concretizado no art.º 16.º que dispõe: “Na aplicação da norma anterior devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada e, especialmente:
a) A confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;
b) O objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado.”
As cláusulas proibidas contrárias à boa fé são nulas, conforme dispõe o art.º 12.º do mesmo diploma.
É preciso não esquecer que quem recorre à utilização de cláusulas contratuais gerais se encontra numa posição de superioridade relativamente aos aderentes, que são privados de interferir na “modelação” das cláusulas. Tal tem como contraponto o dever de levar em consideração os interesses dos aderentes, só assim encontrando correspondência a uma conduta conforme à boa fé. De um ponto de vista objectivo, a cláusula imposta deve ser equilibrada e razoável na ponderação dos vários interesses em presença.
Tal como nos diz Araújo de Barros, in. Cláusulas Contratuais Gerais, Decreto-Lei n.º 446/85 anotado, pág. 172: “Uma cláusula será contrária à boa fé se a confiança depositada pela contraparte contratual naquele que a predispôs for defraudada em virtude de, da análise comparativa dos interesses de ambos os contraentes, resultar para o predisponente uma vantagem injustificada.”
Quanto à situação que se discute nos autos, já vimos que a cláusula em questão permite ao credor antecipar o vencimento do seu crédito mediante a verificação das condições ali previstas. Tal como refere a decisão recorrida, a disposição em causa estabelece chamada perda do benefício do prazo, permitindo que verificadas as circunstâncias aí contempladas o credor possa considerar os seus créditos vencidos e exigíveis.
Na nossa ordem jurídica estão previstas algumas situações que podem determinar a perda do benefício do prazo, sendo matéria que não está subtraída à liberdade contratual das partes, como decorre desde logo do regime geral estabelecido no art.º 779.º do C.Civil.
A propósito do benefício do prazo o art.º 779.º do C.Civil estabelece a regra geral supletiva quanto ao beneficiário do prazo, prevendo que: “O prazo tem-se por estabelecido a favor do devedor, quando se não mostre que o foi a favor do credor, ou do devedor e do credor conjuntamente.
De forma clara, diz-nos a este respeito Galvão Telles, in. Obrigações, pág. 186 ss.: “Quando o prazo é no interesse do devedor, ele tem o direito de efectuar o pagamento antecipado. Se o prazo é no exclusivo interesse do credor, este pode exigir o cumprimento a todo o tempo enquanto o devedor já o não pode realizar antes de findo o prazo, salvo se o credor der o seu acordo. Se o prazo existe tando a favor do devedor como do credor, nem o credor pode exigir, nem o devedor realizar o cumprimento antecipado.”
O art.º 1147.º do C.Civil vem consagrar uma norma especial para o mútuo remunerado, ao dispor que: “No mútuo oneroso o prazo presume-se estipulado a favor de ambas as partes, mas o mutuário pode antecipar o pagamento, desde que satisfaça os juros por inteiro.”
O art.º 780.º do C.Civil por seu turno, contempla uma situação em que pode ocorrer a perda do benefício do prazo, dispondo:
1- Estabelecido o prazo a favor do devedor, pode o credor, não obstante, exigir o cumprimento imediato da obrigação, se o devedor se tornar insolvente, ainda que a insolvência não tenha sido judicialmente declarada, ou se, por causa imputável ao devedor, diminuírem as garantias do crédito ou não forem prestadas as garantias prometidas.
2- O credor tem o direito de exigir do devedor, em lugar do cumprimento imediato da obrigação, a substituição ou o reforço das garantias, se estas sofreram diminuição.”
Prevê aqui o legislador a possibilidade do vencimento antecipado do crédito, no caso do devedor se tornar insolvente, ou se, por causa que lhe seja imputável, diminuírem as garantias do seu crédito ou não forem prestadas as garantias prometidas, aqui se revelando uma situação susceptível de pôr em causa a confiança do credor na satisfação do seu crédito.
De igual modo o art.º 781.º do C.Civil prevê outra situação de perda do benefício do prazo, a respeito da obrigação liquidável em prestações, em que a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.
Daqui decorre que o nosso ordenamento jurídico admite o vencimento antecipado da dívida, em algumas circunstâncias específicas, bem como considera que o benefício do prazo é matéria não subtraída à autonomia ou liberdade contratual das partes.
Contudo, tal como já se referiu, uma cláusula que não é sequer negociada entre as partes, exige da parte que a impõe um comportamento conforme à boa fé, pelo que se apresenta como fundamental que a mesma seja equilibrada, proporcional e razoável.
Ora, a cláusula em questão apresenta-se como desproporcionada, desequilibrada e desrazoável, na medida em que vem alargar de forma substancial os casos em que pode haver o vencimento antecipado da dívida e consequente exigibilidade da obrigação, permitindo-o quando não seja pontualmente cumprida qualquer obrigação, ainda que não pecuniária, emergente de qualquer outro contrato celebrado ou a celebrar com o Banco ou com qualquer outra instituição de crédito.
Ali se prevê, designadamente, que em qualquer caso o Banco possa antecipar o vencimento do crédito e tornar a dívida exigível:
a) quando haja incumprimento de qualquer obrigação pelo devedor – abrangendo por isso não apenas o incumprimento da obrigação principal, mas também o incumprimento de alguma obrigação acessória ou secundária e as obrigações não pecuniárias ou qualquer obrigação de menor importância, sem que nenhuma distinção seja feita, numa previsão completamente genérica e que pretende ter a máxima abrangência;
b) apenas em caso de mora, não sendo exigido o incumprimento definitivo da obrigação;
c) quando esteja em causa a falta de cumprimento de uma qualquer obrigação, independentemente de culpa do devedor e independentemente da mesma poder não se repercutir na sua situação económica e financeira, não pondo por isso em causa a garantia geral patrimonial do credor;
d) quando o incumprimento se verifique em qualquer outro contrato celebrado ou a celebrar com o Banco, numa previsão que, por um lado é totalmente genérica e não determinada, pretendendo até abranger contratos futuros e, por outro lado, vem permitir que qualquer incumprimento noutro contrato, por mais diminuto que seja, venha interferir e produzir efeitos num contrato que pode estar a ser pontualmente cumprido;
e) quando o incumprimento se verifique em qualquer contrato celebrado ou a celebrar com qualquer outra instituição de crédito, numa previsão também totalmente indeterminada e que amplia os efeitos do incumprimento de uma obrigação no âmbito de outros contratos celebrados, até com pessoas totalmente distintas, de forma a que factos totalmente alheios à relação contratual em causa nela se vão repercutir.
Verifica-se assim, mesmo tendo em conta a finalidade que está na origem da utilização de uma cláusula cross default, que não pode deixar de ser a tutela da confiança do credor, numa orientação de garantia o de segurança do seu crédito, que na situação em presença o equilíbrio contratual das partes fica muito afectado, com uma cláusula em que o contraente mais forte amplia da forma que se viu as situações que podem determinar o vencimento antecipado da obrigação, o que põe manifestamente em causa o equilíbrio contratual e permite causar efeitos muito gravosos para o devedor, num contrato que pode estar a ser devidamente e pontualmente cumprido, e com o que de forma razoável o mesmo não poderia contar.
A previsão da cláusula contratual em questão vai além do que são as garantias razoáveis que podem ser exigidas pelo credor em nome de um princípio de tutela da confiança, visando apenas a protecção da sua posição contratual e dos seus interesses, pondo dessa forma em causa o equilíbrio de interesses das partes contratantes, bem como a confiança ou expectativa no caso depositada pelo mutuário na celebração do contrato, sendo por isso manifestamente excessiva e contrária à boa fé.
Resta apenas referir que cláusulas semelhantes têm vindo já a ser declaradas de utilização proibida pelos tribunais, do que é exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/07/2012, no proc. 846/09.4YXLSB.L1-7 in. www.dgsi.pt que a respeito das mesmas refere: “… as aludidas cláusulas - sem qualquer distinção - permitem antecipar o vencimento do crédito não só nos casos de falta de cumprimento da obrigação principal, mas também de incumprimento de quaisquer outras obrigações (acessórias) emergentes do contrato. Além disso, sem qualquer paralelo com o regime da antecipação de cumprimento das obrigações, previsto na lei civil (cf. arts. 779º, 780º e 1147º, do CC), prevê-se também o vencimento imediato dos créditos, perante a ocorrência de vicissitudes completamente alheias ao programa contratual.”
Considera-se, por tudo o que fica exposto, que a cláusula 15 n.º 2 al. c) do contrato, determina uma frustração da confiança do mutuário e um desequilíbrio das prestações contratuais, por ser manifestamente excessiva e desproporcionada, sendo por isso abusiva e contrária à boa fé, estando afectada pelo vício da nulidade, nos termos do disposto nos art.º 15.º e 16.º do Decreto-Lei 446/85 de 25 de Outubro, não podendo, pela sua invalidade, fundamentar a exigibilidade imediata da dívida e o preenchimento da livrança com vista ao seu pagamento, tal como decidiu o tribunal a quo. - do abuso de direito pelos Recorridos ao invocarem a nulidade da cláusula “cross-default
Alega o Recorrente que se verifica uma situação de abuso de direito por parte dos Executados, na modalidade de venire contra factum proprium, ao invocarem a nulidade da cláusula cross default, pelo facto de terem tido todo o tempo para analisarem o contrato, sem que tenham suscitado a invalidade de tal disposição quando da sua celebração ou renegociação.
É certo que esta é uma questão nova que não foi anteriormente suscitada pelo Recorrente, na contestação que apresentou aos embargos. De qualquer forma, sendo de conhecimento oficioso, a sua apreciação impõe-se ao tribunal, nos termos do disposto no art.º 608.º n.º 2 do C.P.C.
O instituto do abuso de direito tem a sua previsão no art.º 334.º do C.Civil que estabelece que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito. Está em causa o exercício anormal do direito em termos reprovados pela lei, ou seja, respeitando a estrutura formal do direito, mas violando a sua afectação substancial, funcional ou teleológica.
Não podemos, no entanto, esquecer que não é qualquer conduta que é susceptível de integrar o conceito de abuso de direito. O art.º 334.º n.º 1 do C.Civil impõe que o titular do direito exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Dizem-nos a este propósito, com grande propriedade, Pires de Lima e Antunes Varela, in. Código Civil anotado, pág. 217, em anotação a esta norma: «Exige-se, no entanto, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem pois fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (Teoria Geral das Obrigações, pág. 63). O Prof. Vaz Serra refere-se, igualmente, à “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” (Abuso do direito, no Bol. N.º 85, pág. 253).»
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2002, in. www.dgsi.pt refere a este respeito: “a teoria do abuso de direito serve, como se sabe, de válvula de segurança para casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica contra a rígida estruturação, geral e abstracta, de normas legais, obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado.
Pressuposto do abuso de direito, na invocada modalidade do venire contra factum proprium é, sempre, uma situação objectiva de confiança – uma conduta de alguém que possa ser entendida como posição vinculante em relação à situação futura - e o investimento na confiança pela contraparte e boa fé desta, vd. neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/3/99, in. CJ VII, 1º tomo, pág.154.
Razões de lealdade e confiança são inerentes ao princípio da boa fé, que se impõe, quer na negociação dos contratos, quer na sua execução, conforme dispõem, respectivamente o art.º 227.º e 762.º n.º 2 do C.Civil. Pressuposto do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, é então a criação de uma situação objectiva de confiança- uma conduta de alguém que lhe irá ser vinculativa no futuro, apresentando-se o exercício do direito como contraditório em face de conduta anterior.
Refere Baptista Machado, in. Obra Dispersa, vol. I, pág, 415 que o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico. É sempre necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis.”
No caso em presença, a confiança alegadamente depositada pelo Recorrente não pode fundamentar-se apenas na circunstância da mesma não ter suscitado qualquer invalidade quando da celebração ou renegociação do contrato, sendo que, além do mais a cláusula em questão nem sequer foi com ela negociada. Era necessário que o Recorrente tivesse demonstrado que essa confiança era justificada a partir de um comportamento da Executada que de forma séria e consistente lhe tivesse criado a expectativa de que tal cláusula não seria por si afastada, apesar de inválida. Vd. neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/06/2010, in. www.dgsi.pt
Neste caso não podemos dizer que os Executados/Embargantes excedem manifestamente os limites impostos pela boa fé, ao invocar a invalidade de uma cláusula nula que não negociaram, não estando demonstrado que os mesmos criaram no Recorrente uma expectativa sólida de que isso não aconteceria. Tal comportamento podia ter existido, por exemplo, se os Embargantes soubessem da invalidade de tal cláusula quando a mesma foi integrada no contrato e tivessem aceitado incluí-la naqueles termos, para mais tarde a afastar unilateralmente, ou até se fosse dos Embargantes a responsabilidade pela inclusão dessa cláusula no contrato. Nada disto se provou ou foi sequer alegado pela R.
Nesta medida, resta concluir que os factos apurados não apontam de forma suficiente para a existência de um comportamento manifestamente desleal por parte dos Embargantes ou contrário à boa fé, nem integram uma situação de venire contra factum proprium, nada obstando a que os mesmos suscitem a nulidade de uma cláusula contratual inválida, pretendendo o seu afastamento.
Claramente, os factos apurados não demonstram que o resultado da conduta dos Embargantes constitua, em si, uma manifesta injustiça.
Importa finalmente lembrar, além do mais, que o que o Recorrente pretende é prevalecer-se de uma cláusula ilegal, sendo certo que, na medida em que se trata de uma cláusula por si previamente estabelecida, ele próprio tem a responsabilidade na sua invalidade. Ora, não deixaria de ser estranho que o instituto do abuso de direito permitisse à parte com responsabilidade na determinação de um cláusula inválida socorrer-se da mesma em seu benefício.
Conclui-se assim que não pode falar-se de abuso de direito por parte dos Embargantes.
V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se o presente recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Notifique.
*
Porto, 27 de Setembro de 2017
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva