Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
372/16.5T9AGD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: CRIME DE FALSIDADE DE TESTEMUNHO
Nº do Documento: RP20181010372/16.5T9AGD.P1
Data do Acordão: 10/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º772, FLS.82-90)
Área Temática: .
Sumário: Para que se verifique a previsão do artigo 360.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, é necessário que a testemunha seja advertida de que incorre em responsabilidade penal (crime de falsidade de testemunho) se não responder com verdade às perguntas que lhe forem feitas, não se impondo a comunicação da pena abstrata aplicável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 372/16.5T9AGD.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Águeda – JL Criminal

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Águeda – JL Criminal, processo supra referido, foi julgada B…, tendo sido proferido Sentença com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, condeno B… pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p.p. pelo art.º 360, n.º 1 do CP, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa á taxa diária de €6 (seis), em concurso real com a prática de prática de um crime de falsidade de testemunho, p.p. pelo art.º 360, n.º 1 e 3 do CP, na pena de 400 (quatrocentos dias de multa) dias de multa á taxa diária de €6 (seis); em cúmulo jurídico na pena única de 480 (quatrocentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6, no toral de €2.880 (dois mil oitocentos e oitenta euros) Condena-se ainda nas custas do processo, com 3 (duas) UC de taxa de justiça e demais encargos que a sua actividade haja dado lugar, nos termos do art.º 513 e 514 do CPP”.
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Desta Sentença, recorreu o MºPº formulando as seguintes conclusões:
“1.0 - O presente recurso tem por objecto a decisão proferida a fls. 123-135, na parte em que condenou a arguida B… pela prática do crime de falsidade de depoimento (simples), p. e p. no artigo 360.°, n." 1, do Código Penal, por referência ao depoimento prestado, em 3 de Novembro de 2016, na audiência de julgamento no âmbito do Processo Comum Singular n." 23/16.SGCAGD.
2.° - Fundamenta o Tribunal a quo aquela decisão no entendimento de que o preenchimento do crime de falsidade de depoimento (agravado), p. e p. no artigo 360.°, n.os 1 e 3 Código Penal depende, para além de outras circunstâncias, da efectiva comunicação à arguida da concreta pena em que aquela poderia incorrer com a prestação de testemunho falso, o que não terá acontecido nos presentes autos.
3.° - Com efeito, o Tribunal a quo interpreta a norma do n." 3 do artigo 360.° do Código Penal no sentido de ser necessária, para se verificar a prática do crime de falsidade de depoimento agravado, a verificação cumulativa das seguintes circunstâncias: o juramento; a advertência das consequências penais a que o declarante se expõe, com a concreta comunicação da pena daí resultante, feita por autoridade com competência.
4.° - Em sentido diverso, entende Ministério Público que o n.º 3 do artigo 360.° do Código Penal não exige a concreta comunicação da pena, bastando o juramento e a advertência das consequências penais a que o declarante se expõe, feita pela autoridade judiciária competente.
5.° - Da letra da lei apenas se exige que a autoridade judiciária competente para receber o depoimento da testemunha advirta o declarante da possibilidade de incorrer em responsabilidade criminal, ou que comete um crime, caso não preste depoimento em conformidade com a verdade - efr. artigo 360.°, n." 3 do Código Penal.
6.° - O fundamento da agravação da moldura penal, operada pelo n." 3 do citado artigo 360.°, não resulta da circunstância do agente do crime (in casu, a testemunha) ter conhecimento ou plena consciência da concreta pena que lhe poderá ser aplicada se prestar depoimento falso, mas da gravidade da sua conduta ser maior do que a prevista no n." 1, porquanto, não obstante ter previamente prestado juramento legal, afirmando que iria depor com verdade, e ser advertido das consequências da sua conduta, o agente não se inibe de prestar falso depoimento.
7.° - O crime de falsidade de depoimento exige o dolo (conhecimento e vontade de realização do facto antijurídico, com consciência da ilicitude da conduta), em qualquer uma das suas modalidades, previstas no artigo 14.° do Código Penal, pressupondo apenas por parte do agente a consciência da falsidade da sua declaração, bem como o dever de declarar com verdade, e não o conhecimento ou plena consciência da concreta pena que poderá ser aplicada ao declarante se prestar depoimento falso.
S." - O conhecimento ou plena consciência da concreta pena que poderá ser aplicada ao declarante se prestar depoimento falso não é necessário "a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor que concretamente se liga à acção intentada) para o seu carácter ilícito".
9.° - Nos presentes autos, a arguida foi advertida em ambas as inquirições, quer na fase de inquérito, quer na fase do julgamento, de que, caso prestasse depoimento, era obrigada a responder com verdade às perguntas feitas, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, tendo prestado juramento legal e não obstante, prestou depoimento falso - efr. factos provados sob os pontos 6.° e 7.°
10.° - A sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação da lei penal substantiva, mormente no que concerne ao estatuído no artigo 360.°, n.os 1 e 3 do Código Penal, ao exigir, para a verificação da prática do crime de falsidade de depoimento agravado, p.p. pelo n." 3 do artigo 360.° do Código Penal, a advertência das consequências penais a que o declarante se expõe, com a concreta comunicação da pena daí resultante.
11.° - A norma do n." 3 do artigo 360.° do Código Penal deve ser interpretada no sentido de não ser exigível a concreta comunicação da pena, bastando, para o preenchimento do crime de falsidade de depoimento agravado, o juramento e a advertência das consequências penais a que o declarante se expõe, feita pela autoridade judiciária competente.
12.° - Deve, assim, ser revogada a sentença proferida, na parte de que ora se recorre, substituindo por outra que condene a arguida B… também pela prática do crime de falsidade de depoimento agravado, p. e p. pelo artigo 360.°, n.os 1 e 3 do Código Penal, por referência ao depoimento prestado, em 3 de Novembro de 2016, na audiência de julgamento no âmbito do Processo Comum Singular n.º 23/16.SGCAGD”.
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Em resposta ao recurso a arguida/condenada B… defendeu que “deve a sentença recorrida ser mantida no que se refere à não condenação pelo nº 3 do art. 360º”.
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela procedência do recurso do MºPº, escrevendo nomeadamente:
“(...)
5 - Entendemos que em ambos os depoimentos da arguida, tanto o do dia 01.06.2016 no processo comum singular n.° 23/16.8 GCAGD, fase de inquérito,
6 - Como no dia 03.11.2016 em audiência de julgamento, no mesmo processo, a arguida foi advertida nos termos do artigo 360.° n.° 3 CP.
7 - Não se exigindo que tivesse sido dito o montante da pena de prisão, mas que tivesse sido advertida de que não dizendo a verdade incorreria em responsabilidade criminal e podia ser condenada em pena de prisão.
8 - A distinção entre o n.° 1 do artigo 360.° e o n.° 3 é apenas que este N.° 3 exige que a arguida tenha sido advertida que a falsidade do depoimento podia dar responsabilidade criminal como deu.
9 - Tal como refere o n.° 3 deste artigo 360.° CP: «Se o facto referido no n.° 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias»
Termos em que:
Acompanhamos o recurso do MP o qual deve ser julgado procedente.
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Deste Acórdão recorreu, igualmente, a arguida/condenada B….
Por decisão sumária, foi este recurso rejeitado por ser manifesta a sua improcedência.
Desta decisão sumária não houve reclamação.
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Com interesse para a decisão a proferir, é o seguinte o teor da Sentença recorrida.
Factos Provados:
“1° No Processo Comum Singular n° 23/16.8GCAGD, que corre termos na Secção Criminal da Instância Local de Águeda, C…, filho da arguida, foi condenado, por douta sentença transitada em julgado no dia 17 de Dezembro de 2016, pela prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, por ter conduzido a sua viatura com a matrícula .. - .. - DD na via pública, no dia 23 de Janeiro de 2016, estando proibido de o fazer na sequência da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor que lhe tinha sido aplicada no âmbito do Processo Sumário n° 38/15.3GCAGD.
2° No dia 01 de Junho de 2016, pelas 11.00h, a arguida foi ouvida como testemunha na Secção Única do Departamento de Investigação e Acção Penal de Águeda, no âmbito do Processo Comum Singular n° 23/16.8GCAGD, onde afirmou que o filho C… lhe vendeu a viatura referida em 1°, no início de Janeiro de 2016, para saldar uma dívida no valor de cerca de €2.200,00.
3° A arguida disse ainda que, desde essa data, o veículo em causa ficou à sua guarda e que o filho C… nunca mais o utilizou, pelo que não poderia ter sido ele o condutor no dia 23 de Janeiro de 2016.
4° No dia 03 de Novembro de 2016, pelas 09.30h, em audiência de julgamento, a qual teve lugar na Secção Criminal da Instância Local Criminal de Águeda, a arguida foi novamente ouvida como testemunha, reafirmando que o filho C… lhe vendeu a viatura descrita em 1° por conta de uma dívida que tinha para com ela, no início de Janeiro de 2016, e que desde aí o veículo e respectiva chave ficaram na sua posse.
5° Mais disse que no dia 23 de Janeiro de 2016 era a própria quem conduzia a viatura descrita em 1°, tendo saído do seu local de trabalho e seguido em direcção à Rua …, em …, para ir ver uma casa que estava para venda, negando ter sido mandada parar por militares da GNR.
6° A arguida foi advertida em ambas as inquirições, quer na fase de inquérito, quer na fase do julgamento, de que, caso prestasse depoimento, era obrigada a responder com verdade às perguntas feitas, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, tendo prestado juramento legal.
7° Não obstante, a arguida prestou depoimento falso, afirmando em ambas as inquirições que ficou na pose do veículo em causa desde o inicio de Janeiro de 2016 e que desde aí foi a sua única utilizadora.
8º Em sede de audiência de julgamento, a arguida acrescentou que no dia 23 de Janeiro de 2016 era a própria quem conduzia o veículo em causa e não o filho, entretanto condenado por sentença transitada em julgado pela prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições naquele mesmo dia.
9°nA arguida actuou com a intenção concretizada de prestar depoimento falso quando inquirida na qualidade de testemunha, quer em fase de inquérito, quer na fase de julgamento, não obstante ter sida advertida de que caso não falasse com verdade, incorria em responsabilidade criminal, e depois de prestar juramento legal, ciente de que dessa forma colocava em causa a realização da justiça.
10° Agiu, por isso, livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
11° A arguida mora com o marido, em casa própria, adquirida com recurso a empréstimo bancário que se encontram a amortizar, pagando mensalmente uma quantia de cerca de €170.
12.° O marido está reformado e aufere de pensão a quantia de cerca de €400 e a arguida é doméstica.
13° Exploram um estabelecimento comercial de café, auferindo o rendimento variável de cerca de €150 mensais
14° Possuiu como habilitações literárias o 9.° ano de escolaridade.
15° É primária”.
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Qualificação Jurídica
“Atendendo ao circunstancialismo fáctico dado como provado, importa, agora, proceder ao seu enquadramento jurídico-penal.
A arguida encontra-se ainda acusada da prática de dois crimes de falsidade de testemunho, p.p. pelo art.? 360, n." 1 e 3 do CP.
Dispõe tal preceito legal do seguinte modo:
"1. Quem) como testemunha) perito) técnico) tradutor ou interprete) perante o tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova depoimento) relatório) informação ou tradução) prestar depoimento) apresentar relatório) der informações ou fizer traduções falsas) é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.
(...)
3. Se o facto referido no n. o 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe) a pena é de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
O bem jurídico protegido por esta previsão legal é a realização ou administração da justiça, enquanto função do Estado, enquanto interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito dos processos judiciais, na medida em que constituem suporte da decisão.
Medina Seiça (in Comentário Conimbricense ao Código Penal, parte especial, tomo III, pág. 462), entendemos que também aqui o bem jurídico em causa é o mesmo, constituindo uma circunstância agravante do tipo fundamental, o facto do agente prestar juramento e ser advertido das consequências penais a que se expõe.
Estamos perante um crime de perigo abstracto, não sendo necessário que a declaração falsa prejudique efectivamente o esclarecimento da verdade suporte da decisão, nem sequer, tn concreto, o tenha colocado em perigo, sendo o fundamento do ilícito a própria declaração falsa. É um crime de mera actividade em que o comportamento se esgota logo no momento da efectivação da conduta proibida, bastando a existência de contradição de depoimentos, independentemente de se apurar qual deles é o verdadeiro.
Relativamente ao agente da infracção só pode ser um dos expressamente referidos no n.º 1 do art. 360 do CP, ou seja, testemunha, perito, tradutor ou interprete. Pressupõe, assim, a lei, que o autor da declaração falsas esteja investido numa particular e precisa função processual, a qual é determinada pelo direito processual penal.
A acção típica consiste em fazer, em qualquer das posições em que se encontre investida, uma declaração falsa, entendendo-se por tal a comunicação feita por uma pessoa com base no seu conhecimento, quer sobre factos exteriores, quer sobre realidades psíquicas.
No entanto importa ter em atenção que nem toda a declaração falsa prestada, p. ex. por uma testemunha, preenche a tipicidade. Como refere o autor supra citado (ob. cito pág. 466) “a falsidade só releva na medida em que o declarante se encontre st!Jeito a um dever processual de verdade e de completude (declarar só a verdade mas toda a verdade). O âmbito desse dever encontra-se delimitado por três factores: a função processual do declarante} o objecto do interrogatório e as regras processuais relativas à prestação da declaração n.
Tratando-se de testemunha esta é obrigada a declarar os factos de que possua conhecimento directo (cfr. art. 128, n.º 1 do CPP), isto é, factos que tenham sido objecto da sua percepção, acontecimento ou circunstâncias concretas. O dever de verdade é violado, neste caso, quando a testemunha declara falsamente sobre esses factos ou declara falsamente ter tido conhecimento directo desses factos.
O elemento típico do crime em análise é constituído pela falsidade da declaração (depoimento, relatório, informação, tradução). Para se considerar se uma declaração é falsa é necessário aferir do seu conteúdo, o qual pressupõe um termo de comparação: uma declaração é falsa quando aquilo que se declara (conteúdo da declaração) diverge daquilo sobre o qual se declara (objecto da declaração). Sem querermos entrar aqui nas divergências da literatura jurídica quanto à determinação de qual seja esse objecto (melhor desenvolvido na obra já citada, fls, 475), entendemos que a falsidade existe quando se verifica uma contradição entre o declarado e a realidade, ou a verdade história dos factos.
Relativamente ao n.º 3 do art.º 360 do CP, para se verificar a prática do facto ilicito é necessário a verificação cumulativa das seguintes circunstâncias:
- O juramento;
- A advertência das consequências penais a que o declarante se expõe feita, com a concreta comunicação da pena dai resultante;
- Por autoridade com competência.
O juramento traduz uma solene afirmação da verdade de uma declaração segundo uma especial forma predeterminada por lei e, regra geral, realizado antes do depoimento (cfr. em processo penal o disposto no art.º 91 do CPP).
Relativamente ao tipo de ilícito estamos perante um crime doloso, em qualquer das suas modalidades. O dolo deve abranger a falsidade da declaração, a competência do tribunal ou funcionário a quem ela é prestada e o seu carácter de meio de prova. Requer-se, em primeiro lugar, a consciência da falsidade da declaração ou de parte dela ou de se estar a silenciar alguma coisa que deveria ser manifestada. Havendo uma declaração positiva, existe dolo quando o agente sabe, com maior ou menor certeza, que o conteúdo da sua declaração é objectivamente falso.
Importa, ainda, a consciência de que a declaração falsa prestada se inclui no âmbito do dever de declarar com verdade.
Cotejando, agora a factualidade provada, temos que no Processo Comum Singular na 23/16.8GCAGD, que corre termos na Secção Criminal da Instância Local de Águeda, C…, filho da arguida, foi condenado, por douta sentença transitada em julgado no dia 17 de Dezembro de 2016, pela prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, por ter conduzido a sua viatura com a matrícula .. - .. - DD na via pública, no dia 23 de Janeiro de 2016, estando proibido de o fazer na sequência da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor que lhe tinha sido aplicada no âmbito do Processo Sumário na 38/15.3GCAGD.
No dia 01 de Junho de 2016, pelas 11.00h, a arguida foi ouvida como testemunha na Secção Única do Departamento de Investigação e Acção Penal de Águeda, no âmbito do Processo Comum Singular na 23/16.8GCAGD, onde afirmou que o filho C… lhe vendeu a viatura referida em 10, no início de Janeiro de 2016, para saldar uma dívida no valor de cerca de €2.200,00 .. Mais disse que, desde essa data, o veículo ficou à sua guarda e que o filho C… nunca mais o utilizou, pelo que não poderia ter sido ele o condutor no dia 23 de Janeiro de 2016.
No dia 03 de Novembro de 2016, pelas 09.30h, em audiência de julgamento, a qual teve lugar na Secção Criminal da Instância Local Criminal de Águeda, a arguida foi novamente ouvida como testemunha, reafirmando que o filho C… lhe vendeu a viatura descrita em 1 ° por conta de uma dívida que tinha para com ela, no início de Janeiro de 2016, e que desde aí o veículo e respectiva chave ficaram na sua posse.
Mais disse que no dia 23 de Janeiro de 2016 era a própria quem conduzia a viatura descrita em 10, tendo saído do seu local de trabalho e seguido em direcção à Rua …, em …, para ir ver uma casa que estava para venda, negando ter sido mandada parar por militares da GNR.
A arguida foi advertida em ambas as inquirições, quer na fase de inquérito, quer na fase do julgamento, de que, caso prestasse depoimento, era obrigada a responder com verdade às perguntas feitas, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, tendo prestado juramento legal.
Não obstante, a arguida prestou depoimento falso, afirmando em ambas as inquirições que ficou na pose do veículo em causa desde o inicio de Janeiro de 2016 e que desde aí foi a sua única utilizadora.
Em sede de audiência de julgamento, a arguida acrescentou que no dia 23 de Janeiro de 2016 era a própria quem conduzia o veículo em causa e não o filho, entretanto condenado por sentença transitada em julgado pela prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições naquele mesmo dia.
A arguida actuou com a intenção concretizada de prestar depoimento falso quando inquirida na qualidade de testemunha, quer em fase de inquérito, quer na fase de julgamento, não obstante ter sida advertida de que caso não falasse com verdade, incorria em responsabilidade criminal, e depois de prestar juramento legal, ciente de que dessa forma colocava em causa a realização da justiça.
Agiu, por isso, livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Com a sua conduta, a arguida, preencheu todos os elementos objectivos e subjectivos do ilicito previsto no art. 360, n.º 1 do CP.
No entanto, a arguida encontra-se acusada também pelo n.º 3, do supra mencionado art.º 360 do CP. E aqui entendemos que já não se podem dar por verificados todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, na medida em que, relativamente ao depoimento prestado em audiência de julgamento, não consta dos autos que tenha sido comunicada, efectivamente, á arguida, que a pena em que incorria é a que consta do n." 3 do art.º 360 do CP, e que a mesma tenha ficado ciente de que, a sua actuação a poderia fazer incorrer em tal pena agravada.
E, salvo melhor opinião, entendemos que não obstante a arguida ter sido advertida em sede de inquérito das consequências penais da falsidade do seu depoimento, com a pena aludida no art.º 360, n.º 3, que a mesma tenha ficado perfeitamente ciente de que tal advertência se aplicava em sede de audiência de julgamento. Até porque a arguida está acusada em concurso efectivo, por ter mentido em dois momentos distintos, ainda que no âmbito do mesmo processo, pelo que se impunha que fosse advertida em ambos os momentos.
Caso assim não fosse, não se perceberia a razão de ser do consagrado no tipo legal de crime, ao autonomizar as condutas descritas no n.º 1 das do n.º 3, impondo nestas últimas uma pena bastante mais severa.
Ou seja, é nosso entendimento, de que para preenchimento do n.º 3 do art.º 360 do CP se mostra necessário a comunicação á arguida das concretas consequências penais da sua conduta, caso não preste depoimento em conformidade com a verdade. Ou seja, a arguida tem de ter concreto conhecimento que a sua conduta pode ser punida com pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias.
Não lhe tendo sido efectivamente comunicada a agravação das consequências penais constantes do n.º 3 supra aludido, entendemos que não se verificam os elementos do tipo objectivo que permita a condenação por esse numero.
Pelo que, se conclui, que a arguida só pode ser condenada pela pratica de um crime de falsidade de depoimento p.p. pelo n.º 1 do art. 360 do CP e um crime de falsidade de depoimento p.p. pelo art.º 360, n.º 1 e 3 do CP”.
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o MºPº pretende suscitar as seguintes questões:
- Prática do crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo art.º 360, n.º 1 e 3 do CP, no depoimento prestado em Audiência;
- Consequente condenação da arguida pela prática de dois crimes de falsidade de testemunho, um p. e p. pelo art.º 360, n.º 1 e 3, e o segundo também p. e p. pelo art.º 360, n.º 1 e 3 do CP .
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Em síntese, ficou provado que num processo que correu termos no Tribunal de Águeda, o filho da arguida foi condenado pela prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, por ter conduzido o seu automóvel na via pública, estando proibido de o fazer na sequência da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor que lhe tinha sido aplicada num outro processo.
Durante o Inquérito a arguida foi ouvida como testemunha e afirmou que o filho lhe vendeu o automóvel em causa, no início de Janeiro de 2016, para saldar uma dívida no valor de cerca de €2 200,00. Mais disse que, desde essa data, o automóvel ficou à sua guarda e que o filho nunca mais o utilizou, pelo que não poderia ter sido ele o condutor no dia 23 de Janeiro de 2016.
Posteriormente, em Audiência de Julgamento, a arguida foi novamente ouvida como testemunha, reafirmando que o filho lhe vendeu o automóvel por conta de uma dívida que tinha para com ela, no início de Janeiro de 2016, e que desde aí o veículo e respectiva chave ficaram na sua posse.
Mais disse que no dia 23 de Janeiro de 2016 era a própria quem conduzia o automóvel, tendo saído do seu local de trabalho e seguido em direcção à Rua …, em …, para ir ver uma casa que estava para venda, negando ter sido mandada parar por militares da GNR.
A arguida foi advertida em ambas as inquirições, quer na fase de inquérito, quer na fase do julgamento, de que, caso prestasse depoimento, era obrigada a responder com verdade às perguntas feitas, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, tendo prestado juramento legal.
Não obstante, a arguida prestou depoimentos falsos em ambas as ocasiões.
Actuou com a intenção concretizada de prestar depoimento falso quando inquirida na qualidade de testemunha, quer em fase de inquérito, quer na fase de julgamento, não obstante ter sida advertida de que caso não falasse com verdade, incorria em responsabilidade criminal, e depois de prestar juramento legal, ciente de que dessa forma colocava em causa a realização da justiça.
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Estava acusada da prática de dois crimes de falsidade de testemunho p.p pelo art.º 360, n.º 1 e 3 do CP.
Segundo se logra extrair da Sentença, a arguida foi condenada pela prática do crime de falsidade de testemunho agravado, quanto ao depoimento prestado em Inquérito.
No respeitante ao depoimento prestado em Audiência entendeu-se que não se podiam “dar por verificados todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, na medida em que não consta dos autos que tenha sido comunicada, efectivamente, á arguida, que a pena em que incorria é a que consta do n." 3 do art.º 360 do CP, e que a mesma tenha ficado ciente de que, a sua actuação a poderia fazer incorrer em tal pena agravada”.
No respeitante a este depoimento foi apenas punida pela prática do crime, na sua forma simples, integrante da previsão do n.º 1 do art.º 360 do CP.
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Discorda o MºPº, delimitando o objecto do seu recurso à parte da decisão que condenou a arguida pela prática do crime de falsidade de depoimento simples, quanto ao depoimento prestado na Audiência de Julgamento.
Argumenta que “o n.º 3 do artigo 360.° do Código Penal não exige a concreta comunicação da pena, bastando o juramento e a advertência das consequências penais a que o declarante se expõe, feita pela autoridade judiciária competente”.
Acrescenta que o fundamento da agravação do n.º 3 do art.º 360 “não resulta da circunstância do agente do crime (in casu, a testemunha) ter conhecimento ou plena consciência da concreta pena que lhe poderá ser aplicada se prestar depoimento falso, mas da gravidade da sua conduta ser maior do que a prevista no n." 1, porquanto, não obstante ter previamente prestado juramento legal, afirmando que iria depor com verdade, e ser advertido das consequências da sua conduta, o agente não se inibe de prestar falso depoimento”.
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Tem toda a razão.
A decisão está errada.
Em primeiro lugar, não se percebe com que base fáctica foi estabelecida a diferenciação em causa, um vez que da matéria provada – e a decisão tem de se ater ao que está provado – resulta que “a arguida foi advertida em ambas as inquirições, quer na fase de inquérito, quer na fase do julgamento, de que, caso prestasse depoimento, era obrigada a responder com verdade às perguntas feitas, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, tendo prestado juramento legal”.
E mais à frente: “a arguida actuou com a intenção concretizada de prestar depoimento falso quando inquirida na qualidade de testemunha, quer em fase de inquérito, quer na fase de julgamento, não obstante ter sida advertida de que caso não falasse com verdade, incorria em responsabilidade criminal, e depois de prestar juramento legal, ciente de que dessa forma colocava em causa a realização da justiça.”
Nenhuma diferenciação è estabelecida entre a forma como foi juramentada e advertida em Inquérito e em Audiência.
Em segundo lugar, contende com o senso comum que a agente do crime seja punida com pena menos grave ao prestar depoimento falso na fase mais importante e decisiva do processo – a Audiência de Julgamento.
Em terceiro e último lugar, o que resulta da concatenação do art.º 360 n.º 3 do CP com as regras processuais respeitantes à prestação da prova testemunhal, os arts.º 132 a 139, o art.º 348 (quanto à inquirição em Julgamento), e art.º 91 (juramento) é que a testemunha depois de identificada, inquirida sobre as suas relações pessoais, familiares e profissionais com os participantes, e do seu interesse na causa, antes de ser juramentada deverá ser advertida que incorre em responsabilidade penal (crime de falsidade de testemunho), se não responder com verdade às perguntas que lhe forem feitas.
É nesse sentido que deve ser interpretada a expressão “consequências penais”, não se impondo a comunicação da pena abstracta aplicável.
Em conclusão, a matéria de facto provada integra a prática, pela arguida em concurso real, de dois crimes de falsidade de testemunho p.e p. pelo art.º 360, n.º 1 e 3 do CP, com prisão de 6 meses a 3 anos ou com multa não inferior a 60 dias.
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Perante esta alteração da qualificação jurídica, há que proceder à determinação da pena em concreto a impôr pela prática do crime de falsidade de testemunho prestado em Audiência.
Assim, e mantendo-se a opção pela pena de multa, fazendo uso dos factores enunciados no art.º 72 do CP, verifica-se o seguinte:
- O grau de ílicitude dos factos é referenciado pela fase processual em que foram praticados – a Audiência de Julgamento e pelo modo e conteúdo do depoimento falso;
- A culpa mostra-se atenuada, face aos laços afectivos decorrentes da relação de filiação;
- As exigências preventivas especiais mostram-se igualmente atenuadas pelo facto de se estar perante condutas singulares num percurso de vida já longo e conforme ao Direito;
- As exigências preventivas gerais mostram-se significativas, perante a necessidade de manutenção da validade das normas que protegem a realização da Justiça e a descoberta da verdade.
Ponderados os enunciados factores com valor atenuante e com valor agravante, fixa-se a pena de 120 dias de multa, à fixada taxa diaria de 6 € (seis euros).
Efectuando o cúmulo jurídico com a pena de 400 dias de multa aplicada ao crime de falsidade de testemunho praticado durante o Inquérito (que não pode ser alterada), mantendo inteira validade os factores acima enunciados, fixa-se a pena única em 480 dias de multa, à referida taxa diária de 6 € (seis euros).
Mostra-se adequado observar que encontrando-se este Tribunal circunscrito ao objecto do recurso, não podendo alterar a pena fixada ao crime de falsidade de testemunho praticado durante o Inquérito (dela a arguida não recorreu, nem o MºPº a pôs em causa), torna-se inviável ultrapassar a incongruência da fixação de uma pena menor para o crime que, como decorre do relatado, se considera mais grave – o praticado em Audiência.
Em conclusão, e porque as respectivas molduras abstractas o permitem, considerando os supra enunciados factores, apesar da arguida ser condenada pela prática de dois crimes de falsidade de testemunho, na forma agravada, mantêm-se as penas parcelar e única impostas.
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Nos termos relatados, decide-se julgar procedente o recurso, alterando-se o dispositivo da Sentença recorrida, pela seguinte forma:
Condena-se a B… pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art.º 360, n.º 1 e 3 do CP, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa á taxa diária de €6 (seis), em concurso real com a prática de prática de um outro crime de falsidade de testemunho, p.e p. pelo art.º 360, n.º 1 e 3 do CP, na pena de 400 (quatrocentos dias de multa) dias de multa á taxa diária de €6 (seis); em cúmulo jurídico na pena única de 480 (quatrocentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6, no total de €2.880 (dois mil oitocentos e oitenta euros).
Mantêm-se no restante o dispositivo da Sentença recorrida.
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Sem custas.
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Porto, 10/10/2018
José Piedade
Airisa Caldinho