Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4461/21.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: PROCURAÇÃO
RELAÇÃO SUBJACENTE
CADUCIDADE DO MANDATO
Nº do Documento: RP202306134461/21.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 06/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Procuração é o negócio jurídico unilateral, por meio do qual alguém - o dominus - atribui a outrem - o procurador - poderes para que este celebre negócios ou pratique outros atos jurídicos em sua representação e o substitua, assim, na prática desses atos ou negócios.
II - Por regra, a procuração reflete tão só/ou exclusivamente o interesse do dominus, não obstante existir intervenção da vontade do procurador no domínio da concretização do interesse do dominus a que está vinculado.
III - Há que indagar na relação subjacente à outorga da procuração – qual o conteúdo, âmbito e modo de exercício desses poderes de representação, sendo também dela que se infere qual o interesse do dominus, ou seja, quais os fins ou objetivos que pretende atingir com a constituição desse procurador.
IV - Por regra, e como é o caso subjudice, a relação subjacente à outorga da procuração advém de um contrato de mandato – aquele em que uma parte se obriga a praticar atos jurídicos por conta de outrem, cfr. art.º 1157.º do C.Civil.
V - No n.º 3 do art.º 265.º do C.Civil prevê-se a situação da outorga da procuração no interesse comum do dominus e do procurador – e a sua principal consequência é a sua irrevogabilidade.
V - O interesse do procurador que é revelante para a caracterização da procuração como irrevogável – denominado interesse primário – há de ser aferido na perspetiva da execução do negócio que constitui a relação subjacente à outorga da procuração.
VI - O interesse primário relevante deverá ser próprio, específico, objetivo e direto na execução do negócio que constitui a relação subjacente, de tal modo que o procurador tenha uma posição própria no âmbito da relação de representação, uma posição autónoma da posição da pessoa que representa.
VII - A regra da caducidade do mandato pela morte do mandante, dado o carácter pessoal da relação de mandato, cede quando está inserido numa relação subjacente a uma procuração irrevogável – ocorrendo a eficácia post mortem do dominus.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 4461/21.6 T8VNG. P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 1

Recorrentes/ Recorridos – AA, BB e CC

Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Ana Lucinda Cabral
Desemb. Rodrigues Pires




Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)

I – CC intentou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia a presente ação declarativa comum contra, AA e BB, ambos na qualidade de herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de DD, pedindo que:
- seja reconhecido o abuso de direito por parte dos réus;
- seja decretada a nulidade do registo do imóvel sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...36, da freguesia ..., inscrito na matriz sob o art.º ...59;
- seja ordenado o consequente cancelamento da inscrição da aquisição do direito de propriedade incidente sobre o referido prédio a favor de AA e BB, pela Ap. ...22 de 2020/07/03;
- sejam os réus condenados a proceder à entrega imediata do imóvel ao autor e a absterem-se de praticar quaisquer atos que perturbem a posse, uso e fruição do imóvel, por parte do autor;
- sejam cada um dos réus condenados a pagar ao autor a quantia de €10.000,00 a título de danos não patrimoniais.
Alegou, para tanto e em síntese, que os réus, na sequência do óbito de DD, de quem eram únicos herdeiros instituídos por testamento, após habilitação, registaram em seu nome um imóvel que não integrava o acervo hereditário, porquanto, no ano de 2008, os proprietários do imóvel haviam outorgado procuração irrevogável a favor do autor que passou a titular os poderes para alienar o imóvel; a partir dessa ocasião o autor passou a exercer todos os atos correspondentes ao direito de propriedade, facto de que os réus tinham conhecimento, tendo registado o imóvel em seu nome com o objetivo de se locupletarem de um bem que sabiam não pertencer à herança, desse modo dando causa a prejuízos na pessoa do autor.
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Pessoal e regularmente citados, os réus vieram deduzir contestação pedindo a improcedência da ação.
Para tanto, excecionaram a caducidade e a nulidade/invalidade do mandato conferido pela procuração outorgada.
Mais impugnaram a matéria alegada na petição inicial, invocando em seu benefício a presunção de propriedade decorrente do registo.
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Notificado para vir responder por escrito às exceções arguidas, veio o autor pugnar pela validade do mandato, cujo interesse comum sustenta, pugnando pela sua irrevogabilidade, bem como pela sua eficácia após a morte dos mandantes, mantendo, no mais, o alegado na petição inicial.
Pediu a improcedência das exceções.
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Foi dispensada a realização de audiência prévia, foi fixado o valor da ação, foi ainda certificada a validade e regularidade da instância, fixado o objeto do litígio, elencados os factos assentes e enunciados os temas de prova.
Os réus reclamaram relativamente ao objeto do litígio e aos temas de prova, a que o autor respondeu, tendo aquela sido deferida parcialmente no que ao objeto do litígio respeitava.
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Realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença de onde consta: “Nos termos e fundamentos expostos, julgo a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, reconhecendo a validade e irrevogabilidade da procuração outorgada ao autor e atuando os seus efeitos:
1) por invalidade substantiva do registo, determino o cancelamento da inscrição da aquisição do direito de propriedade a favor dos réus sobre o imóvel registado na 1.ª Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...11, freguesia ... efetuado pela Ap. ...22 de 2020/07/03, convertido em definitivo pela Ap. ...59 de 2020/09/25;
2) Absolvo os réus do demais peticionado pelo autor.
Custas a cargo de autor e réus na proporção dos respetivos decaimentos, que se fixam em ¾ para o autor e ¼ para os réus.
Registe e Notifique.”.


Inconformados com tal decisão, dela vieram ambas as partes recorrer de apelação pedindo os réus/apelantes a sua revogação e substituição por outra que julgue a ação totalmente improcedente.
Os réus/apelantes juntaram aos autos as suas alegações onde formulam as seguintes e manifestamente prolixas conclusões:
Quanto à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto
O facto f) dos provados
1. Foi julgado provado que: f) Na sequência da outorga da procuração aludida em e), o autor emitiu a favor de EE, com data de 2008.12.30, dois cheques no valor individual de €87.290,00, num total de €174.580,00, quantia que este recebeu e fez sua.
2. Tal facto encontra-se incorretamente julgado, devendo a decisão ser revogada e substituída por outra que, com fundamento nos concretos meios probatórios que impõem decisão diversa, o julgue não provado.
3. E os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa, são os seguintes:
-A procuração que constitui o documento n.º 5 da petição inicial, da qual resulta o seguinte: Os poderes conferidos determinavam que o preço da venda era de 175.000,00 euros (e não, portanto pelo “valor da conversão de 35 mil contos” ou pelo valor de 174.580,00 euros);
-A procuração foi outorgada em 18.12.2008;
-Nela é declarado pelos outorgantes que, a essa data, o preço se encontrava recebido;
-Nela é declarado pelos outorgantes que o preço recebido foi o de 175.000,00 euros (e não, portanto pelo “valor da conversão de 35 mil contos” ou pelo valor de 174.580,00 euros);
-Os cheques (doc. n.º 6 da PI e docs. juntos aos autos em 6.01.2022), dos quais resulta que:
-Não correspondem ao preço mencionado na procuração, pois o seu valor é inferior;
-Foram emitidos apenas em 30.12.2008 pelo que não podem titular o valor de 175.000,00 euros que na procuração de 18.12.2008 se diz já recebido;
-Não se sabe quem os recebeu, mas apenas à ordem de quem foram emitidos;
-A guia de liquidação o IMT que constitui o documento n.º 7 da petição inicial que só por si demonstra que o preço era de 175.000,00 euros, tendo sido sobre esse valor, declarado nesse ato pelo aqui autor, em data anterior à da outorga da procuração, que foi efetuada a liquidação do IMT.
-Os depoimentos das seguintes testemunhas:
-FF, ouvida em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 14.25 horas e findo pelas 15.25 horas e findou pelas 15.25 horas (cfr. ata ref.ª 437345124), com a duração aproximada, portanto, de 60 minutos, nos segmentos de gravação entre 00.02.43 e 00:03:56, entre 00:05:01 e 00:05:25, entre 00:16:32 e 00:16:40 e entre 00:17:26 e 00:17:35, transcritos na motivação de deste recurso e que aqui se dão por reproduzidos;
-GG, ouvido em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 16.29 horas e findou pelas 17.10 horas (cfr. ata ref.ª 437345124), com a duração aproximada, portanto, de 41 minutos, no segmento de gravação entre 00:06:57 e 00:07:02, transcritos na motivação de deste recurso e que aqui se dão por reproduzidos;
4. Quanto ao valor do preço, à sua data e às declarações nela contidas, a procuração é inequívoca; é igualmente inequívoca, quanto aos cheques, a sua data; e é também indiscutível que as testemunhas nunca viram quaisquer cheques relacionados com a compra e venda; muito concretamente, nunca viram os cheques juntos à PI.
5. Acresce sem dúvidas o mais relevante: a guia de liquidação do IMT que constitui o documento n.º 7 da petição inicial, decorrente de declaração do próprio autor, sujeito passivo da obrigação de imposto pelo facto de vir a figurar como procurador em procuração irrevogável posteriormente outorgada que concedia ao procurador poderes pala alienação de imóvel e que, só por si, demonstra que o preço era de 175.000,00 euros, tendo sido sobre esse valor declarado nesse ato pelo aqui autor em data anterior à da outorga da procuração (em 5.12.2008), que foi efetuada a liquidação do IMT.
6. A decisão recorrida incorreu em manifesto erro de julgamento, devendo ser revogada nos termos expostos, julgando-se tal facto como não provado.
O facto n) dos provados
7. Foi julgado provado que: n) Desde a data referida em e) o autor passou a realizar e custear todas as obras de reparação e manutenção necessárias no imóvel, entre os quais pequenos restauros, manutenção de áreas exteriores, reparação do telhado, instalação de ar condicionado e edificação de uma rampa de acesso, que se tornou necessária quando DD ficou com mobilidade reduzida.
8. Tal facto encontra-se incorretamente julgado no seu segmento inicial, correspondendo à locução “Desde a data referida em e) o autor passou a realizar e custear todas as obras de reparação e manutenção necessárias no imóvel”, devendo tal decisão ser revogada e ser julgado apenas como provado que: n) Desde data não concretamente apurada o autor passou a realizar obras de reparação e manutenção necessárias no imóvel, entre os quais pequenos restauros, manutenção de áreas exteriores, reparação do telhado, instalação de ar condicionado e edificação de uma rampa de acesso, que se tornou necessária quando DD ficou com mobilidade reduzida.
9. Os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, são os seguintes:
-O depoimento prestado por FF, prestado em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 14.25 horas e findo pelas 15.25 horas e findou pelas 15.25 horas (cfr. ata ref.ª 437345124), nos segmentos de gravação
entre 00.26.02 e 00:26:26 e entre 00:28:53 e 00:29:15, transcritos na motivação de deste recurso e que aqui se dão por reproduzidos;
- O depoimento prestado por HH, prestado em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 16.00 horas e findou pelas 16.28 horas e findou pelas 15.25 horas (cfr. ata ref.ª 437345124), nos segmentos de gravação entre 00:04:45 e 00:05:13, entre 00:15:07 e 00:16:38 e entre 00:25:15 e 00:25:55, transcritos na motivação de deste recurso e que aqui se dão por reproduzidos;
- O depoimento prestado por GG ouvido em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 16.29 horas e findou pelas 17.10 horas (cfr. ata ref.ª 437345124), transcritos na motivação de deste recurso e que aqui se dão por reproduzidos;
10. Os meios probatórios indicados na sentença em motivação da decisão deste concreto ponto não suportam em toda a sua amplitude a decisão proferida e antes impõem a sua restrição nos termos que neste recurso se pretende porquanto as “obras” e “reparações” se referem no essencial ao período após a morte de EE e, quando assim não são situadas, desconhece-se qual a sua localização temporal.
11. É certo que os meios probatórios em causa — prova testemunhal —, se encontram sujeitos à livre apreciação do julgador, mas não é apenas isso o que aqui está em questão; o que está em questão é também ter-se dado por provados factos que são contrários aos factos referidos pelas testemunhas cujo depoimento foi invocado como motivador da decisão.
12. O princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao juiz “o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas”, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se “com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios”, sendo “antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem”, cfr. Ac. do TRC de 05.11.2019, proferido no processo n.º 2012/15.0T8CBR.C1, acessível em Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (dgsi.pt)
13. Significa isto que para além de os concretos meios probatórios imporem decisão diversa da recorrida, a decisão de facto incorreu, quanto a esta concreta factualidade, em direta violação do princípio de livre apreciação da prova por arbitrária análise dos elementos probatórios por si invocados, o que por si impõe a sua revogação.
O facto q) dos provados
14. Foi julgado provado que: q) Desde que a falecida DD começou a evidenciar sinais de menor saúde, após a morte do seu marido, era a ré AA quem entregava ao autor os documentos relativos ao pagamento anual do IMI e que com ele tratava os demais assuntos relacionados com o imóvel.
15. Tal facto encontra-se incorretamente julgado, devendo a decisão ser revogada e substituída por outra que, com fundamento nos concretos meios probatórios que impõem decisão diversa, o julgue não provado.
16. os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa, são os seguintes:
-O depoimento prestado por FF, prestado em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 14.25 horas e findo pelas 15.25 horas e findou pelas 15.25 horas (cfr. ata ref.ª 437345124), nos segmentos de gravação entre 00:26:27 e 00:26:46, entre 00:27:26 e 00:28:15, entre 00:33:17 e 00:34:18, entre 00:42:13 e 00:43:00 e entre 00:56:20 e 00:56:54, transcritos na motivação de deste recurso e que aqui se dão por reproduzidos e de onde, no essencial, resulta que do depoimento desta testemunha resulta que quem vivia com a Dona DD, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, era a funcionária II, não era mais ninguém.
-O depoimento prestado por HH, prestado em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 16.00 horas e findou pelas 16.28 horas e findou pelas 15.25 horas (cfr. ata ref.ª 437345124), nos segmentos de gravação entre 00:04:45 e 00:06:08, entre 00:07:01 e 00:07:17 e 00:21:05 e 00:21:50, transcritos na motivação de deste recurso e que aqui se dão por reproduzidos, de onde resulta, no essencial, não apenas a II era quem lá estava 24 horas por dia, como era ela quem ligava à testemunha e era a testemunha que lhe dizia que deveria ligar pera o senhor BB (o autor) o que ela fazia, tendo ainda confirmado que depois da morte do tio (EE) quem ficou responsável por cuidar da Dona DD foi o irmão dela, pai da AA, e não esta.
-O depoimento prestado por GG ouvido em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 16.29 horas e findou pelas 17.10 horas (cfr. ata ref.ª 437345124), nos segmentos de gravação entre 00:11:35 e 00:12:01, entre 00:12:04 e 00:12:08, entre 00:29:56 e 00:30:53 e entre 00:38:19 e 00:38:59 transcritos na motivação de deste recurso e que aqui se dão por reproduzidos, deles resultando, no essencial que a testemunha nem conhece nem seria capaz de reconhecer qualquer dos réus e que só conhecia o pai da AA e que a Dona II, a empregada, não tinha folgas e até o marido e os pais dela chegaram a ir para lá almoçar ao domingo; a AA, para não ficar mal, depois combinou com a II ficar lá ao sábado e ao domingo.
17. Nenhuma de tais testemunhas foi sequer perguntada quanto a saber se era ou não a AA quem, desde que a falecida DD começou a evidenciar sinais de menor saúde, após a morte do seu marido, entregava ao autor os documentos relativos ao pagamento anual do IMI e que com ele tratava os demais assuntos relacionados com o imóvel, mas também nenhuma o disse; sobre essa matéria, o que disserem vai no sentido absolutamente contrário, pois referem que quem tratava de tudo porque era quem estava sempre presente, era a empregada II, não a AA.
18. Os meios probatórios indicados na sentença em motivação da decisão deste concreto ponto não suportam em toda a sua amplitude a decisão proferida e antes impõem a sua restrição nos termos que neste recurso se pretende porquanto as “obras” e “reparações” se referem no essencial ao período após a morte de EE e, quando assim não são situadas, desconhece-se qual a sua localização temporal.
19. É certo que os meios probatórios em causa — prova testemunhal —, se encontram sujeitos à livre apreciação do julgador, mas não é apenas isso o que aqui está em questão; o que está em questão é também ter-se dado por provados factos que são contrários aos factos referidos pelas testemunhas cujo depoimento foi invocado como motivador da decisão.
20. O princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao juiz “o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas”, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se “com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios”, sendo “antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem”, cfr. Ac. do TRC de 05.11.2019, proferido no processo n.º 2012/15.0T8CBR.C1, acessível em Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (dgsi.pt)
21. Significa isto que para além de os concretos meios probatórios imporem decisão diversa da recorrida, a decisão de facto incorreu, quanto a esta concreta factualidade, em direta violação do princípio de livre apreciação da prova por arbitrária análise dos elementos probatórios por si invocados, o que por si impõe a sua revogação.
O facto r) dos provados
22. Ficou provado que: r) O autor, pela relação de confiança e laços de amizade, não avançou em vida dos mandantes, com a escritura de compra e venda do imóvel e necessário processo de licenciamento.
23. Tal facto encontra-se incorretamente julgado, devendo a decisão ser revogada e substituída por outra que, com fundamento nos concretos meios probatórios que impõem decisão diversa, o julgue não provado.
24. Os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa, são os seguintes:
-O depoimento prestado por FF, prestado em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 14.25 horas e findo pelas 15.25 horas e findou pelas 15.25 horas (cfr. ata refª 437345124), nos segmentos de gravação entre 00:04:25 e 00:05:01, entre 00:12:53 e 00:13:39, entre 00:20:32 e 00:21:03, entre 00:21:07 e 00:22:35, entre 00:45:02 e 00:45:08 e entre 00:45:14 e 00:45:17, transcritos na motivação de deste recurso e que aqui se dão por reproduzidos e que no essencial dizem que de acordo com a testemunha a casa era “ilegal” e não poda ser legalizada pois que o problema era localizar-se a menos de cem metros da linha de marés vivas, situação que o seu tio conversou com ele muitas vezes e que não iria ficar melhor e que o seu tio queria vender a casa, o barbeiro até lhe arranjava interessado por mais de quarenta mil contos, mas a casa tinha que ter licença de utilização; como não tinha e o tio queria vender, acabou por vendê-la ao autor para o que usaram, no seu dizer, de um subterfúgio legal: a procuração irrevogável.
-O depoimento prestado por HH, prestado em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 16.00 horas e findou pelas 16.28 horas e findou pelas 15.25 horas (cfr. ata ref.ª 437345124), nos segmentos de gravação entre 00:04:05 e 00:04:18 e entre 00:04:28 e 00:05:13, transcritos na motivação de deste recurso e que aqui se dão por reproduzidos, onde confirma que a casa foi vendida e que “estava tudo feito”, pois eles (o EE e a DD) “assinaram” (a procuração)
-O depoimento prestado por GG ouvido em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 16.29 horas e findou pelas 17.10 horas (cfr. ata refª 437345124), nos segmentos de gravação entre 00:04:29 e 00:04:41 e entre 00:05:19 e 00:05:42, transcritos na motivação de deste recurso e que aqui se dão por reproduzidos, onde no essencial refere que a venda foi feita ao autor apenas porque era a única psoa que estava disposta a fazer tal compra sem escritura nem licença de ocupação, embora por um preço muito mais baixo que o que o comprador que a testemunha arranjaria, se a casa tivesse licença de ocupação.
25. O Tribunal a quo julgou provado tal factualidade, da alínea r) dos provados, com a seguinte motivação: A prova da alínea r) resultou da aplicação das regras de normalidade da vida a todo o comprovado contexto de relação que o autor manteve com os tios dos réus desde a data em que foi celebrado o negócio, que firmou no tribunal a convicção de que, em vida dos seus amigos, o autor respeitou a ligação destes ao imóvel.
26. Sendo a razão da não celebração da escritura a impossibilidade legal de a celebrar, por o imóvel não ter licença de utilização e sendo a razão da não obtenção de tal licença, de acordo com a prova produzida, a localização da própria construção a distância inferior a 100 metros da linha de marés vivas, não podem estas circunstâncias deixar de estar presentes no contexto submetido pelo Tribunal à “aplicação das regras de normalidade da vida”.
27. O comprador (isto é, o autor) não poderia por sua vez vender a casa; por outro lado, a casa contígua àquela, de sua propriedade, constituía casa de férias onde apenas se deslocava alguns fins de semana ao longo do ano, já que residia em Gondomar.
28. A utilização diária ou permanente do imóvel, mesmo junto à praia, onde a degradação é muito mais intensa que nas zonas mais distantes da orla marítima (o que é facto notório) é uma excelente solução para manter a funcionalidade e as condições de habitabilidade de tal espaço e evitar essa degradação muito acentuada que a não utilização do imóvel provocaria.
29. Olhada a situação tal como ela se apresente objetivamente, é manifesto que o exercício da aplicação das regras de normalidade da vida pelo tribunal se revelou bem distante da normalidade da vida, incorrendo em manifesto erro de julgamento.
O facto u) dos provados
30. Foi julgado provado que: u) A ré AA tinha conhecimento do negócio celebrado entre o autor e os réus.
31. Resulta da sentença que a motivação que conduziu à prova de tal facto decorreu do depoimento de uma testemunha (GG) e de uma presunção judicial fundada na informação de outra testemunha, HH, quando referiu que antes da morte do tio (EE), acompanhava este último às finanças para efetuar o pagamento do IMI, coincidindo o ano do óbito com a data dos documentos juntos pelo autor como comprovativos de pagamento, conjugada com o facto de ser apenas a ré AA quem cuidava dos assuntos da sua falecida tia.
32. Tal ponto da matéria de facto encontra-se incorretamente julgado, devendo a decisão ser revogada e substituída por outra que, com fundamento nos concretos meios probatórios que impõem decisão diversa, o julgue não provado, por duas razões:
33. A primeira, é porque o depoimento da testemunha GG é, quanto aos factos que conhece (quanto à dimensão positiva do seu testemunho), contrário ao que o tribunal deu como provado e, quanto àquilo que desconhece (à dimensão negativa de tal testemunho), é concludente quanto a não saber se a AA tinha ou não tinha conhecimento do “negócio” entre o autor e os seus falecidos tios.
34. A segunda, é o facto conhecido do qual o Tribunal pretendeu extrair, em conjugação com a tal informação colhida do depoimento da testemunha HH, decorre ele próprio do erro de julgamento já abordado supra decisão proferida quanto ao facto q) dos provados, no seu segmento final onde se diz: “era a ré AA quem entregava ao autor os documentos relativos ao pagamento anual do IMI e que com ele tratava os demais assuntos relacionados com o imóvel.”
35. Assim, valem, aqui por inteiro as conclusões que se extraíram relativamente à impugnação desse concreto ponto da matéria de facto (conclusões 14 a 21), que por economia processual e inútil repetição aqui se dão também por integradas e reproduzidas.
O facto g) dos provados
36. Foi julgado provado que: g) Após, em 05.12.2008, o autor liquidou o respetivo IMT no valor de €11.375,00.
37. Tal facto encontra-se incorretamente julgado devendo a decisão ser revogada e substituída por outra que julgue apenas provado o seguinte: g) em 05.12.2008, foi liquidado IMT no valor de 11.375,00€, que o autor pagou.
38. Há desde logo uma incongruência cronológica que impede que o facto possa ser julgado provado nos termos em que o foi: o dia 15.12.2008 não é “após” a outorga da procuração, mas antes de tal outorga, que ocorreu no dia 18.12.2008.
39. Por outro lado, a expressão “Após, em 05.12.2008, o autor liquidou o respetivo IMT”, estabelece uma relação lógia e cronológica inaceitável e indemonstrada com o facto da alínea f) onde se diz: f) Na sequência da outorga da procuração aludida em e), o autor emitiu a favor de EE, com data de 2008.12.30, dois cheques no valor individual de €87.290,00, num total de €174.580,00, quantia que este recebeu e fez sua.
40. Os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida são o documento n.º 7 da PI (que demonstra que a liquidação do IMT ocorreu em 5.12.2008 e que o seu pagamento pelo devedor e sujeito passivo ocorreu nessa mesma data) e a procuração irrevogável (doc. n.º 5 da PI) ambos valorados à luz do regime legal previsto nos artigos 1.º, n.º 3, al. c) e 22.º, n.º 2 do CIMT.
Quanto aos fundamentos de direito
41. Em consequência da impugnação da decisão proferida sobe a matéria de facto, na procedência do recurso nessa aparte, serão os seguintes, os factos provados:
a) A 23 de Janeiro de 2017, faleceu EE, na freguesia ..., no estado de casado com DD, em regime de comunhão geral de bens, sem descendentes, deixando testamento a favor da sua mulher.
b) Em 06.06.2020, faleceu DD, tendo deixado testamento, através do qual constituiu seus únicos e universais herdeiros, os réus.
c) Os réus, em 02.07.2020, habilitaram-se à herança da falecida DD, tendo sido nomeada como cabeça de casal a ré AA.
d) No dia seguinte, em 03.07.2020, os réus registaram a seu favor o prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...36, da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...59.º e promoveram a sua inscrição matricial após liquidação do imposto de selo.
e) Com data de 18.12.2008, no Cartório Notarial da Notária JJ, foi outorgado documento designado como PROCURAÇÃO, em que intervieram como outorgantes EE e mulher, DD, que declararam que, pelo referido instrumento, constituem seu bastante procurador CC, ao qual conferem todos os poderes necessários para vender, pelo preço de cento e setenta e cinco mil euros que já receberam, o prédio urbano sido na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Vila nova de Gaia, descrito na 1.ª Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...36, da freguesia ... e inscrito na matriz sob o artigo ...59.º, incluindo a possibilidade de fazer negócio consigo mesmo, assinando contratos, escrituras e dando quitações, constando, além do mais, do referido documento que a presente procuração é conferida também no interesse do mandatário, é irrevogável, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo e não caduca por morte, interdição ou inabilitação dos mandantes, conforme o artigo 265.º n.º 3 e 1170.º, n.º 2 e 1175.º, todos do Código Civil (documento n.º 5 anexo à petição inicial, cujo restante teor se tem por reproduzido).
g) em 05.12.2008, foi liquidado IMT no valor de €11.375,00, que o autor pagou.
h) Os mandantes, até à sua morte e por acordo do autor, continuaram a habitar o imóvel identificado na procuração.
i) O autor e os mandantes tinham uma relação de amizade de longa data, tendo adquirido um terreno em compropriedade que dividiram, tendo posteriormente construído, cada um em seu lote, duas moradas geminadas, uma das quais corresponde ao imóvel referido em e).
j) No ano de 2008, EE e DD decidiram vender a casa, por pretenderem assegurar liquidez financeira.
k) O autor acordou comprar-lhes a casa, permitindo que EE e DD ali continuassem a viver gratuitamente enquanto fossem vivos.
l) O imóvel não tinha licença de utilização, o que inviabilizava a celebração de escritura pública de compra e venda.
m) A solução encontrada foi celebrar o documento aludido em e), obtendo os réus o valor que pretendiam reunir com a venda.
n) Desde data não concretamente apurada o autor passou a realizar obras de reparação e manutenção necessárias no imóvel, entre os quais pequenos restauros, manutenção de áreas exteriores, reparação do telhado, instalação de ar condicionado e edificação de uma rampa de acesso, que se tornou necessária quando DD ficou com mobilidade reduzida.
o) Desde 2017, o autor procede à liquidação anual do IMI referente ao imóvel.
p) A ré AA passou a cuidar da falecida DD nos anos que precederam a sua morte.
s) O autor não consegue agora avançar com o aludido pedido de licenciamento visto que o dito imóvel se encontra registado, não em seu favor, nem dos mandantes, mas a favor dos réus.
t) Toda esta situação de instabilidade causada pelo registo do imóvel em nome dos réus tem sido fonte de desgaste emocional, ansiedade e preocupação para o autor que sofre receio de perder a casa, o que afeta o seu bem-estar.
42. Dos factos j), k), l), m), e), g) e h) dos provados resulta que em 5.12.2008 (doc. n.º 7 da PI) ou pelo menos em 18.12.2008 (doc. n.º 5 da PI), os falecidos EE e DD venderam ao autor e que este lhes comprou, pelo preço e 175.000,00 euros, o prédio urbano sido na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Vila nova de Gaia, descrito na 1.ª Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...36, da freguesia ... e inscrito na matriz sob o artigo ...59.º e que tal compra e venda não foi celebrada por escritura pública por impedimento legal, dado que o imóvel não possuía licença de utilização ou habitabilidade.
43. Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou de um direito mediante um preço (art.º 874.º do Código Civil).
44. Com os descritos factos provados o que os referidos EE e DD e o autor quiseram foi transmitir a favor deste a propriedade sobre o referido imóvel, mediante o preço de 175.000,00 euros.
45. Tal vontade declarativa extrai-se com segurança da prova testemunhal e documental produzida e do comportamento processual do autor, a saber:
Quanto à prova testemunhal produzida:
-O depoimento prestado por FF, prestado em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 14.25 horas e findo pelas 15.25 horas e findou pelas 15.25 horas (cfr. ata ref.ª 437345124), no segmento de gravação entre 00.45.02 e 00:45:21, transcrito na motivação de deste recurso e que aqui se dá por reproduzido;
-O depoimento prestado por HH, prestado em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 16.00 horas e findou pelas 16.28 horas e findou pelas 15.25 horas (cfr. ata ref.ª 437345124), nos segmentos de gravação entre 00:04:05 e 00:04:20 e entre 00:04:28 e 00:05:10, transcritos na motivação de deste recurso e que aqui se dão por reproduzidos;
-O depoimento prestado por GG ouvido em julgamento no dia 1.06.2022, constando da ata respetiva que o seu depoimento teve início pelas 16.29 horas e findou pelas 17.10 horas (cfr. ata ref.ª 437345124), nos segmentos de gravação entre 00:04:29 e 00:04:42, entre 00:05:19 e 00:05:52, entre 00:07:05 e 00:07:12, entre 00:07:42 e 00:07:51 transcritos na motivação de deste recurso e que aqui se dão por reproduzidos;
Todas as testemunhas são inequívocas de que houve uma compra e venda e que os vendedores ficam lá a viver porque o autor o permitiu e todas invocaram como razão de ciência desde logo o que o falecido EE lhes disse; é dessa fonte, a sua certeza da compra e venda.
-Quanto à prova documental
As certidões judiciais juntas pelos réus aos autos em 15.02.2022 (ref.ª CITIUS 31370280) da petição inicial, do despacho de indeferimento liminar, do recurso interposto pelo autor e do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto que manteve o despacho de indeferimento liminar relativas a procedimento cautelar comum que antecedeu esta ação, procedimento no qual alegou que comprou aquele imóvel já em 2008, pelo preço de €175.000,00, tendo recebido a respetiva chave e tendo passado a fazer as reparações que foram necessárias e a pagar o IMI, mas tendo os vendedores, com o seu acordo, continuado a ali habitar enquanto foram vivos, e que como o imóvel não se encontrava ainda legalizado, tal negócio foi formalizado mediante uma procuração irrevogável passada a favor do requerente pelos então proprietários do imóvel, e onde concluíram que os requeridos violavam o seu direito de propriedade sobre o mencionado imóvel, o qual bem sabem que não faz parte da herança (…) pelo que formularam contra os aqui recorrentes o seguinte pedido: "1) A nulidade do registo do imóvel, prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...36, da freguesia ..., inscrito na matriz sob o art.º ...59, e ser ordenado o consequente cancelamento da inscrição da aquisição do direito de propriedade incidente sobre o referido prédio descrito na conservatória do registo predial de Fafe, sob o n.º ...36 a favor de AA, e BB, pela AP....22 de 2020/07/03.
2) Ser reconhecido o direito de propriedade do requerente sobre o referido imóvel.
3) Serem os requeridos condenados a proceder à entrega imediata do imóvel ao requerente,
4) E absterem-se de praticar quaisquer atos que perturbem a posse, uso e fruição do imóvel, por parte do requerente".
-Quanto ao comportamento processual do autor
O autor, nos presentes autos alegou no essencial os mesmos factos e configurou na causa de pedir quase nos mesmos termos o “seu“ direito de propriedade, tal como resulta dos artigos 19, 20, 21, 26, 40 e 41, sendo a diferença a de que embora mantendo tais factos e tal “direito” na causa de pedir, não lhes fez agora corresponder qualquer pedido
O essencial de tais factos consta agora sob as alíneas j), k), l) e m) dos provados.
46. O autor invoca como relação jurídica basilar da procuração, um contrato verbal de compra e venda de um imóvel relativamente ao qual admite também saber da inexistência de licença de utilização.
47. Tal compra e venda que constitui a relação jurídica basilar da procuração pelo autor alegada na sua petição inicial é nula, quer por vício de forma (art.º 875.º do Código Civil, na redação à data vigente), quer pela contrariedade do respetivo objeto à lei, face à falta de licença de utilização (artigo 1.º, n.º 1 do DL n.º 281/99).
48. A nulidade é do conhecimento oficioso (art.º 286.º do Código Civil).
49. A sentença recorrida ao ter julgado a ação parcialmente procedente nos termos em que o fez, não conhecendo da nulidade do contrato de compra e venda que constitui a relação jurídica basilar da procuração pelo autor alegada na sua petição inicial, não a declarando, violou por manifesto erro de interpretação e de (não) aplicação, o disposto nos artigos 875.º do Código Civil na redação à data vigente bem como o disposto no artigo 1.º, n.º 1 do DL n.º 281/99, bem ainda como o disposto no artigo 286.º do Código Civil, devendo ser revogada e substituída por outra que, face aos factos provados, tendo presente a prova testemunhal da qual decorrem, bem como tendo em consideração a prova documental e, desde logo, a resultante das certidões judiciais juntas em 15.02.2022 pelos aqui recorrentes (cfr. ref.ª CITIUS 31370280) conheça e declare tal nulidade.
50. Mesmo que os factos alegados pelo autor pudessem subsumir-se a um contrato de mandato, é manifesto que tal mandato caducou.
51. É certo que o autor alega também que a procuração a que tal mandato deu origem é irrevogável (art.ºs 9, 14, 15 e 21 da PI) e que o n.º 2 do artigo 1170.º do Código Civil condiciona a revogação do mandato de interesse comum ao acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa, e que o artigo 1175.º determina que o mandato de interesse comum não caduca por morte do mandante.
52. Para haver mandato de interesse comum não basta que o mandatário ou o terceiro tenham um interesse qualquer, é necessário que esse interesse se integre numa relação jurídica vinculativa, isto é, que o mandante, tendo o mandatário o poder de praticar atos cujos efeitos se produzem na esfera jurídica daquele, queira vincular-se a uma prestação a que o mandatário ou o terceiro tenham direito. Ac. do STJ de 05.11.1996, acessível em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt), de cujo sumário se destaca: Para haver mandato no interesse comum é necessário que esse interesse se integre numa relação jurídica vinculativa (v.g. um contrato-promessa válido), i.é., que o mandante queira vincular-se a uma prestação a que mandatário ou terceiro têm direito.
53. E a relação jurídica, para ser vinculativa, para poder conferir ao mandatário um direito a uma prestação, tem que decorrer de ato, negócio ou contrato juridicamente válidos, cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, acessível em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt), de cujo sumário se destaca: II - O fundamento da livre revogabilidade do mandato plasmada no n.º 1 do artigo 1170.º, tradicionalmente radicada na relação de confiança do mandante para com o mandatário e na natureza intuitu personae do contrato, assenta verdadeiramente no interesse do mandante, com a consequente alienidade da atividade do mandatário, da operação económica no seu conjunto e, logo, dos seus resultados;
III - O princípio da livre revogabilidade é, porém, afastado nas situações, hipotizadas no n.º 2 do artigo 1170.º: quando o mandato tenha sido conferido «também no interesse do mandatário ou de terceiro» (mandato «de interesse comum», denominado in rem propriam no primeiro caso) não pode ser revogado pelo mandante sem o acordo do interessado, salvo justa causa;
IV - O interesse do mandatário na conservação do mandato suscetível de justificar a irrevogabilidade, conforme a tutela gizada no n.º 2 do artigo 1170.º, não se reconduz à retribuição ou a outras vantagens patrimoniais ou sociais para ele emergentes do contrato de mandato, tão-pouco podendo consistir numa atuação do mandatário por sua conta, a qual subverteria a função económico-social e a tipicidade do contrato delineada no artigo 1157.º;
V - O critério de aferição do interesse juridicamente relevante no seio do n.º 2 do artigo 1170.º passa necessariamente pelo desenvolvimento da atividade objeto do mandato, em conexão com uma outra relação, normalmente de tipo contratual, entre o mandante e o mandatário, ou entre mandante e terceiro, da qual flui um direito próprio do mandatário ou do terceiro, sendo o mandato condição, consequência, garantia ou modo de exercício desse direito;
Ac. do TRL de 25.10.2012, acessível em Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (dgsi.pt), de cuja fundamentação se destaca o seguinte excerto: Para haver mandato de interesse comum não basta que o mandatário ou o terceiro tenham um interesse qualquer, é necessário que esse interesse se integre numa relação jurídica vinculativa, isto é, que o mandante, tendo o mandatário o poder de praticar atos cujos efeitos se produzem na esfera jurídica daquele, queira vincular-se a uma prestação a que o mandatário ou o terceiro tenham direito.
54. No caso, como resulta da petição inicial, a relação jurídica contratual que o autor invocou como basilar ou causal da procuração configura um negócio juridicamente inválido, maxime nulo, insuscetível de fundar para qualquer das partes e, desde logo para o mandatário, o direito de exigir do mandante qualquer prestação.
55. E, nessa medida, essa relação jurídica contratual que o autor invocou como basilar ou causal da procuração não pode fundar o interesse comum previsto no artigo 1175.º do Código Civil pelo que o mandato invocado pelo autor, a ter existido, caducou (art.º 1174.º, al. a) do Código Civil), caducidade que expressamente se invoca.
56. A sentença recorrida, ao não declarar a nulidade dessa relação jurídica contratual que o autor invocou como basilar ou causal da procuração e ao não extrair dessa nulidade, como consequência, a inexistência do interesse comum a que alude o artigo 1175.º do Código Civil e a caducidade do mandato, violou também por erro de interpretação e aplicação o disposto nos art.ºs 1175.º e 1174.º, al. a) desse mesmo Código.
57. Caducado o invocado mandato, isso significa a extinção da relação jurídica basilar, subjacente à procuração; extinta essa relação jurídica, extingue-se a procuração (art.º 265.º, n.º 2 do Código Civil), o que expressamente se invoca.
58. Mais uma vez, a sentença recorrida, ao não declarar a nulidade dessa relação jurídica contratual que o autor invocou como basilar ou causal da procuração e ao não extrair dessa nulidade, como consequência, a inexistência do interesse comum a que alude o artigo 1175.º do Código Civil e consequente caducidade do mandato e a também consequente caducidade da procuração, violou também por erro de interpretação e aplicação o disposto no artigo 265.º, n.º 2 do Código Civil.
Sem prescindir:
59. A sentença recorrida ignorou a confissão feita pelo autor no artigo 21.º da PI e aceite pelos réus no artigo 24.º da sua contestação e os efeitos da sua expressa aceitação (art.º 356.º, n.º 1 e 358.º, n.º 1 do Código Civil), apesar de a mesma sentença até ter dito que apenas o autor tinha interesse na procuração, pois que só a sua esfera jurídica se poderia manifestar o ”risco”.
60. Não obstante, retirou daí a consequência oposta à da lei, bastando-se, para a irrevogabilidade da procuração com o interesse exclusivo do procurador, prescindindo da exigência legal do interesse comum.
61. Em qualquer caso, de acordo com os termos alegados pelo autor e atento o teor da procuração, esta procuração decorrente da relação jurídica basilar que lhe deu causa foi outorgada sem que corresponda a um mandato de interesse comum.
62. Tal situação não preenche a previsão do artigo 1170.º, n.º 2 do Código Civil pelo que o mandato caducou logo que a morte dos mandantes chegou ao conhecimento do autor, caducidade que se igualmente se invocou na contestação.
63. Extinta essa relação jurídica, extingue-se a procuração (art.º 265.º, n.º 2 do Código Civil), porquanto, como se alegou, não são transmissíveis por sucessão os direitos pessoais, ou seja, aqueles em que há uma inerência indiscutível do direito com o seu titular, tendo-se verificado igualmente a caducidade da procuração.
64. A sentença recorrida ao ignorar a confissão do autor constante do artigo 21.º da PI, expressamente aceite pelos réus no artigo 24.º da sua contestação, violou o disposto nos artigos 356.º, n.º 1 e 358.º, n.º 1 do Código Civil e, em qualquer caso, o disposto no artigo 1170.º, n.º 2 do Código Civil e a consequente caducidade do mandato e no artigo 265.º, n.º 2 e a caducidade da procuração, o que determina a improcedência da ação.
Ainda sem prescindir:
65. O autor na sua PI, alega que o imóvel não integra o acervo hereditário da herança aberta por óbito da tia dos réus, porquanto é ele, autor, o seu proprietário; e é ele o proprietário “Porquanto, no cartório notarial da Notária JJ, em 18.12.2008, foi constituído procurador, através de uma procuração irrevogável.” (artigos 8 e 9 da PI).
66. E alega também que desde a outorga da aludida procuração exerceu todos os direitos subjacentes à propriedade do dito imóvel, tendo desde essa data agido sempre como proprietário do imóvel (artigos 22 e 23 da PI).
67. E justamente porque era ele o proprietário, alega ainda que celebrou com os tios dos réus um contrato de comodato, sendo ao abrigo desse contrato que aqueles ali passaram a estar, como comodatários, desde a outorga da procuração (artigos 26 e 27 da PI).
68. Tendo o autor, de acordo com o que por si foi alegado, adquirido nessa data a propriedade do imóvel e tendo nessa data os tios dos réus celebrado com ele um contrato verbal de comodato, é manifesto que não podiam os tios dos réus validamente conferir ao autor poderes para vender um imóvel de que já não eram proprietários, mas simples comodatários.
69. Resulta dessa configuração da causa de pedir que, a haver mandato, o mesmo seria para venda de coisa alheia, pelo que seria nulo quanto ao seu objeto (art.º 892.º e 280.º do Código Civil), nulidade que se invocou na contestação e que também aqui se invoca;
70. Nesses termos, violou a sentença recorrida essas disposições legais, do art.º 892.º e 280.º do Código Civil.
Ainda sem prescindir:
71. O autor alega ser o proprietário do imóvel desde a data da outorga da procuração, admite que a compra e venda não foi celebrada por escritura pública porque o imóvel não possuía licença de utilização, pelo que não podia ser vendido, tendo a procuração sido a “solução encontrada” e finalmente, confessa ainda que sabe que mesmo hoje o imóvel de que se arroga proprietário não tem licença de ocupação.
72. Daqui decorre que o autor invoca um mandato assente no propósito de contornar uma proibição legal que diz conhecer (a que resulta do disposto no artigo 1.º, n.º 1 do DL n.º 281/99, de 26 de julho) e admite que a procuração foi “a solução encontrada” para contornar essa imposição legal, permitindo-lhe (de acordo com o por si alegado), a compra e venda na forma verbal e sem que o imóvel tivesse licença de utilização, passando desde então a ser o seu proprietário e permitindo-lhe, no pressuposto dessa qualidade, a celebração de um contrato de comodato que assegurava que os tios dos réus só a esse título ali se mantinham.
73. É nulo o negócio jurídico cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável, bem como quando contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes (art.º 280.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil).
74. O mandato alegado e a procuração utilizada para contornar quer a natureza imperativamente formal ou solene do contrato de compra e venda, quer a impossibilidade legal de transmitir a propriedade de prédios urbanos sem que exista licença de utilização e dela se faça menção na escritura pública, configura a celebração de negócios jurídicos (o mandato e a procuração) não apenas contrários à lei, mas contrários à ordem pública, sendo nulos.
75. Nesses termos, violou a sentença recorrida o disposto no artigo 1.º, n.º 1 do DL n.º 281/99, de 26 de julho, bem como no artigo 298.º n.ºs 1 e 2 do Código Civil.
Ainda quanto à fundamentação da sentença recorrida
76. Após ignorar todas as exceções invocadas, por isso logicamente decorrer do facto de entender que não existiu qualquer contrato de compra e venda nulo, diz-se assim na sentença recorrida: Importa, neste seguimento, apreciar os efeitos decorrentes da validade e irrevogabilidade da procuração.
(…)
Como foi referido no acórdão junto aos autos em 14.02.2022, que decidiu indeferir um procedimento cautelar instaurado pelo aqui autor contra os ora réus (processo n.º 7544/20.2T8VNG.P1), a procuração irrevogável não implica a transmissão jurídica da posição jurídica do dominus, que se mantém como titular dessa posição jurídica, agindo o procurador em seu nome.
No caso concreto, ao conferirem os representados ao autor os poderes que originariamente detinham de legalização e transmissão do imóvel, tais poderes são retirados da esfera jurídica dos representados, para passarem para a esfera jurídica do dominus, com a consequência de não poderem os primeiros dispor do imóvel.
77. A sentença, salvo sempre o devido respeito, não conseguiu sequer compreender quem é o dominus, acabando por dizer o contrário daquilo que se diz na decisão cautelar que ali pretende interpretar e integrar na fundamentação da sua própria decisão, começando por transcrever que a procuração irrevogável não implica a transmissão jurídica da posição jurídica do dominus, que se mantém como titular dessa posição jurídica para depois, conferindo ao procurador a qualificação de dominus, afirmar exatamente o oposto ou seja, que a procuração irrevogável afinal implica a transmissão jurídica da posição jurídica quando diz que ao conferirem os representados ao autor os poderes que originariamente detinham de legalização e transmissão do imóvel, tais poderes são retirados da esfera jurídica dos representados.
78. Daí retira consequência ilegais, que não se atreve a fundamentar de direito por referência a nenhuma norma jurídica que a legitime, a saber: O que os réus adquiriram, por efeito da sua condição de únicos herdeiros e sucessores testamentários, foi a posição jurídica que a autora da herança detinha na procuração, com consequente obrigação de respeitar os termos da mesma, passando a atuar como representados, que conferiram legitimidade a outrem – o autor – para legalizar e dispor do imóvel, logo, sem legitimidade para disporem deste em seu benefício. O imóvel teria que permanecer na titularidade da herança aberta por óbito dos representados, mantendo-se todos os poderes que o autor tinha por efeito da válida outorga da procuração, cujos efeitos se prolongam para além da morte daqueles. A sentença recorrida violou, de forma clamoroso, o disposto no artigo 258.º do Código Civil que diz que o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica do representado. Da violação de tal norma decorre a falta de fundamentação legal de toda as consequências jurídicas que daí foram extraídas e ali enunciadas, devendo desde logo por isso a sentença recorrida ser revogada e substituída por decisão que julgue a ação improcedente.
79. A sentença recorrida concluiu que o registo do direito de propriedade favor dos réus, inscrito pela AP....22 de 2020/07/03 é válido, por não preencher nenhuma das previsões taxativas da nulidade do registo previstas no artigo 16.º do Código do Registo Predial;
80. Contudo acabou por concluir pelo seu cancelamento, para o que partir do expresso pressuposto de que o autor, improcedendo a nulidade do registo, formulou autonomamente o pedido de cancelamento do registo por referência ao disposto no artigo 13.º do mesmo CRP.
81. Aquilo que pelo autor foi pedido foi apenas o cancelamento consequente ao decretamento da nulidade que peticionou; para o caso da improcedência da nulidade, não invocou autonomamente nem sob nenhum fundamento, qualquer pedido de declaração da caducidade do registo.
82. Isto é não foi formulado nenhum pedido de invalidação ou de ineficácia do ato de transmissão pressuposto da razão de cancelamento autónomo do registo declarado na sentença;
83. A sentença conheceu, pois, de questão da qual não podia tomar conhecimento, sendo nula (artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC) invalidade processual que de forma expressa se invoca.
84. Deve, em qualquer caso, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgando procedentes as exceções invocadas na contestação, julgue a ação totalmente improcedente.

Por seu turno, o autor/apelante veio pedir a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que, julgue a ação procedente e condene também os recorridos (para além do que já foram condenados) a:
a) Verem ser reconhecido o abuso de direito por parte dos réus/recorridos.
b) Sejam cada um dos réus/recorridos condenados a pagar ao autor a quantia de €10.000,00 a título de danos não patrimoniais.
O autor/apelante juntou aos autos as suas alegações onde formula as seguintes conclusões:
A) O presente recurso tem como objeto a absolvição do demais peticionado pelo autor, por sentença proferida nos presentes autos nomeadamente:
B) Entende o recorrente, que além dos factos doutamente dados como assentes, é matéria que deveria resultar provado e com interesse para a decisão da causa que:
b.1 - Ambos os réus conheciam muito bem o negócio que o autor tinha feito com os seus tios e estavam completamente inteirados do facto de que o imóvel em questão não integrava o acervo hereditário da herança deixada por óbito.
Os réus entraram em contacto com o autor em data imediatamente posterior ao falecimento da mandante DD, a fim de confirmar a vigência da dita procuração, facto este que foi de imediato confirmado, pela, ao tempo, mandatária do autor Sra. Dr.ª KK.
b.2 - E na senda desse contacto, em 16.06.2020, o autor, por intermédio desta última fez chegar aos réus cópia da referida procuração irrevogável e dos cheques afetos ao pagamento do imóvel.
b.3- Agiram de forma intencional e dolosa, com o objetivo único de se locupletarem de um bem que não lhes pertence, aproveitando-se do testamento, pois bem sabia, que a herança não tinha património algum.
b.4 - Muito preocupa o autor e muita angústia lhe causa, a possibilidade de, dada a sua já avançada idade, vir a falecer sem ver resolvida esta questão, e assim, prejudicar os seus descendentes.
b.5 - A conduta dos réus causou ao autor danos não patrimoniais que pela sua gravidade merecem a tutela do direito.
C) Foram indevidamente desconsideradas pelo Tribunal a quo as declarações prestadas pela testemunha Dr.ª KK, considerando que não é aplicável o disposto no art.º 92º do EOA, porquanto, as declarações desta testemunha não versaram sobre matéria sujeita ao segredo profissional, ao desconsiderar este depoimento o douto tribunal a quo incorreu em erro de julgamento.
D) O depoimento de testemunha Dr.ª KK consubstancia um meio de prova válido que deverá ser valorado como tal pelo venerando Tribunal ad quem.
E) Conjuntamente com a demais prova produzida este depoimento, conduz, impreterivelmente, ao reconhecimento do abuso de direito por parte dos réus/recorridos, nos termos do 334.º do CC, e, à condenação destes ao pagamento ao recorrente da indemnização peticionada a título de danos não patrimoniais, porquanto,
F) A prova testemunhal produzida pelas testemunhas HH, e GG, e ainda a prova referida em q) e u) da matéria facto assente, analisada criticamente e devidamente valorada conduz a uma decisão diversa da que foi proferida e a decisão sobre a matéria de facto constitui uma violação do direito probatório, maxime na vertente de análise, avaliação e valoração de prova produzida nos autos.
G) Considerando que esta prova e ainda o depoimento da testemunha Dr.ª KK, não deixavam dúvidas quanto ao conhecimento dos réus/recorridos da existência da procuração, e o da Dr.ª KK em particular traz a luz que o registo do imóvel a favor dos réus/recorridos ocorreu após o conhecimento inequívoco da existência e validade do negócio celebrado com os seus tios, e inclusivamente, do preço já pago pelo autor/recorrente.
H) Ademais, não só tinham conhecimento da existência da procuração irrevogável, tinham o conhecimento técnico e científico do que representava aquela procuração irrevogável e das consequências da sua existência, isto é, que o imóvel não integrava ao acervo hereditário da herança deixada por óbito da sua tia DD.
I) Não tendo considerada provada tal factualidade incorreu o tribunal a quo em erro de julgamento, que deverá ser considerado em sede de apreciação de mérito pelo douto Tribunal ad quem, por via dos artigos 607.º, 663.º e 679.º do Código Processo Civil.
J) Destarte, é axiomático: Os réus registaram o imóvel com o propósito de se locupletarem de um bem que sabiam não integrar a herança,
K) E de forma a impedir o autor/recorrente de exercer o seu direito legitimo de proceder à legalização do imóvel e realizar a escritura de compra e venda.
L) Os intentos dos réus eram manifestos, e sua má-fé e culpa também.
M) Assim, deveria o Tribunal a quo ter reconhecido o abuso de direito por parte dos réus/recorridos, não o fazendo incorreu em erro de julgamento, que deverá ser considerado em sede de apreciação de mérito pelo douto Tribunal ad quem.
N) Bem como deveria ter reconhecido que consequência do referido abuso de direito sido cometido com o intuito de prejudicar o autor/recorrente, de idade avançada, gerou-se o dever de indemnizar por parte dos réus/recorridos, considerando os danos não patrimoniais sofridos pelo autor/recorrente,
O) Que se sentiu agastado emocionalmente, preocupado, ansioso, tendo sido violado culposamente o direito de personalidade do mesmo, tendo sofrido por isso dano não patrimonial, que se afigura de gravidade bastante.
P) Devendo, dessarte os réus/recorridos serem condenados, conforme peticionado ao pagamento de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor/recorrente, no montante de €10.000,00 cada um.
Q) Não o tendo feito o Tribunal a quo, i.e, não tendo reconhecido o abuso de direito dos réus/recorridos, e não tendo reconhecido e condenado os réus/recorridos ao pagamento de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor/recorrido padece a sentença nesta parte também de erro de julgamento.
R) Violando, ao julgar diferente, as disposições legais dos artigos 334.º, 483.º ambos do Código civil o que constitui também fundamento bastante para o presente recurso de apelação – art.º 639.º, e 640.º do Código de Processo Civil.
S) Pelo que a douta sentença, salvo o devido respeito, no que se reporta à absolvição dos réus do demais peticionado, errou na interpretação e aplicação do direito.
T) Os erros de julgamento, de facto e de direito invocados no presente recurso são passiveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.


Ambas as partes/apelantes juntaram aos autos as suas contra-alegações onde pugnaram, além do mais, pela improcedência do recurso da contra-parte.


II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
a) A 23 de janeiro de 2017, faleceu EE, na freguesia ..., no estado de casado com DD, em regime de comunhão geral de bens, sem descendentes, deixando testamento a favor da sua mulher.
b) Em 06.06.2020, faleceu DD, tendo deixado testamento, através do qual constituiu seus únicos e universais herdeiros, os réus.
c) Os réus, em 02.07.2020, habilitaram-se à herança da falecida DD, tendo sido nomeada como cabeça-de-casal a ré AA.
d) No dia seguinte, em 03.07.2020, os réus registaram a seu favor o prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...36, da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...59.º e promoveram a sua inscrição matricial após liquidação do imposto de selo.
e) Com data de 18.12.2008, no Cartório Notarial da Notária JJ, foi outorgado documento designado como PROCURAÇÃO, em que intervieram como outorgantes EE e mulher, DD, que declararam que, pelo referido instrumento, constituem seu bastante procurador CC, ao qual conferem todos os poderes necessários para vender, pelo preço de cento e setenta e cinco mil euros que já receberam, o prédio urbano sido na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na 1.ª Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...36, da freguesia ... e inscrito na matriz sob o artigo ...59.º, incluindo a possibilidade de fazer negócio consigo mesmo, assinando contratos, escrituras e dando quitações, constando, além do mais, do referido documento que a presente procuração é conferida também no interesse do mandatário, é irrevogável, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo e não caduca por morte, interdição ou inabilitação dos mandantes, conforme o artigo 265.º n.º3 e 1170.º, n.º2 e 1175.º, todos do Código Civil (documento n.º5 anexo à petição inicial, cujo restante teor se tem por reproduzido).
f) Na sequência da outorga da procuração aludida em e), o autor emitiu a favor de EE, com data de 2008.12.30, dois cheques no valor individual de €87.290,00, num total de €174.580,00, quantia que este recebeu e fez sua.
g) Após, em 05.12.2008, o autor liquidou o respetivo IMT no valor de €11.375,00.
h) Os mandantes, até à sua morte e por acordo do autor, continuaram a habitar o imóvel identificado na procuração.
i) O autor e os mandantes tinham uma relação de amizade de longa data, tendo adquirido um terreno em compropriedade que dividiram, tendo posteriormente construído, cada um em seu lote, duas moradas geminadas, uma das quais corresponde ao imóvel referido em e).
j) No ano de 2008, EE e DD decidiram vender a casa, por pretenderem assegurar liquidez financeira.
k) O autor acordou comprar-lhes a casa, permitindo que EE e DD ali continuassem a viver gratuitamente enquanto fossem vivos.
l) O imóvel não tinha licença de utilização, o que inviabilizava a celebração de escritura pública de compra e venda.
m) A solução encontrada foi celebrar o documento aludido em e), obtendo os réus o valor que pretendiam reunir com a venda.
n) Desde a data referida em e) o autor passou a realizar e custear todas as obras de reparação e manutenção necessárias no imóvel, entre os quais pequenos restauros, manutenção de áreas exteriores, reparação do telhado, instalação de ar condicionado e edificação de uma rampa de acesso, que se tornou necessária quando DD ficou com mobilidade reduzida.
o) Pelo menos desde 2017, o autor procede à liquidação anual do IMI referente ao imóvel.
p) A ré AA passou a cuidar da falecida DD nos anos que precederam a sua morte.
q) Desde que a falecida DD começou a evidenciar sinais de menor saúde, após a morte do seu marido, era a ré AA quem entregava ao autor os documentos relativos ao pagamento anual do IMI e que com ele tratava os demais assuntos relacionados com o imóvel.
r) O autor, pela relação de confiança e laços de amizade, não avançou em vida dos mandantes, com a escritura de compra e venda do imóvel e necessário processo de licenciamento.
s) O autor não consegue agora avançar com o aludido pedido de licenciamento visto que o dito imóvel se encontra registado, não em seu favor, nem dos mandantes, mas a favor dos réus.
t) Toda esta situação de instabilidade causada pelo registo do imóvel em nome dos réus tem sido fonte de desgaste emocional, ansiedade e preocupação para o autor, que sofre receio de perder a casa, o que afeta o seu bem-estar.
u) A ré AA tinha conhecimento do negócio celebrado entre o autor e os réus.



Não se julgaram provados os seguintes factos:
1. Desde a data em que foi outorgada a procuração referida em e), os mandantes entregaram ao autor a chave do imóvel, passando este a exercer sobre o imóvel todos os direitos próprios de dono.
2. Em 2008 os mandantes passaram por grave dificuldades financeiras, que os levaram a decidir vender a casa.
3. O autor frequentemente deslocava-se ao imóvel, utilizando a sua própria chave.
4. Ambos os réus conheciam muito bem o negócio que o autor tinha feito com os seus tios e estavam completamente inteirados do facto de que o imóvel em que os seus tios viviam já não lhes pertencia.
5. Os réus entraram em contacto com o autor em data imediatamente posterior ao falecimento da mandante DD, a fim de confirmar a vigência da dita procuração, facto este que foi de imediato confirmado, pela, ao tempo, mandatária do autor, a Sra. Dra. KK.
6. E na senda desse contacto, em 16.06.2020, o autor, por intermédio desta última fez chegar aos réus, cópia da referida procuração irrevogável e dos cheques afetos ao pagamento do imóvel.
7. Não obstante os réus terem o inequívoco conhecimento de que não poderiam adquirir o imóvel, estes trocaram o canhão da fechadura de forma a impedir o autor de aceder ao mesmo.
8. De forma intencional e dolosa, com o objetivo único de se locupletarem de um bem que não lhes pertence, aproveitando-se do testamento, pois bem sabiam que a herança não tinha património algum.
9. O temor do autor de perder o imóvel, cujo preço já pagou, e que, inclusivamente, fica paredes meias com um outro seu imóvel, tem levado a muitas noites sem dormir.
10. Muito preocupa o autor, e muita angústia lhe causa, a possibilidade de, dada a sua já avançada idade, vir a falecer sem ver resolvida esta questão, e assim, prejudicar os seus descendentes.


III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões da recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
*
Ora, visto o teor das alegações dos apelantes são questões a apreciar no presente recurso:
1.ª – Da alegada nulidade da decisão recorrida.
2.ª - Da impugnação da decisão da matéria de facto.
3.ª – De Direito.
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1.ªquestão – Da alegada nulidade da decisão recorrida (excesso de pronúncia).
Defendem os réus/apelantes que a sentença recorrida enferma do vício da nulidade por o tribunal ter conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento.
Em concreto defendem os réus/apelante que a 1.ª instância concluiu que o registo do direito de propriedade favor dos réus – do imóvel em apreço nos autos - inscrição AP....22 de 2020/07/03 - é válido por não preencher nenhuma das previsões taxativas da nulidade do registo previstas no art.º 16.º do CRPredial, contudo acabou por determinar o seu cancelamento, partindo do pressuposto de que o autor havia formulado autonomamente o pedido de cancelamento do registo por referência ao disposto no art.º 13.º do mesmo CRPredial, o que no caso se não verifica.
*
De harmonia com o disposto no art.º 3.º n.º1 do C.P.Civil, a iniciativa da ação pertence às partes, pelo que o tribunal não pode resolver um conflito sem que elas lhe tenham pedido tal resolução.
Também quanto à decisão, e por força do disposto nos art.ºs 5.º e 608.º, do C.P.Civil, o juiz está limitado não só pelas questões que lhe são colocadas pelas partes, (salvo se outras surgirem que sejam de conhecimento oficioso) como pelo complexo fáctico alegado, (salvo o caso da existência de factos que não necessitam de alegação e a que o tribunal possa e deva recorrer, por notórios ou conhecidos por via do exercício das suas funções). Assim cabe às partes delimitar o “quod decidendum”, expondo nos seus articulados as questões que querem ver decididas na ação, expondo os factos fundamentadores da razão por que pedem, invocando o direito em que se estribam e concluindo, logicamente, formulando um pedido.
Por força do disposto no art.º 5.º do C.P.Civil, o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Pelo que se em sede de facto, o tribunal está limitado pelas alegações das partes, na indagação do direito aplicável, não está o tribunal vinculado à qualificação jurídica feita pelas partes.
Segundo o disposto no art.º 615.º n.º1 al. d) do C.P.Civil, a sentença é nula se deixa de conhecer na sentença de questões de que devia tomar conhecimento ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Este vício traduz-se no incumprimento ou desrespeito por parte do julgador, do dever prescrito no art.º 608.º n.º2 do C.P.Civil, cfr. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág. 690 e Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. III, 1972, 247, segundo o qual deve o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A nulidade da al. d) do n.º1 do art.º 615.º do C.P.Civil, é assim a sanção pela violação do disposto no art.º 608.º n.º 2 do C.P.Civil, o qual impõe ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação mas, por outro lado, de só poder ocupar-se das questões suscitadas pelas partes, salvo tratando-se de questões do conhecimento oficioso do tribunal (omissão ou excesso de pronúncia).
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito, e outra, essencialmente diversa, são as questões de facto ou de direito. As questões a que se reporta a alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.Civil são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções. Ou, como se decidiu no Ac. do STJ de 5.02.2004, in www.dgsi.pt, “essas questões centram-se nos pontos fáctico-jurídicos que estruturam as posições das partes na causa, designadamente os que se prendem com a causa de pedir, o pedido e as exceções”.
*
No caso concreto, o autor formulou nos autos, além do mais, o seguinte pedido: “…deve a presente ação seja julgada procedente, por provada, e em consequência,
1) Ser reconhecido o abuso de direito por parte dos RR.,
2) Ser decretada a nulidade do registo do imóvel sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...36, da freguesia ..., inscrito na matriz sob o art.º ...59.
3) Ser ordenado o consequente cancelamento da inscrição da aquisição do direito de propriedade incidente sobre o referido prédio descrito na conservatória do registo predial de Fafe, a favor de AA e BB, pela AP....22 de 2020/07/03 (…)”.
Como resulta da p. inicial o autor fundou esse seu pedido essencialmente na alegada atuação em manifesto abuso de direito por parte dos réus, ou seja, “… atuam em abuso de direito os réus que tendo conhecimento inequívoco da existência da procuração irrevogável em que figura como procurador o autor e tendo inclusivamente conhecimento da relação adjacente à outorga da dita, agindo de má de forma a impedir que o autor exercesse o seu direito de formalizar o contrato de compra e venda, o que lograram impedir. E trocaram a fechadura do imóvel de modo a interromper a posse do autor sobre o imóvel. Nesta senda, mais se diz, que o abuso do direito de ação acarreta o dever de cessar o abuso, o dever de restituir, e o dever de indemnizar, este último segundo as regras do regime geral da responsabilidade civil previsto nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil. E ainda que a ilegitimidade do abuso de direito tem as consequências de todo o ato ilegítimo, entre as quais, a nulidade nos termos gerais do artigo 294.º do Código Civil”.
*
No que concerne ao invocado abuso de direito por parte dos réus – consistente no facto de, alegadamente, bem sabendo da existência de uma procuração irrevogável outorgada pelos seus tios a favor do autor, do teor da mesma, e consequentemente que o imóvel sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...36, da freguesia ..., inscrito na matriz sob o art.º ...59 não fazia parte dos bens deixados por óbito dos mesmos terem, apesar de tudo, procedido à inscrição da aquisição do dito imóvel a seu favor como herdeiros testamentários daqueles, assim prejudicando os direitos do autor - consignou-se na decisão recorrida que “…haverá que ter em conta a circunstância de não se ter provado o conhecimento inequívoco que os réus tinham de que não poderiam adquirir o imóvel ou que tenham atuado com o objetivo de se locupletarem de um bem que não lhes pertence. Não obstante os factos evidenciarem que a ré AA teria conhecimento do negócio celebrado entre os seus tios e o autor, esse conhecimento não nos permite presumir que a ré tenha aceitado tal negócio como válido ou como tendo sido formalizado por documento juridicamente apto a retirar o imóvel do acervo hereditário”.
Em suma, não julgou a 1.ª instância provado que os réus tenham agido em abuso de Direito e também julgou não se mostrar verificada qualquer causa de nulidade do registo em apreço. Mas, mais se considerou na decisão recorrida que “Resta apreciar se existe fundamento para que se declare o cancelamento do registo, igualmente peticionado pelo autor.
A respeito do cancelamento do registo dispõe o art.º 13.º, do Código Registo Predial que os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos, em execução de decisão administrativa, nos casos previstos na lei, ou de decisão judicial transitada em julgado.
No caso concreto, a existência do registo do imóvel a favor dos réus constitui o fator que perturba o exercício dos poderes atribuídos ao procurador/autor, a quem é vedada a prática dos atos para a qual havia sido validamente legitimado por efeito da procuração, por existir presunção associada ao registo de que o imóvel pertence a outrem que não os representados (art.º 7.º do C. de Registo Predial).
O registo foi promovido pelos réus no exercício dos poderes de que se arrogaram enquanto únicos herdeiros de DD, assumindo a legitimidade da herança para dispor do bem em seu benefício, concretizando a transmissão por morte e assinalando como causa aquisitiva a sucessão testamentária.
(…)
Se o direito que se presume na titularidade dos réus nasce por sucessão, que coincide com uma forma de aquisição derivada translativa, ele dependia, para ser validamente reconhecido, da existência do direito de transmissão na esfera jurídica do anterior titular.
(…)
O reconhecimento da validade e irrevogabilidade da procuração outorgada ao autor, que não se extinguiu com a morte dos representados, tem como inelutável consequência a restrição dos poderes associados ao direito de propriedade destes, que não poderiam transmitir eficazmente para terceiros, em vida ou por efeito da morte, o imóvel em questão.
Os réus registaram o imóvel em seu nome beneficiando da presunção de que o direito de propriedade pleno existia irrestritamente na titularidade dos falecidos EE e DD. Tal presunção autoriza prova em contrário, tendo sido efetuada nestes autos a prova de que o direito de propriedade estava limitado, não autorizando os poderes de livre disposição.
(…)
No caso em apreço, assentando o registo da aquisição num ato de transmissão substancialmente inválido e ineficaz, impõe-se reconhecer a indicada invalidade substantiva que, afetando a validade do ato jurídico que serviu de base ao registo, acarreta o seu cancelamento, procedendo, nesta parte, o pedido deduzido pelo autor”.
*
E assim se conclui que analisado objeto do processo – pedido e causa de pedir formulado pelo autor na sua p. inicial – não nos merece qualquer censura o conhecimento por parte da 1.ª instância do pedido formulado de cancelamento do registo já que o mesmo decorre de reconhecimento da validade e irrevogabilidade da procuração outorgada ao autor que estribava, para o autor, todo o peticionado nos autos, pelo que, não obstante, terem decaído quanto aos demais pedidos, este mereceu provimento.
Pelo que não está a decisão recorrida inquinada da invocada nulidade prevista na al. d) do n.º1 do art.º 615.º do C.P.Civil.
Improcedem as respetivas conclusões dos réus/apelantes.
*
2.ªquestão - Da impugnação da decisão da matéria de facto.
Inconformados com a decisão proferida em 1.ª instância vêm os réus/apelantes atacar a mesma, defendendo que ocorreu manifesto erro na apreciação da prova produzida nos autos e consequentemente foi errada a decisão proferida relativamente aos factos provados elencados sob as alíneas f), g), n), q), r) e u), os quais no seu entender deverão ser julgados não provados, à exceção dos constantes das alíneas g) e q) que deverão ser alterados, no sentido que expõem.
Pedem, pois, a reapreciação da prova e para tanto chamam à colação o teor de vários documentos juntos aos autos e o teor dos depoimentos das testemunhas FF, GG e HH.
*
No que concerne à impugnação da decisão de facto proferida em 1.ª instância, importa atentar no que dispõe no art.º 662.º do C.P.Civil. Como refere F. Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, pág. 127, resulta de tal preceito que “...o direito português segue o modelo de revisão ou reponderação…”, ainda que não em toda a sua pureza, porquanto comporta exceções, as quais se mostram referidas pelo mesmo autor na obra citada.
Os recursos de reponderação, segundo o ensinamento do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudo Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 374, “...satisfazem-se com o controlo da decisão impugnada e em averiguar se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a “justiça relativa” dessa decisão”. Por isso, havendo gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, como no presente caso se verifica, temos que, nos termos do disposto no art.º 662.º n.º 1 do C.P.Civil, o tribunal da Relação deve alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, desde que, em função dos elementos constantes dos autos (incluindo, obviamente, a gravação), seja razoável concluir que aquela enferma de erro.
Não nos podemos esquecer de que ao reponderar a decisão da matéria de facto, que, apesar da gravação da audiência de julgamento, esta continua a ser enformada pelo regime da oralidade (ainda que de forma mitigada face à gravação) a que se mostram adstritos, entre outros, o princípios da concentração e da imediação, o que impede que o tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do juiz; pois que, como referem A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, pág. 657, a propósito do “Princípio da Imediação”, “...Esse contacto direto, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reações do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar. ...”.
Decorre do preâmbulo do DL n.º 39/95 de 15.12, que instituiu no nosso ordenamento processual civil a possibilidade de documentação da prova, que a mesma se destina a correção de erros grosseiros ou manifestos verificados na decisão da matéria de facto, quanto aos pontos concretos da mesma, dizendo-se aí que “a criação de um verdadeiro e efetivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reação contra eventuais – e seguramente excecionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto”. E ainda que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede da matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
Quanto ao resultado da apreciação da prova testemunhal não pode esquecer-se que, nos termos do art.º 607.º n.º 5 do C.P.Civil, “O juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, mantendo o princípio da liberdade de julgamento. E, quanto à força probatória, os depoimentos das testemunhas são apreciados livremente pelo tribunal como resulta do disposto no art.º 396.º do C.Civil.
Tendo em atenção o que preceitua o art.º 640.º n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil, ou seja, que é ónus do apelante que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, isto é, não basta ao apelante atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, sendo ainda indispensável, e “sob pena de rejeição”, que:
i) especifique quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
ii) indique quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto;
iii) indique com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição;
iv) desenvolva a análise crítica dessas provas, por forma demonstrar que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável;
v) indique a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Está assim legalmente consagrada o dever deste Tribunal de recurso alterar a decisão de facto proferida em 1.ª instância, devendo para tal reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo ainda em consideração o teor das alegações das partes, para o que terá de ouvir os depoimentos chamados à colação pelas partes. E assim, (re) ponderando livremente essas provas, deve, por força do disposto no art.º 662.º n.º 1 do C.P.Civil, “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Ou seja, deve o tribunal de recurso formar a sua própria convicção relativamente a cada um dos factos em causa não desconsiderando, principalmente, a ausência de imediação na produção dessa prova, e a consequente e natural limitação à formação desta convicção, o que em confronto com o decidido em 1.ª instância terá como consequência a alteração ou a manutenção dessa decisão. E isso, por se ter concluído que a decisão de facto em causa, (re) apreciada “segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica”, corresponde, ou não, ao decidido em 1.ª instância.
No caso em apreço, consideramos que os réus/apelantes cumpriram aqueles ónus de alegação, cfr. art.º 640.º do C.P.Civil.
*
2.1. – Da reapreciação da prova.
Ora, efetivamente a 1.ª instância julgou, além do mais, provado que:
f) Na sequência da outorga da procuração aludida em e), o autor emitiu a favor de EE, com data de 2008.12.30, dois cheques no valor individual de €87.290,00, num total de €174.580,00, quantia que este recebeu e fez sua.
g) Após, em 05.12.2008, o autor liquidou o respetivo IMT no valor de €11.375,00.
n) Desde a data referida em e) o autor passou a realizar e custear todas as obras de reparação e manutenção necessárias no imóvel, entre os quais pequenos restauros, manutenção de áreas exteriores, reparação do telhado, instalação de ar condicionado e edificação de uma rampa de acesso, que se tornou necessária quando DD ficou com mobilidade reduzida.
q) Desde que a falecida DD começou a evidenciar sinais de menor saúde, após a morte do seu marido, era a ré AA quem entregava ao autor os documentos relativos ao pagamento anual do IMI e que com ele tratava os demais assuntos relacionados com o imóvel.
r) O autor, pela relação de confiança e laços de amizade, não avançou em vida dos mandantes, com a escritura de compra e venda do imóvel e necessário processo de licenciamento.
u) A ré AA tinha conhecimento do negócio celebrado entre o autor e os réus.
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Em fundamentação do assim decidido pode ler-se na decisão recorrida que: “(…) No mais, a prova produzida resultou da conjugação entre os documentos juntos e parte dos depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, bem como da conjugação entre esses elementos e as regras da experiência.
Assim, no que à prova testemunhal respeita, importa especificar a prova produzida. Com particular relevância para a formação da convicção do tribunal, pela espontaneidade com que depôs, bem como pelo distanciamento em relação às questões em discussão, correspondendo a uma testemunha com um elevado grau de credibilidade, o depoente GG, barbeiro, com estabelecimento aberto e residência na área em que se situa o imóvel em litígio, que conhece o autor e conhecia o casal falecido, este último de forma muito próxima (“era como um filho dele”), contextualizou – por conhecimento direto -a forte e íntima relação entre o autor e o falecido EE, o início da construção das casas, as razões que levaram o Sr. EE a decidir vender a casa (situação de doença de EE e necessidade de assegurar que poderiam prover ao seu sustento caso um dos membros do casal falecesse) e as condicionantes, o valor fixado (em contos), o acordo que fizeram, as obras que o autor fazia (era sempre chamado quando era preciso alguma coisa), o que sucedeu por ocasião da morte do Sr. EE (abertura do cofre e dinheiro ali existente) e desde então, designadamente em relação à posição da ré AA (o réu BB não conhece), quem tinha a chave da casa do Sr. EE e quem mudou a fechadura após a morte do Sr. EE (o irmão da D. DD, pai dos réus), revelando-se essencial para a prova dos factos constantes das alíneas h) a n), p) e t) e u), (…).
Foram ainda relevantes para a formação da convicção do tribunal os depoimentos de:
- FF, sobrinho dos falecidos EE e DD, com quem manteve uma relação próxima desde muito jovem (tem 69 anos), que descreveu o processo de construção das casas e a relação de grande amizade que mantinham os dois casais (autor e sua mulher e o casal EE e mulher), o acordo de venda da casa e as razões que impediram a escritura, quem sabia da existência da procuração e acordo feito, explicando a fonte do seu conhecimento, que mereceu credibilidade;
- HH, cuja madrasta era irmã do Sr. EE, que se intitulou como “sobrinho emprestado” do falecido EE, que esclareceu que os casais tinham a chave das casas um do outro, esclarecendo que, quando o Sr. EE faleceu, a tia já “não estava capaz” e era preciso que alguém cuidasse dela, esclarecendo que “toda a gente sabia do negócio na família”, já que o falecido dizia a toda a gente que o Sr. BB tinha comprado a casa; descreveu a relação que o autor mantinha com o falecido e que os pais dos réus iam todas as semanas a casa dos falecidos, para refeições e passeios, pelo que teriam que saber do negócio, confirmando que, quando era preciso fazer reparações no imóvel se ligava ao Sr. BB, que era quem tratava de tudo, tendo este passado a pagar o IMI da casa após a morte do tio (alínea o) dos factos provados). Mereceu credibilidade.
A partir destes depoimentos o tribunal teve por segura a sua convicção quanto à prova das alíneas h), i), k) a n) e p).
Da conjugação do depoimento de HH com os documentos juntos aos autos em 31.05.2022, como base da prova da al. o) dos factos provados, o tribunal delimitou temporalmente o período a partir do qual o autor passou a pagar o IMI do imóvel, tendo o referido depoente mencionado que, antes da morte do tio, acompanhava este último às finanças para efetuar o pagamento, coincidindo o ano do óbito com a data dos documentos juntos pelo autor como comprovativos de pagamento.
Com base nesta informação, que analisou à luz das regras da experiência, o tribunal firmou a convicção quanto à prova do facto q), porquanto, tendo em conta que a nota destinada ao pagamento de IMI era dirigida para a morada do falecido EE, identificada nos documentos juntos em 31.05.2022, surgindo na posse do autor, que efetuou e comprovou o seu pagamento, apenas a ré AA, que era quem cuidava dos assuntos da sua falecida tia, poderia ter diligenciado por colocar tais documentos na posse do autor, após a morte do tio. No seguimento desse raciocínio, bem como da circunstância, afirmada pelas mencionadas testemunhas de ser o autor chamado sempre que era necessário realizar alguma obra no imóvel, o tribunal firmou a sua convicção quanto à al. u).
Muito embora as testemunhas hajam comprovado a situação de debilidade, física e mental, da falecida DD, não existe documento clínico com força probatória bastante para suportar a diagnosticada situação de “demência”, o que restringiu a prova do facto q).
A prova da alínea r) resultou da aplicação das regras de normalidade da vida a todo o comprovado contexto de relação que o autor manteve com os tios dos réus desde a data em que foi celebrado o negócio, que firmou no tribunal a convicção de que, em vida dos seus amigos, o autor respeitou a ligação destes ao imóvel, assentando a al. s) da notoriedade do facto.
A prova da al. g) assentou no teor do documento n.º 7 anexo à petição inicial.
No que respeita à al. f), foi tido em conta o teor dos documentos (cópias de cheques) juntos aos autos em 06.01.2022, considerando o tribunal que o valor indicado nos mesmos corresponde ao fiel cumprimento pelo autor da conversão do valor que havia acordado com os falecidos EE e DD – 35.000 contos -, repetido várias vezes pela testemunha GG (o valor terá sempre sido combinado em contos), cuja conversão em euros corresponde a €174.579,26, arredondado para €174.580,00 na soma dos aludidos cheques (…)”.
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Ouvida, cuidadosamente, a gravação de todos os depoimentos prestados em audiência de julgamento, designadamente os invocados pelos réus/apelantes os depoimentos das testemunhas FF, GG e HH - e, além do mais, intuindo da espontaneidade e convicção das respostas, dos silêncios, das frases incompletas e mesmo dos diversos níveis das vozes, que resultam bem audíveis, analisando o teor dos documentos juntos aos autos, e depois de tudo analisado e interpretado à luz da experiência da vida e da razoabilidade das coisas, julgo que não assiste razão aos réus/apelantes, ou seja, temos de concluir que, no seu essencial, a decisão sobre a matéria de facto supra mencionada não enferma de erro na apreciação da prova e consequentemente deverá manter-se, no seu global, inalterada.
Como se deixou acima já referido, questionam os réus/apelantes o facto de o valor da soma dos dois cheques referidos no facto f) ser de €174.580,00, sendo que os poderes concedidos ao autor consistiam na venda do imóvel pelo preço de €175.000,00 e tal foi o valor que os outorgantes da procuração em apreço declararam ter recebido. Portanto, será que tais cheques se reportam ao aludido na procuração?
Relativamente ao facto da al. n) não se conformam os réus/apelantes que se tenha fixado o início dessa atuação do autor desde da data da outorga da procuração em apreço nos autos. Mais pretendem os réus/apelantes que se julguem não provados o que consta dos factos constantes das als. q) e r).
Vejamos então.
Relativamente ao valor estipulado pelo Sr. EE como o preço para a venda do seu imóvel, cujos necessários poderes o mesmo e a esposa conferiram ao autor, as testemunhas inquiridas - FF, médico e sobrinho de EE e de DD, filho de uma irmã do EE, com quem tinha uma relação familiar muito próxima, desde os seus 15 anos, quando regressou de África, tendo sido, pelo menos, durante 40 anos, médico deles. Sendo que também que era assíduo o seu convívio com o autor, já que este era pessoa muito amiga e companheiro assíduo dos tios, e por isso, assiduamente estavam todos juntos durantes as refeições de fins de semana - HH, “sobrinho” do Sr. EE e da D. DD, por a sua madrasta ser irmã do Sr. EE, e por tal razão desde que tem recordação de si que os tratou por “tios” – o “tio EE”, revelou sem pessoa que assiduamente frequentava a casa dos seus tios, da confiança deles, sempre pronto a ajudá-los no que precisavam, daí que o seu tio lhe confidenciava qual o negócio que tinha feito com o autor relativamente ao seu imóvel – e GG, cabeleireiro de homens que referiu conhecer o autor desde 1989, e o Sr. EE e a D. DD desde a mesma altura, mais precisamente por ter encontrado o primeiro em casa destes quando aí se deslocou para fazer a “barbita” ao tio do Sr. EE (Sr. LL, pessoa muito velhinha que com eles, à data vivia) tendo mantido, desde então e, enquanto o Sr. EE foi vivo, uma amizade profundo com os ora falecidos, tendo declarado espontaneamente que o Sr. EE e a D. DD lhe eram pessoas muito queridas.
Ora todas estas testemunhas relataram o que souberam, principalmente pela boca do Sr. EE do que este decidiu fazer relativamente ao seu imóvel, porque o fez e o preço que estipulou para o negócio. Quanto a este preço, todos foram unânimes em referir que o Sr. EE e a D. DD eram já pessoas de muita idade e que apenas sabiam avaliar as coisas em contos, até porque o euro tinha sido implementado em Portugal há pouco anos atrás. A testemunha GG, referiu que o Sr. EE primeiramente pretendia arrecadar como negócio que queria fazer com o autor a quantia de 45.000 contos, mas que depois, o valor fixado entre ele e o autor ficou em 35.000 contos.
Ora, não podemos olvidar que à data da outorga da procuração em apreço a moeda corrente em Portugal já era o euro, logo a tal moeda haveria a mesma de se referir, razão pela qual ficou estipulado o valor de 175.000,00 euros, ou seja, o valor arredondado para cima relativamente à conversão de 35.000 contos em euros. Mas também não podemos olvidar que o valor acordado e estipulado pelos intervenientes na procuração e no mandato nela inserido foi de 35.000 contos o que convertido em euro dá a quantia de €174.580,00 euros e foi exatamente essa a quantia que o autor entregou ao Sr. EE e mulher, através da emissão dos dois cheques juntos por cópias com a p. inicial à ordem do Sr. EE. É certo que tais cheques, no valor unitário de €87.290,00 foram emitidos com data de 30.12.2008 e a procuração em apreço nos autos foi outorgada a 18.12.2008 e nessa ocasião os outorgantes declararam já terem recebido a quantia de €175.000,00, como preço para a venda do imóvel de que mandatavam o autor para a sua realização, todavia, pelo global da prova produzida nos autos e devidamente interpretada é seguramente plausível que os outorgantes tenham declarado tal, mesmo sem terem na realidade já encaixado tal montante, pela simples razão da extrema confiança que depositavam no autor, na seriedade deste no cumprimento dos seus compromissos, estando confiantes de que tal montante lhes ia chegar logo que possível fosse, como acabou por suceder, 12 dias depois.
Destarte, nenhuma censura nos merece o facto provado e constante da alínea f) que assim se mantém inalterado.
No que concerne ao facto provado sob a alínea n), as testemunhas ouvidas foram uníssonas na sua confirmação, por terem verificado e observado pessoalmente a realização de tais obras de manutenção e de reparação, por pessoas a mando do autor, não tendo dúvidas que também foi ele quem suportou os respetivos custos. E isto, porque, após a realização do “negócio” entre o Sr. EE e esposa e o autor respeitante à venda do imóvel daqueles, exteriorizado formal e juridicamente pela outorga da procuração em apreço onde se insere o mandato conferido por aqueles ao autor para realizar tal venda em seu nome, e dentro das demais condições aí expostas, certo é que, não obstante não ter ocorrido qualquer transmissão da titularidade da propriedade do imóvel, certo é que a sorte do mesmo ficou inteiramente à disposição da vontade do autor/procurador, logo é compreensível que o mesmo, e os que o rodeavam e tinham conhecimento da vontade do Sr. EE e esposa e do autor relativamente ao futuro de tal imóvel e do “negócio”concretizado, agisse e fosse reputado com o se “dono”, não obstante aqueles continuarem a ali residir pois, na realidade, na tinha a posse do bem, mas tinham-lhe sido conferidos os poderes bastantes para dele dispor por venda. Ora, essa atuação do autor, como é bem compreensível e plausível, verificou-se desde a data da outorga da procuração em apreço nos autos.
Destarte, nenhuma censura nos merece o facto provado e constante da alínea n) que assim se mantém inalterado.
No que concerne ao facto provado e constante da alínea q) também não nos merece qualquer censura, já que se atentarmos que está provado (facto da al. p)) que foi a ré AA, quem ficou encarregada dos cuidados necessários à sua tia após a morte do Sr. EE. Os documentos relativos à liquidação do IMI do imóvel em causa juntos aos autos imediatamente antes da audiência de julgamento estão endereçados à ora falecida DD e têm como endereço a residência desta, ou seja, o imóvel em causa nos autos. Também imediatamente antes da audiência de julgamento o autor fez juntar aos autos os comprovativos dos pagamentos por si efetuados de tais IMIs. Logo, resta-nos concluir, chamando à colação uma presunção judicial, que se as referidas prestações de IMI foram pagos pelo autor, foi porque os respetivos documentos de liquidação chegaram às suas mãos. Como os mesmos foram endereçados à residência do ora falecida DD e quem dela tomava conta, devidos às muitas debilidades desta, era a ré ..., plausível será concluir-se que terá sido a ré AA quem fez chegar tais documentos de liquidação ao autor. Quanto ao mais, dúvidas não temos de que, era o autor quem tratava dos assuntos relacionados com o imóvel, sendo de todo crível e necessário que residindo a ora falecida DD no mesmo e aí estando ao cuidado da ré AA, dada o seu débil estado de saúde, tinha necessariamente de ser com esta que o autor tratava dos assuntos relativos ao imóvel, sendo que muitos destes atos lhe tinham sido conferidos pela procuração em apreço nos autos.
Destarte, nenhuma censura nos merece o facto provado e constante da alínea q) que assim se mantém inalterado.
No que concerne ao facto julgado provado em 1.ª instância e aí elencado sob a alínea r), dúvidas não há que até hoje não foi realizada a escritura de compra e venda tendo por objeto o imóvel em apreço nos autos, não obstante o autor estar devidamente mandatado para o efeito por lhe ter sido conferida a necessária procuração. Também ninguém referiu nos autos a existência da necessária licença de habitabilidade, necessária para a realização daquela. Tendo o Sr. EE falecido a 23.01.2017 e D. DD a 6.06.2020, manifesto é concluir-se que nem a obtenção da licença de habitabilidade do imóvel, nem a realização da escritura de compra e venda, que tem como requisito legal, a existência daquela, não acontecerem em vida dos outorgantes da procuração e mandantes.
Resta apurar por que razão tal não sucedeu.
É certo que relativamente a tal questão, as testemunhas ouvidas não foram precisas e objetivas, mas do global depoimento das mesmas, principalmente do depoimento da testemunha HH que declarou que o seu “tio”, o Sr. EE lhe confidenciou muitas vezes que havia feito aquele negócio relativamente ao seu imóvel com o autor e que assim “…à morte dos dois a casa era para o Sr. BB…”. Ou seja, do global da prova produzida, é nossa segura convicção de que, além do mais, foi devido à forte relação de amizade e de estiam pessoal existente entre o autor e o Sr. EE e esposa, que em vida destes o autor não terá sequer equacionado avançar com qualquer legalização do imóvel e celebração da escritura de compra e venda.
Pelo que, também quanto a este facto, nenhuma censura nos merece o decidido em 1.ª instância, que assim se mantém inalterado.
Finalmente, não se pode olvidar que os factos constantes das alíneas g) e u) contém manifestos lapsos de escrita, suscetíveis de mera retificação de harmonia com preceituado no art.º 249.º do C.Civil. Na verdade decorre do contexto factual que na alínea g) a expressão “Após” é manifestamente um lapso, já que tal facto vem na sequência dos factos constantes das alíneas e) e f), mormente das datas temporais neles consignadas – 18.12.2008 e 30.12.2008, respetivamente, pelo que reportando o facto constante da alínea g) a algo ocorrido a 5.12.2008, manifesto é de concluir que a expressão “Após” nele resulta de um mero lapso de escrita, logo, retificando-se o mesmo – ordena-se a retirada de tal expressão do mesmo que passa a ter a seguinte redação - g) Em 05.12.2008, o autor liquidou o respetivo IMT no valor de €11.375,00.
No que respeita ao facto constante da alínea u) é também evidente que a referência a réus resulta de outro lapso de escrita, até porque o sujeito de tal facto é a ré AA e o negócio celebrado e em referência nos autos – a procuração em apreço na qual está inserido um mandato – foi realizado entre o autor e os tios daquela ré AA.
Assim ordena-se a retificação da redação de tal facto, substituindo-se “réus” por “seus tios”, passando o mesmo a ter a seguinte redação - u) A ré AA tinha conhecimento do negócio celebrado entre o autor e os seus tios.
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Pelo que se deixa consignado, considerando ainda o teor do detalhado despacho de fundamentação da decisão que recaiu sobre a matéria de facto, o teor dos depoimentos prestados em audiência final e dos documentos juntos aos autos, e como é sabido, devendo o Juiz apreciar livremente todas as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, cfr. art.º 607.º n.º5 do C.P.Civil, julgamos que a decisão proferida em 1.ª instância sobre os factos em apreço neste recurso deve manter-se inalterada, já que não se vislumbra que a mesma enferme de erro e, muito menos, erro grosseiro ou manifesto, não merecendo esta, por isso, qualquer censura, exceção feita à retificação da redação dos dois supra referidos factos.
Improcedem assim, parcialmente, as respetivas conclusões dos réus/apelantes.
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2.2. – Da ampliação da matéria de facto.
Defende o autor/apelante que o complexo fáctico julgado provado nos autos deve ser ampliado, para o que chama à colação o teor do depoimento prestado pela testemunha KK.
Em concreto, entende o apelante que deverão ser aditados os seguintes factos:
b.1 - Ambos os réus conheciam muito bem o negócio que o autor tinha feito com os seus tios e estavam completamente inteirados do facto de que o imóvel em questão não integrava o acervo hereditário da herança deixada por óbito.
Os réus entraram em contacto com o autor em data imediatamente posterior ao falecimento da mandante DD, a fim de confirmar a vigência da dita procuração, facto este que foi de imediato confirmado, pela, ao tempo, mandatária do autor Sra. Dra. KK.
b.2 - E na senda desse contacto, em 16.06.2020, o autor, por intermédio desta última fez chegar aos réus cópia da referida procuração irrevogável e dos cheques afetos ao pagamento do imóvel.
b.3- Agiram de forma intencional e dolosa, com o objetivo único de se locupletarem de um bem que não lhes pertence, aproveitando-se do testamento, pois bem sabia, que a herança não tinha património algum.
b.4 - Muito preocupa o autor e muita angústia lhe causa, a possibilidade de, dada a sua já avançada idade, vir a falecer sem ver resolvida esta questão, e assim, prejudicar os seus descendentes.
b.5 - A conduta dos réus causou ao autor danos não patrimoniais que pela sua gravidade merecem a tutela do direito”.
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Como é sabido a decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento da prova produzida. Com efeito, o conteúdo da decisão de facto pode apresentar-se excessivo, por envolver a consideração de factos essenciais ou complementares e concretizadores fora das condições de admissibilidade previstas no art.º 5.º n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil, mas também pode ainda, o conteúdo da mesma decisão traduzir-se na integração nos factos provados ou não provados de pura e inequívoca matéria de direito. E finalmente podem ainda evidenciar-se decisões, total ou parcialmente deficientes, obscuras ou contraditórias, resultantes da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares, da sua natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa ou reveladoras de incongruências, de modo que, conjugadamente, se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso em análise.
Nestas situações, a lei confere ao Tribunal da Relação o dever de, por um lado, deles conhecer oficiosamente, (independentemente da existência ou não de impulso da parte interessada) e, por outro, de os poder suprir imediatamente, desde que, naturalmente, constem do processo (ou da gravação) os elementos probatórios indispensáveis para esse suprimento.
Na verdade, além do mais, pode a decisão de facto com que é confrontado o Tribunal da Relação revelar-se deficiente, exigindo a sua ampliação, por terem sido desconsiderados nos temas de prova factos alegados pelas partes e essenciais para a resolução do litígio ou, ainda, por terem sido desconsiderados na decisão factos que se revelem essenciais para a resolução do litígio, na medida em que assegurem um enquadramento ou fundamentação jurídica diverso do que foi suposto pela 1.ª instância.
Nessa caso, preceitua a al. c) do n.º2 do art.º 662.º do C.P.Civil, que: “A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta“. Mas se, à partida, a consequência deverá ser a anulação da sentença, essa medida deve ser tomada em último recurso, ou seja, apenas quando de outro modo não seja possível superar a situação, por forma a fixar com segurança a matéria de facto provada e não provada, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, tendo em conta, além do mais, os efeitos negativos que essa anulação determina ao nível da celeridade e da eficácia.
Neste sentido refere A. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma de Processo Civil”, vol. I, pág. 251-255, “a anulação da decisão de 1.ª instância apenas deve ser decretada se do processo não constarem todos os elementos probatórios relevantes. Ao invés, se estes estiverem acessíveis, a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas “ e “Deparando-se a Relação com respostas que sejam de reputar deficientes, obscuras ou contraditórias, se a reapreciação dos meios de prova permitir sanar a deficiência, obscuridade ou a contradição, a Relação fá-lo-á sem necessidade de reenviar o processo ao tribunal recorrido, após o que prosseguirá com a apreciação das demais questões que o recurso suscite. No caso inverso, cabe-lhe assinalar as referidas nulidades, determinar a anulação (parcial) do julgamento e ordenar que o tribunal a quo as superar“.
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A este propósito alega o autor/apelante que “A prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, analisada criticamente e devidamente valorada conduz a uma decisão diversa da que foi proferida e a decisão sobre a matéria de facto constitui uma violação do direito probatório, maxime na vertente de análise, avaliação e valoração de prova produzida nos autos.
Conquanto entende o recorrente, que além dos factos doutamente dados como assentes, é matéria que deveria ser levada a especificação por dever resultar provado e com interesse para a decisão da causa que: (…)
Foram indevidamente desconsideradas pelo Tribunal à quo as declarações prestadas pela testemunha Dra. KK.
Veja-se, refere o douto tribunal à quo, que no que se reporta a esta testemunha considerou que a sua intervenção precedeu da sua identificação com advogada do autor, o que levou à desconsideração do depoimento em causa como meio de prova (art.º 92.º n.º5 do EOA).
Ora, diz-se indevidamente considerando que,
A testemunha começou por elucidar o Tribunal que pese embora preste serviços como advogada nas empresas do autor/recorrente, é também, e antes de tudo, amiga de longa data do autor/recorrente e sua família, e como adiante melhor se esmiuçará, deixou claro que nunca assumiu o patrocínio ou foi mandatada para tratar desta questão em particular, servindo apenas de interprete ao autor/recorrente.
(…)
Não sendo aplicável in casu a previsão do n.º 5 do art.º 92.º do EOA,
Pelo que mal andou o Tribunal a quo, que sem mais, e socorrendo-se genericamente deste normativo, decidiu pela desconsideração do depoimento desta testemunha, erro de julgamento que se invoca.
(…)
Pelo que, e atendendo aos depoimentos das testemunhas KK, HH, FF e GG, conjugados com a prova documental junta aos autos, é translucido e evidente que os Réus tinham conhecimento da existência da procuração irrevogável, do negócio feito entre o autor/recorrente e os seus tios, e inclusivamente, do preço já pago pelo autor/recorrente, facto que foi confirmado por estas testemunhas (…)”.
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Ora, vendo o teor dos factos que pretensamente o autor/apelante pretende que sejam adicionados ao complexo fáctico provado nos autos temos de concluir que os mesmos não resultam de qualquer alegada omissão de consideração na sentença recorrida de factos relevantes para a boa decisão da causa qualquer que seja a solução de direito do presente litígio. E temos de concluir que o que o autor/apelante efetivamente pretende é que este tribunal julgue agora provado vários factos que foram julgados não provados em 1.ª instância, veja-se que a 1.ª instância julgou, além do mais, não provado que:
4) Ambos os réus conheciam muito bem o negócio que o autor tinha feito com os seus tios e estavam completamente inteirados do facto de que o imóvel em que os seus tios viviam já não lhes pertencia.
5) Os réus entraram em contacto com o autor em data imediatamente posterior ao falecimento da mandante DD, a fim de confirmar a vigência da dita procuração, facto este que foi de imediato confirmado, pela, ao tempo, mandatária do autor, a Sra. Dra. KK.
6) E na senda desse contacto, em 16.06.2020, o autor, por intermédio desta última fez chegar aos réus, cópia da referida procuração irrevogável e dos cheques afetos ao pagamento do imóvel.
7) Não obstante os réus terem o inequívoco conhecimento de que não poderiam adquirir o imóvel, estes trocaram o canhão da fechadura de forma a impedir o autor de aceder ao mesmo.
8) De forma intencional e dolosa, com o objetivo único de se locupletarem de um bem que não lhes pertence, aproveitando-se do testamento, pois bem sabiam que a herança não tinha património algum.
10) Muito preocupa o autor, e muita angústia lhe causa, a possibilidade de, dada a sua já avançada idade, vir a falecer sem ver resolvida esta questão, e assim, prejudicar os seus descendentes.
Portanto, apenas o último pretenso facto (pois, manifestamente trata-se de uma conclusão com evidente e direta conotação jurídica) que o autor pretende que seja aditado ao complexo fáctico apurado nos autos, ou seja, “b.5 - A conduta dos réus causou ao autor danos não patrimoniais que pela sua gravidade merecem a tutela do direito”, não resulta do elenco factual que já neles considerado.
Em suma, não se trata de um pedido de ampliação da matéria de facto considerada em 1.ª instância, trata-se fundamentalmente da valoração ou não do depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha arrolada pelo autor/apelante - KK, advogada, a qual à ocasião foi questionada e informou que o seu depoimento não se encontrava abarcado por dever de sigilo profissional.
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A 1.ª instância, perante o inconformismo dos réus/apelantes sobre a potencial valoração de tal depoimento entendeu de imediato que “(…) a questão suscitada apenas poderá relevar em sede de valoração do meio de prova, tendo em conta que a testemunha, questionada a esse respeito, negou a qualidade de advogada do autor”. E mais tarde, em sede de decisão recorrida, fez consignar que “No que respeita aos factos não provados, os mesmos resultaram, quer da total ausência de prova, quer da prova em sentido contrário (ocasião da entrega da chave e uso dado pelo autor; ligação do réu BB aos factos e seu conhecimento – ou convicção que teriam quanto ao valor e validade do documento; autoria da troca de fechaduras), quer ainda, e por último, no que respeita aos factos 5) e 6), na circunstância de a sua corroboração em audiência de julgamento ter advindo da ali referida mandatária, sem prévio levantamento do sigilo profissional, considerando o tribunal que a sua intervenção nas comunicações mantidas foi precedida da sua identificação como advogada do autor (de que também será amiga), o que levou à desconsideração do depoimento em causa como meio de prova (art.º 92.º, n.º5 do EOA)”.
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Vejamos.
A testemunha declarou que a nível profissional “ajuda” o autor nas questões que o mesmo tem, mormente nas suas empresas, todavia também tem uma relação de amizade com o autor e com a filha deste, tendo efetivamente prestado serviços de advocacia para o autor desde há mais de 10 anos a esta parte.
Sobre a questão concreta dos autos, sobre a qual revelou estar bem por dentro de toda a questão jurídica que o mesmo envolve, a testemunha declarou, em síntese, que conhece a questão por ter visto os documentos e por ter tido conhecimento da mesma pelo autor e, mais declarou que “…durante muitos anos nós andamos aqui porque não há uma licença de utilização...” admitindo expressamente que andou a “ajudar” o autor com fundamento e estribada na sua profissão de advogada para obter tal licença de habitabilidade a fim de se propiciar a outorga da escritura de compra e venda. Mais declarou que, logo quando os réus comunicaram ao autor, após a morte da D. DD, que segundo entendiam o mesmo não tinha qualquer direito ao imóvel, aquele logo falou consigo, e ela logo diligenciou, evidentemente no âmbito da sua formação jurídica e atividade profissional como advogada por enviar à mandatária dos réus os documentos que o autor possuía a fim de os esclarecer da situação jurídica que existia subjacente ao caso e assim tentar a resolução da questão, todavia, sem êxito.
Ora, preceitua o art.º 92.º do EOA, sob a epígrafe “Segredo profissional” que:
1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6, 7 e 8 (…)”. (negrito nosso).
Depois de ouvir o depoimento prestado pela referida testemunha, é para nós manifesto que a mesma, advogada de profissão, teve conhecimento dos factos que reportou em audiência de julgamento e, apesar de não se ter provado que tal conhecimento resultou ou lhe tenha advindo do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços a que se reportam as alíneas do n.º1 do referido preceito legal, é nossa segura convicção que o conhecimento dos mesmos lhe adveio essencialmente pela sua formação e atividade profissional que exerce e tinha já exercido noutros casos em prol dos interesses do autor, e não por ser apenas “amiga deste”, ou seja, tal situação é enquadrável na previsão do n.º2 do supra referido preceito legal, “…quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço”, logo os factos que relatou em juízo estão abrangidos pelo dever de sigilo profissional de advogado e assim sendo não podem fazer prova em juízo.
Ademais não se pode olvidar que o próprio autor/apelante em sede de p. inicial alegou que “Ademais, os réus entraram em contacto com o autor em data imediatamente posterior ao falecimento da mandante DD, a fim de confirmar a vigência da dita procuração, facto este que foi de imediato confirmado, pela mandatária do autor, a Sra. Dr.ª KK. E na senda desse contacto fez chegar aos réus, cópia da suprarreferida procuração irrevogável e dos cheques afetos ao pagamento do imóvel. Acresce que, ao tempo foi igualmente comunicado aos réus. proceder à realização da escritura de compra e venda. E ainda assim, não obstante os réus terem o inequívoco conhecimento de que não poderiam por via sucessória adquirir o dito imóvel …”.
Destarte nenhuma censura nos merece o decidido em 1.ª instância a este propósito, não estando nós, como acima já se deixou consignado, perante uma questão de ampliação da matéria de facto considerada em 1.ª instância.
Improcedem, pois, as respetivas conclusões do autor/apelante.
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Finalmente, sempre se dirá que podemos, por hipótese, vendo o alegado pelo autor/apelante, estar perante uma questão de impugnação da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância, mormente que ao autor/apelante pretende que os factos julgados não provados em 1.ª instância e aí elencados sob os pontos 4 a 8 e 10 sejam agora julgados provados.
Para tanto, chama o autor/apelante à colação o teor dos depoimentos das testemunhas HH e GG.
E assim sendo falece por inteiro a objeção apontada pelos réus/apelantes à admissibilidade do recurso apresentado pelo autor/apelante, mostrando-se assim o mesmo tempestivo e tendo mesmo cumprido minimamente os ónus de alegação a que se reporta o art.º 640.º do C.P.Civil.
Ora, ouvida, cuidadosamente, a gravação destes depoimentos e, além do mais, intuindo da espontaneidade e convicção das respostas e depois de tudo analisado e interpretado à luz da experiência da vida e da razoabilidade das coisas, julgo que não assiste razão ao autor/apelante, ou seja, temos de concluir que, no seu essencial, a decisão sobre a matéria de facto, supra mencionada, não enferma de erro na apreciação da prova e consequentemente deverá manter-se inalterada.
Na realidade é nossa segura convicção de que o autor/apelante não logrou fazer prova necessária, segura e cabal da realidade de tais factos. Isto fundamentalmente tendo em mente o global dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, mormente o declarado espontaneamente pela testemunha HH, (“sobrinho emprestado, como referiu, dos falecidos EE e DD pois a sua madrasta era irmã do Sr. EE), quando questionado diretamente sobre tais factos, ou seja, sobre o conhecimento que havia do “negócio” alcançado entre o Sr. EE e o autor declarou espontaneamente que “… da família todos sabiam, e mesmo aquelas pessoas … o meu tio dizia a toda a gente …isto aqui é assim,…acho que a D. AA também sabia…”.
Já a testemunha GG, cabeleireiro de homens, conhece o autor e os falecidos Sr. EE e a D. DD desde 1989, relativamente a esta questão fáctica trazida pelo autor/apelante declarou que “… tudo mundo sabia que o Sr. EE ia vender a casa ao autor por 35.000 contos…eu era como se fosse filho dele (do Sr. EE) e ele contou-me tudo…”. O que sucedeu, tendo o autor pago essa quantia ao Sr. EE, ainda ao tempo da vida deste, convertida em euros.
Mais declarou esta testemunha que não conhece os réus, tendo-os visto ocasionalmente por uma ou outra vez, pelo que hoje não os reconhecerá. Mais declarou que o pai dos réus, que faleceu em 2017 depois do Sr. EE, bem sabia do negócio realizado entre o seu cunhado – o Sr. EE e o autor – tendo conversado com a testemunha sobre o mesmo. A testemunha disse ainda concretamente quando questionada sobre tal questão “…há isso … eu sabia… então eles não sabiam do que se estava a passar… por amor de Deus…”. Mais declarou ainda que quando o autor lhe contou da situação atual com os réus, declarou que o “… sofre com isto … quem é que não sofre … é uma injustiça, é uma vergonha …”.
Pelo que se deixa consignado, considerando ainda o teor do despacho de fundamentação da decisão que recaiu sobre a matéria de facto, o teor dos depoimentos prestados em audiência final e como é sabido, devendo o Juiz apreciar livremente todas as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, cfr. art.º 607.º n.º5 do C.P.Civil, julgamos que a decisão proferida em 1.ª instância sobre os factos em apreço neste recurso deve manter-se inalterada, já que não se vislumbra que a mesma enferme de erro e, muito menos, erro grosseiro ou manifesto, não merecendo esta, por isso, qualquer censura, pois efetivamente o autor/apelante não logrou fazer prova necessária, segura e cabal sobre a realidade de tais factos.
Improcedem as respetivas conclusões do autor/apelante.
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3.ª questão – De Direito.
Como se viu a 1.ª instância não julgou provado que os réus/apelantes ao registarem a aquisição do imóvel em apreço em seu nome por via da aquisição testamentária por morte dos seus tios tivessem agido em manifesto abuso de direito.
Para tanto, considerou-se na decisão recorrida que: “(…) como preliminar de tal apreciação, haverá que ter em conta a circunstância de não se ter provado o conhecimento inequívoco que os réus tinham de que não poderiam adquirir o imóvel ou que tenham atuado com o objetivo de se locupletarem de um bem que não lhes pertence.
Não obstante os factos evidenciarem que a ré AA teria conhecimento do negócio celebrado entre os seus tios e o autor, esse conhecimento não nos permite presumir que a ré tenha aceitado tal negócio como válido ou como tendo sido formalizado por documento juridicamente apto a retirar o imóvel do acervo hereditário.
Como foi referido no acórdão junto aos autos em 14.02.2022, que decidiu indeferir um procedimento cautelar instaurado pelo aqui autor contra os ora réus (processo n.º7544/20.2T8VNG.P1), a procuração irrevogável não implica a transmissão jurídica da posição jurídica do dominus, que se mantém como titular dessa posição jurídica, agindo o procurador em seu nome. Ou seja, pela via da procuração não se opera a transmissão da propriedade sobre o imóvel (como foi referido a propósito da apreciação da validade da procuração), antes se traduzindo os seus efeitos na entrega ao procurador dos poderes representativos necessários para que ele possa, por si só, e sem necessidade do concurso do representado, assegurar e executar os atos de cumprimento (v. Acórdão citado).
No caso concreto, ao conferirem os representados ao autor os poderes que originariamente detinham de legalização e transmissão do imóvel, tais poderes são retirados da esfera jurídica dos representados, para passarem para a esfera jurídica do dominus, com a consequência de não poderem os primeiros dispor do imóvel. Dado que a procuração é irrevogável, com validade após a morte dos representados, a ausência de poderes de disposição do bem reflete-se, tanto em relação a atos de transmissão inter vivos, como a qualquer via de transmissão mortis causa, isto é, não poderia, pela via testamentária, ser transmitido para os herdeiros, aqui réus, qualquer direito sobre o imóvel.
A validação da transmissão mortis causa por via da qual os réus registaram o imóvel em seu nome – a causa aquisitiva corresponde a “sucessão testamentária” – corresponderia à aceitação da possibilidade de revogação da procuração por morte do representado, sem que ocorra justa causa, contrariando a previsão do art.º 265.º, n.º3 do Código Civil (regra da irrevogabilidade). Se, por efeito da morte dos representados, os réus passaram a assumir a posição contratual destes, isto é, a posição de dominus, reconhecer eficácia à transmissão seria conferir-lhes o poder de livre e unilateralmente revogarem a procuração, o que viola diretamente a previsão legal citada.
O que os réus adquiriram, por efeito da sua condição de únicos herdeiros e sucessores testamentários, foi a posição jurídica que a autora da herança detinha na procuração, com consequente obrigação de respeitar os termos da mesma, passando a atuar como representados, que conferiram legitimidade a outrem – o autor – para legalizar e dispor do imóvel, logo, sem legitimidade para disporem deste em seu benefício.
O imóvel teria que permanecer na titularidade da herança aberta por óbito dos representados, mantendo-se todos os poderes que o autor tinha por efeito da válida outorga da procuração, cujos efeitos se prolongam para além da morte daqueles”.
O autor/apelante insurge-se contra o assim decidido, mas sem razão.
Ao abuso de direito se reporta o art.º 334.º do C.Civil, que dispõe:
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil anotado”, vol. 1, pág. 299, “que o exercício de um direito só poderá ser ilegítimo quando houver manifesto abuso, ou seja, quando o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, traduzindo uma clamorosa ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante.”
Efetivamente, na base do abuso do direito está o propósito exclusivo de criar à outra parte uma situação lesiva, através do funcionamento da lei.
Como é sabido, o abuso de direito desdobra-se em quatro casos-tipo de aplicação do princípio da boa fé, ou seja: 1 - a proibição de consubstanciar, dolosamente, posições processuais, ou exceptio doli; 2 - a proibição de venire contra factum propprium; 3- a proibição de abuso de poderes processuais; e 4 - e a neutralização ou suppresio.
A ilegitimidade do exercício abusivo do direito traz consigo as consequências de qualquer ato ilícito, nomeadamente, a nulidade, a que se reporta o art.º 294.º do C.Civil, cfr. Vaz Serra, in RLJ, Ano 107.º, 25.
Na verdade, é também nosso entendimento, face ao complexo fáctico provado nos autos que não resultou inequívoco que os réus ao registaram o imóvel em seu nome – a causa aquisitiva corresponde a “sucessão testamentária” estivessem conscientes e verdadeiramente inteirados de que, por via da existência da procuração irrevogável outorgada pelos seus tios ao autor, a mesma manter-se-ia em vigor após a morte daqueles e ainda que tal implicava a ausência de, na qualidade de herdeiros testamentários daqueles, poderes de transmissão de tal bem imóvel. Toda a situação em apreço é complexa, quer factual quer juridicamente, daí que, mesmo que os réus tenham solicitado apoio jurídico face à existência da procuração em apreço, temos por evidente que, porventura, apenas pela via judicial e respetiva decisão, poderão os réus se consciencializar do teor, âmbito, alcance e efeitos da procuração em apreço.
Mas considerando que os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo, como é aquela que proíbe o abuso de direito, a que se reporta o art.º 334.º são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei, nos termos do estipulado pelo art.º 294.º, ambos do C.Civil, tendo natureza excecional as disposições que fixam as sanções da ineficácia, stricto sensu, ou da simples anulabilidade, tratando-se da violação de normas de interesse e ordem pública, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, pág. 269.
No caso concreto, a alegada atuação lesiva dos réus consubstanciou-se na inscrição do imóvel em seu nome por via da alegada aquisição testamentária, pelo que depois de interpretada e decidida a validade e a eficácia da procuração naturalmente irrevogável outorgada pelos falecidos ao autor, cfr. art.º 265.º n.º3 do C.Civil, não se tratando de uma nulidade do registo, houve que determinar o cancelamento do respetivo registo de aquisição do imóvel a favor dos réus/apelantes, por resultar que os mesmos não dispunham de quaisquer poderes/legitimação necessários e ativos para, tal como os seus falecidos tios já não tinham, para agirem sobre a propriedade/titularidade de tal imóvel.
Destarte, e sem necessidade de outros considerandos, confirma-se a decisão recorrida nos que concerne à improcedência de tal pedido e, consequentemente do pedido de indemnização também formulado.
Improcedem as respetivas conclusões do autor/apelante.
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Por seu turno, os réus/apelantes insistem em deliberadas, ou não, confusões conceituais no que concerne à natureza da procuração outorgada pelos seus falecidos tios ao autor, mormente no que respeita à relação subjacente à sua outorga, ao negócio que se pretendia realizar, ao interesse em relação ao qual a mesma foi outorgada, ao conceito de dominus antes e depois da morte dos seus tios, com o único fito de lhes poder a vir ser reconhecida a titularidade do imóvel em apreço.
Mas, quanto às devidas respostas jurídicas a todas estas questões, consta da decisão recorrida, além do mais, que “(…) Constitui núcleo essencial da ação a apreciação da natureza e valor jurídico da procuração reconhecidamente outorgada pelos falecidos EE e DD a favor do autor, cuja eficácia temporal e irrevogabilidade são questionados pelos réus.
(…)
No caso em apreço, a procuração foi designada como “irrevogável”, questionando os réus que a mesma tenha sido outorgada no interesse comum do procurador e dos representados.
Tanto quanto resulta da prova produzida, os representados, proprietários do imóvel identificado no texto da procuração, decidiram vendê-lo, por pretenderem assegurar liquidez financeira, tendo o autor interesse em comprar, por ser dono da casa geminada. Os procuradores receberam o valor de 174.580,00 € e continuaram a residir no imóvel até à sua morte, ou seja, obtiveram o proveito do recebimento do preço, sem o prejuízo da desocupação do imóvel, assegurando o autor, pela via da procuração, que teria poderes para vender pelo preço fixado, incluindo o poder de fazer negócio consigo mesmo (interesse que presidiu ao acordo), bem como todos os poderes para diligenciar pelo licenciamento do imóvel, que constituía pressuposto da realização da venda.
Parece claro que a procuração incorpora um interesse de ambas as partes, interesse que, para além de declarado na procuração, constitui a realidade que conduziu à sua outorga.
(…)
Na situação em litígio, o negócio jurídico para cuja celebração foram conferidos poderes ao autor era do interesse objetivo dos representados, que visavam obter a quantia em dinheiro correspondente ao preço do imóvel que pretendiam vender, advindo o interesse próprio e primário destes na outorga da procuração da circunstância de inexistir outra via de alcançarem o pretendido encaixe financeiro, por impossibilidade de realização imediata do negócio. Não se antevê qualquer via alternativa de os outorgantes receberem o quantitativo pretendido sem, simultaneamente, assegurarem e garantirem o interesse do autor, que, não podendo de imediato comprar, de acordo com a normalidade, apenas pagaria o preço se lhe fossem conferidos os poderes para viabilizar essa compra num momento futuro, uma vez assegurada a legalização.
Existe, assim, objetivamente, um interesse patrimonial de ambos, que justifica a irrevogabilidade da procuração e, nesta medida, como se refere no seu texto, a sua não caducidade por efeito da morte dos mandantes/procuradores.
Invocam os réus que, visando a procuração concretizar um contrato verbal de compra e venda, a mesma é nula por vício de forma. Porém, os factos (alegados e provados) demonstram que a procuração não constitui um contrato verbal de compra e venda, nem se confunde com tal negócio jurídico, independentemente da qualificação jurídica que o autor possa dar ao negócio, firmada pela circunstância de ter cumprido de imediato a obrigação de pagamento do preço que sobre si impendia. Não existe uma transmissão verbal da propriedade, cujo vício de forma se imponha apreciar, existindo, isso sim, um documento que confere ao autor os poderes para formalizar uma transmissão de propriedade que, precisamente por não poder ser verbal, nem se encontrarem reunidos os pressupostos legais que viabilizassem a sua imediata formalização, transmitiu para o autor os poderes necessários a tal oportuna formalização, antecipando, em benefício dos procuradores, os efeitos que se traduziam na satisfação do seu interesse.
Quando em causa está, como ora sucede, uma procuração irrevogável, o procurador apenas se obriga a praticar atos em nome de outrem, sendo um puro ato de representação, pelo que relevante para a definição da validade não será verificarmos se o negócio que a procuração legitima o mandatário a realizar é, naquele momento, passível de ser validamente realizado, mas sim se os poderes conferidos assentam num direito que se insere na esfera jurídica dos representados, traduzindo a procuração um meio de o procurador exercer esse direito, em nome daqueles.
Cremos que não existem dúvidas que os representados tinham poderes para diligenciar pela legalização do imóvel e, uma vez concretizada tal legalização, venderem o mesmo, recebendo o respetivo preço, antecipando, pela via da outorga da procuração, a prestação que emergiria da realização do contrato no momento em que os seus poderes, ali “delegados”, lograssem ver reunidos os pressupostos da necessária formalização.
Note-se que o risco passa a correr na sua totalidade na esfera jurídica do procurador, que é o único que, caso não logre, com os seus poderes de legalização, concretizar esta última, já dispôs de um valor que não vai conseguir recuperar (ou apenas recuperará por efeito do prévio reconhecimento de um crédito sobre a herança), não existindo qualquer perigo de realização de um negócio formalmente nulo, mas apenas o risco, que os representados evitaram, de não conseguir concretizar o negócio que constituiu a relação jurídica subjacente, cuja validade não pode ser vista apenas à luz do seu fim último (compra e venda), mas também à luz do seu fim intermédio (legalização), que legitima e valida os poderes outorgados.
Inexiste, por isso, s.m.o., qualquer vício formal que afete a validade da procuração, que, conforme concluímos, é válida, outorgada no interesse comum de mandante e mandatários, irrevogável e, consequentemente, eficaz após a morte dos mandantes.
No que respeita à invalidade que os réus fazem assentar na circunstância de o autor alegar que, desde a data da procuração, exerceu todos os poderes subjacentes à propriedade do imóvel e que terá celebrado um contrato de comodato com os tios dos réus, que lhes permitiu permanecer a residir na casa “vendida” até à sua morte, facto em que os réus fazem assentar a conclusão de que, a ser assim, os tios dos réus não poderiam validamente conferir poderes de que não dispunham, enquanto comodatários, importará mencionar que, a ser levada ao extremo tal conclusão, os réus não poderiam igualmente adquirir o imóvel da herança, já que seriam herdeiros da comodatária.
O facto de o autor se sentir dono do imóvel, por lhe ter sido conferido o poder mais amplo que se inclui na esfera jurídica dos proprietários (livre disposição da coisa que lhe pertence – art.º 1305.º do Código Civil) e ter pago o preço fixado, não significa que o contrato realizado se confunda com uma compra e venda ou produza os efeitos translativos desta, como já foi referido. A qualificação jurídica que o autor faz do direito que conferiu aos tios dos réus não é vinculativa ou atendível, antes resultando da prova produzida (alíneas h) e r) dos factos provados) que o autor, com base na relação de amizade próxima que tinha com os tios dos réus, não praticou os atos cujos poderes lhe foram conferidos pela procuração, permitindo que aqueles ali permanecessem a residir gratuitamente, sem que tal decisão tenha raiz contratual ou uma base passível de gerar obrigações para qualquer das partes.
(…)
No caso concreto, ao conferirem os representados ao autor os poderes que originariamente detinham de legalização e transmissão do imóvel, tais poderes são retirados da esfera jurídica dos representados, para passarem para a esfera jurídica do dominus, com a consequência de não poderem os primeiros dispor do imóvel. Dado que a procuração é irrevogável, com validade após a morte dos representados, a ausência de poderes de disposição do bem reflete-se, tanto em relação a atos de transmissão inter vivos, como a qualquer via de transmissão mortis causa, isto é, não poderia, pela via testamentária, ser transmitido para os herdeiros, aqui réus, qualquer direito sobre o imóvel.
A validação da transmissão mortis causa por via da qual os réus registaram o imóvel em seu nome – a causa aquisitiva corresponde a “sucessão testamentária” – corresponderia à aceitação da possibilidade de revogação da procuração por morte do representado, sem que ocorra justa causa, contrariando a previsão do art.º 265.º, n.º3 do Código Civil (regra da irrevogabilidade). Se, por efeito da morte dos representados, os réus passaram a assumir a posição contratual destes, isto é, a posição de dominus, reconhecer eficácia à transmissão seria conferir-lhes o poder de livre e unilateralmente revogarem a procuração, o que viola diretamente a previsão legal citada.
O que os réus adquiriram, por efeito da sua condição de únicos herdeiros e sucessores testamentários, foi a posição jurídica que a autora da herança detinha na procuração, com consequente obrigação de respeitar os termos da mesma, passando a atuar como representados, que conferiram legitimidade a outrem – o autor – para legalizar e dispor do imóvel, logo, sem legitimidade para disporem deste em seu benefício.
O imóvel teria que permanecer na titularidade da herança aberta por óbito dos representados, mantendo-se todos os poderes que o autor tinha por efeito da válida outorga da procuração, cujos efeitos se prolongam para além da morte daqueles (…)”.
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A Procuração em apreço nos autos tem o seguinte teor:




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Trata-se de uma procuração, ou seja, de harmonia com o preceituado no n.º1 do art.º 221.º do C.Civil é o ato pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos.
Procuração é, pois, o negócio jurídico unilateral, por meio do qual alguém - o dominus - atribui a outrem - o procurador - poderes para que este celebre negócios ou pratique outros atos jurídicos em sua representação e o substitua, assim, na prática desses atos ou negócios.
O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último, cfr. art.º 258.º do C.Civil, sendo anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses, cfr. art.º 261.º n.º1 do C.Civil.
E assim a procuração sendo um negócio jurídico unilateral não necessita de aceitação pelo procurador. Ou seja, exteriormente, do facto de alguém ter outorgado uma procuração a outrem decorre que o procurador não tem qualquer necessidade de justificar a razão pelos quais o dominus lhe outorgou tais poderes de representação, bastando-lhe a invocação da qualidade de procurador que resulta da procuração, cfr. art.º 262.º n.º1 do C.Civil.
Nos casos correntes, através da procuração, o dominus atribui poderes ao procurador para que este o represente na prática de atos determinados ou na celebração de certo contrato, agindo por conta e no interesse deste. Nestes casos a procuração reflete tão só/ou exclusivamente o interesse do dominus, não obstante existir intervenção da vontade do procurador no domínio da concretização do interesse do dominus a que está vinculado.
Tendo o dominus outorgado poderes de representação ao procurador, pelos que os atos praticados por este no exercício desses poderes se refletem na esfera jurídica do dominus, o procurador não fica constituído na obrigação de os exercer, nem de como os deverá exercer, pelo que há que indagar na relação subjacente à outorga da procuração – qual o conteúdo, âmbito e modo de exercício desses poderes de representação, sendo também dela que se infere qual o interesse do dominus, ou seja, quais os fins ou objetivos que pretende atingir com a constituição desse procurador. Isto, sem olvidar que tendo-se conferido poderes para a realização de determinado negócio, ele não se confunde com a relação subjacente que é muito mais ampla e onde são interessados o dominus e o procurador e eventualmente terceiras pessoas – ela é a causa da outorga da procuração, pois esta destina-se ao cumprimento do seu fim.
Sobre a relação subjacente à outorga da procuração, refere Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, in “Procuração Irrevogável”, pág. 99, que o dominus tem, em princípio, um qualquer motivo para outorgar, pois de outro modo não o faria. De modo semelhante, também o procurador tem algum motivo para não renunciar à procuração e para exercer os poderes de representação.
Por regra, e como é o caso subjudice, a relação subjacente à outorga da procuração advém de um contrato de mandato – aquele em que uma parte se obriga a praticar atos jurídicos por conta de outrem, cfr. art.º 1157.º do C.Civil.
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No caso em apreço, como o autor/procurador se obrigou perante os dominus (falecidos EE e DD) a praticar os atos jurídicos ou a celebração dos negócios ali determinados e cujos efeitos se produzem diretamente na esfera jurídica dos mandantes, a tal mandato teve de ser necessariamente associada uma procuração que conferiu ao mandatário os necessários poderes de representação.
Mas como se vê do teor da procuração em apreço consta que: “A presente procuração é conferida também no interesse do mandatário, é irrevogável, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo, e não caduca por morte …”.
Preceitua o n.º3 do art.º 265.º do C.Civil que “Mas, se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”.
Prevê-se aqui a situação da outorga da procuração no interesse comum do dominus e do procurador. E como bem refere Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, in “Procuração Irrevogável”, pág. 99 “Apesar de admitir a procuração no interesse comum de dominus e procurador e de indicar a principal consequência, não refere quando é que se deve considerar que a procuração é no interesse de dominus e procurador, nem o que se deve entender por interesse, nem ainda sobre que deve recair o interesse, e deixa essa tarefa à Doutrina e Jurisprudência, evitando assim, e bem, prender-se a definições”.
Segundo este mesmo autor, in obra citada, pág.100, “O interesse que é relevante na concretização do regime jurídico da procuração, no que respeita à revogabilidade, pode ser designado por interesse primário” e mais adiante conclui que “o interesse primário deverá ser aferido na perspetiva da execução do negócio que constitui a relação subjacente”. E assim refere ainda in obra citada pág. 105 que “O interesse primário deve ser próprio, específico, objetivo e direto na execução do negócio que constitui a relação subjacente, de tal modo que o procurador tenha uma posição própria no âmbito da relação de representação, uma posição autónoma da posição da pessoa que representa. Uma posição que lhe permita exercer a sua própria vontade negocial diferentemente e autonomamente da vontade negocial do outorgante da procuração, dentro daquilo que a relação subjacente lhe permita ou de acordo com o que a relação subjacente implique. Uma posição que atribua ao procurador um poder próprio”.
No que concerne à irrevogabilidade da procuração, o mesmo autor concretiza, in obra citada, pág. 107 que “A existência de um interesse relevante na procuração, para além do interesse do dominus, resulta da própria relação subjacente. É por esta razão que, nos termos do artigo 265.º n.º2 do Código Civil, a mera convenção de irrevogabilidade não implica, só por si, a irrevogabilidade da procuração. A irrevogabilidade da procuração resulta de um jogo de interesses na procuração que é consequência da relação subjacente e não da simples vontade de dominus e procurador”.
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In casu” foi convencionado no texto da procuração, que aliás respeita os requisitos de forma previstos na lei, cfr. n.º2 do art.º 262.º do C.Civil, a sua irrevogabilidade, isto, sem se olvidar que a irrevogabilidade de uma procuração vigorará independentemente da sua estipulação na procuração.
Sem se olvidar que o regime especial da procuração irrevogável, ao passar a comportar um maior risco para o dominus, exigia agora uma certeza quanto à garantia de conformidade com a vontade do dominus, que não era suficientemente satisfeita com uma declaração que constasse de documento simples, ainda que reconhecido notarialmente. Daí e mais concretamente no que respeita à forma, sendo uma procuração irrevogável tinha de obedecer a requisitos de forma para que a validade do ato celebrado (a escritura publica de compra e venda) não viesse a ser afetada, cfr. art.º 268.º do C.Civil.
Assim, dispõe o n.º2 do art.º 116.º do C.Notariado: “2 - As procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro devem ser lavradas por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial”.
Nos termos de tal norma, a procuração dos autos teria de ser lavrada por “instrumento público” e o seu “arquivamento teria de constar no cartório notarial”.
Esta exigência foi introduzida no art.º 127.º do C. Notariado, aprovado pelo DL. n.º 67/90 de 1.03, que lhe introduziu um n.º3, e veio, depois, a ser reafirmada pelo novo C. Notariado, aprovado pelo DL. n.º 207/95, de 14.08, transitando para art.º 116.º n.º3 e constando agora no n.º2 da mesma norma, mercê da alteração introduzida pelo DL. n.º 250/96, de 24.12. E como refere Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, in obra citada, pág. 245, “(…) a “ratio” do n.º2 do art.º 116.º do Cód. Notariado, e o seu sentido jurídico traduzem-se num agravamento do regime formal da procuração irrevogável, em relação ao regime geral. Este agravamento tem uma finalidade de tutela da liberdade de discernimento do dominus na outorga da procuração, de certeza quanto ao conteúdo e regime da procuração e de publicidade no interesse de terceiros, designadamente aqueles com quem o procurador venha a contratar no uso da procuração (…) a intervenção notarial promove a clarificação da situação, de modo a tornar claro que se trata de uma procuração irrevogável, que a mesma é outorgada no interesse do procurador ou de terceiro e não de uma típica procuração no interesse exclusivo do dominus. E, finalmente, permite ainda guardar no arquivo, no cartório notarial, o original do instrumento que titula a procuração, o que acarreta inegáveis vantagens de publicidade e segurança”.
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Depois do que se deixou consignado, temos como indiscutível que a situação configurada nos autos é de uma procuração irrevogável, tal como prevê o art.º 265.º n.º3, do C.Civil. Com efeito, como bem analisou a 1.ª instância, da leitura da procuração resulta que a mesma foi conferida no interesse do representante, interesse que se evidencia pelo facto de os representados, por referência ao direito de propriedade sobre o bem em questão - terem conferido àquele e no interesse dele – representante – poderes para vender a quem, pelo preço que estipularam e nas demais condições que entendesse por convenientes, incluindo a si próprio, o dito prédio, dentro desse interesse primário do autor/procurador não é indiferente o facto deste e os mandantes terem uma relação de amizade de longa data, tendo ambos, em tempos idos, adquirido um terreno em compropriedade que depois dividiram e onde cada um, posteriormente construiu (cada um em seu lote) duas moradas geminadas, uma das quais corresponde ao imóvel a que se alude em procuração em causa, pelo que quando os mandantes decidiram vender o seu imóvel, de forma plausível no autor, dono da moradia com ele geminada, nasceu o interesse próprio, específico, objetivo e direto na execução desse negócio.
Considerando os demais factos provados nos autos, temos de concluir sem qualquer dúvida que, do conjunto de interesses para os quais a procuração foi outorgada, encontramos como “interesse primário do procurador”, a aferir na perspetiva da execução do negócio que constitui a relação subjacente, a venda do prédio identificado com uma vontade negocial diferente e autónoma da eventual vontade negocial dos outorgantes da procuração.

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Alegam agora os réus/apelantes que “…os falecidos EE e DD venderam ao autor e que este lhes comprou, pelo preço e 175.000,00 euros, o prédio urbano sido na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Vila nova de Gaia, descrito na 1.ª Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...36, da freguesia ... e inscrito na matriz sob o artigo ...59.º e que tal compra e venda não foi celebrada por escritura pública por impedimento legal, dado que o imóvel não possuía licença de utilização ou habitabilidade”.
A decisão de tal questão remete-nos para a interpretação da declaração negocial.
Nesse âmbito, como é sabido, a declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário, cfr. art.º 236.º, n.º2, do C.Civil, não o sendo, valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (teoria da impressão do destinatário), cfr. art.º 236.º, n.º1 do C.Civil. Todavia, nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto, cfr. art.º 238.º n.º1 do C.Civil, ou dito doutra forma: para que possa valer, o sentido atribuído pelo “declaratário normal” deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento que corporiza a garantia prestada e o sentido sem correspondência mínima no texto poderá ainda valer se traduzir a vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem e essa validade, cfr. art.º 238.º, n.º2 do C.Civil.
Também como é sabido, estas regras, no fundo, não são mais do que critérios interpretativos dirigidos ao juiz e às partes contratantes, sendo evidente que em homenagem aos princípios da proteção da confiança e da segurança do tráfico jurídico dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário (recetor). A lei, no entanto, não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjetivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, típico, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (sentido objetivo para o declaratário). E como refere Paulo Mota Pinto, in “Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico”, pág. 208 “… a interpretação da declaração negocial não tem em vista apurar a vontade do declarante ou um sentido que este tenha querido declarar, estando antes em causa o sentido objetivo que se pode depreender do seu comportamento”.
Também segundo Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, pág. 413: “A vontade negocial, vontade do conteúdo da declaração ou intenção do resultado (Geschäftswille) - consiste na vontade de celebrar um negócio jurídico de conteúdo coincidente com o significado exterior da declaração.
É uma vontade efetiva correspondente ao negócio concreto que apareceu exteriormente declarado”.
Acerca da formação do negócio jurídico e das modalidades de declaração negocial e seus elementos, Heinrich Ewald Hörster, in “A Parte Geral do Código Civil Português-Teoria Geral do Direito Civil”, págs. 433 refere que: “…O primeiro passo para o negócio jurídico consiste numa declaração de vontade…Para declarar a sua vontade, o declarante dispõe, em princípio, de todos os meios que lhe servem para se fazer entender.
Nesta ordem de ideias o Código Civil parte do princípio da liberdade declarativa e distingue, em função disso, três modalidades em que a vontade pode ser revelada, parte objetiva da “declaração da vontade…”.
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Ora, vistos os factos assentes nos autos e concretamente o teor das declarações constantes da procuração em apreço nos autos, é manifesto que a realização de qualquer contrato de compra e venda informal ou verbal é realidade que deles não resulta, nem do teor da dita procuração tal resulta. Na verdade, os falecidos apenas concederam os poderes necessários ao autor para vender (no futuro) tal imóvel pelo preço de €175.000,00. Não resulta do teor do declarado pelos outorgantes que os falecidos tenham transmitido a propriedade do referido imóvel à ocasião, para o autor ou para quem quer que fosse nessa altura já determinado, pois mais aludiram que concediam os necessários poderes ao autor, incluindo o de fazer negócio consigo mesmo, do que se infere que a expectativa normal esperada não seria essa. .
Quanto a tal valor que os falecidos estabeleceram como o preço para a pretendida futura venda, referiram os mesmos que o já receberam, não o preço de um qualquer negócio de compra e venda à ocasião realizado, tendo que entender-se que sucedeu tão só um adiantamento desse valor, justificado pela necessidade que à ocasião sentiram de acautelar/assegurar liquidez financeira (facto provado na al. j).
Inexistindo qualquer vontade negocial - à ocasião da outorga da procuração em apreço - de celebração no ato de um qualquer contrato de compra e venda ou seja, contrariamente ao invocado pelos réus/apelantes de que “os referidos EE e DD e o autor quiseram foi transmitir a favor deste a propriedade sobre o referido imóvel, mediante o preço de 175.000,00 euros” - prejudicada fica a questão da invocada nulidade do mesmo por violação da forma legal.
Na verdade, em nosso entender, o facto de se ter provado que:
Em 5.12.2008, o autor (em data anterior à outorga da procuração – de 18.12.2008) ter liquidado o IMT, no valor de €11.375,00, relativo ao imóvel cujos poderes para o alienar lhe foram depois concedidos pelos falecidos EE e DD;
Pelo menos desde 2017 o autor procede à liquidação anual do IMI referente ao imóvel.
Desde a data da outorgada da procuração que o autor passou a realizar e custear todas as obras de reparação e manutenção necessárias no imóvel, entre os quais pequenos restauros, manutenção de áreas exteriores, reparação do telhado, instalação de ar condicionado e edificação de uma rampa de acesso, que se tornou necessária quando DD ficou com mobilidade reduzida – não altera o nosso seguro entendimento da inexistência de qualquer contrato de compra e venda translativo do direito de propriedade relativo a tal imóvel. Pois não se pode olvidar que existe uma ampla relação subjacente à outorga de tal procuração, como resulta dos factos provados nos autos existia entre o autor e os mandantes tinham uma relação de amizade de longa data, tendo adquirido um terreno em compropriedade que dividiram, tendo posteriormente construído, cada um em seu lote, duas moradas geminadas, uma das quais corresponde ao imóvel aludido na procuração - no ano de 2008, EE e DD decidiram vender a casa, por pretenderem assegurar liquidez financeira - o autor acordou comprar-lhes a casa -o imóvel não tinha licença de utilização, o que inviabilizava a celebração de escritura pública de compra e venda - a solução encontrada foi outorgar a procuração em apreço, obtendo os réus o valor que pretendiam reunir com a venda permitindo que EE e DD ali continuassem a viver gratuitamente enquanto fossem vivos.
Finalmente poder-se-ia questionar se na realidade os falecidos EE e DD tivessem querido efetivamente vender e o autor tivesse querido efetivamente comprar, em 2008, o imóvel em causa e, nessa data tivessem ambas as partes concluído verbalmente tal negócio, qual a razão de se terem os mesmos incomodado e suportado os custos inerentes à outorga da procuração em causa???.
Improcedem as respetivas conclusões dos réus/apelantes.
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Mais de defendem os réus/apelantes que “mesmo que os factos alegados pelo autor pudessem subsumir-se a um contrato de mandato, é manifesto que tal mandato caducou”.
Dúvidas não existem de que EE e DD faleceram depois de outorgarem a procuração em apreço, mas antes do seu procurador, ora autor, ter executado o mandato àquela, associado.
Como acima já deixamos consignado, mandato e procuração não coincidem conceptualmente: o mandato é um contrato, a procuração é um ato unilateral; o primeiro impõe a obrigação de celebrar atos jurídicos por conta de outrem e o segundo confere o poder de os celebrar em nome de outrem, mas é corrente estes dois institutos funcionarem em paralelo, como é o caso dos autos, e nos termos do art.º 1178.º, n.º1 do C. Civil, no mandato com representação, o mandatário recebe poderes para agir em nome do mandante, aplicando-se o disposto nos art.ºs 258.º segs. do C.Civil, relativos à representação e nos quais se englobam as normas que disciplinam juridicamente a procuração,.
É certo que segundo o respetivo regime, a regra é a da caducidade do mandato pela morte do mandante, dado o carácter pessoal da relação de mandato, cfr. art.º 1174.º, al. a), do C.Civil). Mas afirma-se no art.º 1175.º que “a morte (…) não faz caducar o mandato, quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro”. Isto na mesma linha, do já referido no art.º 265.º, n.º 3, do C.Civil - “se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”. E assim essa revogabilidade é afastada quando o mandato ou a procuração tenha sido “conferido(a) também no interesse do mandatário (ou procurador) ou de terceiro” – o que é o caso dos autos – atento que estamos perante uma procuração irrevogável, descortinando-se da relação subjacente um interesse próprio, específico, objetivo e direto na execução desse negócio do autor/procurador/mandatário que se insere numa relação jurídica vinculativa – de onde resulta uma ultra atividade da procuração ou a sua validade post mortem dos seus outorgantes.
Ora, esta eficácia post mortem da procuração traduz-se, afinal, como já se referiu no Ac. do STJ de 3.06.1997, in www.dgsi.pt em “ficcionar o prolongamento da vida do mandante até ao cumprimento integral da missão atribuída ao mandatário, podendo este, por isso, validamente praticar, em nome do mandante e para além da sua morte, os atos de que fora incumbid”.
Sobre os efeitos da morte do mandante ou dominus sobre o mandato ou procuração irrevogáveis, refere Januário Gomes, in “Tema de Revogação do Mandato Civil”, pág. 37), relativamente ao “chamado mandatum post mortem exequendum, entendendo-se por tal o contrato de mandato celebrado em vida do mandante – mandato inter vivos – e que se destina a ter execução a partir da sua morte ou em que é expressamente prevista a irrelevância da morte do mandante para efeitos de extinção do mandato”, e também Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, in obra citada, pág. 180 que a figura da procuração post mortem, cujos efeitos não divergem, no ponto em apreço, da eficácia post mortem de uma típica procuração naturalmente irrevogáveli.e., de procuração cuja irrevogabilidade resulte da existência de um interesse do procurador ou de terceiro, por contraposição à procuração convencionalmente irrevogável, conforme distinção desse autor.
E ainda segundo este mesmo autor, in obra citada, pág. 189, equacionando a hipótese em que, munido de uma procuração naturalmente irrevogável, “o procurador, após a morte do dominus originário, procedesse à distribuição de bens e direitos a pessoas diferentes dos herdeiros”, em contrário da aplicação das normas sucessórias, e depois de reconhecer que tal consequência “poderia levar à tendência para não admitir a validade da procuração naturalmente irrevogável post mortem”, considera em seguida ser errada essa perspetiva, em função do interesse do procurador ou terceiro na procuração, afirmando que “Numa situação destas, mesmo que a outorga da procuração influa na herança, diminuindo-a, nem por isso se pode considerar que a procuração viole as regras sucessórias”. E por fim, concretiza com um exemplo de alienação post mortem, com base em procuração irrevogável, de imóvel integrante da herança e remata: “(…) não se pode considerar que se está a violar as regras do direito sucessório, embora através da procuração se legitime o procurador a celebrar negócios que irão produzir efeitos após a morte do dominus, provocando alterações no património da herança”. Pelo que, em suma, a única ressalva a este regime que tal autor acaba por estabelecer prende-se com a proteção das quotas legítimas dos herdeiros legitimários.
Não caducando, pois, “in casu”, o mandato por morte dos mandantes, daqui se infere que não é possível qualificar a venda posterior à morte do mandante como venda de bens alheios, como defendem os réus/apelantes – ficando prejudicado o conhecimento da aventada nulidade de tal negócio - ainda que entretanto, por efeito da morte do mandante e da subsequente abertura da sucessão, art.º 2031.º do C.Civil, e eventual aceitação da herança pelos réus/apelante/sucessores dos mandantes, art.º 2050.º do C.Civil), o imóvel em causa tenha passado temporária e aparentemente a integrar o acervo hereditário deixado por morte deles.
Finalmente dir-se-á que, como se refere o Ac. do STJ de 12.07.2010, in www.dgsi.pt, “in casu” “Ficcionando-se pelo teor do mandato e da procuração, que os negócios abrangidos nesse contrato, por mor da não caducidade resultante da morte do mandante, são como que celebrados em vida do mandante”.
Improcedem as respetivas conclusões dos réus/apelantes.
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Defendem ainda os réus/apelantes em manifesto desespero que “o autor invoca um mandato assente no propósito de contornar uma proibição legal que diz conhecer (a que resulta do disposto no artigo 1.º, n.º 1 do DL n.º 281/99, de 26 de julho) e admite que a procuração foi “a solução encontrada” para contornar essa imposição legal, permitindo-lhe (de acordo com o por si alegado), a compra e venda na forma verbal e sem que o imóvel tivesse licença de utilização, passando desde então a ser o seu proprietário e permitindo-lhe, no pressuposto dessa qualidade, a celebração de um contrato de comodato que assegurava que os tios dos réus só a esse título ali se mantinham. É nulo o negócio jurídico cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável, bem como quando contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes (art.º 280.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil).O mandato alegado e a procuração utilizada para contornar quer a natureza imperativamente formal ou solene do contrato de compra e venda, quer a impossibilidade legal de transmitir a propriedade de prédios urbanos sem que exista licença de utilização e dela se faça menção na escritura pública, configura a celebração de negócios jurídicos (o mandato e a procuração) não apenas contrários à lei, mas contrários à ordem pública, sendo nulos. Nesses termos, violou a sentença recorrida o disposto no artigo 1.º, n.º 1 do DL n.º 281/99, de 26 de julho, bem como no artigo 298.º n.ºs 1 e 2 do Código Civil”.
Mas não lhes assiste razão.
Desde logo, porque como acima se deixou consignado não se infere, de forma alguma do teor das declarações contidas na procuração em apreço que os outorgantes/mandantes tenham tido a vontade de realizar naquele ato a venda do imóvel em causa. Mas tão só conferiram ao autor/procurador os poderes necessários, constantes de tal documento, para diligenciar pela legalização do imóvel e depois de tal, realizar o negócio de compra e venda, outorgando para tal a necessária escritura.
Ora, o facto de ter resultado provado que uma das razões da não realização imediata do negócio da compra e venda de tal imóvel - e daí ter-se outorgado a procuração em apreço contendo o referido mandato - devia-se ao facto de o mesmo não possuir licença de habitabilidade e para a obter seria necessário a realização de obras no imóvel, o que também necessariamente iria causar graves transtornos na vida quotidiana de EE e DD, pessoas de avançada idade que não tencionavam, de forma alguma, abandonar o imóvel até que a morte os levasse, não é de forma alguma idónea para transformar a outorga da procuração em apreço e o mandato nela inserido, num meio ilegal para a obtenção de um fim – a transmissão da titularidade daquele imóvel – mas antes são atos jurídicos realizados com o único e necessário objetivo de cumprimento da lei - ou seja, neles não se vislumbra a nulidade por consistirem em negócios contrários à lei e/ou à ordem pública.
Improcedem, assim, as respetivas conclusões dos réus/apelantes.


Sumário:
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar as presentes apelações improcedentes e consequentemente confirma-se a decisão recorrida.

Custas de cada recurso pelos respectivos apelantes.

Porto, 2023.06.13
Anabela Dias da Silva
Ana Lucinda Cabral
Rodrigues Pires