Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
31/20.4GAFLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: CRIME DE CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
CRIME DE PERIGO ABSTRATO
CRIME DE PERIGO CONCRETO
CONCURSO APARENTE
Nº do Documento: RP2020060331/20.4GAFLG.P1
Data do Acordão: 06/03/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A medicação não eleva a taxa de álcool no sangue, antes podendo potenciar os efeitos que a sua ingestão causa (como sejam a descoordenação sensorial e motora, a diminuição da acuidade visual, da atenção e da concentração e o aumento da confusão e do tempo de reação a qualquer obstáculo ou imprevisto); é por isso que quando são receitados medicamentos dessa natureza, o doente é advertido para não ingerir álcool e, se o faz e, de seguida, exerce a condução, tal circunstância não constitui uma atenuante, mas antes uma agravante da sua conduta, pela potenciação do risco de acidente ou da gravidade das consequências deste que ele não pode ignorar.
II – O crime de condução perigosa de veículo, p. e p. pelo artigo 291.º do Código Penal, configura um crime de perigo concreto e o crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º do mesmo Código, configura um crime de perigo abstrato, verificando-se entre os respectivos tipos legais uma relação de concurso aparente, prevalecendo o primeiro sempre que o agente se encontre embriagado e com o seu comportamento cause perigo para os bens nele juridicamente tutelados.
III –A existência de perigo concreto depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- Existência de um objeto de perigo tipificado;
- A entrada do objeto do crime no círculo de perigo;
- A não ocorrência de dano por força de circunstâncias inesperadas ou de esforços extraordinários e não objetivamente exigíveis de terceiros ou do ameaçado ou devido a circunstâncias criadoras de hipóteses de salvamento incontroláveis e irrepetíveis, ou seja a circunstância que possibilitou a não ocorrência da lesão não deve parecer ao homem médio repetível, controlável, de fácil exercício ou normal.
IV – Se o arguido iniciou a ultrapassagem simultânea de dois veículos só não colidindo com a viatura que seguia em primeiro lugar porque o condutor respetivo se apercebeu da manobra e se desviou evitando assim a colisão (o que impõe a conclusão de que retomou a direita antecipadamente quando ainda não o podia fazer sem perigo para tal utente da via), não só violou a regra da ultrapassagem como, por força dessa violação, causou perigo, pelo menos, para um dos veículos ultrapassados e para a integridade física do(s) seu(s) ocupante(s), designadamente o condutor; a sua conduta integra, pois, a prática de um crime de condução perigosa de veículo, p. e p. pelo artigo 291.º, n.º 1, b), do Código Penal
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 31/20.4GAFLG.P1
Secção Criminal
Conferência
Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjunto: Jorge Langweg

Comarca: Porto Este
Tribunal: Felgueiras/Juízo Local Criminal
Processo: Especial Sumário n.º 31/20.4GAFLG
Arguido/Recorrente: B…
Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
a) Por sentença proferida e depositada a 13 de Fevereiro de 2020, o arguido B…, filho de C… e de D…, natural da freguesia de …, concelho de Felgueiras, nascido a 12 de Maio de 1964, divorciado, comerciante, residente na Rua…, …, Felgueiras, foi condenado pela prática de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelo art. 291º, n.º 1, als. a) e b) (em concurso aparente com o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo art. 292º, n.º 1), do Cód. Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros).
b) Mais foi ainda condenado, ao abrigo do disposto no art. 69º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses.
c) Inconformado, o arguido B… interpôs recurso terminando a sua motivação com as seguintes conclusões: (transcrição)
1. O arguido/recorrente foi condenado pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. p. pelo artigo 291º, n.º 1, als. a) e b), e artigo 69º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, em concurso aparente com o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelo artigo 292º, n.º 1, todos do Código Penal.
2. Todavia, o arguido/recorrente entende que do teor dos factos dados como provados e não provados, na douta sentença proferida nos autos, não se pode concluir, como se concluiu, com a segurança que exige o direito penal, que o arguido/recorrente tenha agido de forma livre, voluntária e consciente – pelo menos no que diz respeito ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário – mormente que o arguido tenha actuado com dolo eventual (como foi dado como provado na douta decisão recorrida).
3. Dos factos dados como provados na douta sentença recorrida, dos mesmos não se pode extrair, como se extraiu e concluiu, com a certeza e a segurança que exige o direito penal, que o arguido cometeu o aludido crime de condução perigosa de veículo rodoviário, em que foi condenado, de forma dolosa ou consciente, tendo, assim, sido violado o disposto no artigo 410º, n.º 2, al., a), do CPP, existindo insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada.
4. Para além de ter sido igualmente violado o princípio constitucional do artigo 32º, n.º 5, da CRP, caindo-se na ilegalidade prevista nos artigos 141.º, n.º 4, al. b), do C.P.P., 357.º, n.ºs 1 a 3, e artigo 355.º, todos do C.P.P, sendo assim nula a sentença recorrida, nos termos do disposto no artigo 122.º, n.º 1, do C.P.P., por violação do disposto nos artigos 355.º e 357.º do mesmo Código.
5. Bem como foi ainda violado o princípio de presunção de inocência, plasmado no artigo 32º, n.º 2, da CRP e por consequência violou-se o princípio “in dubio pro reo”, ao ter sido condenado, sem margens para dúvidas, quando dos elementos provatórios apurados apontam para a existência de muitíssimas dúvidas de que o mesmo tenha cometido tal crime de forma dolosa, ilegalidades, inconstitucionalidades e nulidades que desde já se invocam para todos os legais efeitos.
6. Os factos dados como provados na douta sentença recorrida – factos dados por provados pontos 1 a 9 não são suficientes para se considerar verificado o perigo exigido no artigo 291º, n.º 1, do Código Penal.
7. Sendo que a descrição fáctica relativa à condução em estado de embriaguez, com TAS de 1,33 g/litro, não é suficiente, só por si, para a imputação de um perigo concreto, elemento do tipo de crime p. p. pelo artigo 291º, do Código Penal.
8. Isto porque, para que se preencha o tipo legal do crime estatuído no artigo 291º, n.º 1, do Código Penal, e se verifique o perigo concreto nele enunciado, deve a condução em concreto reflectir um elemento qualitativo adicional (negligência grosseira) relativamente à mera violação de uma regra da estradal, sendo que a matéria de facto em apreço não fornece tal elemento.
9. Ora, da descrição factual constante da douta sentença recorrida apenas resulta que o arguido se limitou a efectuar um condução temerária, nos seguintes termos:
- ultrapassou na proximidade de uma passadeira para peões, mas sem causar perigo para nenhum peão;
- não parou no sinal vermelho – quando o mesmo tinha acabado de acender – passando portanto no limite entre o sinal amarelo e o vermelho (como fazem diariamente milhares de condutores; e
- imobilizou o automóvel que conduzia na via pública, em segunda mão, tendo efectuado marcha atrás para estacionar, mas desistiu e acabou por arrancar efectuando inversão de marcha na rotunda, parando depois quando o agente da GNR lhe deu sinal para o efeito, não resultando, assim, daquelas condutas, que alguém tenha visto a sua integridade física em perigo, pelo que não é assim possível concluir que, da matéria de facto dada como provada, resulte um qualquer elemento que permita considerar que a condução do arguido tenha sido concretamente criadora de perigo, no caso um perigo grosseiro integrador do tipo legal subjectivo do crime de condução perigosa de veículo automóvel.
10. Pelo que, face aos factos provados, a única conclusão passível de se extrair, de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade das coisas, é a de que o arguido quando ingeriu o referido “copo de vinho” nunca representou como possível que ostentasse uma taxa de álcool superior à legalmente prevista, motivo pelo qual resolveu conduzir. Ou seja, o arguido nunca pensou (representou) estar a conduzir com uma taxa de álcool superior à legal, pelo que, e consequentemente, ao fazê-lo não actuou com dolo de conduzir com álcool, tendo, portanto, agido de forma negligente e não dolosa – o que se enquadra na previsão do artigo 291º, do Código Penal.
11. Porém, tal situação já não se enquadra na previsão do tipo legal subjectivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto no artigo 292º, n.º 1, do Código Penal, uma vez que não se verifica uma actuação, por parte do arguido, que se enquadre numa actuação dolosa e/ou com negligência grosseira.
12. Isto porque, sendo tal tipo de ilícito um crime doloso de perigo concreto, bastando-se com esse perigo, motivo pelo qual qualquer acto que se inclua nos exemplos descritos no tipo legal constitui uma violação grosseira dessa circulação (a violação grosseira das regras de condução implica um comportamento de desrespeito por um conjunto de regras de trânsito especificadas no tipo), e tendo, o arguido, preenchido um acto violador das normas estradais, poderá o mesmo ter incorrido na prática do crime p. e p. pelo artigo 291º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal.
13. Mas terá apenas criado o dito perigo por mera negligência que possa justificar a subsunção da sua conduta à norma do n.º 4 de tal normativo?
14. No n.º 3, do referido artigo 291º, temos dolo de acção e negligência – consciente ou inconsciente - quanto ao evento do perigo (ou seja, o dolo do agente não compreende o perigo concreto criado, afirmando-se, quanto a este, negligência do condutor) – neste n.º 3, o agente sabe e tem plena consciência da sua desenfreada condução, mas não representa (negligência inconsciente) ou representa e afasta a possibilidade (negligência consciente) da criação de um perigo para os bens jurídicos em apreço.
15. Já o seu n.º 1 prevê dolo de acção e dolo de perigo, admitindo-se aqui qualquer uma das modalidades de dolo (directo, necessário e eventual) – ou seja, a acção do agente e a criação de perigo são intencionais.
16. Enquanto que o seu n.º 4 prevê que o agente age com negligência de acção e de criação de perigo (apontando todo o circunstancialismo dado como provado na douta decisão recorrida neste sentido).
17. No entanto, sucede que, os factos dados como provados não permitem extrair a conclusão de que o arguido agiu como dolo de acção e com dolo – eventual - de perigo. Na medida em que o mesmo nunca teve a intenção, nem a noção, em primeiro lugar de estar a conduzir com uma taxa de álcool superior à legalmente permitida e, em segundo lugar, nunca teve a consciência de que estava a conduzir de forma desenfreada e violadora das regras estradais e muito menos que estava a conduzir com uma forte possibilidade de criar perigo para terceiros.
18. Pelo que, e assim sendo, em face do disposto no artigo 15.º do Código Penal, temos de concluir que o arguido agiu de forma negligente, na modalidade de negligência inconsciente, relativamente ao perigo criado com a sua acção.
19. Por conseguinte, com a prática dos factos provados, o arguido incorreu apenas na prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1, do Código Penal, devendo o mesmo ser absolvido da prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, nºs 1, a) e b), do Código Penal.
20. Caso assim se não entenda – o que não se concede, mas por mera cautela e por dever de patrocínio – cumpre dizer que o arguido deverá ser absolvido da prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, n.ºs 1, a) e b), do Código Penal, na medida em que a verificar-se tal crime – pelos motivos já supra invocados – o mesmo agiu apenas a título de negligência, prevista no n.º 4, daquele diploma legal, o qual é apenas punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, a que acresce a proibição de conduzir veículos com motor por um período a fixar entre três meses e três anos nos termos do artigo 69.º, n.º 1, a) do mesmo diploma legal.
21. Para além de se dever ter na devida conta que, sendo o arguido recorrente absolvido da prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, n.ºs 1, a) e b), do Código Penal e sendo apenas condenado pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1, do Código Penal, a pena em que o mesmo foi condenado nos presentes autos e respectiva sanção acessória deverá ser alterada em conformidade, o que se requer para todos os legais efeitos.
d) Admitido o recurso, por despacho de 20/03/2020, respondeu o Ministério Público pugnando pela sua improcedência e manutenção do decidido, rematando a motivação com as conclusões que se transcrevem:
1. O Tribunal entendeu que o arguido preencheu todos os elementos – objectivo e subjectivo - do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, decidindo, assim, a nosso ver, de modo irrepreensível o presente caso.
2. Logo, não assiste qualquer razão ao arguido no recurso interposto, devendo ser mantidas, por um lado, toda a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal recorrido, e, por outro, todas as consequências jurídico-penais daí extraídas.
3. O arguido bebeu porque quis e conduziu porque quis, logo conformou-se com qual quer que fosse o resultado da sua actuação. Resultado esse que resultou num perigo concreto e mesmo num acidente entre a viatura da GNR e o de E…, tendo o primeiro, para evitar o embate com a viatura do arguido, embatido no segundo. Deste acidente não resultaram danos nem vítimas, mas por circunstâncias alheias ao arguido, pois o perigo de que tal se verificasse foi por ele criado.
4. Note-se ainda que a argumentação do arguido de que nunca representou a taxa de álcool que tinha no sangue não pode colher. Repetimos, ninguém obrigou o arguido a beber álcool e a seguir conduzir. Nem queira o arguido afirmar que apenas bebeu um copo de vinho (supondo de que falava de um copo de cerca de 250 ml), pois os estudos científicos conjugados com a taxa de álcool no sangue, dizem-nos que o arguido bebeu bem mais do que um copo de vinho e ainda assim se propôs a conduzir.
5. O arguido não representou a taxa de álcool no sangue porque não fez qualquer taxa antes do início da condução, mas não podia ignorar que bebera líquido de teor alcoólico. As pessoas apenas podem saber o seu nível de álcool no sangue após efectuarem um teste de alcoolemia e não antes.
6. O que o arguido sabia é que bebeu e por isso tinha de representar como possível ter álcool no sangue e conformou-se com tal facto, iniciando a condução e da forma descrita nos factos provados, exasperando com a sua condução perigo concreto para pessoas e bens de valor patrimonial elevado, como sejam as viaturas e respectivos condutores e ocupantes que com ele se cruzaram na via pública.
7. O princípio do acusatório significa que só se pode ser julgado pela prática de um crime mediante prévia acusação que o contenha, deduzida por entidade distinta do julgador e constituindo ela o limite do julgamento.
8. A lei admite que na sentença, seja por razões de economia processual, seja por razões da paz do arguido, possam ser considerados factos novos, resultantes da discussão da causa, ainda que constituam alteração dos constantes da acusação, observadas que sejam determinadas formalidades e verificados que sejam determinados pressupostos, matéria que o C. de Processo Penal regula nos arts. 1.º, 358.º e 359.º.
9. Ora o julgador não imputou ao arguido crime diferente do que àquele vinha imputado, apenas corrigiu o texto da acusação em consonância com o auto de notícia e todas as testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento.
10. O arguido conduziu na via pública com uma taxa de pelo menos 1,33 g/l, passou um semáforo no sinal vermelho, ultrapassou junto de uma passadeira, fez marcha atrás sem atender aos demais veículos, dando causa ao acidente reportado nos autos… como não considerar preenchidas ambas as alíneas do nº1 do artigo 291º do Código Penal?
11. Apenas a conclusão a que chegou o tribunal a quo é a correcta: o arguido incorreu na prática do crime que lhe foi imputado na modalidade de dolo eventual.
12. Nos presentes autos não há qualquer dúvida, a prova produzida foi coerentemente valorada. Não há duas versões de factos. Tão só a negação do arguido por um lado e a versão dada como provada por todas as testemunhas presenciais dos factos em apreço.
13. O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo.
14. Não há qualquer trepidação na credibilidade das testemunhas ouvidas que descreveram a condução e acção do arguido, pelo que também não se regista qualquer violação do princípio in dúbio pro reo.
e) Neste Tribunal da Relação o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso louvando-se na resposta do Ministério Público que reforçou ainda com pertinente citação de jurisprudência.
f) Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais foi aduzido.
g) Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão.
II- FUNDAMENTAÇÃO
1. É consabido que, para além das matérias de conhecimento oficioso [v.g. nulidades insanáveis, da sentença ou vícios do art. 410º n.º 2, do citado diploma legal], são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [v. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 2ª ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt].
Todavia a hipótese em apreço apresenta particularidade que cumpre, desde já, apreciar visto que contende com o âmbito do recurso.
Questão Prévia
Repetindo a afirmação que consta da motivação sem qualquer argumentação adicional de suporte, alega o recorrente, na conclusão 4, que teria ocorrido a ilegalidade prevista nos arts. 141.º, n.º 4, al. b), e violação dos arts. 357.º, n.ºs 1 a 3, e 355.º, com a consequente nulidade da sentença, nos termos do disposto no art. 122º, n.º 1, todos do Cód. Proc. Penal.
Como é bom de ver, não suscita o recorrente qualquer questão nesse preciso segmento, pelo menos em moldes de poder ser apreciada, já que não esclarece que prova teria sido indevidamente considerada pelo julgador por não ter sido produzida na audiência (art. 355º), sendo mesmo ininteligível a referência aos arts. 141º e 357º, do Cód. Proc. Penal, já que o arguido prestou declarações no julgamento e foram essas que o tribunal valorou criticamente.
Assim, no caso sub judicio, as questões validamente suscitadas são as seguintes:
a) Vícios do art. 410º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal
Insuficiência para a decisão da matéria de facto
b) Errónea imputação do crime previsto no art. 291º, n.º 1, als. a) e b), do Cód. Penal
c) Subsunção dos factos ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez
***
2. A fundamentação de facto realizada pelo tribunal a quo, no que ao caso interessa, é a seguinte: (transcrição)
A) Factos Provados
1) No dia 20.01.2020, cerca das 21h30m, na Praça…, em Felgueiras, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de marca Hyundai, Modelo …, de matrícula .. – VA - .., após ter ingerido bebidas alcoólicas.
2) O arguido efetuou manobra de ultrapassagem de dois veículos junto à passadeira, tendo terminado a referida manobra no quiosque da praça e o veículo que circulava à frente apercebeu-se da manobra e desviou-se evitando assim a colisão.
3) Os militares da GNR que se encontravam nos semáforos do cruzamento da Praça da República, ao aperceberem-se da manobra realizada pelo arguido, encetaram seguimento ao veículo por este conduzido.
4) O arguido seguiu em direção à Avenida … e de seguida virou à direita para a Rua…, desrespeitando o sinal luminoso que estava vermelho.
5) Já na Rua…, junto à entrada do supermercado F…, o arguido parou junto à zona do estacionamento, do lado do prédio ali existente, e tentou iniciar a marcha por duas vezes e após parou o veículo no meio da faixa de rodagem.
6) O militar da GNR G… saiu do veículo para dar ordem de paragem ao arguido e este, de forma repentina, inicia manobra de marcha atrás, sem tomar as devidas precauções, não obstante o militar da GNR H… que conduzia o veículo da GNR ter buzinado para o alertar da manobra que realizava, acabando, por ter de engrenar a marcha atrás e recuar, acabando por embater no veículo que estava atrás do veículo da GNR e que havia saído do supermercado F… de matrícula .. - .. - LM, não tendo resultado danos visíveis no mesmo.
7) Após, o sucedido, o arguido iniciou novamente a marcha e inverteu o sentido da marcha na rotunda junto ao I…, na Rua …, regressando novamente à….
8) Na Rua…, o militar da GNR G… encontrava-se apeado e deu ordem de paragem ao arguido o qual acatou e encostou à direita.
9) Ao ser submetido ao exame de pesquisa de álcool, pelo método de ar expirado, o arguido acusou uma taxa de álcool no sangue de 1,40 g/l, a que corresponde o valor apurado após dedução do erro máximo admissível de 1,33 g/l.
10) O arguido pelo menos previu ter ingerido bebidas alcoólicas de forma adequada a apresentar uma taxa de álcool no sangue superior à legal e, não obstante, conformou-se com essa eventualidade e decidiu conduzir.
11) O arguido sabia que não podia realizar manobra de ultrapassagem imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões.
12) O arguido sabia que era obrigado a parar perante a luz vermelha de regulação de trânsito.
13) O arguido sabia perfeitamente que a condução que fazia punha em risco a vida de terceiros que se encontrassem na via pública e que assim tornava altamente provável a ocorrência de um acidente de viação ou atropelamento, tendo-se conformado com a criação daquele risco.
14) O arguido sabia também que deve conduzir de forma cautelosa e previdente, de modo a evitar acidentes tomando em consideração o estado da via, as condições tráfego e a sinalização aí existentes e ainda a possibilidade de existirem peões a caminhar pela rua, e assim, infringiu, por isso, os deveres de zelo, cuidado e diligência que impendem sobre todos os condutores de veículos automóveis.
15) O arguido tinha conhecimento e plena consciência desses deveres e normas de circulação rodoviária e sabia que a sua conduta podia originar, perigo para a vida ou integridade física de terceiros e prejuízos patrimoniais em terceiros.
16) O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas por lei.
Mais se provou:
17) O Arguido B…:
a) É comerciante, auferindo quantia não concretamente apurada por mês, dado que o seu negócio atravessa graves dificuldades económicas;
b) É divorciado e vive sozinho;
c) Tem dois filhos já maiores;
d) Habita em casa própria, e pela qual tem crédito bancário contraído para aquisição da mesma, pagando uma prestação mensal de cerca de €500,00; as quais estão em falta;
e) Tem a 4ª classe;
f) Do seu CRC constam os antecedentes criminais, aí melhor descritos e constantes de fls. 29 a 33, e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

B) Motivação
A convicção do tribunal, no que concerne aos factos dados como provados e não provados[1], baseou-se, na apreciação crítica e conjugada da totalidade da prova produzida, a saber:
- Nas declarações do arguido, B…, o qual, começou por referir ter uma vida agitada, devido ao facto de ser comerciante e o seu negócio estar a atravessar por graves problemas financeiros, referido que, ao passar no restaurante “J…”, ali avistou a viatura de uns clientes que tinham uma dívida, e ali resolveu parar e ir falar com eles; acabando por ali ficar e se sentar e nas suas palavras “a comer um canja e beber um copo de vinho, a insistências dos mesmos”. Mais confirmou que, depois saiu daquele local e veio para Felgueiras, em direcção à sua loja, que fica no prédio em frente ao “F…” e que, no percurso, não ultrapassou ninguém, não passou nenhum sinal vermelho; e que acabou por não estacionar em frente ao prédio porque o lugar era pequeno; sendo que foi por isso que foi dar a volta à rotunda e foi quando vinha para a mesma rua que foi mandado parar pelos militares da GNR.
De facto, o arguido, com excepção de ter confirmado que bebeu um copo de vinho no restaurante, negou a prática dos factos.
Porém, essa não se mostrou ser a realidade dos factos.
De facto e para dar comos provados os factos dados como provados e na forma que o foram, o tribunal teve em consideração o depoimento dos militares da GNR e agentes autuantes, G… e H…, a prestar serviço do Posto da GNR de …, os quais de uma forma credível, isenta, sincera e essencialmente coincidente, relataram os factos da forma que os mesmos foram considerados como provados, confirmando e relatando os mesmos, acrescentando que afinal foi o veículo da GNR que embateu noutro veículo, que estava atrás daquele e devido à manobra repentina de engrenar de marcha-atrás por parte do arguido. Aliás tais factos, e que ocorreram junto do estacionamento do prédio em frente ao supermercado “F…”, foram ainda presenciados e também relatados pelas testemunhas K… e L…, as quais, também de uma forma credível e essencialmente coincidente, relataram que tinham acabado de estacionar a viatura onde seguiam e quando já estavam no exterior da mesma, aperceberam-se de que o veículo conduzido pelo arguido, de cor branca parou e teve dificuldades em arrancar – e nas palavras dos mesmos “ia abaixo” – e que de repente, o mesmo engrenou a marcha-atrás de forma repentina, não embatendo no veículo da GNR porque aquele recuou, e que depois foi dar a volta á rotunda e acabando por parar em frente ao “F…” e após paragem efectuado por um dos militares da GNR.
Por último, a testemunha E…, também relatou de uma forma credível, a qual era a condutora do veículo com a matrícula .. - .. - LM, que estava atrás da viatura da GNR, após ter saído do hipermercado “F…” e quando estava em frente do mesmo, a viatura da GNR fez marcha-atrás, embatendo na sua viatura, já que se estava a fugir do embate de uma viatura branca. Referiu ainda que de tal embate não resultaram danos na sua viatura.
O Tribunal teve ainda em consideração o depoimento das testemunhas de defesa apresentadas, a saber:
- M…, empresário e amigo do arguido, o qual o conhece há já algum tempo, e que se encontrou com o mesmo no restaurante “J…”, relatando que o mesmo estava nervoso e “stressado”, já que atravessa problemas familiares e com o seu negócio, confirmando que o viu a discutir com umas pessoas que ali se encontravam por causa de uma dívida, confirmando que o mesmo ali comeu uma sopa e bebeu um copo de vinho. Afirmou que, depois saíram do restaurante, e que o mesmo vinha atrás dele. Afirmou ainda que o mesmo é uma pessoa muito trabalhadora e que agora vive sozinho.
- N…, solicitadora, a qual se limitou a referir que conhece o arguido há cerca de 10 anos, afirmando que o mesmo é boa pessoa, muito trabalhador, e que vive para o trabalho; confirmando ainda que a empresa que detém, e por seu conhecimento profissional, se encontra a atravessar por grandes problemas financeiros. Explicou que a empresa do arguido vende material informático.
Teve ainda por boas e credíveis as declarações do arguido sobre a sua actual situação pessoal e financeira; e ainda o CRC do mesmo junto de fls. 29 a 33.
O tribunal teve ainda em consideração, o teor do auto de notícia de fls. 4 a 8, o talão de fls. 22, o certificado de verificação do aparelho de fls. 24.
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3. Apreciação do mérito
3.1 Do recurso em matéria de facto
Invocou o recorrente, além do mais, que o tribunal a quo teria violado o princípio in dubio pro reo, ao condená-lo, porquanto os elementos probatórios apurados apontam para a existência de muitíssimas dúvidas sobre a verificação de uma actuação dolosa, sendo que os factos, designadamente a descrição fáctica relativa à condução em estado de embriaguez, com TAS de 1,33 g/litro, não são suficientes para se dar como provado o perigo normativamente densificado, porque não permitem concluir com segurança que seria razoável esperar que dos actos de condução descritos se seguiria necessariamente, ou pelo menos provavelmente, um perigo concreto.
Enquadrando a questão, importa definir - em termos muito breves já que a matéria é consensual – o âmbito da intervenção deste tribunal ad quem.
§1º É consabido que os Tribunais da Relação conhecem não só de direito mas também de facto [art. 428º, do Cód. Proc. Penal], mas fazem-no por referência aos moldes que delimitam o instituto recursório, entendido como um remédio para os vícios do julgamento da 1ª instância, não sendo admissível “o julgamento do julgamento” mas tão-só a emissão de juízos de censura crítica a propósito dos concretos pontos que as partes especifiquem e indiquem como não correctamente julgados[2]. Tal circunstância determina como consequência necessária que a modificação da matéria de facto apenas seja possível, no caso dos vícios documentados no texto decisório, de harmonia com o preceituado no art. 410º n.º 2 [erros da decisão, cujas alíneas a) a c), abrangem a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova], ou quando a prova tiver sido impugnada nos precisos termos do n.º 3, do art. 412º, ou seja quando o recorrente especifique os concretos pontos de facto da discórdia, as provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas. E, no caso da reapreciação da prova gravada, acresce ainda o ónus das duas primeiras especificações deverem ser feitas por referência à acta e com indicação concreta [ou transcrição se a acta for omissa – v. Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012] das passagens em que se funda a impugnação, consoante decorre do n.º 4, do mesmo normativo legal.
§2º Para além das características inerentes à sua espécie, a distinção fulcral entre os vícios da decisão e os erros de julgamento reside na circunstância daqueles terem que patentear-se do texto da sentença, por si ou em conjugação com as regras de experiência mas sempre sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, designadamente a análise de prova junta aos autos ou produzida em audiência, e estes admitirem a reapreciação de toda e qualquer prova, nomeadamente as declarações e depoimentos objecto de gravação.
§3º Sendo o recurso interposto unicamente pelo arguido vigora a proibição de reformatio in pejus, o que significa que “o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes” – art. 409º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.
3.1.1 Dos erros de julgamento
Assentes estes pressupostos, facilmente se intui que a referência às dúvidas resultantes das provas produzidas na audiência de julgamento não faz qualquer sentido porquanto o arguido não optou pela impugnação admitida pelo citado art. 412º, n.ºs 3 e 4, falhando o ónus de impugnação especificada que permitiria a este Tribunal ad quem realizar a reapreciação probatória.
Ora, do texto decisório não resulta qualquer dúvida demonstrativa da violação do princípio in dubio pro reo até porque o facto de se resumir na motivação da convicção as declarações do arguido, referindo-se, designadamente, que o mesmo apenas admitiu ter bebido um copo de vinho, não significa que tal tese tenha vingado (e não vingou como bem demonstra a frase subsequente “Porém, essa não se mostrou ser a realidade dos factos” e a factualidade inserta no ponto 1 dos factos provados).
Depois a hipotética alteração da TAS devido a medicação prescrita ao arguido não colhe qualquer suporte na fundamentação de facto que consta da sentença – única atendível atenta a impossibilidade de reapreciação da prova – sendo, pois, manifestamente infundada.
De todo o modo, considerando a frequência com que tal justificação é invocada, importa ainda vincar o seguinte:
A taxa de álcool no sangue é determinada pela quantidade de bebidas ingeridas e pelo seu maior ou menor grau alcoólico.
O efeito do álcool no organismo é que pode ser influenciado por factores tão diversos como a idade, sexo, peso, nutrição, estado de saúde, etc.
Daí que a eventual interferência da medicação não se verifica na TAS medida pelo aparelho respectivo mas antes nos efeitos causados pelo álcool.
Assim, a medicação não eleva a taxa de álcool antes podendo potenciar os efeitos que a sua ingestão causa, como sejam a descoordenação sensorial e motora, a diminuição da acuidade visual, da atenção e da concentração e o aumento da confusão e do tempo de reacção a qualquer obstáculo ou imprevisto. É por isso que quando são receitados medicamentos dessa natureza o doente é advertido para não ingerir álcool e, como é óbvio, se o faz e, de seguida, exerce a condução, tal circunstância não constitui uma atenuante mas antes uma agravante da sua conduta, pela potenciação do risco de acidente ou da gravidade das consequências deste que não pode ignorar.
Finalmente, perante a quantidade de álcool por litro de sangue detectada através do teste realizado ao arguido – 1,33 g/l já descontado o erro máximo admissível – é óbvio, assim o ditam as regras de experiência, razoabilidade e bom senso, que o mesmo ingeriu bebidas com elevado teor alcoólico ou em tal quantidade que não podia ter deixado de prever que ostentava TAS superior à legalmente permitida por lei, carecendo de sentido e fundamento a afirmação de que nunca representou tal possibilidade e que só ingerira um copo de vinho.
Resumindo e concluindo: Não se evidenciando qualquer violação das regras de experiência comum, único limite à livre convicção do julgador, de harmonia com a previsão do art. 127º, do Cód. Proc. Penal, nem tendo o arguido lançado mão do meio próprio para a reapreciação probatória, a matéria de facto apenas poderá ser alterada caso o texto decisório patenteie desarmonia susceptível de subsunção à previsão do art. 410º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
3.1.2 Da insuficiência da matéria de facto para a decisão
O recorrente, aludindo ao vício previsto no art. 410º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Penal - determinante do reenvio (parcial ou total) para novo julgamento caso não possa ser suprido pelo tribunal ad quem, nos termos do art. 426º, n.º 1, do mesmo diploma legal -, sufraga que a TAS de 1,33g/l é insuficiente para dar como assente a produção do perigo concreto que o crime de condução perigosa pressupõe, que a sua conduta não causou qualquer efeito danoso e que das manobras de ultrapassagem e marcha atrás que realizou e da violação do dever de parar que não observou, também ninguém ficou com a integridade física em perigo.
Vejamos.
Sob a epígrafe “Condução perigosa de veículo rodoviário”, dispõe o art. 291º, do Cód. Penal, que:
“1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:
a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou
b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.
Recorde-se que o arguido estava acusado da prática desta infracção, por referência à alínea b), do n.º 1, do citado art. 291º, e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo art. 292º, n.º 1, do Cód. Penal. Todavia, o tribunal a quo reconduziu toda a conduta apurada e descrita ao crime de condução perigosa, preenchendo ambas as alíneas [a) e b)] daquele primeiro normativo e considerando verificar-se uma situação de concurso aparente no tocante ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, seguindo a doutrina e jurisprudência que sufragam a existência de subsidiariedade entre ambos os tipos legais prevalecendo o primeiro sempre que o agente se encontre embriagado e com o seu comportamento cause perigo para os bens nele juridicamente tutelados.
Com o tipo de ilícito aqui prevalente, ou seja o do art. 291º, pretendeu o legislador conter a sinistralidade rodoviária e proteger os utentes da via de condutas potenciadoras de acidente, aliás à semelhança do que acontece com a norma seguinte (art. 292º), criminalizando a condução realizada sem que o condutor esteja em condições de o fazer com segurança e/ou com inobservância grosseira das regras estradais fundamentais taxativamente elencadas.
E trata-se, realmente, como bem refere o arguido, de um crime de perigo concreto - ao contrário do que sucede com o de condução em estado de embriaguez que se basta com o perigo abstracto inerente à mesma -,porquanto da conduta do agente terá que resultar um perigo real e efectivo para a vida ou integridade física de outrem ou para bens alheios de valor elevado - v., a este propósito, Paula Ribeiro Faria in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, págs. 1079 e segs., Coimbra Editora, 1999, e Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, págs. 739 e 740, Universidade Católica Editora, 2008.
A existência de perigo concreto depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
Existência de um objecto de perigo tipificado;
A entrada do objecto do crime no círculo de perigo;
A não ocorrência de dano por força de circunstâncias inesperadas ou de esforços extraordinários e não objectivamente exigíveis de terceiros ou do ameaçado ou devido a circunstâncias criadoras de hipóteses de salvamento incontroláveis e irrepetíveis, ou seja a circunstância que possibilitou a não ocorrência da lesão não deve parecer ao homem médio repetível, controlável, de fácil exercício ou normal.
Assim, seguindo na esteira de Claus Roxin, o perigo concreto tem que ser percepcionado em termos essencialmente fácticos, segundo as circunstâncias particulares do caso, embora sem excluir aquelas situações em que é possível sustentar uma espécie de reconhecimento geral do aludido perigo, que ocorre quando o objecto de acção entrou no âmbito da acção daquele que o põe em perigo e quando a acção típica tem que ter criado um perigo iminente de lesão do objecto da acção.
Em consequência, existirá perigo concreto quando um determinado resultado lesivo somente não se produziu por mera casualidade.
Assiste razão ao arguido, ora recorrente, quando sustenta que a simples condução sob influência do álcool ou mesmo em estado de embriaguez não é suficiente para a imputação do crime em causa, sendo necessário que da factualidade apurada se conclua que, por força da ingestão de bebidas alcoólicas, o agente não estava em condições de realizar a condução de um veículo na via pública.
E, é igualmente inegável que a infracção em causa depende da prova da existência de um perigo concreto, designadamente para a integridade física alheia, em resultado dessa falta de condições para o exercício da condução ou, então, da violação de alguma das regras estradais elencadas no tipo.
Deste modo e revertendo à hipótese em apreço impõem-se, desde já, as conclusões seguintes:
A redacção da fundamentação de facto não é exemplar já que descreve as condutas do agente de forma dispersa e parcelar mas, ainda que de forma implícita, lida conjugadamente e com amparo das regras de experiência comum, permite o estabelecimento de nexo de causalidade entre a TAS detectada e a falta de condições para o exercício da condução e consequente perigo para, pelo menos, a integridade física alheia;
As manobras de marcha atrás e inversão de marcha realizadas pelo arguido não sustentam a imputação criminosa, no âmbito da alínea b), do n.º 1, do art. 291º, porquanto resulta da factualidade provada que ocorreram dentro de uma localidade (mais concretamente em ruas de …), sendo que o elenco normativamente densificado de regras estradais atendíveis se reporta a manobras de marcha atrás ou inversão de marcha em auto-estradas ou em estradas fora da povoação. Todavia, tal não significa que sejam inócuas ou irrelevantes para o efeito, atenta a previsão da alínea a), do mesmo preceito legal.
E o mesmo se verifica quanto ao desrespeito da obrigação de parar resultante da luz vermelha de regulação de trânsito perpetrado pelo arguido, como adiante melhor se verá.
No entanto, ao contrário do sufragado pelo recorrente, a solução é já diversa no tocante à manobra de ultrapassagem iniciada junto de uma passadeira que consta no ponto 2 dos factos provados, que suporta perfeitamente a imputação criminosa de harmonia com a previsão do art. 291º, n.º 1, al. b), do Cód. Penal, embora não propriamente pelas razões que constam da decisão recorrida já que não se apurou que tivesse resultado perigo para qualquer peão cuja presença no local nem sequer é mencionada.
Com efeito, não só a violação da regra de ultrapassagem integra o elenco típico da previsão legal, como a realização de manobra dessa natureza impõe ao condutor do veículo o dever de não a iniciar sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário. Devendo certificar-se, especialmente e além do mais, de que pode retomar a direita sem perigo para aqueles que aí transitam, nos termos e por força do disposto no art. 38.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Cód. Estrada, circunstâncias estas que o arguido, enquanto condutor legalmente habilitado para o efeito, tinha que conhecer.
E, a violação de tal dever constitui contra-ordenação grave, punível com coima e inibição de conduzir, nos termos previstos nos arts. 38º, n.º 5 e 145º, n.º 1, al. f), do Cód. Estrada.
Ora, in casu, resultou provado que o arguido iniciou a ultrapassagem simultânea de dois veículos só não colidindo com a viatura que seguia em primeiro lugar porque o condutor respectivo se apercebeu da manobra e se desviou evitando assim a colisão, o que impõe a conclusão de que retomou a direita antecipadamente quando ainda não o podia fazer sem perigo para tal utente da via.
Nesta conformidade, é por demais evidente que o arguido não só violou a regra da ultrapassagem[3] como, por força dessa violação, causou perigo, pelo menos, para um dos veículos ultrapassados e para a integridade física do(s) seu(s) ocupante(s), designadamente o condutor.
Por seu turno, a natureza e contexto de tal manobra concatenadas com as regras de experiência comum e normalidade de acontecer suportam cabalmente a conclusão de que o arguido sabia que o seu comportamento causava perigo para a integridade física de, pelo menos, quem se encontrasse no interior do aludido veículo e que se conformou com tal resultado pois que, de outra forma, ter-se-ia abstido de o concretizar nos moldes em que o fez.
Tendo presente o exposto, forçosa é a conclusão de que a conjugação harmónica da subsunção jurídica realizada com a matéria de facto impõe a leitura, implícita na descrição e apreciação realizada pelo tribunal a quo, para preenchimento típico da conduta prevista na alínea a), do n.º 1, do citado art. 291º, de que o desrespeito da obrigação de parar resultante da luz vermelha de regulação de trânsito (ponto 4), as tentativas frustradas de reiniciar a marcha do veículo e paragem no meio da faixa de rodagem (ponto 5), bem como as irregulares manobras de marcha atrás e inversão de marcha (pontos 6 e 7), resultaram do facto do arguido se encontrar embriagado (pontos 1 e 9) e, por via disso, incapaz de exercer devidamente a condução do veículo, ou seja sem as condições necessárias para o fazer em segurança, pondo em perigo a vida e integridade física dos demais utentes da via, designadamente a do militar que conduzia o veículo da GNR e se encontrava atrás do seu veículo e que só não foi embatido na sequência da manobra de marcha atrás inopinadamente realizada pelo arguido por ter logrado recuar a tempo (cfr. ponto 6). Quer dizer, as manobras estradais descritas convocam, directa e necessariamente, a falta de condições de segurança para a condução por parte do arguido, em resultado do estado de influenciado pelo álcool e taxa de alcoolemia que apresentava na ocasião, sendo a previsão típica da alínea b), do mesmo preceito legal preenchida pela manobra de ultrapassagem e risco daí decorrente para outro condutor nos moldes já anteriormente explicitados[4].
Neste conspecto, é por demais evidente que não assiste razão ao recorrente quando sustenta que a matéria de facto é insuficiente para a integração jurídico - legal da sua conduta ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário, ficando, pois, prejudicada a questão da subsunção jurídica unicamente ao crime de condução em estado de embriaguez.
III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto negar provimento ao recurso do arguido B… e manter, embora por razões algo diversas das que dela constam, a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente com 4 (quatro) UC de taxa de justiça - art. 513º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
*
[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, n.º 2, do CPP[5]]
Porto, 03 de Junho de 2020
Maria Deolinda Dionísio
Jorge Langweg
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[1] O Tribunal a quo não especificou quaisquer factos como não provados presumindo-se que a referência resulte de mero lapso resultante da utilização de meios informáticos.
[2] Germano Marques da Silva, in Forum Justitiae Maio/1999.
[3] Violar a regra de ultrapassagem não significa necessariamente que foi realizada ultrapassagem proibida nos termos do art. 41º, do Cód. Estrada.
[4] Querendo considerar-se apenas a conduta relativa a ultrapassagem iniciada em local proibido, ou seja junto de uma passagem para peões, a manobra justificaria a imputação típica pelo art. 291º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, à semelhança e nos termos das demais que o arguido realizou.
[5] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora.