Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1813/12.6TBPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DETENÇÃO DE ANIMAIS
EXCLUSÃO DA COBERTURA
Nº do Documento: RP201502191813/12.6TBPNF.P1
Data do Acordão: 02/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não havendo norma legal que estabeleça que a seguradora só pode beneficiar da exclusão da cobertura do contrato alegando a matéria de facto pertinente e manifestando a intenção de se fazer valer da excepção correspondente (o que teria de fazer na contestação), o tribunal pode conhecer oficiosamente do preenchimento das cláusulas de exclusão da cobertura do contrato de seguro desde que o processo, ainda que não por alegação da ré, forneça os factos necessários para o efeito (arts. 496.º do antigo e 579.º do novo CPC).
II - A cláusula do contrato que exclui a cobertura dos danos causados pela “inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção” de animais reporta-se à previsão do art. 3.º, e não do art. 7.º, do DL n.º 314/2003, de 17.12.
III - Para excluir a cobertura do seguro com esse fundamento é necessário que a infracção legal cometida seja imputável ao dono do cão, pelo menos, a título de negligência, o que reclama, no mínimo, a demonstração de que no caso os donos do cão podiam e deviam ter previsto o comportamento do cão e adoptado as medidas para o evitar.
IV - Constitui um dado civilizacional adquirido nas sociedades europeias modernas o respeito pelos direitos dos animais, a aceitação de que os animais são seres vivos carecidos de atenção, cuidados e protecção do homem, e não coisas de que o homem possa dispor a seu bel-prazer, pelo que a relação do homem com os seus animais de companhia possui já hoje um relevo à face da ordem jurídica que não pode ser desprezado justificando que seja atendido como dano não patrimonial susceptível de tutela jurídica o desgosto sofrido com a morte de um animal de companhia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 1813/12.6TBPNF.P1 [Comarca Porto Este/Instância Central de Penafiel/Cível]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
B…, residente em …, Penafiel, instaurou acção judicial contra C… e mulher D…, E…, todos residentes na mesma localidade, e F…, Companhia de Seguros, S.A., com sede em Lisboa, pedindo a condenação dos demandados a pagar-lhe a quantia de €55.570,60 de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescidos de juros, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento.
Para o efeito, alegou, em síntese, que em 31/08/2009, quando passava na rua, foi atacada e mordida por um cão de raça “pastor alemão”, pertencente aos 1ºs Réus e que estes utilizavam no seu próprio interesse mas não cuidaram de manter preso, permitindo que o mesmo se encontrasse solto no interior da propriedade, donde saiu para atacar a autor porque a 2ª Ré, filha dos 1ºs Réus, abriu o portão que dá acesso à via pública permitindo-lhe a saída para a via pública. Em consequência do ataque do cão, a autora sofreu lesões corporais e danos materiais dos quais pretende ser ressarcida
A Ré F… contestou aceitando a existência do contrato de seguro invocado pela Autora, impugnando a demais factualidade alegada pela autora e alegando que já suportou despesas com a assistência hospitalar prestada à autora pelo que do capital seguro apenas se encontra disponível a quantia de €45.943,60.
Os demais Réus contestaram impugnando a versão do acidente apresentada pela autora e imputando-lhe a culpa pela agressão perpetrada pelo cão dos réus.
A acção prosseguiu até julgamento, findo o qual foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente, absolvendo a Ré G… do pedido e condenando os Réus C… e mulher D… e a Ré F…, solidariamente, a pagarem à autora a quantia de €10.766,40, acrescida de juros de mora, e ainda a quantia que se vier a liquidar correspondente ao valor despendido pela Autora nas deslocações que realizou e a que aludem as alíneas AE) e AG) da matéria apurada, quantia essa limitada ao valor do pedido e, quanto à ré F…, ao montante de €35.177,20.
Do assim decidido, a ré F… interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Perante a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento e face à ausência de documento comprovativo do facto, nunca o Tribunal recorrido podia dar como provados o facto constante da alínea AB) da douta sentença recorrida.
2. Nos termos das alíneas a), b) e c) do nº 1 do art. 640° do CPC, entende e defende a Ré que o facto constante da alínea AB) da douta sentença recorrida não pode ser dado como provado, ou seja, tem de ser dado como não provado.
3. E isto porque o depoimento das testemunhas H… e I…, grandes amigas da Autora e que com ela passeiam todos os dias, nada disseram sobre a matéria, o que evidencia a não realidade do facto.
4. Por outro lado, o depoimento das testemunhas J…, K… e L…, para além de merecerem a devida distância decorrente de serem familiares directos da Autora (marido, sobrinha e cunhada), não foram assertivos, revelaram contradições e são desmentidos pela experiência da vida.
5. Assim, face aos meios probatórios indicados pela Ré neste seu recurso, não pode dar-se como provado o facto que consta da alínea AB) da douta sentença recorrida, devendo revogar-se a douta sentença recorrida nesta parte e quanto à matéria de facto – é o que se requer nos termos do art. 662º do CPC.
6. A não se dar como provado o factos referido no número precedente, a acção tem de ser julgada parcialmente improcedente no que diz respeito à condenação da Ré quanto à ao montante indemnizatório pelos salários alegadamente perdidos pela Autora durante o tempo de incapacidade temporária, atento o disposto no art. 342° do Cód. Civil, que assim se mostra violado.
7. Nesta conformidade, o montante indemnizatório pelas perdas salariais durante a incapacidade temporária não pode, nem deve, exceder o montante de €821,65.
8. Assim, a condenação da Ré em quantia superior viola o disposto nos arts. 562º a 564º do Cód. Civil, pelo que deve ser revogada a douta sentença recorrida em conformidade com o exposto.
9. A não se dar como provado o factos referido no número cinco destas conclusões, a acção tem de ser julgada parcialmente improcedente no que diz respeito à condenação da Ré quanto à ao montante indemnizatório pelo dano futuro decorrente da incapacidade de que a Autora ficou afectada, atento o disposto no art. 342º do Cód. Civil, que assim se mostra violado.
10. Nesta conformidade, o montante indemnizatório pelo dano futuro decorrente da incapacidade permanente de que a Autora ficou afectada não pode, nem deve, exceder o montante de €900,00.
11. Assim, a condenação da Ré em montante superior constitui violação do disposto no art. 564º do Cód. Civil, pelo que deve a douta sentença recorrida ser revogada em conformidade com o exposto.
12. Independentemente do que se alega nos números anteriores, a Ré não podia ser condenada em qualquer montante, atenta a cláusula de exclusão constante do contrato de seguro e os factos que foram dados como provados a respeito do sinistro que vitimou a Autora.
13. É que o sinistro ocorreu na via pública – a Autora foi mordida pelo cão N… na via pública – e nesse momento o dito cão encontrava-se na via pública sem ter açaimo na boca e sem trela, violando, assim, o disposto no art. 7º do D.L. nº 314/2003.
14. Tal violação faz funcionar a cláusula de exclusão prevista no art. 4°, nº 1, alínea h), das condições gerais da apólice, pelo que, atento o facto de se tratar de um seguro facultativo e de tal cláusula ter sido aceite pelo co-réu segurado, é aplicável ao caso dos autos.
15. Por isso, a Ré ora Recorrente devia ter sido absolvida do pedido.
16. Assim, a condenação da Ré ora Recorrente constitui violação do disposto nos arts. 32º a 35º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, nos arts. 397º, 398º e 405º do Cód. Civil, nos arts. 425º e 462º do Cód. Com. e ainda no art. 7º do D.L. nº 314/2003, pelo que deve a douta sentença recorrida ser revogada em conformidade com o exposto e, consequentemente, deve a Ré ser absolvida do pedido.
17. Também importa considerar que a indemnização por danos não patrimoniais é excessiva.
18. Atentos os factos provados, considerando o que acima se refere quanto à não relevância para o efeito da morte do cãozinho da Autora M…, entende a Ré que o valor justo e adequado para indemnizar tais danos da Autora deve ser a quantia de 5.000,00 €.
19. Assim, a condenação em quantia superior constitui violação do disposto nos arts. 496º e 494º do CC, pelo que deve a douta sentença recorrida ser revogada em conformidade com o exposto.
A autora recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.
As conclusões das alegações de recurso demandam deste Tribunal que resolva as seguintes questões, colocadas na sua devida sequência lógica:
i)Se a prova produzida impõe a alteração da decisão de julgar provado o facto do item AB].
ii)Se é possível conhecer de uma eventual causa de exclusão da responsabilidade da ré seguradora não alegada na contestação.
iii)Se as cláusulas do contrato de seguro celebrado com a recorrente excluem a responsabilidade da ré seguradora nas concretas circunstâncias em que ocorreu o evento.
iv)Se a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais deve ser reduzida.

III.
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
A- Os primeiros Réus eram donos do canídeo da raça ‘pastor alemão’, com cerca de 60 cm de altura, portador do Boletim Sanitário nº …, licenciado para a época 08/09 com a Licença nº 1 da Categoria A, emitida pela Junta de Freguesia … e portador do chip de identificação nº ……………, que dava pelo nome de ‘N…”.
B- No dia 31.08.2009, cerca das 07:45 horas, o canídeo “N…” estava solto dentro da casa dos Réus C… e D…, tendo a Ré G…, então aberto o portão dessa casa, que dá acesso à via pública.
C- Por acordo celebrado entre C… e a ré Companhia de Seguros F…, S.A. em vigor à data dos factos e titulado pela apólice nº ………, a Ré Companhia de Seguros F…, S.A., assumiu a responsabilidade pelo pagamento de valores pecuniários emergentes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros pelo cão de nome “N…” e de raça Pastor Alemão.
D- Nos termos do acordo referido em C), o montante do capital seguro é de €50.000,00 (cinquenta mil euros) e consta estabelecida uma “franquia aplicável em danos materiais (não oponível a terceiros)” de 10% sobre o valor pecuniário a pagar terceiros.
E- A ré F… pagou as despesas com os tratamentos ao dedo da Autora, no Centro Hospitalar Tâmega e Sousa, E.P.E., no montante de €4.056,40.
F – Em 31.08.2009, a Autora era dona do canídeo de pequeno porte e de raça indefinida, com cerca de 25 centímetros de altura, que dava pelo nome de “M…” – resposta ao ponto 1º da base instrutória.
G – No dia 31.08.2009, cerca das 7h45m/08h00m, a Autora caminhava pela Rua …, da freguesia …, em Penafiel, na companhia de uma prima, de uma amiga e do “M…” – resposta ao ponto 2º da base instrutória.
H- (…) e ao passar junto à casa dos Réus C… e D…, quando a Ré G… abriu o portão que veda a propriedade onde se localiza aquela casa e que dá acesso à via pública, a fim de sair com o veículo automóvel para o trabalho, altura em que a Autora, a prima, a amiga e o “M…” caminhavam naquela via pública, passando junto àquele portão, seguindo o “M… atrás” da Autora, da prima e da amiga desta, o “N…” saiu do interior daquela propriedade e correu na direcção do cão da Autora - resposta ao ponto 3º da base instrutória.
I- O “N…” atacou o “M…” e abocanhou-o, acabando por lhe provocar a morte em momento não concretamente apurado – resposta ao ponto 4º da base instrutória.
J- Ato contínuo, mal viu o “N…” a correr em direcção ao “M…” a fim de o atacar, a Autora correu em socorro do canídeo “M…” e quando chegou ao local onde se encontravam ambos os cães e fez o movimento de se baixar para pegar no “M…”, o “N…”, largou o “M…” e atacou a Autora, mordendo-lhe a mão direita – resposta ao ponto 5º da base instrutória.
K- Ao ver o relatado em J), a Ré G… acorreu ao local em socorro da Autora – resposta ao ponto 6º da base instrutória.
L- Em consequência do ataque do “N…”, a Autora sofreu esfacelo do dedo indicador da mão direita, face ventral, com atingimento dos flexores, deficit de flexão do dedo com dor e parestesias de face radial e tumefacção palpável na face palmar – resposta ao ponto 7º da base instrutória.
M- E, em consequência, a Autora recebeu assistência no Serviço de Urgência do Hospital de Penafiel, tendo sido sujeita a limpeza, desinfecção da ferida e aproximação do tecido com sutura com ponto de seda e penso, e foi encaminhada para o Centro de Saúde para realização de penso e retirada de pontos – resposta ao ponto 8º da base instrutória.
N- Desde o dia 31/08/2009 até Dezembro de 2009, a Autora foi assistida no Centro de Saúde de Penafiel e submetida a sucessivos tratamentos de limpeza e desinfecção da ferida, realização de pensos e retirada de pontos – resposta ao ponto 9º da base instrutória.
O – Em 15.09.2009, a Autora foi reobservada e inscrita para cirurgia – tratamento de nevroma, tenolise dos tendões flexores – resposta ao ponto 10º da base instrutória.
P – Em 30.12.2009, a Autora foi submetida a cirurgia, com artrolise da articulação interfalangica proximal, tenolise dos tendões flexores, neurolise do nervo digital cubital e exérece de nevroma lateral, com colocação de placa antiaderente entre os tendões e o osso – resposta ao ponto 11º da base instrutória.
Q- Após cirurgia, a Autora foi orientada para consulta e apresentou rejeição da placa antiaderente, o que causou atraso de encerramento da ferida operatória, atraso na mobilização do dedo, e rigidez do mesmo – resposta ao ponto 12º da base instrutória.
R – A Autora iniciou fisioterapia em 02.02.2010 – resposta ao ponto 13º da base instrutória.
S – Em 17.03.2010, a Autora mantinha drenagem do aludido dedo através de um orifício da ferida, e foi inscrita para nova cirurgia para limpeza cirúrgica e nova tenolise alargada dos tendões flexores – resposta ao ponto 14º da base instrutória.
T – Em 25.03.2010, a Autora foi operada por apresentar rigidez do dedo, e foi-lhe efectuada limpeza cirúrgica com exérese de placa antiaderente, tenólise dos tendões flexores e colocação de sistema dinâmico de flexão para início de mobilização do dedo – resposta ao ponto 15º da base instrutória.
U – Em 14.04.2010, a Autora apresentava encerramento da ferida e, em 16.04.2010, iniciou fisioterapia, mantendo-se em vigilância com consulta marcada para 14.07.2010 – resposta ao ponto 16º da base instrutória.
V – Em 14.07.2010, a Autora apresentava rigidez e limitação a nível da articulação IFP e parestesias distais do dedo e nesse dia teve alta da consulta – resposta ao ponto 17º da base instrutória.
W- Em consequência das lesões causadas pelo cão “N…”, a Autora ficou com as seguintes sequelas: - dor na zona cicatricial; - hipoestesia do 2º dedo; - flexo com anquilose das 3 articulações do 2º dedo (MF, IFP e IFD) – resposta ao ponto 18º da base instrutória.
Y- As sequelas referidas em W) determinam à Autora um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 5 pontos – resposta ao ponto 19º da base instrutória.
X- Em consequências das lesões sofridas e das sequelas referida em W), a Autora tem dificuldades em utilizar a mão direita para trabalhar, tendo de efectuar esforços suplementares acentuados para realizar a sua actividade habitual, apresentando cicatriz operatória irregular, nacarada, de 4 centímetros de comprimento, que se inicia na face palmar do 1º metacarpo e se estende até à face palmar da falange proximal do 2º dedo, havendo repuxamento de tecidos nessa falange e na transição do metacarpo para a falange proximal; rigidez da articulação metacarpofalângica do 2º dedo (mobilidade entre os 0º e os 65º); anquilose da articulação interfalângica distal do 2º dedo da mão direita a 90º e efectua a pinça entre o polegar e o 2º dedo com muita dificuldades, tendo dificuldades em pegar em pequenos objectos, como segurar a esferográfica ou lápis, pegar talheres, copos e objectos em casa, em limpar a casa, como por exemplo em mudar os lençóis da cama ou em limpar o chão com um pano e tem dificuldades em descascar batatas – resposta aos pontos 20º e 21º da base instrutória.
Z- À data do ataque do “N…” a Autora fazia umas horas, como empregada doméstica, na casa de uma senhora, no que auferia uma quantia mensal nunca inferior a 200,00 euros – resposta ao ponto 22º da base instrutória.
AA- (…) E tratava da sua lide doméstica, cultivava o terreno da sua casa, criava animais domésticos, colhia frutas, legumes, carnes e ovos – resposta ao ponto 23º da base instrutória.
AB- (…) E confeccionava compotas, enchidos e doces, que utilizava para consumo do seu agregado familiar e para comercializar, auferindo uma quantia nunca inferior a 100,00 euros mensais nessa actividade – resposta ao ponto 24º da base instrutória.
AC – Em consequência das lesões sofridas e das sequelas delas emergentes, a Autora esteve totalmente impossibilitada de trabalhar de 31.08.2009 a 14.07.2010, data em que teve alta por cura clínica, tendo durante esse período de tempo estado de baixa médica e recebendo o subsídio mensal de doença no montante de 121,50 euros – resposta ao ponto 26º da base instrutória.
AD- (…) e deixou de fazer, durante o período de tempo referido em AC), a lide doméstica, de cultivar o terreno da sua casa, de criar animais e confeccionar as compotas, enchidos e doces – resposta ao ponto 27º da base instrutória.
AE – Em consequência das lesões sofridas, desde 31.08.2009 até 14 de Julho de 2010, a Autora teve de se deslocar, mais de uma vez por semana, ao Hospital de Penafiel e ao Centro de Saúde de Penafiel, para tratamentos, consultas e sessões de fisioterapia – resposta ao ponto 28º da base instrutória.
AF – Em 25.03.2010, a Autora foi submetida a uma segunda operação e, desde então e até 14.07.2010, teve de se deslocar ao Hospital de Penafiel e ao Centro de Saúde nos termos relatados em AE) e com a regularidade aí referida, para tratamento médico – resposta ao ponto 29º da base instrutória.
AG – Desde 31.08.2010 até 14.07.2010, a Autora efectuou as deslocações referidas em AE) e AF), cujo número total não se logrou apurar, utilizando para o efeito automóvel próprio, entre a sua residência e o Hospital de Penafiel e o Centro de Saúde de Penafiel, percorrendo em cada viagem pelo menos 3 Kms. – resposta ao ponto 30º da base instrutória.
AH- … No que despendeu quantia não concretamente apurada nessas deslocações – resposta ao ponto 31º da base instrutória.
AI- Em medicamentos e consultas, a Autora despendeu o montante de 98,10 euros – resposta ao ponto 32º da base instrutória.
AJ – O canídeo “M…” era pertença da Autora há cerca de dois anos tendo por referência o dia 31.08.2009 – resposta ao ponto 33º da base instrutória.
AK- A Autora nutria afeição pelo cão “M…”, que a acompanhava todos os dias e para todo o lado – resposta ao ponto 34º da base instrutória.
AL- A Autora sentiu desgosto e desespero com a morte do “M…” e ainda sente tristeza e saudade – resposta ao ponto 35º da base instrutória.
AM- Quando foi atacada pelo canídeo “N…” a Autora sentiu receio – resposta ao ponto 36º da base instrutória.
AN- Com as lesões causadas e os tratamentos a que foi submetida, a Autora sofreu dores físicas, ascendendo o quantum doloris ao grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente – resposta ao ponto 37º da base instrutória.
AO- A Autora ficou com a mão direita desfigurada, ascendendo o dano estético permanente que afita a Autora ao grau 2 numa escala de 7 graus de gravidade crescente – resposta ao ponto 39º da base instrutória.
AP – Desde 14.07.2010 até hoje, a Autora sente dores no local da cicatriz, na face palmar da mão direita, ao nível do 1º metacarpo com os esforçoso, o que a leva, muito ocasionalmente, a tomar Ben-U-Ron – resposta ao ponto 40º da base instrutória.
AQ- Em consequências das limitações funcionais e estéticas supra descritas com que ficou, a Autora, que era uma pessoa alegre, activa a trabalhadora, sente-se triste e limitada, o que causa um abaixamento da sua auto-estima e da sua alegria de viver – resposta aos pontos 41º e 42º da base instrutória.
AR- Antes da Ré G… abrir o portão nos termos relatados em H), o N… encontrava-se deitado na varanda da casa dos 1ºs Réus – resposta ao ponto 44º da base instrutória.
AS- Nas circunstâncias relatadas em H) o “N…” dirigiu-se ao “M…” – resposta ao ponto 45º da base instrutória.
AT- O “N…” abocanhou o cão “M…” nas circunstâncias relatadas em H) e I) e após ter mordido a Autora nos termos e nas circunstâncias relatadas em J) abocanhou novamente o cão “M…” e levou-o para o interior da propriedade dos 1ºs Réus, onde acabou por o levar para o interior da sua jaula, que se situa no quintal dos 1ºs Réus, a uma distância não concretamente apurada do portão referido em H) – resposta ao ponto 46º da base instrutória.
AU- No momento em que o “N…” se abeirou do “M…” nas circunstâncias relatadas em H), a Autora encontrava-se a caminhar a uma distância não concretamente apurada adiante do “M…”, de costas viradas para o último – resposta ao ponto 47º da base instrutória.

IV.
A] da impugnação da matéria de facto:
A recorrente pretende que a Relação reaprecie a prova produzida e altere a decisão da 1.ª instância no que respeita ao facto do item AB (resposta ao ponto 24º da base instrutória) defendendo que nesse particular o Mmo. Juiz a quo procedeu a uma errada apreciação dos meios de prova, os quais não são suficientes para se poder julgar provado esse facto.
Mostram-se cumpridos pela recorrente todos os requisitos da impugnação da matéria de facto: estão especificados os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que na óptica dos recorrentes impunham decisão diversa e o sentido da decisão que deve ser proferida, sendo que no tocante aos depoimentos gravados vêm indicadas as passagens da gravação em que se funda o recurso (artigo 640.º do novo Código de Processo Civil), ainda que apenas no corpo das alegações e já não nas respectivas conclusões, como em rigor devia suceder (imperfeição que alguma jurisprudência considera motivo de rejeição do recurso nesta parte).
Refira-se, nesse particular, que sendo fundamento da impugnação a insuficiência dos meios de prova que o julgador considerou suficientes, a satisfação deste requisitos se basta naturalmente com a indicação das passagens da gravação dos depoimentos que foram tidos em consideração, não necessitando o recorrente de indicar outros meios de prova (embora o possa fazer se eles existirem) que coloquem em dúvida o facto julgado provado porquanto, nessa situação, o que o recorrente sustenta é que os meios de prova levados em consideração já impunham decisão diversa da que foi proferida, desde que correctamente avaliados, pelo que a impugnação se basta com o questionamento dos depoimentos atendidos sem necessidade de chamar à colação outros depoimentos ou meios de prova.
Nada obsta, pois, a nosso ver, ao conhecimento do recurso da matéria de facto.
O Mmo. Juiz a quo julgou provado o seguinte facto: a autora “confeccionava compotas, enchidos e doces, que utilizava para consumo do seu agregado familiar e para comercializar, auferindo uma quantia nunca inferior a 100,00 euros mensais nessa actividade”.
Na motivação dessa decisão, o Mmo. Juiz escreveu: as testemunhas “J…, K… e L… foram igualmente concordantes entre si em afirmar que (…) a Autora, à data dos factos, fazia toda a lide doméstica da sua casa e atinente ao seu agregado familiar, além de que agricultava o seu quintal, onde criava porcos, galinhas e outros animais, fabricava salpicões, doces, etc., consumindo o seu agregado familiar parte dos produtos hortícolas e dos animais que a Autora assim produzia e vendendo esta os restantes produtos e daqueles animais, o que tudo se mostra conforma às regras da experiência comum quando se pondera que a Autora reside numa zona essencialmente rural (…), em que é normal/habitual as domésticas além de fazerem o trabalho doméstico atinente ao seu agregado familiar e casa de morada de família, fabricarem o seu quintal, onde produzem produtos hortícolas e animais, que em parte são consumidos pelo seu agregado familiar e a restante parte por elas vendidas como meio de obterem algum rendimento para os seus gastos pessoais e dos filhos e, bem assim para ajudarem na despesa do agregado familiar (…). Quanto ao rendimento que a Autora retirava com a comercialização daqueles produtos hortícolas, animais, etc., a testemunha K… referiu que esse rendimento ascendia a 100/150,00 euros mensais, enquanto L... aludiu a 150/200,00 euros mensais, o que tudo quando submetido às regras da experiência comum força a que se conclua que esse rendimento ascendia a pelo menos e, por conseguinte, a quantia nunca inferior a 100,00 euros mensais”.
Convém recordar que na petição inicial, a este respeito, estava alegado o seguinte:
“32 - E, como sempre foi uma pessoa dinâmica e trabalhadora, não só tratava de todas as suas lides domésticas, como cultivava a propriedade que possui e criava animais domésticos, colhendo frutas, legumes, carnes e ovos,
33 - E ainda confeccionava diversos produtos caseiros, vg. compotas, enchidos e doces,
34 - Parte dos quais utilizava para consumo do seu agregado familiar e comercializava a parte restante,
35 - Com o que obtinha um ganho mensal nunca inferior a € 150,00.”
Desta matéria, o Tribunal julgou provado o seguinte, onde se inclui o ponto de facto concretamente impugnado:
“AA- (…) E tratava da sua lide doméstica, cultivava o terreno da sua casa, criava animais domésticos, colhia frutas, legumes, carnes e ovos – resposta ao ponto 23º da base instrutória.
AB- (…) E confeccionava compotas, enchidos e doces, que utilizava para consumo do seu agregado familiar e para comercializar, auferindo uma quantia nunca inferior a 100,00 euros mensais nessa actividade – resposta ao ponto 24º da base instrutória.”
Resulta assim claro que o que estava alegado e o tribunal julgou provado não foi apenas que a autora comercializava produtos alimentares por si produzidos, mas também que produzia esses produtos para consumo próprio e da sua família. O que significa que o valor que o tribunal reflectiu na decisão da matéria de facto e a recorrente impugna não respeita apenas à receita da comercialização daqueles produtos, mas também ao ganho (poupança da despesa que de outra forma teria de ser suportada na aquisição desses produtos para alimentar a família) que o resultado da actividade agrícola e de criadora de animais domésticos da autora representava na economia familiar.
Esse facto resulta claro da motivação da decisão da matéria de facto e inutiliza de todo a argumentação do recorrente porquanto nos parece óbvio que a actividade de criação de coelhos e galinhas e produção de legumes, vegetais e fruta para a alimentação da família é ela mesma susceptível de gerar um ganho (receita e/ou poupança) para a economia doméstica no valor mensal médio de €100,00.
Portanto, não questionando a recorrente que efectivamente a autora criava animais domésticos, colhia frutas, legumes, carnes e ovos (resposta ao facto AA não impugnada) independentemente do maior ou menor acerto da discriminação dos produtos que a autora comercializava ou se os comercializava mesmo, sempre haveria que aceitar a decisão de julgar provado o valor levado ao facto AB, como resultado da actividade produtiva da autora.
De todo o modo, ouvida a prova mencionada na motivação da decisão recorrida e a demais referida pela recorrente é manifesto que a recorrente só tem razão quanto a não haver meio de prova que faça referência à produção de compotas e doces para vender.
O marido (J…) da autora declarou com efeito, que ela fazia agricultura, no quintal e no campo, vendia umas coisitas que produzia no quintal (legumes, ovos, frangos) só para fazer dar para as despesas com a produção agrícola. A sobrinha (K…) afirmou que a autora trabalhava no quintal, tinha animais, estava sempre a fazer alguma coisa, vendia ovos, galinhas, tinha muita fruta que vendia, na altura não tinha porcos mas comprava a carne e fazia salpicões, chouriços. E a cunhada (L…) referiu que a autora tinha galinhas, coelhos, fazia a lida da casa, trabalhava no quintal, fabricava o terreno, tinha tudo, vendia legumes e essas coisas assim, fruta, ovos, frangos, fazia chouriços e salpicões com carne que comprava fora e vendia-os a familiares.
Em função destes depoimentos, este tribunal não pode deixar de concordar com a decisão do tribunal recorrido, excepto, como se referiu, no tocante às compotas e doces que como vimos não foram mencionados pelas testemunhas ouvidas (ainda que seja comum isso suceder, no que concordamos com a motivação da decisão da matéria de facto, para consumo doméstico, era necessária alguma prova que o referisse). A circunstância de a autora necessitar de comprar carne para fazer os enchidos não se nos afigura minimamente relevante uma vez que se trata efectivamente de uma prática hoje corrente nas nossas aldeias face à dificuldade e às condicionantes na produção doméstica de porcos, sendo certo que face ao valor envolvido no caso estaríamos sempre a falar de quantidades muito pequenas.
A menção que a recorrente faz aos depoimentos das testemunhas H… e I… é absolutamente improcedente. É um facto que sendo estas pessoas companheiras da autora nas caminhadas diárias que faziam em conjunto se podia supor que as mesmas tivessem conhecimento das actividades que a autora realizava. Todavia, não lhe tendo sido feitas perguntas a esse respeito (designadamente pelo mandatário da ré!) e não sendo obrigatório que tais perguntas lhe tivessem sido feitas, não se vê como pode a recorrente pretender que do respectivo silêncio se retire algo que contrarie o conteúdo das declarações das testemunhas que efectivamente falaram sobre essa matéria! Até admitimos, em tese, que o silêncio de uma testemunha tenha valor probatório (diminuto, com certeza), mas o mínimo que é exigível para o efeito é que o silêncio da testemunha seja resposta a pergunta que lhe tenha sido feita.
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso da matéria de facto e, pese embora a irrelevância do pormenor, altera-se o ponto AB da matéria de facto, eliminando do seu corpo apenas a referência às compotas e doces.

B] da exclusão da responsabilidade da ré F…:
Na petição inicial, para justificar a demanda da ré F…, Companhia de Seguros, alegaram os autores que pela indemnização dos danos
“69- (…) responde ainda a terceira Ré, também solidariamente, porquanto por contrato de seguro titulado pela apólice nº ………, perfeitamente válido e em vigor à data do acidente, os primeiros RR para ela haviam transferido a correspondente responsabilidade.
70- Responsabilidade essa que, inclusive, a terceira Ré já assumiu, tendo pago ao Centro Hospitalar Tâmega e Sousa as despesas com a assistência hospitalar prestada à Autora – Doc. 16”.
Na contestação que apresentou a ré sustentou o seguinte:
“1. É verdade que entre a ora contestante e C… foi celebrado um contrato de seguro do Ramo “Responsabilidade Civil dos Detentores de Animais de Companhia”, titulada pela apólice nº ………,
2. Conforme documento que ao diante vai junto e que ora se deve ter por reproduzido.
3. De acordo com as condições gerais, especiais e particulares da apólice foi transferida para a Ré “o pagamento de indemnizações exigíveis ao segurado a título de responsabilidade civil extracontratual pelos danos decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causadas a terceiros pelo” cão de nome “N…” e da raça “pastor alemão”.
4. Tal contrato de seguro teve o seu início em 13 de Fevereiro de 2009 e estava em vigor em 31 de Agosto desse mesmo ano.
(…) 10. Na sequência de tal participação, a Ré pagou todas as despesas, que a Autora originou com os tratamentos ao referido dedo no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, EPE, e que ascenderam a 4.056,40€.
11. Assim, do capital seguro apenas se encontra disponível a quantia de 45.943,60€.”
Na sentença recorrida, o Mmo. Juiz a quo referiu que “em sede de alegações orais o ilustre mandatário da Ré seguradora veio sustentar a tese segundo a qual os danos sofridos pela Autora e cuja indemnização esta reclama nos autos não se encontram abrangidos pela garantia conferida pelo contrato de seguro na medida em que o ataque perpetrado pelo cão de onde emergem aqueles danos ocorreram na via pública quando o seguro em causa respeita à responsabilidade civil de detentores de animais de companhia”. A seguir pronunciou-se sobre essa questão, vindo a concluir que “improcede a excepção invocada pela Ré seguradora da não cobertura pela garantia conferida pelo contrato de seguro celebrado do evento danoso perpetrado pelo cão objecto desse contrato e em que a Autora faz assentar, e onde assenta, a sua pretensão indemnizatória” (sublinhado nosso).
No recurso, a ré sustenta que “o sinistro, que vitimou a Autora, ocorreu na via pública”, que o cão a que se reporta o contrato de seguro “se encontrava na via pública, sem açaimo e sem trela – e foram essas circunstâncias que determinaram que ele mordesse a Autora”. E conclui que “tal factualidade consubstancia, directamente, uma excepção à responsabilidade civil contratada entre a Ré ora Recorrente e o Réu C…, como resulta expresso das condições gerais da apólice. Estabelece-se no art. 4°, nº 1, alínea h), das condições gerais o seguinte: "o presente contrato nunca garante os danos causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentam a detenção de animais de companhia". E o D.L. nº 314/2003 estabelece as condições em que os cães podem sair à via pública. No nº 2 do art. 7° estabelece-se o seguinte: É proibida a presença na via ou lugar públicos de cães sem estarem acompanhados pelo detentor e sem açaimo funcional excepto quando conduzidos à trela, em provas e treinos, ou, tratando-se de animais, utilizados na caça, durante os actos venatórios" (sublinhado nosso).
Feito este percurso pelas peças do processo é fácil concluir de imediato duas coisas distintas. Em primeiro lugar, a ré não arguiu, na contestação, qualquer excepção que tivesse por fundamento a verificação da situação prevista em alguma das cláusulas do contrato de seguro de exclusão da sua responsabilidade, reconhecendo mesmo que na sequência da participação que lhe foi feita até já suportou despesas com o tratamento médico das lesões invocadas pela autora. Em segundo lugar, entre as alegações orais do seu mandatário no culminar da audiência de julgamento e as respectivas alegações de recurso a defesa da ré evoluiu: naquelas defendeu a exclusão da responsabilidade pelo facto de o animal ter cometido a agressão quando se encontrava na via pública; nestas suporta a exclusão no facto de o animal se encontrar sem trela ou açaime na via pública.
A primeira conclusão obriga de imediato a questionar se as alegações orais na audiência de julgamento são o momento e a forma adequada de arguir a excepção, melhor dizendo, se se pode considerar que a excepção foi arguida em tempo e/ou o tribunal a quo dela podia conhecer.
Nos termos do artigo 467.º do antigo Código de Processo Civil, em vigor à data da prática do acto, na petição inicial o autor devia expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção. Por conseguinte, o autor devia alegar os factos necessários e suficientes para preencher os elementos constitutivos do direito que pretende exercer na acção.
Tratando-se de uma acção de responsabilidade civil esses factos são os necessários para o preenchimento dos requisitos da responsabilidade civil, isto é, usando as palavras incontornáveis de Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª ed., página 478,: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano. No caso de a responsabilidade se encontrar transferida para um terceiro, designadamente uma seguradora ao abrigo de um contrato de seguro de responsabilidade civil, querendo ou podendo demandá-lo directamente[1], o autor apenas tem de alegar os factos necessários para demonstrar que o sinistro se encontra abrangido no âmbito da garantia proporcionada pelo contrato.
Na contestação, conforme previa o artigo 487.º do mesmo diploma, cabe ao réu contradizer os factos articulados na petição ou afirmar que esses factos não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor, caso em que se defende por impugnação, ou alegar factos que obstem à apreciação do mérito da acção ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinem a improcedência total ou parcial do pedido, caso em que se defende por excepção.
É assim sobre o réu que recai o ónus de alegar os factos que impeçam o direito do autor. No caso do contrato de seguro de responsabilidade civil, estando o sinistro alegado pelo autor no âmbito da previsão do objecto da garantia do contrato, cabe, portanto, ao réu o ónus de alegar os factos que preencham qualquer das cláusulas de exclusão da cobertura do contrato, de forma a demonstrar que pese embora o sinistro seja um dos cobertos pelo contrato, as circunstâncias em que ele ocorreu excluem essa cobertura.
Por outras palavras, não é o autor que tem de alegar na petição inicial não apenas que os seus danos estão abrangidos no âmbito da garantia do contrato, no elenco dos sinistros previstos no contrato, como ainda que no caso não ocorreu nenhum facto que permitisse fazer funcionar qualquer das cláusulas de exclusão da garantia. É sobre o réu que recai o ónus de alegar os factos que permitam concluir que no caso se aplica alguma das cláusulas de exclusão, factos esses que têm a natureza de factos impeditivos da responsabilidade assacada ao réu.
Sucede que o artigo 489.º, n.º 1, do mesmo diploma consagra o princípio da concentração de toda a defesa na contestação ao prescrever que toda ela deve ser deduzida nesse articulado, com excepção dos incidentes que a lei mande deduzir em separado. O n.º 2 do preceito acrescenta que depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente. Desse modo, os factos integradores das excepções devem ser alegados na contestação, ficando, em regra, precludida a possibilidade de os arguir posteriormente.
Isto é assim, contudo, no tocante à alegação dos factos que integram as excepções. Nada obsta, com efeito, que estando alegados, ainda que não pelo réu, factos que tenham o efeito de impedir, modificar ou extinguir o direito do autor, o juiz deles conheça, desde que a invocação da excepção correspondente não esteja dependente da vontade do interessado. É o que resultava do disposto do artigo 496.º do antigo Código de Processo Civil (artigo 579.º do novo), segundo o qual o tribunal deve conhecer oficiosamente das excepções peremptórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado.
Afirma Antunes Varela in Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, pág. 293 e seg., que importa distinguir as «excepções em sentido próprio», que são “aquelas cuja relevância depende da vontade do demandado”, que só relevam “ope exceptionis, ou seja, por vontade do exceptiens”, das «excepções em sentido impróprio», que são “factos cuja eficácia opera ipso iure”, das quais o “juiz pode e deve conhecer ex officio, independentemente da vontade da parte a quem aproveitam, sem prejuízo do disposto no artigo 664.º”. Acrescenta o autor que no caso “das excepções em sentido impróprio, como o pagamento, a perda da coisa devida, a remissão, a simulação, bem como a generalidade das excepções processuais, das quais o juiz conhece ex officio”, “desde que os factos que lhes servem de base constem dos autos, ainda que não seja por iniciativa do réu (mas por declaração do autor ou de um dos co-réus), o juiz não pode deixar de as tomar em conta”.
Como refere Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, I, Almedina, 1997, pág. 47, nota 17, “ao invés do que, por vezes, se conclui, as excepções peremptórias são, em regra, de conhecimento oficioso, bastando que do processo constem factos a que a lei atribua os efeitos extintivos, modificativos ou impeditivos correspondentes às referidas excepções. Desde que o processo contenha matéria de facto suficiente, ainda que não tenham sido expressamente alegadas as excepções peremptórias que os integram, deve o tribunal conhecer oficiosamente do cumprimento, da excepção de não cumprimento, da novação, da remissão, etc.”.
Sendo assim, uma vez que a questão da aplicação de uma cláusula de exclusão da cobertura do seguro está tratada pela ré com base nos factos alegados pela autora na petição inicial, ou seja, não depende de outros e novos factos que não foram alegados em devido tempo, que aqueles factos foram julgados provados e, como tal, o tribunal pode conhecer de todos eles para efeitos de aplicação do direito, e, finalmente, que inexiste norma que estabeleça que a ré seguradora só poderia beneficiar da exclusão da cobertura do contrato se em devido tempo alegasse a matéria de facto e manifestasse a intenção de se fazer valer da excepção correspondente, pese embora o silêncio da ré na contestação a esse respeito, o tribunal podia e devia conhecer oficiosamente da referida questão, não sendo a circunstância de a ré ter manifestado esse desejo apenas nas alegações orais que obsta ao seu conhecimento.
Entrando agora na análise da questão substantiva, recordamos que no recurso a ré não suscita verdadeiramente a mesma questão que o seu ilustre mandatário suscitou nas alegações orais na audiência de julgamento. Ao não recorrer do julgamento da questão correspondente, a recorrente conformou-se com a decisão recorrida na parte em que esta julgou que não era pelo facto de a agressão ter sido cometida na via pública (e não no interior da propriedade dos donos do cão) que a cobertura do seguro ficava excluída.
A questão que a recorrente ora suscita é apenas a de saber se o facto de o cão que causou as lesões à autora ter cometido a agressão quando se encontrava na via pública sem trela e sem açaime exclui a cobertura do seguro.
Estes factos – o cão não estar com trela ou açaime – não foram expressamente alegados por qualquer das partes nos articulados da acção. Tratando-se de factos constitutivos da excepção peremptória que a ré pretende usar em seu benefício, incumbia-lhe o ónus de os alegar.
No entanto, os factos provados quanto ao modo como ocorreu o ataque do cão parecem permitir retirar a conclusão de que o cão estava sem açaime já que só não o tendo podia “abocanhar” o outro cão e “morder” a autora, como fez.
Quanto à falta de trela, a matéria de facto é omissa, embora o facto de o cão ter saído da propriedade dos donos para a rua e aí ter atacado o cão da autora e a própria autora revele que o cão não estava preso, encontrava-se solto e pôde deslocar-se para o exterior da propriedade, o que parece indiciar que mesmo que tivesse a trela colocada a mesma não podia estar funcional, ou seja, controlada pela acção do detentor do cão, sendo certo que o sentido da exigência da colocação de trela há-se ser precisamente a manutenção do controlo físico do cão pelo seu detentor e esse controlo, de acordo com a matéria de facto provada, manifestamente não ocorreu.
Nos termos da cláusula 4.ª, n.º 1, alínea g), do contrato, este não garante os danos “causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de animais de companhia”.
Para fundar a alegada inobservância das disposições legais que regulamentem a detenção de animais, a recorrente chama em seu apoio o Decreto-Lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro, e mais propriamente o seu artigo 7.º, n.º 2, segundo o qual “é proibida a presença na via ou lugar públicos de cães sem estarem acompanhados pelo detentor, e sem açaimo funcional, excepto quando conduzidos à trela (…).”
Sucede, no entanto, que este diploma legal, segundo o seu artigo 1.º, tem por objecto, a aprovação do “Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e Outras Zoonoses (PNLVERAZ), constituído pelo conjunto de acções de profilaxia médica e sanitária destinadas a manter o estatuto de indemnidade do País relativamente à raiva e o desenvolvimento de acções de vigilância sanitária com vista ao estudo epidemiológico e combate às outras zoonoses, e estabelece as regras relativas à posse e detenção, comércio, exposições e entrada de animais susceptíveis à raiva em território nacional”.
O artigo desde diploma legal que rege sobre a detenção de animais (expressão usada na cláusula do contrato) não é o artigo 7.º citado pela recorrente mas antes o artigo 3.º cuja epígrafe é “detenção de cães e gatos”. É este preceito que rege sobre o alojamento de cães e gatos, as condições fito-sanitárias dos alojamentos, o número de animais a alojar e o controle dessas condições de detenção dos animais. O artigo 7.º, n.º 2, do diploma legal em apreço já não se reporta à detenção de animais, reporta-se sim ao modo como os animais detidos podem ocupar a via ou lugares públicos.
Acresce que face ao objecto do diploma que contém estas disposições, o sentido da sua previsão é tão só o de evitar o contacto entre animais e a propagação de doenças de que eles sejam agentes ou veículos e não propriamente o de criar condições para evitar que os animais possam atacar pessoas, que é a situação que nos ocupa nos autos. Para respeitar o fim social da norma parece, assim, dever entender-se que quando as disposições legais violadas são as previstas no Decreto-Lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro, só estarão excluídos da cobertura do seguro os danos causados pelo cão por razões sanitárias ou médicas, como por exemplo os danos decorrentes de doença (v.g. raiva) transmitida pela mordedura do cão.
Por conseguinte, quando a cláusula do contrato se refere às disposições legais que regem sobre a detenção de animais é o citado artigo 3.º que tem por objecto, sendo certo que tratando-se de uma norma de exclusão da cobertura do contrato a mesma tem de ser interpretada em conformidade com a sua redacção literal e de acordo com aquilo que um declaratário normal pode concluir dessa redacção, não podendo ser objecto de interpretações extensivas que contribuam para excluir afinal a transferência de responsabilidade que se pretendia com o contrato de seguro de responsabilidade civil por danos causados por animais.
Mesmo que assim não fosse, ainda por outra razão se nos afigura não ser aplicável ao caso a cláusula de exclusão da garantia do seguro. Na verdade, resulta da matéria de facto que o cão estava em casa dos seus donos, sendo que aí não necessitava de ter trela nem estar com açaime. Não resultou provado que o cão se escapuliu da casa e veio para a via pública por decisão, intenção e acção dos seus donos.
Ora o contrato de seguro é um contrato de transferência da responsabilidade civil dos donos do cão, pelo que as cláusulas do contrato que definem os comportamentos contratualmente relevantes a observar pelos contraentes se reportam naturalmente à actuação dos donos do cão e não do próprio cão. Desse modo, quando a cláusula se refere à inobservância das disposições legais tem em vista, obviamente, o desrespeito dessas disposições pelos donos do cão.
Para se excluir a cobertura do seguro é necessário que a infracção legal cometida seja imputável ao dono do cão, pelo menos a título de negligência, o que pressupõe, no mínimo, a demonstração de que no caso os donos do cão deviam ter previsto o comportamento do cão e adoptado as medidas para o evitar. Por outras palavras, para a circunstância de o cão, que os seus donos tinham nas condições regulamentares no interior da sua propriedade, ter vindo à rua atacar a autora importar uma violação, pelos seus donos, das normas legais que exigem que o cão esteja na rua com trela ou açaime, era imperioso que se tivesse demonstrado que no caso concreto o cão saiu à rua, sem trela e açaime, por vontade e acção dos seus donos ou que estes deviam ou podiam prever que isso iria suceder e tinham condições para o evitar. A matéria de facto é omissa quanto a isso pelo que se deve entender que inexistem factos que permitam concluir que a cobertura do seguro se encontre excluída por aplicação da previsão da cláusula 4.ª, n.º 1, alínea g), do contrato. O mesmo sucederia, por exemplo, se o cão tivesse vindo para a rua com açaime e um terceiro, alheio ao contrato de seguro, lhe tivesse retirado o açaime, à revelia dos donos, permitindo que o cão mordesse alguém.
Improcede assim esta questão suscitada pela recorrente.

C] da eliminação das indemnizações de €1.863,30 e €1.300,00:
A recorrente defende que estas parcelas da indemnização fixada em 1.ª instância devem ser eliminadas em consequência da não prova do ponto AB da matéria de facto.
Como vimos, pese embora a alteração introduzida na resposta a esse ponto concreto da matéria de facto, esta continua a evidenciar o dano que a recorrente impugnou relativo à perda do rendimento que a autora obtinha cultivando o quintal para a alimentação doméstica e venda de alguns produtos por si produzidos.
Por isso, estando provado esse dano e o respectivo montante mensal médio, as parcelas da indemnização referidas pela recorrente também devem ser mantidas, até porque a recorrente ancorava a sua discordância em relação a essa parte da decisão exclusivamente na alteração da decisão sobre a matéria de facto.
Improcedem assim estas questões suscitadas no recurso.

D] da indemnização por danos não patrimoniais:
Na decisão recorrida fixou-se a indemnização dos danos não patrimoniais em €7.500,00, valor que a recorrente sustenta ser excessivo, defendendo, ao invés, com apelo à equidade, que a indemnização desse dano não deve ultrapassar a quantia de €5.000,00.
Insurge-se a recorrente mais em particular com o facto de na decisão recorrida se ter incluído nesse dano o desgosto da autora pela morte do seu cão, atacado e morto pelo cão dos réus.
Não podemos concordar com esta posição da recorrente.
Em primeiro lugar porque a previsão do artigo 496.º do Código Civil não tem por objecto a questão em apreço. Esta norma refere-se às situações em que em consequência dos danos a vítima morre, definindo o universo das pessoas cujos danos não patrimoniais, emergentes dessa morte, são passíveis de indemnização. No caso, o titular dos direitos afectados é a autora que, felizmente, não morreu em consequência do ataque do cão. Do que se trata, portanto, não é de saber se alguém tem direito de indemnização por danos próprios decorrentes da morte de outra pessoa, mas de saber se nos danos não patrimoniais sofridos pela própria autora se deve incluir igualmente o desgosto ou sofrimento moral com a morte do seu cão.
Constitui um dado civilizacional adquirido nas sociedades europeias modernas o respeito pelos direitos dos animais. A aceitação de que os animais são seres vivos carecidos de atenção, cuidados e protecção do homem, e não coisas de que o homem possa dispor a seu bel-prazer, designadamente sujeitando-os a maus tratos ou a actos cruéis, tem implícito o reconhecimento das vantagens da relação do homem com os animais de companhia, tanto para o homem como para os animais, e subjacente a necessidade de um mínimo de tutela jurídica dessa relação, de que são exemplo a punição criminal dos maus tratos a animais e o controle administrativo das condições em que esses animais são detidos. Por conseguinte, a relação do homem com os seus animais de companhia possui hoje já um relevo à face da ordem jurídica que não pode ser desprezado.
Acresce que a evolução do tratamento dos danos não patrimoniais no nosso sistema jurídico conduziu a que hoje se aceite que também as pessoas colectivas podem sofrer danos não patrimoniais e que inclusivamente no domínio das puras relações obrigacionais ou contratuais o incumprimento dos deveres de prestação possa causar ao credor danos não patrimoniais indemnizáveis. Não se vê, pois, como ou porque deixar de incluir nos danos não patrimoniais sofridos por uma pessoa o sofrimento e o desgosto que lhe causa a perda de um animal de companhia ao qual ganhou afeição, que consigo partilha o dia-a-dia, que alimenta e cuida, que leva ao veterinário quando está doente ou precisa de cuidados de saúde. Bem andou, pois, o Mmo. Juiz a quo ao incluir nos danos não patrimoniais sofridos pela autora o dano moral da morte do seu cão.
No tocante ao montante da indemnização a atribuir pela totalidade desses danos não patrimoniais, cabe acentuar que a indemnização é essencialmente compensatória, ou seja, visa a atribuição ao lesado de um montante que lhe possa proporcionar alegrias ou satisfações que o compensem do sofrimento que irremediavelmente suportou. A equidade surge aqui apenas como critério de temperança da subjectividade inerente à avaliação do sofrimento dos outros e da definição daquilo que é efectivamente capaz de compensar esse sofrimento. Por essa razão a equidade apela radicalmente às circunstâncias do caso, às condições e modo de vida das pessoas envolvidas e à medida comummente usada na jurisprudência para situações próximas ou similares.
Assim, levando na devida conta que em consequência das lesões na sua mão direita a autora teve de ser submetida a duas intervenções cirúrgicas e a tratamentos médicos, de enfermagem e de fisioterapia que se prolongaram por quase 11 meses e implicaram muitas deslocações ao hospital e ao centro de saúde, que o período de incapacidade absoluta para o trabalho foi de quase 11 meses, que as sequelas determinaram um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 5 pontos, que a autora ficou com sequelas e cicatrizes, que essas deformações na mão geram um dano estético fixável no grau 2 numa escala de 7, que o quantum das dores físicas é fixável no grau 3 numa escala de 7, que a autora irá continuar a sentir dores na mão e, finalmente, que as circunstâncias em que as lesões ocorreram (ataque de um cão) são susceptíveis de causar maior trauma, merece a nossa inteira concordância o valor da indemnização fixado na 1.ª instância. Improcede assim também esta questão suscitada no recurso.

V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente no tocante à matéria de facto e improcedente no restante e, em consequência, alteram a matéria de facto no sentido assinalado e confirmam no mais a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
*
Porto, 19 de Fevereiro de 2015.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto185)
José Amaral
Teles de Menezes
_______________
[1] Questão que não foi suscitada nos autos e que, como tal, não cumpre abordar aqui.