Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2381/14.0TBVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FREITAS VIEIRA
Descritores: LIVRANÇA
AVALISTAS
ACÇÃO CAMBIÁRIA
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
PRESCRIÇÃO
QUIRÓGRAFO
Nº do Documento: RP201811082381/14.0TBVNG-A.P1
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 151, FLS.218-225)
Área Temática: .
Sumário: I – Extinta a obrigação cambiaria por prescrição, apenas poderá ser reconhecida a exequibilidade do título de crédito como quirógrafo da obrigação extra-cartular.
II – Todavia, há que distinguir consoante a relação subjacente seja um negócio jurídico formal, ou não.
III – Sendo um negócio jurídico formal, e a causa da obrigação não constar do título, porque a causa do negócio jurídico é elemento essencial deste, não poderá reconhecer-se ao documento a exequibilidade como quirógrafo.
IV – Se a relação subjacente não consubstanciar um negócio jurídico formal, bastará, para que se lhe reconheça essa exequibilidade como quirógrafo, que a relação subjacente seja referida no requerimento executivo.
V – Não sendo o aval por si reconduzível à fiança, para que a livrança, prescrita a obrigação cambiaria do avalista, possa servir de título executivo como quirógrafo, necessário é que do requerimento executivo resulte que o avalista/executado se quis obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental, sendo que a obrigação de prestar fiança tem de ser expressamente declarada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO N.º 2381/14.0TBVNG-A.P1
Relator: Desembargador Freitas Vieira
1º Adjunto: Desembargador Madeira Pinto
2º Adjunto: Desembargador Carlos Portela

ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

B… deduziu oposição por embargos de executado à execução movida pelo BANCO C…, S.A. tendo como título executivo uma de três livranças subscritas pela sociedade executada D…, S.A. e em que figuram como avalistas os demais executados, entre os quais a aqui embargante.
Como fundamentos dos embargos invocava:
- prescrição da obrigação cambiaria;
- caso julgado formado sobre a decisão proferida no nº. 10803/10.2 TBVNG que julgou extinta a execução por falta de título executivo;
- nulidade da obrigação e ilegitimidade da executada e inexistência de causa debendi;
- abusivo do direito.

O Exequente/Embargado BANCO C…, S.A. contestou, pugnando pela improcedência dos argumentos e exceções invocadas, e subsidiariamente contrapondo e sustentado que em todo o caso, sempre a livrança dada à execução valeria como quirógrafo.

Na sentença proferida na 1ª instância foi declarada prescrita a obrigação cambiaria emergente do aval e, consequentemente, inexigível a obrigação exequenda, julgando assim procedentes os embargos e extinta a execução.

Na sequência do recurso interposto pelo embargado/exequente, viria a ser proferido por este tribunal da Relação acórdão que considerou não verificada a prescrição, julgando dessa forma prejudicada a apreciação da validade da mesma enquanto quirógrafo, sendo entendido que os autos deveriam ser remetidos ao tribunal recorrido para aí se conhecer das demais questões suscitadas e cuja apreciação havia sido julgada prejudicada na decisão recorrida.

Na sequência do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça viria a ser proferido acórdão que decidiu nos seguintes termos:
- Revogou a decisão desse tribunal da relação, julgando verificada a obrigação cambiária emergente da subscrição da livrança como avalista [1];
- Determinou o reenvio dos autos a este tribunal da Relação para se conhecer da questão que este Tribunal da Relação havia considerado prejudicada – a de saber se a livrança vale como quirógrafo da obrigação extra-cartular.

Os factos a considerar são os que foram tidos como assentes na sentença recorrida, para a qual nessa parte se remete, em conformidade com o disposto no artº 663º, nº 6, do CPC, sem prejuízo de se referirem expressamente os que assumam diretamente relevo na decisão a proferir.

Conforme já anteriormente salientado a sentença recorrida acolhendo no essencial a posição sustentada pela embargante, julgou prescrita a obrigação cambiaria, julgou igualmente não estarem reunidos os requisitos para que a livrança pudesse ser invocada como quirógrafo.
Dessa forma concluindo pela procedência dos embargos por força da prescrição da obrigação cambiaria.

A presente execução deu entrada a 03 de Abril de 2014.
A essa data estava já em vigor o atual CPC, aprovado pela Lei 41/2013 de 26 de Junho.
Em matéria de títulos executivos o atual CPC de 2013 veio restringir drasticamente a exequibilidade dos documentos particulares que no CPC de 1961 era reconhecida a todo o documento particular que, estando assinado pelo devedor, importasse a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto – cfr. arteº 46º, nº1, alínea c), do CPC de 1961.
O atual CPC apenas reconhece agora essa exequibilidade aos títulos de crédito, ainda que mesmo quando meros quirógrafos desde que, neste caso, os factos constitutivos da obrigação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo - alínea c) do nº 1 do artº 703º do CPC.
Neste particular o atual artigo 703º, nº 1/c) do CPC veio por termo à divergência jurisprudencial que chegou a existir no domínio da vigência do CPC de 1961, sobre a possibilidade de, extinta a obrigação cartular inscrita nos títulos de crédito, poderem os mesmos ser invocados como título executivo enquanto documentos particulares assinados pelo devedor.
Assim que extinta a obrigação cambiaria por prescrição, apenas poderá ser reconhecida a exequibilidade do título de crédito como quirógrafo da obrigação extra-cartular.
Haverá em todo o caso que distinguir consoante a relação subjacente seja um negócio jurídico formal, ou não.
- Se se tratar de um negócio jurídico formal, e a causa da obrigação não constar do título, sendo a causa do negócio jurídico elemento essencial deste, não poderá reconhecer-se ao documento a exequibilidade como quirógrafo, de acordo com o disposto nos artigos 221º, nº 1 e 223º, nº 1, ambos do C. Civil.

- Se a relação subjacente não consubstanciar um negócio jurídico formal, bastará, para que se lhe reconheça essa exequibilidade como quirógrafo, que a relação subjacente seja referida no requerimento executivo.

Sendo este, em traços gerais, o regime legal a considerar, tratando-se, como nos autos, da obrigação cambiaria inerente à subscrição da livrança como avalista, suscitam-se dificuldades acrescidas à possibilidade de invocação da livrança como quirógrafo para servir como tal de título à execução depois de prescrita a obrigação cambiaria.

E isso porque o aval, enquanto obrigação cambiaria, tem por finalidade garantir o pagamento da letra ou livrança – cfr artº 30º da LULL - sendo por isso sustentado que a vinculação típica do aval se esgota no título cambiario [2].
É em todo o caso incontornável que o aval, como os demais atos cambiarios, tem subjacente uma determinada relação material ou fundamental estabelecida entre o avalista e o avalizado, que está na origem do mesmo, e que normalmente se reconduz à intenção de garantir o cumprimento da obrigação por parte do avalizado.
Essa relação material subjacente não é confundível com a relação material subjacente à do avalisado e que possa estar na origem da emissão da letra ou livrança. Desde logo porque, a não ser nos casos em que o aval é dado por quem já está obrigado na letra ou livrança, o avalista não é sujeito da relação jurídica entre o portador e o subscritor da livrança[3].
Assim que, não sendo o aval por si reconduzível à fiança[4], para que a livrança, prescrita a obrigação cambiária do avalista, possa servir de título executivo como quirógrafo, necessário será que do requerimento executivo resulte que o avalista/executado se quis obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental.
Sendo que, como decorre do artº 628º, nº 1 do CC, a vontade de prestar fiança tem de ser expressamente declarada.

No caso dos autos a execução tinha como título executivo uma livrança que a executada/embargante subscreveu a livrança como avalista.
No recurso que interposto da decisão da 1ª instância o exequente/embargado, reiterando a posição que já havia exposto na contestação aos embargos, sustentou que a devedora embargante, quando apôs a sua assinatura nas livranças e nos contratos que as mesmas garantiam, quis constituir-se como devedora solidária da dívida que pudesse vir a existir.
No entanto não é isso o que se pode inferir do requerimento executivo e documentos – contratos – que o acompanham, e muito menos da livrança dada à execução.
No contrato para que remete o requerimento executivo apenas consta a declaração dos avalistas, entre os quais a ora recorrida, de que aceitam “ ser avalistas do presente mútuo, como tal, solidariamente responsáveis com o cliente”.
Da livrança por sua vez apenas consta a fórmula habitual “bom por aval à subscritora” a anteceder a assinatura da executada/embargante.
A referência à responsabilidade solidária como avalistas perante o cliente nada acrescenta ao que resulta já do artº 32º I da LULL quando dispõe que «O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada» respondendo assim pelo pagamento da letra, para com o portador da mesma, solidariamente com os demais subscritores (artº 47º,I), ou seja, no âmbito da obrigação cambiaria.
O que não significa que se assuma como codevedora no âmbito da relação material subjacente em que apenas se vincularam credor e devedores. A subscrição do aval constante da livrança não significa, só por si, que o avalista teve a intenção de se constituir codevedor na obrigação subjacente à emissão da mesma.

Não tem por isso suporte legal ou factual a posição subsidiariamente sustentada pelo exequente e recorrente, de que a embargante, quando apôs a sua assinatura nas livranças e nos contratos que estas garantem, se pretendeu constituir como devedora solidária da dívida que pudesse vir a existir.
Deve por isso confirmar-se nessa parte a decisão proferida na 1ª instância.
E assim sendo, julgada que foi verificada a prescrição da obrigação cambiaria, resta concluir, confirmando-se a decisão constante da sentença proferida na 1ª instância, pela inexistência de título executivo e consequente inexigibilidade da quantia exequenda e extinção da execução.

Termos em que acordam os juízes neste Tribunal da Relação em confirmar a decisão recorrida julgando improcedente a apelação.

Custas pelo recorrente.

Porto, 8 de novembro de 2018
Freitas Vieira
Madeira Pinto
Carlos Portela
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[1] Certamente por lapso acrescentou-se que não poderia por isso manter-se o acórdão recorrido (deste tribunal da Relação) que “considerou ter ocorrido a prescrição”.
[2] Ac. Rel. Coimbra 21 de maio de 2013, Proc. 4052/10.7TJCBR-B.C1
[3] Ac. Do STJ de 22-2-2011, Proc. Nº 31/05 – 4TBVVD – B.G1.S1
[4] Ferrer Correia - Lições de Direito Comercial, Vol. III, págs. 206 a 209