Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5246/18.2T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
DEVER DE FIDELIDADE
CASAMENTO
OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
Nº do Documento: RP202110045246/18.2T8MTS.P1
Data do Acordão: 10/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para efeitos de aplicação do regime previsto no art.1792º/1 CC estando em causa a violação do dever de fidelidade, apenas relevam os atos praticados no casamento.
II - A procedência da ação de impugnação da paternidade instaurada pelo presumido pai faz cessar a obrigação de alimentos e exclui o direito à restituição das quantias prestadas junto do credor (criança ou progenitor com a guarda), em obediência ao princípio geral que se extrai do art. 2007º/2 CC, segundo o qual não há lugar à restituição dos alimentos recebidos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RespCivil-Cônjuges-5246/18.2T8MTS.P1
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SUMÁRIO[1]( art. 663º/7 CPC ):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação declarativa que segue a forma de processo comum, em que figuram como:
- AUTOR: B…, residente na Avª. …, bloco ., nº …, Maia; e
- RÉ: C…, residente na rua do …, nº .., Braga,
pede o autor a condenação da ré no pagamento da quantia de €39.552,17 a título de compensação por danos patrimoniais, e de €10. 000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais, quantias acrescidas de juros de mora contados à taxa legal.
Alegou, em síntese, que celebrou casamento com a ré a 10 de Maio de 2008, tendo a 08 de Janeiro de 2009 nascido D…, cuja paternidade o autor aceitou por convicto de ser o pai.
Invoca que autor e ré a 22 de Abril de 2016 acordaram na dissolução do seu casamento por divórcio, sendo incluído no acordo a atribuição da menor D… à guarda do autor, cujas despesas assumiu financeiramente.
Afirma que, tendo decidido proceder a teste de paternidade relativamente à menor, foi surpreendido com o resultado obtido, que exclui qualquer hipótese de o autor ser o pai biológico da menor D….
Invoca que, na sequência, propôs ação de impugnação da paternidade, que correu termos sob o nº 1977/17.2T8MTS pelo Juízo de Família e Menores de Matosinhos, no âmbito do qual foi proferida sentença que declarou não ser o aqui autor o pai da menor D…, com o consequente cancelamento de tal menção no registo.
Declara sentir-se enganado e humilhado pela conduta da ré, que durante 8 anos manteve o autor na errónea convicção de ser pai da D…, vexando-o perante a sua família e comunidade, e motivando a necessidade de o autor receber acompanhamento psicológico.
Afirma que a ré não podia desconhecer que no período legal de conceção da D… manteve relacionamento sexual com outro homem que não o autor, sempre sabendo da possibilidade de a D… ser filha de outro homem que não o autor.
Invoca que toda esta situação desestabiliza emocionalmente o autor, prejudicando a sua concentração, designadamente no trabalho.
Alega que os cuidados que teve com a menor D… prejudicaram a sua carreira profissional.
Invoca ter realizado o pagamento de diversas despesas da menor na pressuposição de ser seu pai, no valor global que quantifica em € 39.552,17, cujo reembolso pretende.
Defende que a ré violou o dever de fidelidade e de respeito que devia ao autor, designadamente não revelando a identidade do pai biológico da menor D… e omitindo ao autor a verdade quanto a essa paternidade, atuando dolosamente.
Pretende a aplicação das normas consagradas nos artigos 483º e 1672º, ambos do Código Civil e o ressarcimento das despesas que efetuou com a criança.

Citada, a ré apresentou contestação, na qual, em súmula, começa por invocar a incompetência territorial do tribunal.
Reconhece a celebração do casamento com o autor e o posterior divórcio, bem como o nascimento da D… e a posterior procedência da ação de impugnação da sua paternidade instaurada pelo autor.
Alega desconhecer, até ao momento em que foi informada do resultado do teste realizado, não ser o autor pai da D…, tendo recebido a notícia com surpresa.
Afirma ter sido o autor a divulgar o facto a terceiros, contribuindo para a exposição pública de que agora se queixa.
Invoca que o acordo na guarda da menor pressupôs, como não poderia deixar de ser, a adesão do autor, que jamais procurou alterar a situação.
Impugna a extensão e verificação dos danos invocados pelo autor.
Afirma que as despesas relativas à D… eram maioritariamente suportadas pelo salário da ré.
Alega que as despesas cujo reembolso o autor reclama foram já apreciadas no âmbito do processo nº 450/17.3T8MTS.
Impugna a violação dos deveres conjugais que o autor lhe imputa.
Admite que a conceção da D… tenha resultado de certas «práticas» levadas a cabo pelo casal pouco antes do matrimónio de autor e ré.
Em sede de reconvenção, afirma ter sido a autora a suportar todas as despesas do agregado familiar, mesmo após o divórcio.
Afirma sentir-se enganada e deprimida com toda esta situação, pretendendo a condenação do autor no pagamento de €10.000,00 a título de danos não patrimoniais.
Invoca a litigância de má fé do autor, por deduzir pretensão cuja falta de fundamento não ignora.
Conclui pedindo:
a) a improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido;
b) a procedência do pedido reconvencional, com a condenação do autor a pagar €20.000,00 à ré; e
c) a condenação do autor, como litigante de má fé, no pagamento de multa e indemnização.

O autor apresentou réplica, na qual, suscitou a ineptidão do pedido reconvencional.
Nega ter por qualquer forma difamado a ré.
Impugna que as despesas do agregado familiar tenham sido suportadas apenas através do salário auferido pela ré. Afirma que a ré sempre negou ter mantido relações sexuais com outro homem.
Devolve à ré o pedido de condenação como litigante de má fé.
Conclui pedindo a declaração de ineptidão do pedido reconvencional, ou, se assim se não entender, a sua improcedência, com a condenação da ré, pela sua litigância de má fé, no pagamento de valor não inferior a €6.000,00.

O valor da ação foi fixado em €59.552,17, e, em consequência, determinou-se a remessa do processo ao juízo central cível da Póvoa do Varzim (cfr. fls 261), que, por sua vez, declarou a sua incompetência territorial, determinando a remessa dos autos a este juízo central cível (cfr fls 267).

Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a nulidade decorrente da ineptidão da reconvenção, bem como, foi julgada improcedente a exceção dilatória de caso julgado, não tendo sido interposto recurso.
Procedeu-se à enunciação do objeto do litígio e à fixação dos temas da prova, não tendo sido apresentada qualquer reclamação.

Instruída a causa, realizou-se a audiência de julgamento.

Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“ Pelo exposto,
I- Julgo a presente ação totalmente improcedente, pelo que, em consequência, absolvo na íntegra a ré C… da totalidade do pedido contra si formulado pelo autor B…;
II- Julgo a reconvenção totalmente improcedente, e, em consequência, absolvo na íntegra o reconvindo B… da totalidade do pedido contra si formulado pela reconvinte C…;
III- Pela sua litigância de má fé, condeno a ré C… no pagamento de multa no valor de 20 Ucs, bem como no pagamento de indemnização ao autor, esta a liquidar em momento ulterior.
Custas da ação a cargo do autor – artigo 527º do Código de Processo Civil.
Custas da reconvenção a cargo da reconvinte – artigo 527º do Código de Processo Civil.
Registe e notifique, sendo as partes ainda, após trânsito em julgado, para os efeitos previstos no nº 3 do artigo 543º do Código de Processo Civil (prazo: 10 dias)”.

A ré veio interpor recurso da sentença.

Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
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Termina por pedir a procedência do recurso e a condenação da ré no pedido.

Não foi apresentada resposta ao recurso.

O recurso foi admitido como recurso de apelação.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- da responsabilidade da ré, com fundamento em responsabilidade pré-contratual (art. 227º CC);
- verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, pela prática de facto ilícito, com fundamento no art. 483º CC, conjugado com o art. 1792º/1 CC;
- se a impugnação da paternidade e a procedência de tal pretensão concedem ao autor o direito a reclamar o reembolso das despesas e encargos realizados com a criança até à data em que foi proferida a sentença.

2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1-Autor e ré contraíram casamento a 10 de Maio de 2008, sem convenção antenupcial [artigo 2º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 6º da contestação; documento que consta de fls 9, verso, e 10].
2- A D… nasceu a 08 de Janeiro de 2009, sendo registada como filha do autor, estando este convicto que seria o pai [artigo 3º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 6º da contestação; documento que consta de fls 10, verso].
3- Autor e ré dissolveram o seu casamento por divórcio, por mútuo consentimento, a 22 de Abril de 2016, no âmbito do processo da conservatória do registo do Porto nº 548/2016 [artigo 4º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 6º da contestação; documento que consta de fls 10 a 15].
4- No âmbito do processo referido em 3- foi acordado que a D…, enquanto a mãe mantivesse a sua residência na República Popular de Angola, permaneceria a residir com o autor, o que já sucedia desde o início de 2013 [artigo 5º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 6º da contestação; documento que consta de fls. 10 a 15].
5- Após a separação entre autor a ré, a D…, a ficou aos cuidados do autor, que assumiu financeiramente as despesas daquela, estando a menor com a mãe em períodos de férias [artigo 6º da petição inicial; matéria não impugnada na contestação].
6- Em 2017 o autor decidiu submeter-se a teste para determinar a paternidade da D…, sendo surpreendido com o resultado obtido – é de 0% a probabilidade de o autor ser pai da D…, e é de 0 o índice de paternidade combinado [artigo 7º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 6º da contestação].
7- Na sequência, o autor intentou ação de impugnação da paternidade, que correu termos pelo juízo de família e menores de Matosinhos (J1) sob o nº 1977/17.2T8MTS, peticionando a declaração judicial de a D… não ser sua filha, com a retificação do assento de nascimento da mesma [artigo 8º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 6º da contestação; documento que consta de fls 16 e 17].
8- A 26 de Abril de 2018 foi proferida sentença no âmbito do processo referido em 7-, que declarou não ser a D… filha do autor, ordenando o cancelamento do registo de nascimento da mesma quanto à paternidade e avoenga paterna [artigo 9º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 6º da contestação; documento que consta de fls 16 e 17].
9- O autor sente-se profundamente traído e humilhado, entendendo ter sido ao longo de 8 anos enganado e trapaceado pela ré, pensando ter uma filha quando tal não era verdade [artigo 10º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 7º da contestação].
10- O autor teve de lidar com a exposição pública do facto de a D… não ser sua filha, obrigando-o a tecer explicações às pessoas das suas relações, fazendo-o sentir-se desolado e completamente vexado perante a sua família e a comunidade [artigo 11º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 7º da contestação].
11- Toda a situação representa para o autor (e representará durante toda a sua vida) grande transtorno a nível emocional, uma vez que o autor sente profunda tristeza, deceção, frustração e depressão, tendo necessitado de acompanhamento psicológico [artigos 12º, 13º, 23º, 24º e 49º da petição inicial; matéria expressamente impugnada nos artigos 7ºe 8º da contestação].
12- A ré não desconhecia que no período legal de conceção da D… havia mantido relações sexuais com outro homem [artigo 14º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 7º da contestação].
13- A ré sempre soube da possibilidade de a D… não ser filha do autor, a este nada dizendo a esse propósito [artigo 15º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 7º da contestação].
14- O autor, que esteve a exercer a sua atividade profissional na República Popular de Angola durante uma temporada até Dezembro de 2012, a partir daí rejeitou propostas para trabalhar no exterior por forma a acompanhar e educar a D… que acreditava ser sua filha, pelo mesmo motivo não tendo investido na sua carreira profissional [artigo 17º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 8º da contestação].
15- Entre 2014 e 2016 o autor recusou convites da sua entidade patronal para participar em projetos fora da sua área de residência forma a acompanhar e educar a D… [artigo 18º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 8º da contestação].
16- Por, a partir de Janeiro de 2013, o autor ter passado a acompanhar a D…, encontrando-se a ré a residir e trabalhar no estrangeiro, necessitou controlar cuidadosamente o seu horário, desenvolver atividade profissional em horário pos-laboral, e não participou em ações de formação [artigos 19º a 22º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 7º da contestação].
17- Entre 2014 e 2017 foram realizadas diversas despesas com a alimentação, habitação, vestuário, educação, saúde e lazer da D…, no valor global de pelo menos €39.552,17, pagas através da conta bancária nº …….-…-…, do “E…, SA” [artigos 26º e 27º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 7º da contestação].
18- O autor realizou e/ou consentiu nos pagamentos referidos em 17- por estar convicto de ser pai da D… [artigos 25º, 28º e 29º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 7º da contestação].
19- Autor e ré eram os titulares da conta bancária referida em 17-, que era aprovisionada, designadamente, com o valor dos vencimentos auferidos por autor e ré [artigos 25º e 40º da contestação].
20- Durante um período a D… residiu com os pais do autor, a quem autor e ré pagavam a quantia mensal de €300,00 por tal facto [artigos 35º e 36º da contestação].
21- Uma pessoa familiar da ré residiu em casa da ré e do autor por forma a auxiliar este a cuidar da D… [artigo 37º da contestação].
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Factos Não Provados
Não resultou provado, com relevo para a decisão a proferir, que:
a-o autor sinta dificuldade e dormir e em conseguir concentrar-se no seu trabalho [artigos 12º e 16º da petição inicial; matéria expressamente impugnada nos artigos 7º e 8º da contestação];
b- antes da realização do exame referido em 6- para a ré fosse certo que o autor não era pai biológico da D…, e que tenha decidido ocultar essa informação ao autor [artigo 36º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 7º da contestação];
c- a própria ré desconhecesse que a D… não é filha do autor; e que tenha recebido essa notícia com surpresa e estranheza, sentindo-se enganada [artigos 10º, 11º, 17º e 46º da contestação];
d- a autora nada gastasse das quantias depositadas na conta bancária referida em 17-; que fosse apenas o autor a gerir tal conta, sem dar conhecimento à ré dos movimentos que fazia; e que o autor tenha vedado o acesso da ré a tal conta [artigos 25º a 30º da contestação];
e- a ré nunca tenha traído o autor [artigo 42º da contestação];
f- o nascimento da D… tenha ocorrido em consequência de “práticas sexuais” levadas a cabo por autor e ré, em conjunto, antes do matrimónio [artigos 47º, 48º, 58º e 59º da contestação; matéria expressamente impugnada nos artigos 23º a 34º da réplica];
g- a ré jamais tenha colocado a hipótese de a D… não ser filha do autor [artigos 50º e 51º da contestação];
h- as despesas com a casa ainda hoje pertença de autor e ré, antes e depois do divórcio, tenham sido sempre apenas suportadas com o produto do trabalho desta [artigos 63º e 76º da contestação; matéria expressamente impugnada nos artigos 19º a 21º da réplica];
i- a autora se sinta enganada e deprimida em consequência de facto praticado pelo autor [artigo 77º da contestação];
j- o autor tenha «difamado» e «enxovalhado» a ré [artigo 80º da contestação; matéria expressamente impugnada no artigo 14º da réplica].

3. O direito
- Da responsabilidade pré-contratual -
Nas conclusões de recurso, sob as alíneas A) a M), insurge-se o apelante contra a decisão, por considerar que os factos apurados são suscetíveis de enquadramento em sede de responsabilidade pré-contratual, ao abrigo do disposto no art. 227º CC.
Cumpre ter presente que o apelante funda a sua pretensão na responsabilidade civil, pela prática de facto ilícito, ao abrigo do disposto no art. 483º CC conjugado com o art. 1672º CC, considerando que a conduta ilícita decorre da violação dolosa dos deveres de fidelidade e de respeito e violação dos direitos de personalidade do próprio, por descoberta da fraude da paternidade. Para sustentar a sua pretensão faz apelo ao Ac. Rel. Évora 26 de janeiro de 2017, Proc. 18/16.1TBSRP.E1 (acessível em www.dgsi.pt).
Apenas em sede de recurso vem invocar o instituto da responsabilidade pré-contratual, sem outros fundamentos que a mera invocação do preceito legal.
O recurso consiste no pedido de reponderação sobre certa decisão judicial, apresentada a um órgão judiciariamente superior ou por razões especiais que a lei permite fazer valer[2] . O recurso ordinário (que nos importa analisar para a situação presente) não é uma nova instância, mas uma mera fase (eventualmente) daquela em que a decisão foi proferida.
O recurso é uma mera fase do mesmo processo e reporta-se à mesma relação jurídica processual ou instância[3]. Dentro desta orientação tem a nossa jurisprudência[4] repetidamente afirmado que os recursos visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova.
O tribunal de recurso vai reponderar a decisão tal como foi proferida.
Podemos concluir que os recursos destinam-se em regra a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, apenas se excetuando: o caso da verificação de nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia (artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC); a existência de questão de conhecimento oficioso; a alteração do pedido, em segunda instância, por acordo das partes (artigo 272º do CPC); e a mera qualificação jurídica diversa da factualidade articulada.
Verifica-se que os novos argumentos e factos que o apelante vem introduzir nas conclusões do recurso não podem ser considerados, por constituírem novos fundamentos da sua pretensão.
Se os novos factos e os novos fundamentos de sustentação da defesa resultaram da discussão da causa, recaía sobre as partes, ao abrigo do art. 5º/3 CPC, suscitar junto do tribunal “a quo“, a sua consideração em sede de decisão, o que também não ocorreu.
Conclui-se, assim, nos termos do art. 627º CPC que nenhuma relevância merece, nesta sede, os novos fundamentos e factos (alínea J)) que o apelante vem alegar, pois os mesmos não foram considerados na decisão objeto de recurso e não são de conhecimento oficioso, sendo certo que ao tribunal de recurso apenas cumpre reapreciar as matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal “a quo“ ficando por isso vedado a apreciação de novos fundamentos de sustentação do pedido (matéria não anteriormente alegada). Tal como o juiz da 1ª instância, em sede de recurso, o tribunal “ad quem“ está limitado pelo pedido e seus fundamentos e pela defesa tal como configurados na ação, motivo pelo qual está impedido de conhecer do objeto do recurso nesta parte.
Improcedem, assim, as conclusões de recurso sob as alíneas A) a M).

- Da responsabilidade civil pela prática de facto ilícito
Nas conclusões de recurso, sob as alíneas N) a X), o apelante insurge-se contra o segmento da decisão que julgou improcedente o pedido de indemnização por danos morais, com fundamento em responsabilidade civil pela prática de facto ilícito, por considerar que está demonstrada a culpa da ré.
Como se referiu o apelante veio formular a sua pretensão com base no regime previsto no art. 1672º/1 CC, conjugado com o art. 483º CC, invocando a violação dos deveres de fidelidade e de respeito, os quais em seu entender consubstanciam também a violação dos direitos de personalidade pela descoberta da fraude da paternidade (art. 33º da petição).
Na sentença ponderando os factos provados à luz dos aludidos normativos concluiu-se que não estavam reunidos os pressupostos da responsabilidade civil, com os seguintes fundamentos:
“Afirma o autor que a conduta da ré ilegitimamente contendeu com os deveres de respeito e fidelidade a que estava obrigada.
O dever de fidelidade traduz a obrigação mútua de lealdade que os cônjuges reciprocamente assumem, e possui como núcleo essencial a obrigação de não manter relações de sexo com pessoa diferente do cônjuge.
O dever de respeito, concretização do dever geral de, na perspetiva negativa, não ingerência ilegítima na esfera privada de cada um, na perspetiva positiva, de assegurar tratamento condigno com a condição de pessoa igual entre todos, maior importância assume nas relações entre cônjuges – baseando-se o casamento na igualdade entre os cônjuges enquanto pessoas, e pertencendo a ambos a direção da família (artigo 1671º do Código Civil), a violação do dever de respeito ao marido ou à mulher encerra a própria negação do casamento enquanto ato de partilha de vida.
Escusado será dizer que os deveres jurídicos em causa [e convém realçar nos autos estar apenas em análise a anti-juridicidade de uma conduta, e nunca a sua (i)moralidade], efeitos pessoais do casamento, apenas existem após a celebração deste – é o que sem dificuldade se retira dos artigos 1576º e 1577º, ambos do Código Civil.
Não há qualquer dúvida que o autor não é o pai da D.. – pontos 6- a 8- da matéria de facto provada.
Mas o nascimento desta ocorreu a 08 de Janeiro de 2009 – ponto 2- da matéria de facto provada.
Sendo o momento da conceção, para efeitos legais, por princípio fixado dentro dos primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o nascimento (artigo 1798º do Código Civil), facilmente constatamos que o início do período legal de concepção da D… deve ser fixado a 14 de Março de 2008 e o seu termo a 12 de Julho de 2008.
Autora e réu casaram a 10 de Maio de 2008 [ponto 1- da matéria de facto provada], pelo que, desconhecendo-se a concreta data do ato sexual que esteve origem do nascimento, inexiste mínima certeza que a conceção da D… tenha ocorrido após o casamento.
Consequentemente, com segurança mínima não podemos afirmar que teve lugar a violação do dever jurídico de fidelidade consagrado no artigo 1672º do Código Civil que o autor invoca e que apresenta como um dos fundamentos do pedido de indemnização que formula.
Ou seja, considera-se manifesta a não demonstração do dever de fidelidade da ré ao autor após a celebração do casamento – e é a data deste, como se disse, a única que releva para o que agora nos ocupa.
Em segundo lugar defende o autor que a intencional manutenção do autor em erro quanto à paternidade da D…, durante mais de 8 anos, traduz inadmissível violação do dever de respeito que à ré incumbia respeitar.
A ter-se demonstrado que a atuação da ré foi intencional, seguramente concordar-se-ia com o autor.
Mas tal não sucedeu – ponto b- da matéria de facto provada.
E, verdade seja dita, no caso em apreço não se vê possível a demonstração dessa intencionalidade senão através de confissão – pelo simples motivo de o casamento entre autor e ré ter ocorrido precisamente a meio do período legal de conceção da D…, e o próprio autor em audiência e julgamento ter reconhecido que manteve relacionamento sexual com a ré antes (durante anos) e depois do casamento.
Isto é, não há dúvida (de acordo com o que se considera a absoluta normalidade do acontecer) que a ré teve consciência de manter relacionamento sexual com outro homem que não o autor durante o período legal de conceção da D…, embora não se saiba bem se antes se depois do casamento.
Mas também não há dúvida que no mesmo período manteve relacionamento sexual com o autor.
A ré seguramente admitiu como possível ou provável não ser o autor pai da D… (pontos 12- e 13- da matéria de facto provada); mas também não pode deixar de ter admitido que o era.
Pelo que, sem mais qualquer elemento, de todo não se vê como possível afirmar a certeza que o autor defende.
Existindo dúvida razoável, e na medida em que autor e ré, em 2008, aparentemente entre si viviam felizes a ponto de decidirem encetar um projeto de vida em comum, não se vê, salvo sempre melhor opinião, que o calar da dúvida sobre a paternidade da D… nascida em pleno casamento traduza violação do dever de respeito para com o outro cônjuge.
Nesta parte improcede a ação”.
Considera, porém, o apelante que está demonstrada a culpa da apelada.
A questão que cumpre apreciar consiste em determinar se estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil pela prática de facto ilícito, que justifique a atribuição ao autor da indemnização peticionada, a título de danos morais.
O art. 1792º CC, com a redação introduzida pela Lei 61/2008 de 31 de outubro, passou a prever no nº1 do preceito que ”o cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns”.
Contudo, a introdução de tal regime veio dividir a doutrina a respeito do tipo de ilícito em causa, danos passíveis de serem indemnizados e tipo de responsabilidade civil em causa.
Associado aos deveres conjugais, a doutrina reconhecia o “princípio da fragilidade da garantia” no sentido das regras da responsabilidade civil não serem aplicáveis à violação dos direitos familiares pessoais[5].
Perante o novo regime, um sector da doutrina, onde se inclui RITA LOBO XAVIER veio defender que a nova norma determinou a queda da doutrina da fragilidade da garantia, por se entender que o preceito passou a admitir que um cônjuge possa ser obrigado a indemnizar o outro em virtude da violação dos deveres conjugais.
Refere esta AUTORA:”[p]arece-me evidente que uma lei que define e promove o cumprimento de determinados deveres conjugais, em ordem à criação dos benefícios a eles associados, e depois não obriga quem os violou à reparação dos danos resultantes dessa violação, contribui para que tais comportamentos não sejam verdadeiramente assumidos pelos cônjuges. Não haverá coerência na disciplina legal que promova tais atitudes durante o casamento e as infirma no momento do divórcio”[6].
Para um outro grupo de juristas, onde se inclui GUILHERME DE OLIVEIRA, “[a]dissolução do casamento assenta num princípio de rutura objetiva, baseada em factos que mostram a cessação definitiva do projeto matrimonial. Sendo assim, não se procura um culpado nem um principal culpado; nem um inocente, que possa ser considerado o lesado e, portanto, o titular de um direito de indemnização pela violação dos deveres conjugais.
[…] O art. 1792º vigente, porém, prevê que possa haver lugar a responsabilidade civil, nos termos gerais. Ou seja: é verosímil que certos factos praticados por um cônjuge constituam ilícitos civis, violações dos direitos de personalidade do outro cônjuge, dignos de tutela do Direito.
[…] Os ilícitos que podem fundamentar uma obrigação de indemnizar[…]não resultam da mera violação de deveres especificamente conjugais; os ilícitos resultam da violação de deveres gerais de respeito, de ofensas a direitos de personalidade e a direitos fundamentais”[7].
Nesta linha de entendimento a violação de direitos especificamente matrimoniais pode justificar no seio da relação a rutura do casamento, mas não fundamentam, só por si, uma ação de indemnização por responsabilidade extracontratual a correr os seus termos nos tribunais comuns.
Abordaram estas questões, entre outros, os Ac. STJ 12 de maio de 2016, Proc. n.º 2325/12.3TVLSB.L1.S1, Ac. Rel. Lisboa 29 de setembro de 2020, Proc. 288/18.0T8SNT.LI-7, Ac. Rel. Porto 26 de setembro de 2016, Proc. 7191/15.4T8VNG.P1, Ac. Rel. Porto 09 de fevereiro de 2017, Proc. 1603/16.7T8VNG.P1 (todos acessíveis em www.dgsi.pt).
O apelante contornando esta querela instaurou a presente ação, com fundamento na violação de deveres conjugais – o dever de fidelidade e de respeito – e ainda, com fundamento em violação dos direitos de personalidade, invocando danos na saúde e a ofensa ao direito ao desenvolvimento da personalidade, cuja indemnização peticiona ao abrigo do art. 483º CC.
Configurada a ação em sede de responsabilidade extracontratual, constituem pressupostos da obrigação de indemnizar a prática de um facto, ilícito, imputável a título de dolo ou mera culpa, causador de prejuízos, existindo entre o facto e o dano um nexo de causalidade.
O elemento básico da responsabilidade é o facto do agente – um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana. Contudo, apenas o facto ilícito é suscetível de censura.
O facto é ilícito, nomeadamente, quando se traduz na violação do direito de outrem. Os direitos subjetivos aqui abrangidos são principalmente, os direitos absolutos,nomeadamente os direitos sobre as coisas ou direitos reais, os direitos de personalidade, os direitos familiares e a propriedade intelectual.
Por outro lado, para que o facto ilícito gere responsabilidade é necessário que o autor tenha agido com culpa, o que significa atuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito: o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo.
Por fim, para haver obrigação de indemnizar é condição essencial que haja dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém e ainda que se verifique existir um nexo de causalidade entre o facto e o dano[8].
Recai sobre o lesado o ónus da prova dos factos constitutivos da obrigação de indemnizar – art. 487º CC.
No caso presente, considerando os factos provados, cuja decisão não foi objeto de impugnação, é de concluir que a decisão não merece censura.
O apelante insurge-se contra o decidido com apoio em factos que não se provaram, extraindo indevidas ilações de factos julgados não provados, para concluir pela violação do dever de fidelidade e culpa da apelada.
O dever de fidelidade constitui um dos deveres típicos do casamento e que vincula os dois cônjuges (art. 1672º CC).
Representa uma limitação à liberdade sexual dos cônjuges, mas uma limitação lícita por eles assumida ao celebrar casamento.
O dever de fidelidade tem na sua génese a ideia de comunhão de vida em exclusividade entre os cônjuges e que se expressa numa dimensão física e sexual e numa dimensão espiritual da comunhão de vida exclusiva entre os cônjuges.
Como refere ROSA CÂNDIDO MARTINS[9] “o dever de fidelidade visa proteger a exclusividade física e sexual, proibindo qualquer tipo de relações sexuais consumadas com terceiro tidas com consciência da violação dessa exclusividade”.
A ilicitude do adultério só pode ter sentido dentro do casamento e por causa do casamento. A sua existência não radica em qualquer direito da pessoa por o ser, em qualquer direito de personalidade[10]. A violação deste dever só faz sentido dentro do casamento, como se referiu na sentença recorrida.
Argumenta o apelante com os factos provados sob o ponto 13 e alíneas c), f) e e) dos factos não provados e ainda, factos alegados pela ré no âmbito do Proc. nº 1977/17.2T8MTS, Juízo de Família e Menores de Matosinhos - Juiz 1, para demonstrar a culpa da apelada.
Os factos alegados pela apelada no âmbito do processo que julgou a ação de impugnação da paternidade não relevam, porque o julgamento recai apenas sobre os factos alegados no âmbito desta ação. A decisão proferida naquele processo releva em sede de autoridade do caso julgado.
No ponto 13 julgou-se provado:
13- A ré sempre soube da possibilidade de a D… não ser filha do autor, a este nada dizendo a esse propósito [artigo 15º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 7º da contestação].
Contudo, tal facto em nada releva para demonstrar o juízo de ilicitude e culpa, por daqui não resultar que a apelada sabia que o autor não era o pai biológico e sobre esta matéria o autor não logrou provar os factos que alegou, como seja a matéria da alínea b) dos factos não provados, onde se consignou:
“b) antes da realização do exame referido em 6- para a ré fosse certo que o autor não era pai biológico da D…, e que tenha decidido ocultar essa informação ao autor [artigo 36º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 7º da contestação]”.
Acresce que não resultou provado que a criança tenha sido concebida na constância do matrimónio, porquanto o período legal de conceção se iniciou em data anterior à data em que foi celebrado o casamento, sendo certo que antes do matrimónio o autor já mantinha relações sexuais de cópula completa com a ré.
Porém, apenas com o matrimónio nasce o dever de fidelidade e a dúvida sobre a concreta data da conceção da criança impede qualquer juízo de censura com fundamento em violação do dever de fidelidade.
O dever de respeito, que assume caráter residual, está no caso concreto ancorado no dever de fidelidade, pois não se provaram factos que revelem que a apelada tenha adotado um comportamento suscetível de violar tal dever (como dando publicidade aos factos de forma vexatória para o autor).
Nas alíneas c), e) e f) dos factos não provados, consignou-se:
c- a própria ré desconhecesse que a D… não é filha do autor; e que tenha recebido essa notícia com surpresa e estranheza, sentindo-se enganada [artigos 10º, 11º, 17º e 46º da contestação];
e- a ré nunca tenha traído o autor [artigo 42º da contestação];
f- o nascimento da D… tenha ocorrido em consequência de “práticas sexuais” levadas a cabo por autor e ré, em conjunto, antes do matrimónio [artigos 47º, 48º, 58º e 59º da contestação; matéria expressamente impugnada nos artigos 23º a 34º da réplica].
A resposta “não provado” equivale à não alegação do facto não provado, fazendo jogar as regras do ónus da prova[11]. O facto de não se provarem os factos enunciados, não significa que se provou o seu oposto. Tais factos são uma inexistência jurídica.
Resta referir, perante o alegado sob a alínea Z), que não resulta dos factos provados que a ré tenha afirmado “que ele e apenas ele pode ser o pai da criança”.
Por outro lado, o apelante fundamentou a sua pretensão, como já se referiu, na violação de deveres conjugais associado à violação de direitos de personalidade, com uma dimensão que não concretizou, quando é o próprio a afirmar “não existir uma obrigação legal de revelação da identidade do pai biológico” (art. 34º petição).
Contrariamente ao alegado pelo autor-apelante não resulta dos factos provados que a criança foi concebida na constância do matrimónio e que a apelada agiu bem sabendo que a criança não era filha do apelante e que omitiu ao autor o conhecimento desse facto e pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo.
Não resulta demonstrado que agiu de forma ilícita e culposa.
Conclui-se, assim, que a decisão não merece censura, por não resultarem demonstrados os pressupostos da responsabilidade civil, pela prática de facto ilícito.
Improcedem as conclusões de recurso, sob as alíneas N) a X), Z).

- Da indemnização devida por encargos e despesas com a criança
No ponto Y das conclusões de recurso o apelante insurge-se contra o segmento da sentença que julgou improcedente o pedido de indemnização, com fundamento em restituição dos valores despendidos com despesas com a criança.
Na sentença fundamentou-se a decisão nos seguintes termos:
“O autor, entre 2009 e pelo menos 2017, suportou diversas despesas relativas à D… no pressuposto de esta ser sua filha biológica.
Estando demonstrado que não o era, pretende agora o autor reaver da ré pelo menos parte das quantias por si pagas.
Mas, salvo sempre o devido respeito, sem razão.
Em primeiro lugar, para não desfocar o cerne da questão, repete-se que o que o autor pretende é o reembolso das quantias que despendeu para fazer face a despesas com a menor D….
Entre 2009 e 2017 esteve legal e registralmente definida a paternidade da D…, sendo atribuída ao aqui autor.
Assim, entre 2009 e 2017 o autor esteve vinculado a prestar assistência à D…, no que se incluía o dever de prestar alimentos (nº 1 e 2 do artigo 1874º do Código Civil), ou seja, de prover ao sustento, habitação, vestuário, instrução e educação da D… (artigo 2003º do Código Civil).
E a sentença proferida no âmbito do processo nº 1977/17.2T8MTS, que declarou não ser a D… filha do autor, não afastou esta realidade – isto é, que entre 2009 e 2017 a D… estava ao cuidado e a cargo do autor.
Ora, assim como os poderes e deveres da filiação apenas são atendíveis se esta se encontrar legalmente estabelecida (nº 1 do artigo 1797º do Código Civil; artigo 2º do Código do Registo Civil), a cessação de tais poderes e deveres apenas é atendível após o cancelamento da relação de filiação.
Consequentemente, os alimentos são devidos apenas após a propositura da ação (artigo 2006º do Código Civil), o que pressupõe, no caso de obrigação alimentar fundada na relação de filiação, que esta esteja já fixada; e, corolário, apenas o cancelamento da relação de filiação acarreta a cessação da obrigação de prestar alimentos.
Como ensinava o Prof. Pereira Coelho, «(…) as mesmas razões que justificam o princípio de que não são devidos alimentos quanto ao passado justificarão, também, que não haja obrigação de restituir os alimentos já recebidos antes daquela declaração ou, pelo menos, antes de ser pedida a extinção ou redução de alimentos» [“Curso de Direito da Família”, volume I, Direito Matrimonial, tomo 2º, página 364, nota (1) – veja-se, sempre neste sentido, a posição de Moitinho de Almeida, “Os Alimentos no Código Civil de 1966”, in ROA, 1968, página 104; e Remédio Marques, “Algumas Notas Sobre Alimentos (devidos a menores)”, Coimbra Editora, tomo II, páginas 336 e 337; e ainda o decidido pelo STJ no seu acórdão de 07 de Maio de 1963 (publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 127, página 145), e ainda a fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de Maio de 2006, disponível em www.dgsi.jtrl.pt/].
E entende-se que a regra enunciada no nº 2 do artigo 2007º do Código Civil constitui concretização desde princípio geral de não restituição do valor dos alimentos já prestados.
Ou seja, segundo doutrina e jurisprudência pacíficas, em qualquer caso não há lugar à restituição do valor dos alimentos prestados antes do cancelamento da filiação, na medida em que traduzem cumprimento de obrigação nessa data existente.
Não assistindo ao autor o direito a exigir da D… o valor que despendeu para prover ao sustento desta, não se vislumbra mínimo fundamento jurídico para afirmar tal direito perante a ré, que afinal não foi a beneficiária (pelo menos direta) das prestações do autor.
O pedido improcede também nesta parte”.
Não podemos deixar de acompanhar tais fundamentos, quando além do mais o apelante não contrapõe qualquer argumento válido, limitando-se a tecer considerações sem sustentação nos factos provados.
Na senda do decidido, é de concluir que cessa a obrigação de prestar alimentos com o trânsito em julgado da sentença que julgue procedente um pedido de impugnação da paternidade, porque “o carecido perde o status de filho relativamente ao outrora obrigado”[12]. De igual forma, “fica excluída a possibilidade de o impugnante pedir a restituição das quantias entregues ao menor – ou ao progenitor com guarda, para custear as despesas com aquele -, já que a sentença produz efeitos “ex nunc”[13].
Este entendimento justifica-se à luz do princípio geral que decorre da norma prevista para os alimentos provisórios no art. 2007º/2 CC. Assim de acordo com tal princípio todas as prestações de alimentos já cumpridas no passado não são objeto de restituição, ainda que se venha a revelar indevido o cumprimento[14].
Neste sentido se pronunciaram, entre outros, os Ac. Rel. Lisboa 10 de outubro de 2006, Proc. 3484/2006-7 e o Ac. Rel. Guimarães 25 de janeiro de 2006, Proc. 2498/05-2 (ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
Tais considerações expressam a realidade dos presentes autos e justificam que não se reconheça o direito ao reembolso das quantias despendidas com o sustento e cuidados prestados à criança até à data em que foi proferida a sentença que julgou procedente a ação de impugnação da paternidade.
Improcede a alínea Y) das conclusões de recurso.

Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença.

Custas a cargo do apelante.
*
Porto, 04 de outubro de 2021
(processei e revi – art. 131º/6 CPC )
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
________________________________________________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] CASTRO MENDES Direito Processual Civil – Recursos, ed. AAFDL, 1980, pag. 5.
[3] CASTRO MENDES, ob. cit., pag. 24-25 e ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil, vol V, pag. 382, 383.
[4] Cfr. os Ac. STJ 07.07.2009, Ac. STJ 20.05.2009, Ac. STJ 28.05.2009, Ac. STJ 11.11.2003 Ac. Rel. Porto 20.10.2005, Proc. 0534077 Ac. Rel. Lisboa de 14 de maio de 2009, Proc. 795/05.1TBALM.L1-6; Ac. STJ 15.09.2010, Proc. 322/05.4TAEVR.E1.S1( http://www.dgsi.pt )
[5] Cfr. CLARA SOTTOMAYOR (Coord.) CÓDIGO CIVIL ANOTADO – Livro IV, Direito da Família, Almedina, Coimbra, 2020, pag. 570
[6] LUÍS COUTO GONÇALVES, (Coord), Rita Lobo Xavier “Liberdade Individual e Responsabilidade no Novo Regime do Divórcio” Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Henrich Ewald Horster, Edições Almedina, SA, Coimbra, dezembro 2012, pag. 510
[7] GUILHERME DE OLIVEIRA Responsabilidade Civil Por Violação dos Deveres Conjugais, Lex Familiae, Ano 16, nº 31-32 (2019), disponível para consulta na internet com a seguinte entrada responsabilidade-civil-por-violação-dos-deveres-pdf., pag. 32 a 36
[8] Cfr. JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA Das Obrigações em Geral“, vol. I, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 1980, pag. 417
[9] Cfr. CLARA SOTTOMAYOR (Coord.) CÓDIGO CIVIL ANOTADO – Livro IV, Direito da Família, ob cit., pag. 204
[10] GUILHERME DE OLIVEIRA Responsabilidade Civil Por Violação dos Deveres Conjugais, ob. cit., pag. 34
[11] JOSÉ LEBRE DE FREITAS Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pag. 630
[12] J. P.REMÉDIO MARQUES, Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos a Menores), 2ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pag. 373
[13] J. P.REMÉDIO MARQUES, Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos a Menores), pag. 373
[14] Cfr. ANA PRATA (Coord) Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, Almedina, Coimbra, outubro de 2019, pag. 927