Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
431/20.0GBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AMÉLIA CATARINO
Descritores: CORREÇÃO DA SENTENÇA PENAL
REFORMA DA SENTENÇA PENAL QUANTO A CUSTAS
Nº do Documento: RP20221207431/20.0GBVNG.P1
Data do Acordão: 12/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – O Código de Processo Penal não prevê a reforma da sentença quanto a custas e a falta dessa previsão não constitui uma lacuna que deva ser suprida com a aplicação de normas do processo civil.
II – Não constitui correção da sentença admitida nos termos do artigo 380.º do Código de Processo Penal a reforma da sentença quanto a custas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 431/20.0GBVNG-B.P1

Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia - Juiz 3
Relatora: Amélia Catarino


SUMÁRIO
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Acordam, em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
No Processo Comum (Tribunal Singular) nº 431/20.0GBVNG, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia - Juiz 3, foi proferida o seguinte despacho, datado de 4.07.2022:
“Verificando agora que existe lapso na sentença, no segmento relativo a custas, ao abrigo do disposto no artigo 380º, nº 1 do C.P.P. procedo à sua correcção, devendo, onde se lê, “sem custas”, passar a ler-se “mais se condena o arguido no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça que se fixa em 2 UC, e nos demais encargos a que a sua actividade deu causa”.
D.N.”

Inconformado o arguido veio interpor recurso, pugnando pelo seu provimento, com os fundamentos que constam da motivação, e formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“1.º O poder jurisdicional do juiz quanto à matéria em causa nos autos esgota-se com a prolação da sentença;
2.º O artigo 380.º do CPP abriga a um regime especial que permite a correcção da sentença relativamente a erros, lapsos, obscuridade e ambiguidades desde que tal não importe modificação essencial;
3.º In casu, não só não existe qualquer elemento que possa revelar a existência de um lapso na decisão tomada pelo tribunal, como é evidente que o tribunal expressamente decidiu a questão das custas em benefício do arguido aqui recorrente;
4.º Não se mostra, portanto, que tenha existido qualquer lapso na sentença proferida,
5.º nem se mostra que se esteja perante uma sentença que não tenha incluído a decisão sobre as custas;
6.º O despacho ora em crise, ao alterar a decisão quanto à matéria das custas, nomeadamente condenando o arguido a suportá-las e fixando o valor da respectiva taxa de justiça, vem intrometer-se no conteúdo do julgamento que se cumpriu com a prolação da sentença;
7.º Tal despacho deve ser revogado por violar o artigo 380.º do CPP, os artigos 613.º e 614.º do CPC, ex vi do artigo 4.º do CPP, bem como o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, e ainda o artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogado o despacho recorrido, tudo com as legais consequências.”

Admitido o recurso, o Ministério Público veio responder pugnando pela procedência do recurso, devendo o despacho impugnado ser revogado e substituído por outro que anule a decisão de rectificação antecedente.

Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pugnando pelo provimento do recurso, pelas razões constantes da resposta do MP na 1ª instância, com as quais concorda acrescentando que o despacho em causa viola o caso julgado formal e que “No processo penal não é admissível a reforma do acórdão ou sentença quanto a custas nos termos previstos no artigo 616.°, n.º 1, do CPC, por força do artigo 4.º do CPP.”, como nos ensina o AC. do TRL de 18-10-2018, proferido no 636/17.0PBCSC.L1-9, em que é Exº Sr. Desembargador Relator CLÁUDIO XIMENES, in www.dgsi.pt..

No âmbito do artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve qualquer resposta.

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

In casu, o recurso, delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, tem por objecto:

- Determinar se o despacho recorrido ao alterar a decisão quanto à matéria das custas, se vem intrometer no conteúdo do julgamento que se cumpriu com a prolação da sentença e se viola o artigo 380.º do CPP, os artigos 613.º e 614.º do CPC, ex vi do artigo 4.º do CPP, bem como o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, e ainda o artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

II. A decisão recorrida
Importa apreciar tais questões e decidir, devendo considerar-se como pertinente ao seu conhecimento, o teor da decisão recorrida, que se transcreveu supra e ainda os factos seguintes que resultam da análise dos autos principais:
1- Nos autos principais foi proferida sentença, com data de 16 de Maio de 2022, com o seguinte dispositivo:
“VI – Decisão
Em face do exposto, e sem outras considerações, o Tribunal decide:
1. Absolver o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código Penal.
2. Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alínea e), por referência ao artigo 2º, nº 3, alínea p) da Lei nº 5/2006, de 23.02, na pena de 70 dias de multa, à razão diária de € 6,50, o que perfaz a quantia de € 455,00 (quatrocentos e cinquenta e cinco euros).
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Sem custas.
Proceda a depósito.
*
Declaro perdidas a favor do Estado as munições apreendidas à ordem destes autos.
*
Fls. 575 e factura relativa à elaboração de relatório social: Dê-se pagamento, a adiantar
pelo I.G.F.J.
*
Vila Nova de Gaia, 16 de Maio de 2022.”

2 – Da referida sentença não foi interposto recurso, tendo transitado em julgado a 15.06.2022.

II. Do Recurso
Nas motivações recursivas vem o recorrente sustentar que “a sentença transitou em julgado, sem que,
atempadamente, se tenha suscitado a rectificação de qualquer erro e sem que tenha havido a interposição de qualquer recurso relativo à mesma.
Mostra-se ainda que a aludida decisão não contém qualquer erro de escrita óbvio: o tribunal a quo nada fez constar em tal sentença que pudesse sustentar a noção de que existiu um erro de escrita na decisão relativa a custas que foi por si proferida. Isto é, partindo do regime civilístico da correcção do erro de escrita [249.º do Código Civi l(CC)], verifica-se que tal erro, a ter existido, não se revela nem no contexto da declaração, nem através das circunstâncias em que a mesma foi feita.”
Alega ainda “a rectificação da sentença em matéria de custas, implicando necessariamente uma intromissão no conteúdo do julgamento, não é legalmente admissível por violação do disposto no artigo 380.º do CPP, nos artigos 613.º e 614.º do CPC, ex vi do artigo 4.º do CPP, bem como no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, e ainda no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Conclui que “Deve assim conceder-se provimento ao recurso e revogar-se o despacho de 4 de Julho de 2022, com a referência CITIUS 438256198O.”
Vejamos da pretensão do recorrente.
Quanto à correcção da sentença no Processo Penal rege o disposto no artigo 380º, nº1 e o disposto no artigo 379º, quanto aos termos do suprimento de nulidades.
Diz o artigo 380º, do CPP, que “1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando: a)Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º; b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial. 2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos restantes actos decisórios previstos no artigo 97.º.
Da análise do número 1 deste normativo resulta que o princípio da intangibilidade da sentença não opera caso nela se verifique a existência de erro (que não de julgamento), lapso, obscuridade ou ambiguidade manifesto, pois a mesma é passível de correção, desde que tal não implique uma modificação essencial da sentença.
Ora, o despacho impugnado importa uma modificação essencial do decidido, porquanto procede à alteração da sentença em matéria de custas encontrando-se esgotado o poder jurisdicional uma vez que a prolação da sentença já tinha tido lugar e nela se havia decidido não condenar o arguido em custas.
O despacho impugnado consubstancia uma reforma da sentença quanto a custas, o qual não cabe, manifestamente, nos poderes de correcção da sentença contemplados o n.º 1 do artigo 380.º do CPP, sendo certo que a jurisprudência é unanime no sentido de que no processo penal não é admissível a reforma da sentença ou acórdão quanto a custas – veja-se, por todos o Acórdão do STJ de 12.03.2015, disponível em www.gde.mj.pt/jstj, em que foi relatora a Exma. Juíza Conselheira Isabel Pais Martins.
A reforma da sentença, quanto a custas, não cabe, manifestamente, nos poderes de correcção da sentença contemplados na alínea a) do n.º 1 do artigo 380.º do CPP, enquanto ao nível do processo civil, proclamado, embora, que um dos efeitos da sentença consiste, justamente, no esgotamento do poder jurisdicional do juiz que a profere (artigo 613.º, n.º 1), consagra-se a possibilidade de o juiz, para além da rectificação de erros materiais e do suprimento de nulidades, reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes (n.º 2 do artigo 613.º).
A reforma quanto a custas ou multa consubstancia-se numa alteração da decisão sobre custas ou multa proferida na sentença.
A falta de previsão no processo penal da reforma da sentença quanto a custas e multa não constitui uma lacuna que deva ser integrada por apelo ao artigo 4.º do CPP. A lacuna é sempre uma incompletude, uma falta ou falha contrária ao plano do direito vigente. Ora, a norma do artigo 380.º, n.º 1, alínea a), do CPP não carece de qualquer integração nem entra em contradição com qualquer outra norma processual penal. Define o regime especial das irregularidades da sentença penal e o seu modo de sanação de forma completa e não entra em colisão com qualquer outra norma do ordenamento processual penal.
Por outro lado, nos termos da lei – artigo 380.º, n.º 2, alínea b), in fine –, só é possível proceder à eliminação de erros que não impliquem modificação essencial da sentença, daí que seja inadmissível considerar a existência de uma lacuna teleológica.
A ausência de uma disposição a admitir, em processo penal, a reforma da sentença, quanto a custas e multa e a correcção de erros de julgamento, tal como se encontra prevista para o processo civil, não contraria o escopo visado pelo legislador, subjacente à regulamentação legal da matéria da correcção da sentença penal.
No sentido de inexistência de lacuna, escreveu-se, no acórdão do TRP, de 06.03.2013, proferido no processo n.º 6138/12.4TDPRT-A.P1: «O CPP prevê e regula os casos em que a sentença pode ser modificada pelo tribunal que a proferiu, suprindo nulidades nos moldes previstos no artº 379º, nº 2, e fazendo as correcções que caibam na previsão do artº 380º. E a previsão desses casos deve ter-se como completa, pois não se coadunaria com o modelo de legislador presumido pela regra do nº 3 do artº 9º do Código Civil que, prevendo-se uns, não se previsse outros que se quisesse admitir. Não se pode, pois, dizer que existe lacuna a integrar com recurso às normas do processo civil. O que há é uma regulação diversa em ambos os ramos do direito processual.»
Também no processo n.º 414/09.0PAMAI-B.P1-A.S1 (recurso de uniformização de jurisprudência), pelo acórdão do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, 06/02/2014 – reconhecendo-se, embora, não ser a questão líquida -, entendeu-se que a falta de previsão, no processo penal, da possibilidade de correcção de erros de julgamento, nas específicas condições indicadas na alínea b) do n.º 2 do artigo 616.º do CPC, não conforma um caso omisso a resolver por aplicação subsidiária do preceito, ao abrigo do artigo 4.º do CPP.”
Pela clareza do decidido e similitude com os presentes autos citamos e transcrevemos aqui o Acórdão do TRE de 04.04.2017, no processo 370/99.IGTABF-A.E1, em que foi relator Clemente Lima, onde se diz “I – O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença, designadamente quando a mesma contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essência;
II – Porém, a correcção do deciso, designadamente da sentença, só é admissível desde que não importe modificação essencial, vale por dizer, desde que não acarrete intromissão no conteúdo do julgamento;
III – Em conformidade com as proposições anteriores, não pode conceder-se a pretextada rectificação da decisão em matéria de custas, no ponto em que se pretende que, onde ficou decidido «custas pelo demandado», se decida «custas pelo demandante», pois a tanto obsta o caso julgado, do passo em que, atempadamente, se não suscitou a rectificação do erro, e não se interpôs recurso da sentença.”
No mesmo sentido cfr. Oliveira Mendes, em «Código de Processo Penal», Comentado, Almedina, 2014, pp. 1188-1193 e Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 951, § 3.
Por todo o exposto, é manifesta a procedência do recurso e a revogação do despacho recorrido.

III. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a 1ª secção criminal, em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido.

Sem custas

Porto, 07 de dezembro de 2022

Amélia Catarino
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
(Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94º, n.º 2, do CPP)