Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2636/20.4T8STS-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: INSOLVÊNCIA
JUROS DE MORA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Nº do Documento: RP202105102636/20.4T8STS-C.P1
Data do Acordão: 05/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A situação de insolvência ocorre sempre que o devedor se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
II - O juízo de impossibilidade de cumprimento das obrigações assenta, por um lado, na existência de um leque maior ou menor de obrigações cujo prazo de cumprimento se acha excedido e, por outro lado, na inexistência de património ou na impossibilidade de obtenção de crédito que permita satisfazer essas obrigações.
III - Mesmo em sede de processo de insolvência, ao invés do que sucedia no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (artigo 151º, nº 1) e, anteriormente, no Código de Processo Civil (artigo 1196º do Código de Processo Civil), a declaração de insolvência não obsta à contagem de juros de mora, apenas sucedendo que tais créditos por juros de mora constituídos após a declaração de insolvência são havidos como créditos subordinados (artigo 48º, alínea b), do CIRE), o que implica que apenas serão solvidos depois de integralmente pagos os créditos com garantia real, os créditos privilegiados e os créditos comuns e pela ordem por que vêm legalmente identificados no artigo 48º, na proporção dos respetivos montantes, quanto aos que constem da mesma alínea, se a massa for insuficiente para o seu pagamento integral (artigo 177º, nº 1, do CIRE).
IV - Não há assim prejuízo que, automaticamente, decorra do retardamento na apresentação à insolvência, nomeadamente, pelo facto de os juros associados a créditos em dívida se acumularem no decurso desse atraso, pois que tais juros, no atual regime da insolvência, se continuam a contar mesmo depois da apresentação à insolvência.
V - A decisão que qualifica a insolvência como fortuita é vinculativa em sede de incidente de exoneração do passivo restante, obstando a que conduta que podia ter sido valorada em sede de qualificação de insolvência possa ser autonomamente relevada em sede de exoneração do passivo restante e com total indiferença face ao decidido no próprio processo de insolvência em que se decidiu pela não abertura do incidente de qualificação da insolvência.
VI - Embora a previsão do artigo 665º do Código de Processo Civil tenha precipuamente em vista a decisão que põe termo ao processo, ou seja, em regra, a sentença, afigura-se-nos que a teleologia subjacente ao preceito determina que também seja aplicável às decisões que põem termo a um incidente que apresente a estrutura de uma causa (veja-se o nº 2, do artigo 152º do Código de Processo Civil).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2636/20.4T8STS-C.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 2636/20.4T8STS-C.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
Em 30 de setembro de 2020, nos Juízos de Comércio de Santo Tirso, Comarca do Porto, Banco B…, S.A. – Sociedade Aberta, por si e na qualidade de sucessor, por incorporação, do Banco C…, S.A. veio requerer a declaração de insolvência de D…, alegando para o efeito, em síntese, que por escrituras públicas celebradas em 07 de outubro de 1998, o Banco C…, S.A. concedeu ao requerido um empréstimo no montante de 15.700.000$00 e um outro no montante de 4.200.000$00, ambos a liquidar em duzentos e cinquenta e duas prestações mensais e sucessivas; por escritura pública celebrada em 12 de março de 2008, o Banco B…, S.A. concedeu ao requerido um empréstimo, no montante de cinquenta mil euros, a liquidar em quatrocentas e três prestações mensais e sucessivas; para garantia do capital mutuado entregue ao requerido com fundamento nos referidos empréstimos, dos juros e demais despesas, o requerido constituiu a favor do Banco B…, S.A três hipotecas sobre a fração autónoma “Q”, correspondente a uma habitação no terceiro andar recuado esquerdo, com terraço e cave, lugar de estacionamento e arrumos, designados pela letra “Q”, com entrada pelos números … e … da Rua …, que faz parte do prédio urbano em propriedade horizontal sito na Rua … nºs …/… e Rua … nºs …/…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº 651, da freguesia …, inscrito na matriz sob o artigo 9163; a falta de pagamento de qualquer prestação referentes aos aludidos empréstimos pelo requerido implica o imediato vencimento de toda a dívida e bem assim alteração da taxa de juros para a máxima permitida por lei nas operações ativas bancárias, acrescida da sobretaxa de 3%; o requerido não pagou as prestações que se venceram em 07 de junho de 2011, relativamente aos empréstimos celebrados em 07 de outubro de 1998 e não pagou a prestação vencida em 12 de novembro de 2011 relativamente ao empréstimo celebrado em 12 de março de 2008, estando em dívida à data da propositura da ação o montante global de € 127.650,37, tendo em 22 de setembro de 2013 instaurado ação executiva no Juízo de Execução do Porto, Juiz 4, aí correndo termos sob o nº 6058/13.5TBMTS; o único bem de valor significativo de que o requerido é titular é o imóvel hipotecado para garantia do pagamento dos empréstimos e que foi avaliado em 2019, pela administração tributária, no montante de € 85.121,15, achando-se inscritos para além das hipotecas já referidas, uma hipoteca a favor de E…, titulada pela apresentação 7 de 20 de junho de 2008, com o montante máximo assegurado de € 115.500,00, uma penhora a favor do Banco B…, S.A., titulada pela apresentação 2349 de 18 de março de 2014, para garantia do pagamento do valor de € 184.181,77, uma penhora a favor da Fazenda Nacional, titulada pela apresentação 3008 de 07 de julho de 2015, para garantia do pagamento de € 2.878,21, uma penhora a favor da Fazenda Nacional, titulada pela apresentação 33 de 17 de maio de 2016, para garantia do pagamento da quantia de € 1.068,95; o requerido não tem crédito junto de quaisquer entidades nem ativos que permitam a satisfação do crédito do requerente.
Citado, o requerido não deduziu oposição.
Em 03 de novembro de 2020 foi proferida sentença a declarar a insolvência de D…, dispensando-se a realização da assembleia de apreciação do relatório do Sr. Administrador da Insolvência.
Em 12 de novembro de 2020, D… requereu a exoneração do passivo restante.
Em 16 de dezembro de 2020, o Sr. Administrador da Insolvência apresentou o seu relatório, referindo quanto à situação pessoal e profissional do devedor que o insolvente tem 55 anos de idade e tem dois filhos, que os filhos do insolvente têm 24 e 34 anos de idade, sendo já independentes, que profissionalmente o insolvente trabalhou vários anos num restaurante, que entre 2001 e 2009 foi empresário em nome individual, na área têxtil, que se dedicava à compra e venda de materiais, sendo que por vezes, subcontratava empresas para a transformação, tendo encerrado a atividade em 2010, ficando nessa data desempregado e sem auferir quaisquer rendimentos e que esteve cerca de 5 anos na situação de desemprego, que atualmente, há cerca de 4 anos, trabalha como assistente administrativo, auferindo o salário mínimo nacional e que o endividamento do insolvente teve origem nas obrigações assumidas por si perante várias instituições financeiras, nomeadamente crédito à habitação, declarando, em face de quanto apurou, não se opor à concessão da exoneração do passivo restante peticionada pelo requerido.
Em 21 de dezembro de 2020, o Banco B…, S.A. opôs-se à concessão ao insolvente do benefício da exoneração do passivo restante, essencialmente em virtude do requerido não se ter apresentado à insolvência nos seis meses subsequentes à data em que se achou nessa situação, o que redundou num aumento do passivo global em virtude do vencimento de juros e num prejuízo para si decorrente das provisões que tal situação determina que sejam por si realizadas[1].
Em 12 de janeiro de 2021 foi declarado o caráter fortuito da insolvência[2].
Em 19 de janeiro de 2021 foi proferido o seguinte despacho[3]:
Da exoneração do passivo restante:
Nos termos do disposto no art.º 235.º do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, com a alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto, Decreto-Lei n.º 76-
A/2006, de 29 de Março, Decreto-Lei n.º 282/2007, de 07 de Agosto e Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04 de Julho), “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”.
Resulta do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18 de Março que se está na presença do “princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a possibilidade de os devedores singulares se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”, denominado como de fresh start, concedendo-lhe a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo ou nos 5 anos posteriores ao encerramento deste, restando-lhe uma nova oportunidade de vida – vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9/01/2006, P.º 0556158 (www.dgsi.pt).
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O Exmo. Sr. Administrador da Insolvência, no relatório a que se refere o artigo 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, formulou parecer no sentido de dever ser tal pedido deferido uma vez que não se verifica qualquer das situações que possam levar ao seu indeferimento.
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O credor B…, SA pugnou em parecer fundamentado pelo indeferimento do despacho inicial de exoneração do passivo restante.
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Mostra-se junto aos autos os certificados de registo criminal do insolvente, do qual nada consta.
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O Direito:
O artigo 235º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas dispõe que “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”.
“O pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou no caso de dispensa de realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição do pedido apresentado no período intermédio” (cfr. art. 236.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Acrescenta o n.º 3 do mesmo normativo que “do requerimento consta expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes”.
Os devedores atestaram preencher os requisitos de que depende o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante.
O Exmo. Sr. AI manifestou-se, pelo deferimento liminar deste incidente.
Ao requerente que pretenda aceder ao procedimento para exoneração do passivo restante bastará alegar a qualidade de insolvente e fazer constar do requerimento a declaração expressa do n.º 3 do art. 236.º do CIRE, cabendo aos credores e ao administrador da insolvência alegar e provar os factos e circunstâncias a que alude o artigo 238º/1 do CIRE, enquanto factos impeditivos do direito (art. 342º/2 do Código Civil), sem prejuízo do princípio do inquisitório (art. 11º do CIRE).
Quanto à posição do credor B…, SA, importa considerar o disposto no art.º 238º/1/d) e e) do CIRE.
Deste preceito legal resulta que o pedido de exoneração será indeferido liminarmente se “o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica” – alínea d).
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
Assim, para ser negado o pedido de exoneração do passivo restante com fundamento nesta alínea, necessário se torna que se mostrem preenchidos os três requisitos cumulativos aí previstos, a saber:
1. Incumprimento do dever de apresentação à insolvência no prazo de seis meses a contar do dia em que se verifique a situação de insolvência;
2. Que, desse incumprimento, decorra ou advenha, para os credores, um prejuízo;
3. Se conheça da inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da situação económica.
Factos a considerar:
1. O devedor apresenta à data, um passivo acumulado de € 463.627,23.
2. Tal passivo resultam de créditos e outros contratos cujo incumprimento são de 2003, 2008 e 2011.
3. O credor B…, SA veio requerer a insolvência em 30.09.2020.
4. A insolvência foi decretada em 04.11.2020.
5. O insolvente tem como património uma fração com o valor patrimonial de 85.121,15€. Este imóvel tem três hipotecas registadas a favor do Banco B1…, S.A., com os montantes máximos assegurados de 21.669.140,00 escudos, 5.828.840,00€ e de 66.985,00€, respetivamente. Este imóvel tem ainda uma hipoteca registada a favor de E…, com o montante máximo assegurado de 111.500,00€.
6. O insolvente não tem antecedentes criminais.
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Refere o acórdão do TRC de 07.03.2017, disponível em www.dsgi.pt:
I - A exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de excepção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores.
II - A excepcionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adoptado, à ponderação e protecção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excepcional.
III - Estando em causa uma pessoa singular não titular de uma empresa, logo não sujeita ao dever de apresentação à insolvência (art. 18º/2 do CIRE), o pedido de exoneração do passivo restante só pode ser objecto de indeferimento liminar com fundamento no art. 238º/1/d do CIRE se estiveram verificados, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) ter o devedor deixado de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência; b) ter causado, com o atraso, prejuízo aos credores; c) sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
IV - O ónus de alegação e demonstração dos factos integradores de cada dos requisitos cumulativos enunciados em III) cabe ao administrador da insolvência ou aos credores, porquanto tendo a natureza de factos impeditivos do direito do devedor a pedir a exoneração
do passivo restante, é sobre eles que recai aquele ónus.
Conforme realça o credor B…, SA, requerente da insolvência, a alínea d) do n.1 do referido artigo determina que o insolvente necessita de se apresentar nos seis meses seguintes à verificação da situação de Insolvência.
Ora, tal não aconteceu nos presentes autos, uma vez que a maior parte dos incumprimentos do insolvente junto dos seus credores remontam a 2011 e ainda outros anteriores, ou seja, há mais de 9 anos, tendo sido o credor B…, SA a requerer a insolvência.
Nessa medida, pode-se concluir que o insolvente há muito que se encontra em situação económica difícil, incumprindo as suas responsabilidades assumidas com diversos credores, nomeadamente com o aqui credor, cujo o incumprimento é do seu perfeito conhecimento desde 2010.
Pelo que, à data da apresentação à insolvência, pelo menos há nove anos que o insolvente sabia que estava impossibilitado de cumprir com as suas obrigações e mesmo assim optou por não se apresentar mais cedo à insolvência.
Tal omissão (não apresentação no prazo de 6 meses, como impõe o referido art. 238.º, nº 1, alínea d) do CIRE) consubstancia um evidente prejuízo para o credor requerente e reclamante Banco B…, S. A. dado verificar-se um aumento do passivo global em virtude do vencimento de juros de créditos vencidos.
Face à fonte de rendimentos do agregado familiar do insolvente, mostra-se impossível demonstrar que o insolvente pudesse perspetivar qualquer melhoria da sua situação económica.
Além do mais, o único património que possui será manifestamente insuficiente para fazer face ao passivo acumulado.
Deste modo, ao abster-se de se apresentar atempadamente à insolvência, recusando todas as evidências ao seu colapso financeiro, o Insolvente conseguiu apenas protelar as suas dívidas, gerando um acréscimo do seu passivo e a extinção (aparente) do seu património.
Face ao exposto, a não apresentação à insolvência no momento em que o insolvente teve conhecimento da impossibilidade de fazer face aos compromissos financeiros assumidos, optando por fazê-lo muito mais tarde, implicou também, por esta via, um inequívoco prejuízo para vários dos credores reclamantes.
O instituto em causa constitui uma pura benesse concedida aos insolventes, inteiramente à custa do património do credor, apenas justificável no caso do devedor que, não obstante ter adotado ao longo da sua vida um comportamento impoluto, seja confrontado, mercê de inesperada e incontrolável má fortuna, com uma situação de absoluta carência de meios para satisfazer os compromissos de natureza pecuniária assumidos.
Não pode, assim, ser usado como meio de todo e qualquer devedor se descartar do seu passivo, acumulado ao longo do tempo e a maior parte das vezes proveniente da contração de empréstimos para aquisição de bens que, nada têm a ver com a satisfação de necessidades básicas.
Concorda-se assim com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15/07/2007 citado: “o incidente de exoneração do passivo restante não se pode reduzir a um instrumento oportunístico e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas, sem qualquer propósito mesmo de alcançar o seu regresso à actividade económica…”.
No caso em apreço parece ser inquestionável que o atraso na apresentação acarretará prejuízo para os credores nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 238º do CIRE.
Os juros de mora aqui em causa são devidos desde a data de vencimento da dívida, por serem baseadas em títulos de crédito, e independentemente da respetiva ação ser ou não imediatamente instaurada.
Assim, estando em causa dívidas já vencidas que acarretam o imediato vencimento de juros de mora e o facto do credor Reclamante ter que constituir provisões por conta do crédito vencido, o atraso do devedor em apresentar-se à insolvência causa, necessariamente, prejuízo aos credores titulares desses créditos, em virtude do avolumar do passivo daí decorrente.
O avolumar do montante dos créditos representa um evidente prejuízo para os credores, até porque com o acréscimo da dívida diminuem as possibilidades da sua satisfação.
Não nos podemos esquecer que o eventual pagamento de juros de mora, na maioria das situações, não é minimamente suficiente para compensar os credores pelo atraso no pagamento.
Com o atraso no pagamento dos valores em divida o insolvente gerou prejuízo para o Banco B…, S. A., que não só se viu impossibilitado de receber os montantes que tinha em débito, como se foram acumulando juros de mora sobre esses valores, como ainda tive que constituir provisões junto do Banco de Portugal e suportar o prejuízo de intentar ações com vista à recuperação dos referidos valores.
E assim, temos de concluir como se concluiu no Ac. do TRP de 10/02/2011 proferido no âmbito do processo nº 1241/10.8TBOAZ-B.P1 com o nº convencional JTRP000: “Parece-nos, pois, que esse prejuízo deverá corresponder a um prejuízo que, nas concretas circunstâncias do caso, tenha sido, efetivamente sofrido pelos credores em consequência do atraso na apresentação à insolvência e que não teria sido produzido se o devedor se tivesse apresentado à insolvência no momento oportuno, devendo, por isso, corresponder a uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência decorrente do aumento do passivo (em virtude de o devedor ter contraído novas dívidas após a verificação da insolvência e o momento em que se devia apresentar) ou da diminuição do activo (em virtude de o devedor ter praticado actos de dissipação ou delapidação do património entre a verificação da insolvência e o momento em que, tardiamente, a ela se vem apresentar).
Só nesses casos se poderá afirmar que, se a insolvência tivesse sido declarado em momento oportuno, os credores teriam mais e melhores hipóteses de obter a satisfação dos seus créditos, porquanto, com um passivo inferior (que não teria sido contraído se a insolvência tivesse sido declarada em momento anterior) e com um património mais vasto (que não teria sido dissipado ou delapidado), os credores então existentes teriam, seguramente, melhores condições para obter a satisfação dos seus direitos, pelo que, nesses casos, o atraso na apresentação à insolvência redundará, em princípio, num prejuízo concreto e efectivo que os credores não sofreriam se a insolvência tivesse sido declarada no momento oportuno.
Na verdade, não foi qualquer alteração das circunstâncias financeiras do devedor que determinou a insolvência do mesmo, mas sim a celebração de contratos que não tinha capacidade de cumprir.
A exoneração do passivo restante deve ser utilizada com cautela e não pode promover verdadeiras situações de abuso do direito, como o caso, em que o devedor celebra um contrato que sabia ou devia saber não estar em condições de cumprir, para depois vir requerer a sua libertação da obrigação que assumiu através do benefício da exoneração do passivo restante.
Assim, entende o signatário que o devedor celebrou negócios jurídicos que sabia não puder cumprir, os quais geraram a situação de insolvência em que se encontra. Não foram, portanto, circunstâncias fortuitas que criaram esta situação, mas os contratos que deliberadamente o devedor celebrou e do qual beneficiou o próprio.
Além do mais, note-se que o insolvente também não veio contestar o parecer do credor B…, SA.
Pode-se assim concluir que existiu prejuízo efetivo para os credores e que o requerente, ora insolvente, não podia ignorar sem culpa grave, que não existia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
Atento o exposto, o devedor deixou de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência, causaram, com o atraso, prejuízo aos credores e não podiam ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica. O ónus de alegação e demonstração dos factos integradores de cada dos requisitos cumulativos foi cabalmente demonstrado pelo Sr. AI no relatório em análise.
Pelo exposto e concordando-se com o parecer do credor B…, SA, o Tribunal entende que se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade previstos na lei civil de que a atuação do devedor se enquadra na previsão da alínea b) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, e preenche a previsão normativa das alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 238.º e n.º 1 do artigo 186.º, ambos do CIRE, pelo que o pedido de exoneração do passivo deve ser indeferido.
Nessa medida, não pode deixar de se concluir que o insolvente não reúne os pressupostos para beneficiar da exoneração do passivo restante, cujo pedido vai indeferido.
Custas pelo insolvente.
Valor do Incidente: o do passivo.
Notifique, sendo o insolvente para, em cinco dias, informar a morada do credor de herança indivisa por óbito de E….
Em 09 de fevereiro de 2021, inconformado com a decisão que precede, D… interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
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Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e no efeito meramente devolutivo.
Não havendo lugar à reapreciação da decisão da matéria de facto com base em prova gravada e incidindo o objeto do recurso sobre questões que não se podem considerar complexas e sobre a qual tem havido vasta produção jurisprudencial, com o acordo dos restantes membros do coletivo, dispensaram-se os vistos, cumprindo apreciar e decidir de imediato.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Do não preenchimento da previsão da alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE[4];
2.2 Do não preenchimento da previsão da alínea e), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.
3. Fundamentos de facto exarados na decisão recorrida e que não foram impugnados pelo recorrente[5], não se divisando qualquer fundamento legal para a sua alteração oficiosa
3.1 Factos provados
3.1.1
O devedor apresenta à data, um passivo acumulado de € 463.627,23[6].
3.1.2
Tal passivo resulta de créditos e outros contratos cujos incumprimentos são de 2003, 2008 e 2011[7].
3.1.3
O credor B…, SA veio requerer a insolvência em 30.09.2020.
3.1.4
A insolvência foi decretada em 04.11.2020.
3.1.5
O insolvente tem como património uma fração com o valor patrimonial de 85.121,15€. Este imóvel tem três hipotecas registadas a favor do Banco B1…, S.A., com os montantes máximos assegurados de 21.669.140$00, € 5.828.840,00 e de € 66.985,00, respetivamente. Este imóvel tem ainda uma hipoteca registada a favor de E…, com o montante máximo assegurado de € 111.500,00.
3.1.6
O insolvente não tem antecedentes criminais.
4. Fundamentos de direito
4.1 Do não preenchimento da previsão da alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE
O recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida porque, na sua perspetiva, não cumpriram os credores e o Administrador de Insolvência, o ónus de alegar e provar os fundamentos que o tribunal recorrido relevou para indeferir a pretendida exoneração do passivo restante e, além disso, porque o mero vencimento de juros ou a eventual constituição de provisões bancárias, realidade que não está comprovada factualmente, não integram prejuízo para os efeitos da alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.
Na decisão recorrida, para fundamentar o preenchimento desta hipótese legal, depois de enunciar os pressupostos de que dependia essa subsunção, referiu-se, em síntese, que “à data da apresentação à insolvência, pelo menos há nove anos que o insolvente sabia que estava impossibilitado de cumprir com as suas obrigações e mesmo assim optou por não se apresentar mais cedo à insolvência”, que tal “omissão (não apresentação no prazo de 6 meses, como impõe o referido art. 238º.º, nº 1, alínea d) do CIRE) consubstancia um evidente prejuízo para o credor requerente e reclamante Banco B…, S. A. dado verificar-se um aumento do passivo global em virtude do vencimento de juros de créditos vencidos” e que face “à fonte de rendimentos do agregado familiar do insolvente, mostra-se impossível demonstrar que o insolvente pudesse perspetivar qualquer melhoria da sua situação económica.
Antes de mais, recordemos os normativos pertinentes.
“Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo” (artigo 235º do CIRE).
Sempre que esteja em causa requerimento de insolvência por apresentação, o pedido de exoneração do passivo restante deve ser feito em tal requerimento ou, não sendo esse o caso, como sucede nestes autos, no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado, se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa de realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a sua insolvência, decidindo o juiz livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio (artigo 236º, nº 1, do CIRE).
Do requerimento de exoneração do passivo restante consta expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes (artigo 236º, nº 3, do CIRE).
“Na assembleia de apreciação do relatório ou, sendo dispensada a realização da mesma, no prazo de 10 dias subsequente ao decurso do prazo de 60 dias previsto na parte final do n.º 1, é dada aos credores e ao administrador da insolvência a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento” (artigo 236º, nº 4, do CIRE).
Nos termos do disposto no artigo 237º do CIRE, a “concessão efetiva da exoneração do passivo restante pressupõe que:
a) Não exista motivo para o indeferimento liminar[8] do pedido por força do disposto no artigo seguinte;
b) O juiz profira despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas as condições previstas no artigo 239º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado despacho inicial;
c) Não seja aprovado e homologado um plano de insolvência;
d) Após o período mencionado na alínea b), e cumpridas que sejam efetivamente as referidas condições, o juiz emita despacho decretando a exoneração definitiva, neste capítulo designado despacho de exoneração”.
O artigo 238º, nº 1, do CIRE dispõe que “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração, que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.”
“A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” (artigo 186º, nº 1, do CIRE).
No caso dos autos, sendo pessoa singular o insolvente e não resultando da factualidade alegada que fosse titular de empresa[9], não impendia sobre ele o dever de apresentação à insolvência (artigo 18º, nº 2, do CIRE)[10].
No entanto, mesmo não estando o insolvente obrigado a apresentar-se à insolvência, importa ainda assim apurar se tendo-se abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da insolvência houve prejuízo para os credores, e se sabia, ou não podia ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica (artigo 238º, nº 1, alínea d), do CIRE).
A exoneração do passivo restante, como se expõe no número 45 do preâmbulo do decreto-lei nº 53/2004, de 18 de Março que aprovou o CIRE, constitui o acolhimento entre nós do “princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência”, princípio que “é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».
Suscita-nos algumas reservas a afirmação contida no mesmo ponto do citado preâmbulo de que o “Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”, na medida em que dos requisitos necessários para o deferimento do requerimento para exoneração do passivo restante não consta que seja necessária a satisfação de um valor mínimo dos créditos dos credores do insolvente. Acresce que a exoneração do passivo restante só opera relativamente a certos créditos, porquanto não abrange os créditos por alimentos, as indemnizações por facto ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade, os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações e os créditos tributários (artigo 245º, nº 2, do CIRE).
Assim, interpretadas literalmente as referidas normas, a não se relevar a alusão à exoneração do passivo restante, referência que tem ínsita a necessária satisfação de pelo menos algum passivo, permitindo o funcionamento do instituto em análise mesmo em casos em que à partida se sabe que não se logrará qualquer satisfação do passivo, agravando-se o mesmo ainda mais por força das despesas com o fiduciário (artigo 240º do CIRE), afigura-se-nos que tal regime poderá constituir uma ofensa desproporcionada e injustificada dos direitos dos credores afetados pela exoneração do passivo restante, incurso em inconstitucionalidade material por conjugação dos artigos 18º, nº 2 e 62º, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa[11].
Os credores do insolvente, enquanto sujeitos diretamente afetados pela procedência do requerimento do insolvente para exoneração do passivo restante, são admitidos a pronunciar-se sobre a pretensão do insolvente (artigos 236º, nº 4 e 238º, nº 2, ambos do CIRE)[12]. No entanto, nestes normativos, nem em qualquer outro normativo do CIRE se confere aos credores o poder de mediante a sua mera oposição obstarem à procedência da pretensão do insolvente para exoneração do passivo restante[13].
No caso em apreço, dada a delimitação objetiva do recurso em função das respetivas conclusões, importa verificar se houve inércia do recorrente na não instauração de processo de insolvência dentro dos seis meses subsequente à verificação de tal situação e, na hipótese afirmativa, se por causa desse atraso causou prejuízos aos credores, sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
A resposta à existência de inércia do recorrente na não instauração de processo de insolvência dentro dos seis meses subsequente à verificação de tal situação implica, antes de mais, a determinação da data em que se verificou aquela insolvência.
Nos termos do disposto no artigo 3º, nº 1 do CIRE, “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.”
“Equipara-se à situação de insolvência atual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência” (artigo 3º, nº 4 do CIRE).
Analisando a factualidade provada importa assim determinar se se verifica uma situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencida por parte do requerido ou, pelo menos, se se regista uma iminência dessa impossibilidade.
No caso em apreço, os factos provados apenas permitem uma delimitação do passivo do devedor mas não contêm elementos sobre a situação económica e financeira do mesmo nos diversos momentos em que se verificaram os incumprimentos contratuais[14] geradores do passivo[15]. Esse défice factual impossibilita uma concreta e precisa identificação do momento em que o recorrente se veio a encontrar em situação de insolvência pois que, como é evidente, a situação da insolvência enquanto impossibilidade de cumprimento das obrigações, não se basta com a comprovação de um passivo mais ou menos elevado, sendo necessário comprovar a inexistência ou insuficiência do ativo (aqui se incluindo o crédito que o devedor possa merecer) para satisfazer o passivo.
Não obstante estas omissões, que obstam a que se possa determinar com rigor se se verifica uma inércia do devedor na não apresentação à insolvência dentro dos seis meses subsequentes à verificação da insolvência e, por isso, ao preenchimento da previsão da segunda parte da alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE, analisar-se-á se o prejuízo identificado pelo tribunal a quo é passível de integrar a aludida previsão legal.
Na perspetiva do tribunal a quo esse prejuízo para os credores decorreria da acumulação de juros de mora e ainda da constituição de provisões pelo requerente da insolvência por causa da acumulação desses juros de mora.
A nosso ver, no caso em apreço, face à factualidade genérica apurada[16], o único prejuízo que se pode chamar à liça para integrar a alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE é o avolumar do passivo decorrente da contagem de juros de mora[17]. Será esse avolumar do passivo decorrente da contagem de juros de mora bastante para afirmar que a não apresentação do devedor à insolvência dentro dos seis meses subsequentes à verificação da situação de insolvência causou prejuízo para os credores juridicamente relevante à face do disposto na alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE?
A jurisprudência acha-se dividida na concretização deste segmento da previsão da alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.
Na verdade, entendem alguns, que constituem prejuízo para os efeitos deste normativo, os juros devidos pelo atraso no cumprimento de obrigações pecuniárias[18]. Numa posição intermédia, sustenta-se que demonstrado o atraso na apresentação à insolvência é lícito presumir, com base em presunção natural, a existência de prejuízo para os credores[19]. Ao invés, em nítida contraposição, sustentam outros, ainda que com argumentações não coincidentes, que os juros de mora devidos pelo atraso no cumprimento de obrigações pecuniárias não integram o prejuízo requerido pela previsão legal em análise[20].
Apreciemos tomando posição neste dissídio jurisprudencial.
O processo de insolvência é um processo executivo especial e universal[21] que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor e a repartição do produto obtido pelos credores (artigo 1º do CIRE).
O objetivo precípuo do processo de insolvência é assim a satisfação total ou parcial dos déditos de um insolvente, privilegiando, tanto quanto possível a recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, tendo a generalidade das obrigações incumpridas a natureza de obrigações pecuniárias e, quando não é esse o caso, a lei prevê casos de conversão de prestações de facto ou de coisas em prestações pecuniárias (vejam-se, por exemplo, os artigos 102º e 103º do CIRE).
Atualmente, ao invés do que sucedia no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (artigo 151º, nº 1) e, anteriormente, no Código de Processo Civil (artigo 1196º do Código de Processo Civil), a declaração de insolvência não obsta à contagem de juros de mora, apenas sucedendo que tais créditos por juros de mora constituídos após a declaração de insolvência são havidos como créditos subordinados (artigo 48º, alínea b), do CIRE), o que implica que apenas serão solvidos depois de integralmente pagos os créditos com garantia real, os créditos privilegiados e os créditos comuns e pela ordem por que vêm legalmente identificados no artigo 48º, na proporção dos respetivos montantes, quanto aos que constem da mesma alínea, se a massa for insuficiente para o seu pagamento integral (artigo 177º, nº 1, do CIRE).
O atraso ou o retardamento no cumprimento da obrigação imputável ao devedor (presumindo-se a culpa, ex vi artigo 799º, nº 1, do Código Civil) constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, sendo que na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (artigo 806º, nº 1, do Código Civil). A lei dispensa assim o credor de provar o prejuízo sofrido, ficcionando que o dano corresponde, em princípio, aos frutos civis (artigo 212º, nº 2, do Código Civil) que o capital em dívida era suscetível de produzir tendo em conta a taxa supletiva legal[22], salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estabelecido um juro moratório diferente do legal (artigo 806º, nº 2, do Código Civil). Nos casos de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o credor pode ainda exigir uma indemnização suplementar desde que prove que a mora lhe causou danos de montante superior aos juros legalmente previstos (artigo 806º, nº 3, do Código Civil).
Na economia desta decisão, este excurso pelo regime da mora nas obrigações pecuniárias justifica-se para comprovar que a contagem de juros de mora é uma consequência necessária do atraso no cumprimento daquelas obrigações, sendo por isso uma realidade omnipresente no processo de insolvência. Dito de outro modo: face ao regime legal de sancionamento da mora no cumprimento das obrigações pecuniárias, o legislador do CIRE não podia deixar de saber que as situações de insolvência estão necessariamente associadas a casos em que se verifica a contagem de juros de mora.
Se assim é, como cremos que resulta demonstrado pelo que precede, qual o sentido a atribuir à causação de prejuízo para os credores com o atraso na apresentação à insolvência?
Se acaso o legislador pretendesse abarcar com tal previsão os prejuízos decorrentes da simples mora no cumprimento de obrigações pecuniárias, seria desnecessária a expressa alusão à causação de danos por força do atraso na apresentação à insolvência, bastando apenas que previsse o atraso na apresentação à insolvência para que tais danos fossem contemplados.
Neste quadro normativo, ao autonomizar a provocação de danos consequentes do retardamento na apresentação à insolvência, afigura-se-nos que o legislador terá tido em vista algo mais do que os simples juros advindos da mora no cumprimento de obrigações pecuniárias.
Não por acaso, em sede de incidente de qualificação da insolvência, o legislador previu expressamente que “se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente” (artigo 186º, nº 5, do CIRE).
Tendo em conta a teleologia subjacente ao instituto de exoneração do passivo restante e a sua congruência com o incidente de qualificação da insolvência (assim se percebe o disposto na alínea e), do nº 1, do artigo 238º do CIRE), parece que a causação do prejuízo aos credores não se bastará com os juros decorrentes da mora no cumprimento de obrigações pecuniárias e antes visará a prática pelo devedor de atos que levem à dissipação do património ou à assunção de novas responsabilidades após a verificação da situação de insolvência[23].
Daí que também nos afastemos daqueles que sustentam que demonstrado o atraso na apresentação à insolvência, se presume judicialmente a causação de prejuízos aos credores, cabendo ao insolvente a alegação e prova de factos que ilidam aquela presunção.
E afastamo-nos desta orientação por duas razões.
Em primeiro lugar, porque embora invocando a utilização de uma presunção judicial para comprovação da causação de prejuízo aos credores, a orientação criticada, na prática, cria uma presunção legal iuris tantum ilidível por prova do contrário (artigo 350º, nº 2, do Código Civil), quando o resultado probatório obtido por presunção judicial é ilidível mediante simples contraprova (artigo 346º do Código Civil); isto é, para ilidir o resultado probatório obtido por presunção judicial não é necessário fazer prova do contrário, bastando apenas tornar duvidoso o resultado probatório obtido daquela forma.
Em segundo lugar, porque mesmo que se conceda na verificação dos requisitos para que opere a aludida presunção judicial[24], sempre ficará por demonstrar qual o prejuízo concreto causado com o atraso na apresentação (contagem de juros, assunção de novas dívidas, diminuição do ativo?), o que na perspetiva que temos vindo a defender será insuficiente para o preenchimento da previsão legal interpretanda.
Assim, por tudo quanto precede, conclui-se que no caso em apreço não se preenche o fundamento de indeferimento do incidente de exoneração do passivo restante previsto na alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.
Procede assim o recurso quanto a esta questão.
4.2 Do não preenchimento da previsão da alínea e), do nº 1, do artigo 238º do CIRE
O recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida referindo para tanto que “nada nos autos indica ou, pelo menos, indicia com toda a probabilidade, que o insolvente agiu com culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência, considerando-se para o efeito o previsto naquele artigo 186º”, tanto mais “que a insolvência foi considerada fortuita”.
Na decisão recorrida, relativamente a este fundamento legal de indeferimento do incidente de exoneração do passivo restante apenas se escreveu o seguinte: “o Tribunal entende que se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade previstos na lei civil de que a atuação do devedor se enquadra na previsão da alínea b) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, e preenche a previsão normativa das alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 238.º e n.º 1 do artigo 186.º, ambos do CIRE, pelo que o pedido de exoneração do passivo deve ser indeferido.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no artigo 185º do CIRE, a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das ações a que se reporta o nº 3 do artigo 82º do mesmo código.
A contrario sensu, retira-se que fora das causas penais, bem como das ações a que se reporta o nº 3, do artigo 82º do CIRE, a qualificação da insolvência é vinculativa, produzindo os efeitos próprios de qualquer decisão judicial, ou seja, caso julgado material e formal (artigos 619º, nº 1 e 620º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil).
Por outro lado, decorre do artigo 187º do CIRE que se o devedor insolvente já houver sido como tal declarado insolvente em processo anteriormente encerrado, o incidente de qualificação da insolvência só é aberto se o não tiver sido naquele processo em virtude da aprovação de um plano de pagamento aos credores[25], ou for provado que a situação de insolvência não se manteve ininterruptamente desde a data da sentença de declaração anterior. Desta previsão retira-se um efeito de consunção típico do caso julgado em matéria penal[26] e que não é de modo algum alheio ao caráter sancionatório da qualificação da insolvência com gravosas consequências patrimoniais e pessoais para os afetados por tal qualificação.
A questão da vinculatividade da decisão proferida no incidente de qualificação da insolvência em sede de incidente de exoneração do passivo restante não é jurisprudencialmente virgem havendo um vasto lastro de decisões de tribunais superiores que se debruçaram sobre esta problemática e que se pronunciaram todos no sentido da decisão que qualificou a insolvência como fortuita ser vinculativa em sede de incidente de exoneração do passivo restante, obstando a que conduta que pudesse ser valorada em sede de qualificação de insolvência pudesse ser autonomamente relevada em sede de exoneração do passivo restante e com total indiferença face ao decidido naquele outro incidente.
Assim, sem preocupações de exaustividade, vejam-se por ordem cronológica os seguintes acórdãos, todos acessíveis na base de dados da DGSI:
- acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de fevereiro de 2012, proferido no processo nº 170/11.2TBMGR-C.C1;
- acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de abril de 2012, proferido no processo nº 399/11.3TBSEI-E.C1;
- acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03 de dezembro de 2012, proferido no processo nº 1462/11.6TJVNF-D.P1;
- acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04 de março de 2013, proferido no processo nº 1043/12.7TBOAZ-E.P1;
- acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de novembro de 2013, proferido no processo nº 4133/11.0TBMTS-F.P1;
- acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03 de abril de 2014, proferido no processo nº 1084/13.7TBFAF-H.G1;
- acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24 de abril de 2014, proferido no processo nº 159/13.7TBPTB-F.G1.
No caso dos autos, na sentença que declarou o requerido insolvente decidiu-se que não havia elementos que fundamentassem a abertura do incidente de qualificação da insolvência (alínea f) da sentença que declarou a insolvência) e não foi requerida por qualquer dos sujeitos legitimados para tanto a abertura desse incidente.
Contudo, após a apresentação do relatório pelo Sr. Administrador da Insolvência e em consonância com o parecer deste, o Sr. Juiz a quo, no próprio processo de insolvência, declarou a insolvência fortuita, não tendo sido interposto qualquer recurso contra tal decisão.
A nosso ver, a circunstância desta decisão ter sido proferida em sede de processo de insolvência e não no incidente de qualificação da insolvência, não lhe retira os atributos próprios de qualquer decisão judicial, nomeadamente a sua vinculatividade. Se assim não fosse, mal se perceberia a necessidade de prolação desta decisão.
Assim, tendo o tribunal recorrido qualificado a insolvência como fortuita está a nosso ver vedada a possibilidade da mesma insolvência ser qualificada como culposa, ainda que apenas para efeitos de incidente de exoneração do passivo restante.
No caso dos autos, além deste obstáculo de ordem processual, de conhecimento oficioso (artigos 577º, alínea i) e 578º, ambos do Código de Processo Civil e 17º, nº 1, do CIRE), constata-se que na factualidade provada inexiste matéria que integre a previsão da alínea b), do nº 2, do artigo 186º do CIRE[27], ou seja, que o devedor tenha criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros.
Atente-se que para firmar uma conclusão destas, era forçosa a prova de factos concretos relativos à data da constituição do passivo, à sua dimensão, ao ritmo da sua constituição e, sobretudo factualidade donde resultasse a artificialidade da criação ou agravação desses passivos ou prejuízos ou a da redução de lucros[28].
Finalmente, era ainda necessária a prova de que tais factos concretos tinham ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (artigo 186º, nº 1, do CIRE[29]).
É assim de todo claro que ainda que não se verificasse o aludido obstáculo processual de modo algum se provaram factos concretos que permitam integrar o caso dos autos na previsão da alínea b), do nº 2, do artigo 186º do CIRE e, reflexamente, na alínea e), do nº 1, do artigo 238º, do CIRE.
Pelo que precede, conclui-se pela total procedência do recurso.
Uma vez que a decisão sob censura pôs termo ao incidente de exoneração do passivo restante[30], afigura-se-nos que opera a regra da substituição constante do nº 2, do artigo 665º do Código de Processo Civil.
Na verdade, embora a previsão do artigo 665º do Código de Processo Civil tenha precipuamente em vista a decisão que põe termo ao processo, ou seja, em regra, a sentença, afigura-se-nos que a teleologia subjacente ao preceito determina que também seja aplicável às decisões que põem termo a um incidente que apresente a estrutura de uma causa (veja-se o nº 2, do artigo 152º do Código de Processo Civil).
Ora, o despacho recorrido, impropriamente denominado pelo legislador de despacho liminar já que, em regra, precedido de contraditório, é uma decisão que aprecia do preenchimento dos pressupostos necessários ao deferimento inicial do incidente de exoneração do passivo restante e, no caso de a apreciação ser negativa, como sucedeu no caso em apreço, põe termo ao incidente.
Deste modo, conclui-se que cumpre apreciar da verificação dos pressupostos necessários ao deferimento inicial do incidente de exoneração do passivo restante, tal como previsto no nº 2, do artigo 665º do Código de Processo Civil.
No entanto, afigura-se-nos que este tribunal de recurso não dispõe dos elementos necessários para o efeito porquanto apenas foi produzida escassa prova documental e o relatório do Sr. Administrador da Insolvência contém juízos sem as fontes que os suportam, enfermando por isso a fundamentação de facto do tribunal recorrido de insuficiências impassíveis de ser supridas em segunda instância, atento o aludido circunstancialismo probatório (veja-se a alínea c), do nº 2, do artigo 662º do Código de Processo Civil).
Na verdade, dos fundamentos de facto da decisão recorrida, nada consta sobre a condição económica do devedor, nomeadamente rendimentos auferidos, encargos suportados, sendo que no seu relatório, o Sr. Administrador da Insolvência se limitou a adiantar estimativas quanto às despesas do devedor, não tendo sido produzida ou oferecida prova documental ou pessoal que permita a formulação de um juízo probatório sobre essa matéria, com a necessária segurança.
Pelo exposto, este Tribunal da Relação não tem ao seu dispor todos os elementos necessários para se substituir ao tribunal a quo.
Assim, pelo que precede, conclui-se pela procedência do recurso devendo os autos baixar à primeira instância a fim de aí se verificar do preenchimento dos restantes pressupostos legais de deferimento do requerimento para exoneração do passivo restante, procedendo-se, previamente, às diligências necessárias (não se olvide o princípio do inquisitório que rege nesta matéria e acolhido no artigo 11º do CIRE), apurando a concreta situação económica e financeira do insolvente, designadamente, rendimentos, a composição do seu agregado familiar e gastos médios mensais.
As custas do recurso são da responsabilidade da massa insolvente, ex vi artigos 303º e 304º do CIRE.
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em anular o despacho proferido em 19 de janeiro de 2021, devendo prosseguir o incidente de exoneração do passivo restante com a prolação do despacho a que se refere o artigo 239º do CIRE, se outra causa além das precedentemente analisadas a tanto não obstar, tudo precedido da necessária ampliação da decisão da matéria de facto, nos termos supra enunciados.
Custas a cargo da massa insolvente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais (artigos 303º e 304º do CIRE).
***
O presente acórdão compõe-se de vinte e oito páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 10 de maio de 2021
Carlos Gil
Mendes Coelho
Joaquim Moura
_____________
[1] Este requerimento do requerente da insolvência foi notificado ao devedor por via eletrónica no dia 21 de dezembro de 2020 na pessoa da Sra. Advogada que o patrocina.
[2] O teor desta decisão é o seguinte: “Atendendo a que não foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência (cfr. sentença de insolvência) e o parecer no mesmo sentido do Sr. A.I. (ponto n.º 8), declaro o caráter fortuito da mesma nos termos do disposto no artigo 233.º, n.º 6 do CIRE.
[3] Notificado mediante expediente eletrónico elaborado em 20 de janeiro de 2021.
[4] Acrónimo com que doravante se identificará o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[5] Note-se que o recorrente no início das suas alegações enuncia os factos que, na sua perspectiva, o tribunal recorrido julgou provados, não tendo em conta os factos que o tribunal recorrido discriminou, ainda que com uma sistemática discutível, já que os inseriu em sede de fundamentos de direito da decisão e, além disso, absteve-se de a motivar.
[6] Na realidade, este montante corresponde ao valor total do capital em dívida, já que se se tiverem em conta os juros vencidos até à declaração de insolvência, esse montante eleva-se a € 708.220,21.
[7] Atendo-nos à lista de credores que foi judicialmente homologada, por não sido objeto de qualquer impugnação, pode concretizar-se esta factualidade genérica da forma que segue, do crédito vencido em primeiro lugar para o vencido em último lugar: o crédito do F…, S.A. fundado em letra de câmbio, no montante de € 1.900,00, vencida em 02 de fevereiro de 2003, com juros vencidos até à data da declaração de insolvência, no montante de € 1.350,30; crédito da Fazenda Nacional por IRC, no montante de € 61.879,66, vencido em 22 de dezembro de 2004, com juros vencidos até à data da declaração de insolvência no montante de € 45.736,74; crédito da Fazenda Nacional de custas, no montante de € 2.250,95, vencido em 22 de dezembro de 2004; crédito da Fazenda Nacional por IVA, no montante de € 133.050,60, vencido em 31 de agosto de 2005, com juros vencidos até à data da declaração de insolvência no montante de € 98.807,80; crédito da Fazenda Nacional por Imposto de Selo, no montante de € 4.319,16, vencido em 07 de setembro de 2005, com juros vencidos até à declaração da insolvência no montante de € 3.320,49; crédito da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de E…, fundado em confissão de dívida do devedor, no montante de € 100.000,00, vencido em 16 de maio de 2008, com juros vencidos até à declaração da insolvência no montante de € 31.397,26; crédito do Banco B…, S.A., Sociedade Aberta, fundado em contrato de mútuo, no montante de € 41.233,00, vencido em 24 de abril de 2011, com juros vencidos até à declaração da insolvência no montante de € 25.246,17; crédito do Banco B…, S.A., Sociedade Aberta, fundado em contrato de mútuo sob a forma de empréstimo a prazo, no montante de € 96.778,63, vencido em 07 de junho de 2011, com juros vencidos até à declaração de insolvência no montante de € 30.201,34; crédito da G…, S.A., fundado em contrato de locação, no montante de € 1.403,54, vencido em 22 de novembro de 2011, com juros vencidos até à data da declaração de insolvência no montante de € 502,97; crédito da Fazenda Nacional por IMI, no montante de € 2.258,05, vencido em 30 de abril de 2013, com juros vencidos até à declaração de insolvência no montante de € 478,54; crédito da Fazenda Nacional por portagens, no montante de € 2.464,79, vencido em 02 de outubro de 2013, com juros vencidos até à declaração de insolvência no montante de € 678,31; crédito da Fazenda Nacional por IMI, no montante de € 306,20, vencido em 30 de setembro de 2019, com juros vencidos até à declaração de insolvência no montante de € 7,07; crédito do Banco B…, S.A., Sociedade Aberta, fundado em saldo devedor de conta de depósitos à ordem, no montante de € 1.930,79, vencido em 04 de novembro de 2020, com juros vencidos até à declaração de insolvência computados em € 13,75 [existe aqui um evidente lapso porque se o crédito se venceu em 04 de novembro de 2020, data da declaração da insolvência, não se entende como se venceram juros até à declaração da insolvência…]; crédito de H…, S.A. fundado em contrato de crédito, no montante de € 13.851,86, vencido em 04 de novembro de 2020, com juros vencidos até à declaração da insolvência no montante de € 4.634,49 [reitera-se a observação que se fez ao crédito descrito antes deste].
[8] Assinale-se a manifesta impropriedade legislativa na qualificação dos fundamentos de indeferimento do requerimento para exoneração do passivo restante como constituindo um indeferimento liminar pois que, como expressamente resulta do disposto no nº 2, do artigo 238º do CIRE, o despacho de indeferimento, tirando os casos de intempestividade ou de comprovação do fundamento de indeferimento por documento autêntico, apenas é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência. Não se trata por isso em regra de um indeferimento liminar.
[9] No entanto, se bem se atentar nos créditos que foram verificados e graduados verifica-se que a sentença de verificação e graduação de créditos abarca créditos da Fazenda Nacional relativos a IRC e IVA e no Relatório do Sr. Administrador da Insolvência dá-se notícia que o devedor exerceu em nome individual atividade na área têxtil.
[10] Na nossa perspetiva, a qualidade de sócio ou gerente de uma sociedade comercial não confere à pessoa singular em causa a qualidade de titular de empresa que se integre na esfera jurídica dessa sociedade. Em nosso entender, para a determinação de tal titularidade, o que releva é que a própria pessoa singular seja titular de uma empresa. A razão de ser do dever de apresentação de pessoa singular apenas nos casos de titularidade de empresa prende-se com as presumíveis consequências económicas mais gravosas da não apresentação à insolvência nesses casos (neste sentido veja-se, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora 2009, Catarina Serra, páginas 341 a 343). Por isso, discordamos da interpretação seguida no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30 de abril de 2009, proferido no processo nº 2598/08.6TBGMR-G.G1, acessível no site do ITIJ.
[11] Sobre o alcance do conceito normativo de direito de propriedade, do ponto de vista constitucional, veja-se, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora 2010, 2ª edição, Jorge Miranda e Rui Medeiros, páginas 1247 e 1248, anotação VIII e página 1261, anotação XXI. Questão que se pode colocar é se essa perspetiva é conforme com o princípio constitucional da igualdade na medida em que só poderiam beneficiar do instituto da exoneração do passivo restantes os devedores que pudessem satisfazer no aludido prazo quinquenal algum passivo, não beneficiando do mesmo os que de modo nenhum pudessem satisfazer algum passivo dos seus credores.
[12] Porém, importa vincar que, ao contrário do que parece pressuposto na decisão recorrida, não recai sobre o devedor o ónus processual de se pronunciar sobre esses requerimentos dos credores, sob pena de se deverem ter por assentes os factos neles alegados.
[13] Neste sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23 de outubro de 2008, acessível no site do ITIJ, processo 0835723.
[14] Alguns dos incumprimentos são anteriores à própria vigência do CIRE que, recorde-se, entrou em vigor em 15 de setembro de 2004 (veja-se o artigo 3º do decreto-lei nº 200/2004 de 18 de agosto).
[15] E alguns desses elementos podiam ter sido colhidos no Relatório do Sr. Administrador da Insolvência.
[16] Na verdade, face aos factos que o tribunal recorrido julgou provados, não se entende, como o mesmo pode afirmar que “não foi qualquer alteração das circunstâncias financeiras do devedor que determinou a insolvência do mesmo, mas sim a celebração de contratos que não tinha capacidade de cumprir”, pois que nem sequer está provada a data da celebração dos diversos contratos de que emergem as obrigações geradoras da situação de insolvência do devedor. Aliás, embora isso não esteja provado, face ao que foi alegado no requerimento inicial pelo credor que requereu a insolvência, o devedor honrou os seus compromissos assumidos inicialmente durante mais de dez anos.
[17] Quanto às provisões que o requerente da insolvência teve que alegadamente constituir ou, melhor, reforçar, por causa do aumento das responsabilidades do devedor em consequência da mora no cumprimento dos contratos, não há um único facto de que resulte que esse reforço existiu efetivamente e, muito menos, que associe um tal alegado reforço às responsabilidades em que está incurso o devedor por força da mora em que se acha. De todo o modo, mesmo que essa factualidade existisse, a jurisprudência publicada tem vindo a entender que esse reforço das provisões não constitui um prejuízo passível de ser relevado para os efeitos da alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE (vejam-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de abril de 2012, proferido no processo nº 434/11.5TJCBR-D.C1.S1 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de novembro de 2013, de que o relator foi o primeiro-adjunto, proferido no processo nº 2510/13.0TBVFR-C.P1, ambos acessíveis na base de dados da DGSI).
[18] Neste sentido, cingindo-nos às decisões mais recentes, por ordem cronológica, vejam-se os seguintes acórdãos, todos acessíveis no site da DGSI:
- acórdão da Relação de Guimarães, de 30 de abril de 2009, proferido no processo nº 2598/08.6TBGMR-G.G1 [5];
- acórdão da Relação do Porto, de 15 de julho de 2009, proferido no processo nº 6848/08.0TBMTS.P1;
- acórdão da Relação de Lisboa, de 28 de janeiro de 2010, proferido no processo nº 1013/08.0TJLSB-D.L1-8;
- acórdão da Relação do Porto, de 20 de abril de 2010, proferido no processo nº 1617/09.3TBVZ-C.P1;
- acórdão da Relação de Coimbra, de 14 de dezembro de 2010, proferido no processo nº 326/10.5T2AVR-B.C1.
[19] Neste sentido, além do já citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14 de dezembro de 2010, o acórdão do mesmo tribunal de 07 de setembro de 2010, proferido no processo nº 72/10.0TBSEI-D.C1.
[20] Neste sentido, cingindo-nos também às decisões mais recentes, por ordem cronológica, vejam-se os seguintes acórdãos, todos acessíveis no site da DGSI:
- acórdão da Relação de Lisboa de 14 de maio de 2009, proferido no processo nº 2538/07.OTBBRR.L1-2;
- acórdão da Relação de Lisboa, de 24 de novembro de 2009, proferido no processo nº 44/09.7TBPNI-C.L1-1
- acórdão da Relação do Porto, de 11 de janeiro de 2010, proferido no processo nº 347/08.8TBVCD-D.P1;
- acórdão da Relação de Coimbra, de 23 de fevereiro de 2010, proferido no processo nº 1793/09.5TBFIG-E.C1;
- acórdão da Relação do Porto, de 19 de maio de 2010, proferido no processo nº 1634/09.3TBGDM-B.P1;
- acórdão da Relação do Porto, de 30 de setembro de 2010, proferido no processo nº 430/09.2TJPRT.P1;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de outubro de 2010, proferido no processo nº 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1;
- acórdão da Relação do Porto de 18 de novembro de 2010, proferido no processo nº 1826/09.5TJPRT-E.P1;
- acórdão da Relação de Lisboa, de 14 de dezembro de 2010, proferido no processo nº 2575/09.0TBALM.L1-1;
- acórdão da Relação do Porto, de 10 de fevereiro de 2011, proferido no processo nº 1241/10.8TBOAZ-B.P1 [curiosamente este acórdão é citado na decisão recorrida, pretensamente para a confortar, quando, se bem lido, facilmente se verificaria que no mesmo se defende posição diametralmente oposta à que foi sustentada na decisão recorrida];
- acórdão da Relação de Lisboa, de 24 de março de 2011, proferido no processo nº 444/10.0TBPNI-D.L1-6;
- acórdão da Relação de Coimbra de 07 de junho de 2011, proferido no processo nº 460/10.1TBESP.C1;
- acórdão da Relação de Lisboa de 16 de junho de 2011, proferido no processo nº 1189/10.6TYLSB-B.L1-8;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de janeiro de 2011, proferido no processo nº 152/10.1TBBRG-E.G1.S1;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de abril de 2012, proferido no processo nº 434/11.5TJCBR-D.C1.S1;
- acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22 de janeiro de 2013, proferido no processo nº 2013/12.0TBGMR-B.G1;
- acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22 de janeiro de 2013, proferido no processo nº 481/12.0TBBRG-D.G1.
[21] Na realidade, o processo especial de insolvência começa sempre por ser um processo declarativo em que se obtém ou não a declaração de insolvência de certo sujeito.
[22] Afastamo-nos da posição daqueles que entendem que os juros de mora não constituem um prejuízo quer na modalidade de dano emergente, quer na modalidade de lucro cessante (assim veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de maio de 2009, proferido no processo nº 2538/07.OTBBRR.L1-2), pois na nossa perspetiva constituem um lucro cessante, correspondendo à remuneração que o titular do capital auferiria se aplicasse o capital que ainda não lhe foi pago. É a natureza frutífera do capital que subjaz à solução legal de dispensar o credor de provar o dano sofrido com o atraso no cumprimento da obrigação pecuniária.
[23] Desenhou-se uma orientação jurisprudencial menos exigente quanto à natureza dos prejuízos causados, sustentando que bastaria para tanto que se verificasse uma qualquer hipótese de redução da possibilidade de pagamento dos créditos, desde que causalmente decorrente do atraso na apresentação à insolvência. Neste sentido vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 03 de novembro de 2011, proferido no processo nº 85/10.1TBVCD-F.P1.C1 e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09 de janeiro de 2012, proferido no processo nº 434/11.5TJCBR-D.C1 e revogado pelo já citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 19 de abril de 2012.
[24] Critica o uso de presunções judiciais fundadas somente no que é verosímil ou no normal acontecer Michelle Taruffo in Simplesmente la Verdad, El Juez y la Construcción de los Hechos, Marcial Pons 2010, páginas 105 e 106 e 238, c).
[25] Esta referência percebe-se face ao conteúdo do artigo 259º, nº 1, do CIRE.
[26] Sobre esta problemática, com plena atualidade, não obstante a sua antiguidade, vejam-se: Sumários de Processo Criminal (1967-1968), Coimbra 1968, Professor Castanheira Neves, páginas 214 a 220; A Teoria do Concurso em Direito Penal, I – Unidade e Pluralidade de Infracções; II – Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Almedina, Coimbra 1983, Eduardo Henriques da Silva Correia, páginas 304 e 305.
[27] De acordo com o disposto no nº 4, do artigo 186º do CIRE esta previsão é aplicável à atuação de pessoa singular insolvente, com as necessárias adaptações. Ora, salvo melhor opinião, dessa necessária aplicação adaptada resulta a inaplicabilidade da segunda parte da alínea b), do nº 2, do artigo 186º do CIRE, pois que no caso de insolvência de pessoa singular não é possível a instrumentalização da pessoa coletiva tal como aí se prevê.
[28] Artificialidade significa aqui o recurso a artifício ou embuste para a verificação das aludidas situações.
[29] Na doutrina, a propósito vejam-se: Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina 2013, Ana Prata, Jorge Morais de Carvalho e Rui Simões, página 513, anotação 9; Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris 2015, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, página 681, anotação 6.
[30] No Código de Processo Civil de 1939 (segunda parte do artigo 715º do diploma em causa), apenas se previa a substituição do tribunal ad quem ao tribunal a quo nos casos de nulidade da sentença, regra que se manteve no Código de Processo Civil de 1961 (artigo 715º deste código). Apenas com as alterações introduzidas ao Código de Processo Civil de 1961 pelo decreto-lei nº 329-A/95 de 12 de dezembro se passou a prever a substituição do tribunal ad quem com a amplitude com que presentemente vigora. Para justificar a solução inovadora escreveu-se o seguinte no relatório do citado decreto-lei: “Consagra-se expressamente a vigência da regra da substituição da Relação ao tribunal recorrido, ampliando e clarificando o regime que a doutrina tem vindo a inferir da lacónica previsão do artigo 715º do Código de Processo Civil, por se afigurar que os inconvenientes resultantes da possível supressão de um grau de jurisdição são largamente compensados pelos ganhos em termos de celeridade na apreciação das questões controvertidas pelo tribunal ad quem. Neste sentido, estatui-se que os poderes de cognição da Relação incluem todas as questões que ao tribunal recorrido era lícito conhecer, ainda que a decisão recorrida as não haja apreciado, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução que deu ao litígio – cumprindo à Relação, assegurado que seja o contraditório e prevenido o risco de serem proferidas decisões surpresa, resolvê-las, sempre que disponha dos elementos necessários.