Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA DO ROSÁRIO MARTINS | ||
Descritores: | ACUSAÇÃO CRIME DE INJÚRIA ELEMENTOS SUBJECTIVOS DO CRIME CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE | ||
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Nº do Documento: | RP2023062182/22.4GCVFR-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/21/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ASSISTENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O conhecimento da ilicitude promana da realização do próprio facto no chamado direito penal clássico (onde se inclui o crime de injúria), pois a relevância axiológica do ato é significativa e está enraizada nas práticas sociais. II – Assim, a omissão da fórmula estereotipada “o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei” não pode justificar o não recebimento da acusação deduzida pelo assistente. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo 82/22.4GCVFR-A.P1 Comarca de Aveiro Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – J1 Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto: I. RELATÓRIO I.1. Por despacho proferido a 09.02.2023 foi rejeitada a acusação particular deduzida pelo assistente AA por manifestamente infundada nos termos do artigo 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, als. b) e c) do Código de Processo Penal (doravante CPP). ** I.2. Recurso da decisãoO assistente AA interpôs recurso da decisão, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição integral): “A) O tribunal a quo não teve, na douta decisão proferida, a melhor consideração do disposto no art. 311º/n.º 3, al. b) do CPPenal, violando-o. B) A acusação particular cumpre inteligivelmente os termos do disposto no nº 3 do artº 283º do CPP. C) Na eventualidade de não a cumprir, inexiste fundamento para rejeição da Acusação, devendo o Meretíssimo Juiz do Tribunal a quo suprir oficiosamente essa deficiência, eventualmente dirigindo convite ao Assistente para completar com maior detalhe a imputabilidade do “não refere que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida, no sentido de estar tipificada penalmente e de conhecer todos os elementos do tipo objectivo” a identificação daquele.” Pugna pela revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que admita a acusação particular. ** I.3. Resposta do Ministério PúblicoO Ministério Público, na resposta ao recurso, pronunciou-se pela sua procedência, concluindo (transcrição integral): “1. O Código Penal não define o dolo do tipo, apenas define no artigo 14º, cada uma das formas em que ele se analisa, isto é, as diferentes modalidades do dolo. 2. A expressão “o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal” embora seja prática e costume do Ministério Público de, ao deduzir acusação, articular os factos integradores da consciência da ilicitude através da expressão referida, o certo é que, o referido elemento subjetivo não é constitutivo dos tipos criminais definidos pela lei penal. 3. Tendo em conta o contexto processual em que ocorreu a prolação da decisão recorrida, o Tribunal a quo apenas deverá lançar mão do poder de rejeição nas situações em que seja patente a inaptidão dos factos descritos na acusação particular para preencher a tipicidade da norma incriminadora. 4. A acusação particular deduzida pelo assistente e a qual o Ministério Público acompanha deveria ter sido recebida pela Juiz a quo, porquanto os factos nele descritos são idóneos a preencher não só os elementos objetivos da tipicidade do crime imputado – crime de injúria –, mas também da sua tipicidade subjetiva, nomeadamente, quanto ao “dolo do tipo”. 5. Não deve ser rejeitada a acusação pela circunstância desta não conter a alegação de que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e por lei penal.” ** I.4. Parecer do Ministério PúblicoNesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso. ** I.5. Resposta ao parecerFoi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público. ** 1.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.*** II. FUNDAMENTAÇÃOII.1. Objecto do recurso Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95). Assim, da análise das conclusões do recorrente extraímos as seguintes questões que importam apreciar e decidir: 1ª Saber se é de manter a decisão que rejeitou a acusação particular ou de a revogar em virtude dos elementos subjectivos do tipo estarem suficientemente descritos na acusação particular; 2ª Subsidiariamente, saber se o tribunal a quo devia suprir a eventual deficiência convidando a assistente a completar a acusação particular. * II.2. Decisão recorrida (que se transcreve totalmente)“Da rejeição da acusação particular O assistente AA deduziu acusação particular contra o arguido BB, imputando-lhe a prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181° n.°1 e 188.° n.1 do CP. O crime de injúria é um crime doloso (art. 181°, 13° e 14° do CP). Conforme estatui o art. 283° n° 3 do CPP a acusação tem que narrar, ainda que sinteticamente, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis (alíneas b) e d) da referida norma). Tal prende-se com a circunstância de ser a acusação que fixa o objecto do processo, balizando assim o âmbito da posterior actividade investigatória a desenvolver pelo Juiz, designadamente em julgamento. A propósito, referem Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal, 2.a edição, tomo II, p. 140, em anotação ao art. 283° "No que se reporta à elaboração da acusação interessa também chamar a atenção para a necessidade de se conferir o máximo cuidado à sua feitura, não apenas no aspecto de explanação geral, como sobretudo na vertente da descrição fáctica, que deve ser suficientemente pormenorizada e precisa, até porque, como se sabe, está legalmente vedada uma alteração substancial dos factos transportados para a acusação(...). A acusação particular deve, por conseguinte, conter a descrição fáctica equivalente a uma acusação pública, com a indicação precisa e completa dos factos que o assistente considera estarem indiciados, e que integrem tanto os elementos objectivos como os elementos subjectivos do tipo legal de crime em questão e que justificam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. A omissão de tais elementos fácticos redunda na nulidade da acusação - cfr. art. 283° n° 3 CPP. A imputação do tipo legal de crime ao arguido e o enquadramento do seu comportamento enquanto doloso ou negligente implica que o assistente verta factualmente na acusação particular, não só elementos subsumíveis ao tipo objectivo, mas igualmente elementos consubstanciadores do tipo subjectivo, com referência ao elemento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao elemento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito), sem os quais não é possível tal imputação (Dias, Jorge Figueiredo – “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2ª ed., p. 379), mais se exigindo que na conduta não intervenham quaisquer causas de justificação ou desculpação. "Num crime doloso - só esse está aqui em causa - da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo)." - cfr. Ac. TRC de 06.01.2011, P. 150/10.5T30VR.C1, in www.dgsi.pt. No caso concreto, o assistente não relata factos relativos a todos estes elementos e que possam subsumir-se ao elemento subjectivo do crime de injúria, tal como previsto no art. 181° do CP. Designadamente, não refere que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida, no sentido de estar tipificada penalmente e de conhecer todos os elementos do tipo objectivo. Nos termos do disposto no art. 1° al. a) do CPP, crime é o "conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais". A falha supra referida, não permite pois que ao arguido possa ser imputado o crime de injúria, p.p. art. 181° do CP, sendo certo que não é admissível ao Juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correcção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente - Ac. TRP, de 14.12.2005, P.0315033, in www.dgsi.pte citado por este o Ac. TRL, de 10.10.2002, in Col. de Jur., ano XXVII, tomo IV, pág. 132 e ainda AUJ 1/2015, 27.01, Diário da República n.° 18/2015, Série I de 2015-01-27, páginas 582 - 597, disponível também em https://dre.pt/dre/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/1-2015-66348204 (em situação similar) e Ac. TRL de 10.03.22, P. 8467/19.7T9LSB.L1-9, in www.dgsi.pt. Assim, a conduta do arguido descrita na acusação não constitui, por isso, crime, uma vez que dela não resultam todos os elementos integradores do elemento subjectivo. Face ao exposto, e em virtude de da acusação não resultarem (todos os) factos relativos ao tipo subjectivo que permitam imputar ao arguido o crime de injúria, p.p. art. 181° CP, rejeito a acusação deduzida pelo assistente AA, por violação do art. 311° n. 2 al. a) e n.° 3 alíneas b) e d) do CPP. Custas pelo assistente - art. 515° n°1, al. f) e 518.° do CPP, sendo a taxa de justiça fixada em 1 UC (artigo 8°, n°9 do Regulamento das Custas Judiciais, por referência à tabela III do mesmo diploma). * Em face da rejeição da acusação, bem assim não se admite o pedido de indemnização deduzido associado, por impossibilidade superveniente face à falta de verificação do disposto no art. 71.° CPP.Isento de custas - cfr. art. 4.° n.°1 al. n) RCP. Notifique.” * II.3. Acusação particular (que se transcreve parcialmente por ser essencial para a apreciação do recurso)“1º No dia 02 de Abril de 2022, cerca das 15,30 horas, na Rua ..., ..., ..., em Santa Maria da Feira, o queixoso estava a realizar trabalhos de reparação na canalização da rua supracitada, adjacente ao terreno arrendado ao Arguido, 2° Quando o Arguido iniciou uma série de agressões com uma pancada com parte de madeira da enxada na nádega esquerda, também um tubo de pvc com cerca de 3 metros que possuía um passador em metal que foi atingido na cabeça e no braço esquerdo. 3° Ato contínuo, o arguido proferiu e dirigiu ao queixoso, ora assiste, a seguinte expressão: "filho da puta" e atirou na direção do queixoso, mas não veio a atingir porque este desviou-se. 4° A referida expressão foi proferida, de viva voz, com intenção de ofender, como efetivamente ofendeu, o bom nome, a honra, consideração e dignidade do assistente, que é uma pessoa séria. 5° O arguido agiu livre e conscientemente, com a nítida intenção de ofender o bom nome e a consideração devida ao assistente, tendo-lhe causado mau estar. 6º Com tal comportamento cometeu assim um crime de injúria, previsto e punível pelo Código Penal Português (art.s 181°, n.° 1 e 188°, n° 1).” *** II.4. Apreciação do recursoII.4.1. Da descrição do elemento subjectivo na acusação particular O assistente AA deduziu acusação particular contra o arguido BB, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal (doravante CP). Aquando do saneamento do processo o tribunal a quo rejeitou a acusação particular deduzida pelo assistente AA nos termos do artigo 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, als. b) e d) do CPP por falta de narração de um dos elementos do tipo subjectivo, traduzido na alegação de que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. O recorrente/assistente entende que da narração dos factos subjacentes à acusação é perceptível que o arguido tem consciência da ilicitude, constando da mesma os elementos suficientes para a imputação criminal. Vejamos. Conforme ensina Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Revista e actualizada, pág. 113) “A acusação, sendo formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado, constitui o pressuposto indispensável da fase de julgamento, por ela se definindo e fixando o seu objecto”. Dispõe o art. 283º, n.º 3, al. b), aplicável à acusação particular por força do n.º 3 do art. 285º que “a acusação contém, sob pena de nulidade, … a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.” Por sua vez, o art. 311º, n.º 2, al. a) do CPP, permite ao juiz, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, “rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”. E o seu n.º 3 preceitua que: “3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: (…) b) Quando não contenha a narração dos factos; (…) d) Se os factos não constituírem crime.” O crime imputado na acusação particular é um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º do CP. Resulta do disposto no artigo 181º do CP que o crime em causa é um crime doloso. O artigo 14º do CP dispõe que: “1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar. 2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta. 3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.” O Código Penal não define o dolo do tipo mas apenas, no artigo 14º, cada uma das formas em que ele se analisa. Segundo a doutrina tradicional (defendida por Eduardo Correia) o dolo é composto por um elemento intelectual e um volitivo: - o elemento intelectual do dolo consiste na necessidade de que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência (consciência psicológica, ou consciência intencional) das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo, visando que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito. - o elemento volitivo supõe uma decisão de vontade do agente para a realização de um ilícito-típico, por via de uma acção ou omissão, sendo que é, especialmente, através do grau de intensidade desta relação de vontade que se diferenciam as várias formas de dolo. De acordo com esta doutrina a culpa será um pressuposto da infracção mas não um elemento do tipo. A tipicidade subjectiva inclui o dolo ou a negligência, isto é a representação e vontade do agente quando actua de modo a preencher os elementos objectivos típicos, sendo a culpabilidade uma questão puramente normativa, que tem a ver com as questões da imputabilidade, da consciência da ilicitude e da exigibilidade de conduta diversa. Já para uma corrente mais recente (preconizada por Figueiredo Dias) o dolo desdobra-se em três elementos: o intelectual, o volitivo e o emocional (correspondente ao agente conhecer o desvalor da sua conduta contra o direito – o chamado dolo da culpa). Esta doutrina entende a consciência da ilicitude como um pressuposto subjectivo da responsabilidade criminal, consubstanciando o chamado “dolo da culpa”, que constitui uma categoria autónoma em relação ao “dolo do tipo”. Sufragamos a interpretação que a consciência da ilicitude não é elemento constitutivo dos tipos criminais definidos pela lei penal por tal interpretação estar próxima do nosso código penal que contém elementos que suportam a teoria finalista da acção que separa a culpa da tipicidade. Senão vejamos. Em primeiro lugar, do artigo 14º do CP descortina-se que o elemento subjectivo do tipo é composto por dois elementos: o elemento intelectual ou cognitivo (conhecimento de realização do facto) e o elemento volitivo (vontade de realização do facto). Em segundo lugar, do artigo 14º do CP não se encontra qualquer menção à consciência da ilicitude porque precisamente a mesma se reporta à culpa e não ao dolo (diferentemente, a exclusão do dolo opera nas situações em que o agente se encontra em erro sobre as circunstâncias de facto, nos termos previsto no artigo 16º do CP). Em terceiro lugar, da conjugação dos artigos 20º nº 1 e 91º nº 1 resulta que pode haver prática de factos típicos (incluindo naturalmente o tipo objectivo e subjectivo) sem consciência da ilicitude ou capacidade de avaliação ou actuação de acordo com essa avaliação. Em quarto lugar, a falta de consciência da ilicitude encontra-se prevista autonomamente como causa de exclusão da culpa no artigo 17º, n.º 1 do CP. (que ao determinar que a falta de consciência da ilicitude exclui a culpa mas não o dolo, mostra que a culpa não faz parte do tipo subjectivo de ilícito). Em quinto lugar, a consciência da ilicitude assume autonomia apenas nos casos em que se discuta a sua falta, ou seja, sempre que, atendendo à natureza do crime – não se incluindo este nos crimes de direito clássico nos quais a referida consciência está implícita no preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo, em especial o dolo – se encontre controvertida a verificação de tal elemento enquanto causa de exclusão a culpa nos termos previstos no artigo 17º do CP. Na verdade, nos chamados crimes de direito penal clássico (também chamados de “crimes naturais” ou “crimes em si”), ou seja, nos crimes cuja existência se presume conhecida da normalidade dos cidadãos e aos quais se reporta o artigo 17º do CP, a consciência da ilicitude decorre da própria representação e vontade de praticar os factos que preenchem objectivamente o tipo penal. Nesses casos, como bem se compreende, inexiste necessidade de expressamente se articular na acusação e de autonomamente se provar em julgamento que o arguido estava consciente da ilicitude da sua conduta. A necessidade de alegação na acusação da formulação tabelar que o arguido “sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei” (ou outra expressão semelhante) enquanto facto psicológico de conteúdo positivo só ocorrerá quando se tratar de um caso em que a proibição seja axiologicamente neutra ou pouco evidente (designadamente, a nível do direito contra-ordenacinal, do direito penal secundário relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de a algumas incriminações do direito penal de justiça, principalmente no que toca à protecção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social) e o seu conhecimento seja essencial para que se possa dizer que o agente sabia que praticava um crime; ou quando existam indícios de inimputabilidade ou de verificação de quaisquer causas de exclusão da culpa que a acusação deva afastar com prova positiva (posição que tem vindo a ser defendida pela maioria da jurisprudência, entre outros, veja-se os Acs. do TRP de 12.07.2017 e 13.06.2018, ambos relatados por Maria Dolores da Silva e Sousa, Ac. do TRP de 26.05.2022, relatado por José Carreto, Acs. do TRE de 10.01.2017 e 26.06.2018, ambos relatados por Sérgio Corvalho, Ac. do TRE de 12.03.2019, relatado por António João Latas, Ac. do TRE de 19.12.2019, relatado por Renato Barroso, Ac. do TRE de 26.01.2021, relatado por Beatriz Marques Borges, Ac. do TRE de 28.02.2023, relatado por Maria Clara Figueiredo, todos acessíveis em www.dgsi.pt). Na generalidade dos casos (designadamente, no chamado direito penal clássico) o sentido ou significado da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Parafraseando o referido Ac. do TRE de 19.12.2019 (relatado por Renato Barroso e acessível em www.dgsi.pt) “Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúrias, pôr a questão de saber se o agente, que atuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, atuou ou não com conhecimento da proibição legal, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efetivamente vivia neste mundo ou se não seria uma extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg”. Perscrutada a acusação particular aqui em causa, no que concerne aos elementos do tipo subjectivo do crime de injúria imputado ao arguido, constata-se que dela consta (com sublinhado da nossa autoria): “4° A referida expressão (filha da puta) foi proferida, de viva voz, com intenção de ofender, como efetivamente ofendeu, o bom nome, a honra, consideração e dignidade do assistente, que é uma pessoa séria. 5° O arguido agiu livre e conscientemente, com a nítida intenção de ofender o bom nome e a consideração devida ao assistente, tendo-lhe causado mau estar.” Daqui resulta que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico-penal), com intenção de ofender (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto). No caso o arguido sabia que a expressão que dirigiu ao assistente denegria o bom nome, a honra, consideração e dignidade do assistente, e não obstante, proferiu essa expressão com esse propósito, isto é, querendo esse resultado, actuando de forma livre e consciente querendo esse resultado, ficando assim preenchidos o elemento intelectual e o elemento volitivo do dolo. É certo que na acusação particular não consta a sacrossanta fórmula “o arguido sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei”, porém, atento o tipo de ilícito aqui em causa, com um relevo axiológico suficientemente caracterizado e comunitariamente enraizado ou difundido (inserindo-se no chamado direito penal clássico), não se mostra de todo necessário fazer constar na acusação a dita expressão tabelar (ou outra similar). Dos factos narrados na acusação particular não podemos deixar de constatar que o assistente imputou ao arguido uma actuação que ele sabia ser violadora da lei, o que equivale a dizer que actuou com consciência da ilicitude dos seus actos. No caso em concreto, é obvio que qualquer pessoa sabe que no contexto em que os factos foram praticados pelo agente a expressão “filho da puta” dirigida ao assistente era apta, como foi, a ofender a honra consideração e dignidade do visado, sendo, pois, percepcionável pelo comum dos cidadãos como um acto que não se deve praticar, isto é, que tal comportamento é ilícito. Deste modo, os factos narrados na acusação particular preenchem os elementos subjectivos do crime de injúria imputado ao arguido p. e p. pelo artigo 181º do CP. Não olvidamos que o acórdão do STJ n.º 1/2015, de 20.11.2014 (publicado no D.R. n.º 18, Série I, de 27.01.2015) fixou a seguinte jurisprudência uniformizadora: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.° do Código de Processo Penal.”. A propósito da consciência da ilicitude o referido acórdão uniformizador refere o seguinte (no ponto 10.2.3.1): “Quanto à consciência da ilicitude, é evidente que ela é uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do ilícito típico. Porém, a sua compreensão dogmática coloca-se a um outro nível e tem a ver com a questão da relevância do erro sobre a ilicitude, contemplada no art. 17.º do CP. O erro sobre a ilicitude não exclui o dolo, ao contrário do erro sobre a factualidade típica, na qual se pode incluir, em certas circunstâncias, como as já referidas, o conhecimento sobre proibições legais. Fica, porém, ressalvada, quanto a este tipo de erro, a punibilidade da negligência nos termos gerais (art. 16.º). O erro sobre a ilicitude exclui a culpa, se o erro não for censurável ao agente (sendo uma causa de exclusão da culpa), mas faz persistir o dolo, no caso de o erro ser censurável. Daí que o facto praticado sem consciência da ilicitude seja equiparável ao praticado com essa consciência, desde que não possa afastar-se a censurabilidade de tal erro. Escreve FIGUEIREDO DIAS, cujas ideias básicas, muito pela rama, intentamos transpor para aqui, que a razão de ser da diferença entre o regime do erro sobre proibições, cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para o agente tomar conhecimento da ilicitude (art. 16.º), conduzindo à exclusão do dolo do tipo, e o erro sobre o carácter ilícito do facto (art. 17.º), fundamentador do dolo da culpa, está em que «neste último caso, o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência intencional […]), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores (…), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger», ao passo que, no primeiro caso, trata-se da «falta de conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito (Direito Penal, cit., pp. 356 e ss. e 531 e ss.). Diz ainda o mesmo Autor, noutra passagem da mesma obra, que o que se visa com a exigência do conhecimento, representação ou consciência (psicológica ou intencional) de todas as circunstâncias do facto realizador de um tipo de ilícito objectivo, é que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da sua consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento [ob. cit., p. 351).” Sendo discutível se a jurisprudência fixada no referido acórdão se também se aplica ao conhecimento da ilicitude independentemente do tipo de crime, afigura-se-nos que da leitura dos segmentos da fundamentação do referido acórdão uniformizador a jurisprudência fixada no acórdão não se aplicará à omissão na acusação dos factos integradores do conhecimento da ilicitude pelo menos quando o relevo axiológico do crime em causa – por enraizado ou difundido na comunidade – decorre da própria natureza do facto típico e das circunstâncias da prática dos factos (neste sentido, entre outros, Ac. TRP de 13.06.2018 e 12.07.2017, relatados por Maria Dolores da Silva e Sousa, Ac. do TRE de 06.02.2018, relatado por António João Latas, Ac. do TRE de 19.12.2019, relatado por Renato Barroso e Ac. do TRE de 14.03.2023, relatado por Beatriz Marques Borges, todos acessíveis em www.dgsi.pt). Transpondo as considerações explanadas para o caso concreto da fórmula utilizada na acusação particular resulta que da mesma não consta a locução “o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei”, todavia, não é facto que deva ser autonomamente narrado na acusação por estarmos perante um crime do direito penal clássico. Em casos como o dos autos a consciência de o arguido ter agido bem sabendo tratar-se de conduta proibida e punida por lei decorre do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (dolo do tipo: elemento intelectual e volitivo). A protecção do bem jurídico “honra” – “que inclui não apenas a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade, mas também a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social” (conforme Paulo Pinto Albuquerque escreve no Comentário do Código Penal, 4ª Ed. actualizada, pág. 795) – está suficientemente solidificada na consciência da nossa comunidade, porquanto, uma pessoa média dirigindo a expressão proferida pelo arguido naquele contexto sabe que pratica um crime de injúria. Ora, o arguido ao dirigir aquela expressão ao assistente durante a contenda física não podia ignorar que a sua actuação era proibida por lei e seria punida criminalmente, além do mais quando no próprio enunciado da acusação particular até consta que o arguido actuou conscientemente com a intenção de ofender o bom nome, a honra, consideração e dignidade do assistente. Assim, também à luz do referido acórdão de fixação de jurisprudência (que reconhece que o conhecimento da ilicitude promana da realização do próprio facto no chamado direito penal clássico dada a relevância axiológica do acto ser significativo e estar enraizado nas práticas sociais), a omissão da fórmula estereotipada da acusação “o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei” não pode justificar o não recebimento da acusação deduzida pelo assistente. De todo o exposto resulta que a acusação particular do caso vertente supra transcrita inclui a narração de todos os factos necessários (incluindo os elementos subjectivos) para integrar o crime de injúria imputado ao arguido. Nesta medida, a acusação particular cumpre os requisitos de narração de factos do artigo 283º nº 3, al. b) do CPP, pelo que, não deveria ter sido rejeitada. Com este acórdão a Relatora revê posição anterior por si sufragada no Acórdão do TRL de 10.03.2022 no recurso penal n.º 8467/19.7T9LSB.L1. De qualquer modo atentas as duas orientações interpretativas em confronto acima elencadas relativas à definição dos elementos subjectivos da tipicidade, o facto de ser discutível na jurisprudência se o referido acórdão de fixação de jurisprudência se refere ao conhecimento da ilicitude independentemente do tipo de crime e atento o momento processual em que ocorreu a prolação da decisão recorrida – despacho proferido nos termos do artigo 311º do CPP – o Mmo. Juiz da 1ª instância deveria ter optado por viabilizar o prosseguimento dos termos do processo proferindo decisão de recebimento do libelo acusatório. Na verdade, o artigo 311º do CPP ao prever-se, de modo claro e taxativo, as situações que podem levar à conclusão de se estar perante uma acusação manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição, limitaram-se os poderes do juiz sobre a acusação, antes do julgamento, confinando-os, no ponto de vista material, à valoração jurídica dos factos tidos como suficientemente indiciados pelo acusador. Mas, ainda assim, com uma margem de actuação bastante restrita, uma vez que apenas a pode rejeitar quando for manifestamente infundada, ou seja, quando for inequívoco e incontroverso (o que não acontece no caso dos autos) que os factos nela descritos não constituem crime, pelo que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade, de nada servindo recebê-la e fazer prosseguir o processo, sujeitando o arguido inutilmente a julgamento, quando ela está votada ao insucesso (veja-se, neste sentido, Acs. do TRE de 18.11.2014 e 26.06.2018, ambos relatados por Sérgio Corvalho, acessíveis em www.dgsi.pt). Assim sendo, o despacho recorrido tem de ser revogado e substituído por outro que receba a acusação. Com a revogação da decisão em causa fica naturalmente prejudicada a apreciação da questão suscitada a título subsidiário pelo recorrente. Procede, pois, o recurso. *** III. DECISÃOPelo exposto, acordam os juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo assistente AA e, em consequência, revogar o despacho recorrido e determinar que o tribunal a quo substitua o despacho recorrido por outro que receba a acusação particular. Sem custas. * Porto, 21.06.2023Maria do Rosário Martins Donas Botto Paulo Costa – [com a seguinte declaração: “Subscrevo a decisão”] |