Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2590/14.1TBVNG-I.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: RECLAMAÇÃO
FALTA DE PAGAMENTO DA TAXA DE JUSTIÇA INICIAL
DECISÃO DO JUIZ
FALTA DE IMPUGNAÇÃO
Nº do Documento: RP202109092590/14.1TBVNG-I.P1
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: DESATENDIDA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Verificando-se que a secretaria notificou oficiosamente a parte para efectuar o pagamento de taxa de justiça pela apresentação de um recurso, que a parte reclamou do acto da secretaria com fundamento de que a taxa de justiça não é devida, que o juiz indeferiu a reclamação com fundamento de que a taxa de justiça é devida e que a parte não impugnou esta decisão, a parte não pode depois, confrontada com a determinação do desentranhamento das alegações de recurso ao abrigo do artigo 642.º, n.º 2, reclamar para o tribunal hierarquicamente superior ao abrigo do artigo 643.º do Código de Processo Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2021:2590.14.1TBVNG.I.P1
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Sumário:
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Em Conferência,
Acordam os Juízes da 3.ª Secção
do Tribunal da Relação do Porto:
I.
No processo de insolvência de B…, contribuinte fiscal nº ………, titular do cartão de cidadão nº …….., residente em Valadares, Vila Nova de Gaia, requerida pelo credor BANCO C…, S.A., pessoa colectiva nº ………, com sede em Lisboa, o devedor apresentou requerimento no qual confessou a situação de insolvência e requereu a exoneração do seu passivo restante.
A dada altura do processo foi proferido despacho no qual se decidiu «indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante».
Deste despacho foi interposto recurso, tendo as alegações sido apresentadas sem o recorrente efectuar o pagamento de taxa de justiça, apesar do que o recurso foi admitido e decidido na Relação.
Nesta Relação foi proferido Acórdão a julgar o recurso procedente e a «declarar nulo o despacho recorrido, devendo este ser substituído por outro que permita ao devedor o exercício do contraditório sobre o fundamento do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante constante do despacho recorrido ou sobre qualquer outro de natureza semelhante».
Em 1.ª instância o insolvente foi notificado para «da intenção do Tribunal em indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, com os fundamentos constantes do despacho» anulado pela Relação.
A seguir, nada tendo sido dito pelo insolvente, foi proferido novo despacho a indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
O insolvente apresentou de seguida requerimento de interposição de recurso e as respectivas alegações, não as fazendo acompanhar de comprovativo de pagamento de taxa de justiça.
A secção, oficiosamente, entendeu notificar o insolvente nos termos do artigo 642.º, nº 1, do Código de Processo Civil, para efectuar o pagamento da taxa de justiça devida acrescida de multa, enviando-lhe a respectiva guia para pagamento de multa no valor de 510,00€ e taxa de justiça no valor de 1.887,00€.
Notificado, o insolvente apresentou requerimento com o seguinte conteúdo: «B…, notificado para o pagamento de taxa de justiça e multas nos termos do art. 642.º CPC vem, com a devida e merecida vénia, reclamar do acto da secretaria, já que tais taxas de justiça (e subsequentes multas) não são devidas, como o não foram no anterior recurso, por força do art. 248.º CIRE
O Mmo. Juiz a quo decidiu a reclamação, indeferindo-a, essencialmente por entender que o artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas «pressupõe que o pedido de exoneração do passivo restante tenha sido admitido, só assim fazendo sentido a referência o período da cessão. Assim, e no caso dos autos, o insolvente não beneficia do deferimento do pagamento das custas, sem prejuízo de, nos termos da lei do acesso ao direito, poder requerer a concessão do benefício do apoio judiciário.» (sublinhado nosso).
Notificado desta decisão por oficio elaborado em 27-04-2021 o insolvente não apresentou recurso da mesma, nem efectuou o pagamento dos valores da guia que lhe tinha sido enviada pela secretaria.
Perante isso o Mmo. Juiz a quo despachou o seguinte: «Em face do silêncio do devedor, determino o desentranhamento das alegações – artigo 642º, n.º 2 do CPC. Assim, e oportunamente, vão os autos à conta.»
Finalmente, em 26-05-2021, o recorrente apresentou um requerimento no qual, defendendo que aquele despacho «materialmente, consiste num indeferimento liminar do recurso, inconformado com o douto despacho de indeferimento do mesmo recurso vem, nos termos do disposto no art. 643.º CPC, do mesmo reclamar».
A instruir a reclamação formulou as seguintes conclusões:
i) O recorrente requereu a exoneração do passivo restante e não há decisão final sobre a mesma.
ii) O desentranhamento das alegações equivale à rejeição do recurso.
iii) Incidindo o recurso precisamente sobre a decisão que indefere a exoneração do passivo restante, só pode concluir-se que não há decisão final sobre essa matéria para efeitos do art. 248.º, n.º 1 CIRE.
iv) Logo, não há lugar ao pré-pagamento da taxa de justiça, a qual nos termos do art. 248.º CIRE é devida apenas a final, o que não se confunde com isenção do pagamento da mesma.
v) não é assim devido o pagamento antecipado da taxa de justiça pelo presente recurso.
vi) Da inexigibilidade do pagamento da taxa de justiça pelo recurso, conforme art. 248.º CIRE, decorre a não verificação da previsão da norma do art. 642.º CPC, não sendo por essa razão devida a cominação nela prevista.
vii) O presente recurso deve ser recebido e apreciado, com as legais e subsequentes consequências, como é de inteira justiça.
Distribuída a reclamação, o respectivo Relator proferiu, ao abrigo do n.º 4 do artigo 643.º do Código de Processo Civil, decisão singular cuja fundamentação e dispositivo são os seguintes:
«Apreciando:
A reclamação prevista no artigo 643.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, é o meio processual de impugnação do despacho que não admita um recurso.
Trata-se de um mecanismo processual que tem essa exclusiva finalidade: permitir a um tribunal superior fiscalizar a decisão do tribunal recorrido de não admitir o recurso de uma decisão por si proferida.
Fora desta situação específica, as decisões judiciais devem ser impugnadas por meio de recurso (artigo 627º, nº 1, do Código de Processo Civil) e não de reclamação.
Com efeito, os recursos, “em sentido técnico-jurídico, são os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, através dos quais se obtém o reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida” - cf. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 211 -.
Os recursos visam, assim, “a eliminação ou correcção de decisões judiciais inválidas, erradas ou injustas, pela devolução do seu julgamento a um órgão jurisdicional hierarquicamente superior, no caso dos recursos ordinários” - cf. Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª edição, pág. 74 -.
No caso, conforme se assinalou, o objecto do recurso que se apresentou é a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Porém, ao contrário do que o reclamante pretende não foi proferido qualquer despacho de não admissão do recurso que fosse passível de reclamação nos termos do artigo 643.º do Código de Processo Civil, nem foi proferida nos autos decisão que lhe corresponda ou seja equiparável.
Na verdade, o tribunal a quo não chegou nunca a pronunciar-se sobre o recurso, designadamente para o admitir ou rejeitar.
O que o tribunal a quo fez, por razões relacionadas com as obrigações tributárias associadas à interposição do recurso, foi decidir que para interpor recurso era necessário o pagamento de taxa de justiça e como esta não foi paga determinar a consequência processualmente prevista no n.º 2 do artigo 642.º do Código de Processo Civil do desentranhamento da peça.
O desentranhamento de uma peça não significa a rejeição do requerimento constante dessa peça, significa a recusa da apresentação da própria peça, com a consequência de o tribunal já não ter de se pronunciar sequer sobre esse requerimento (que uma vez desentranhado é como se não tivesse sido sequer apresentado, isto é, deixa de existir no processo para qualquer efeito).
O reclamante confundiu duas situações: uma é a questão das obrigações tributárias inerentes à apresentação de um determinado articulado ou requerimento; outra é a questão da admissibilidade do recurso que constitua o objecto desse articulado ou requerimento.
São questões autónomas, distintas, embora, naturalmente, a primeira seja prejudicial da segunda: se houver que pagar taxa de justiça e esta não for paga o requerimento de interposição de recurso não produz efeitos, é desentranhado, e, como é óbvio, o juiz já não tem sequer de se pronunciar sobre se o recurso é admissível e/ou de o rejeitar.
No caso, a questão da necessidade de se pagar taxa de justiça para interpor recurso de uma decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante foi expressamente suscitada.
Foi o próprio recorrente, quando notificado pela secretaria para efectuar o pagamento, embora disso não tivesse necessidade, que obrigou o tribunal a decidir expressamente essa questão ao reclamar para o juiz do acto da secretaria (artigo 157.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).
Por conseguinte, o recorrente necessitava de impugnar esta decisão (que julgou ser necessário pagar a taxa de justiça) pela via competente para evitar que a mesma produzisse efeitos processuais e inutilizasse a questão subsequente (a da admissibilidade do recurso). Essa impugnação tinha de ser feita por intermédio de recurso, não por via da reclamação do artigo 643.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que, como vimos, tem um objecto específico e exclusivo.
Lendo as conclusões da reclamação é fácil de concluir que o que o reclamante pretende impugnar por essa via é precisamente o entendimento da necessidade de pagamento de taxa de justiça para apresentar recurso da decisão de indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante.
Em suma, o recorrente usou o meio processual previsto no artigo 643.º do Código de Processo Civil da reclamação do despacho que mandou desentranhar as alegações de recurso quando devia ter usado o meio processual previsto no artigo 644.º do mesmo diploma da interposição de recurso do despacho que desatendeu a reclamação do acto da secretaria e decidiu que era devido o pagamento da taxa de justiça correspondente ao recurso.
Nos termos do artigo 193.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados. Isto é assim, naturalmente, desde que o requerimento possua as características indispensáveis para ser aproveitado para o meio processual adequado e estejam reunidas as demais condições para esse aproveitamento. É isso que falta no caso em apreço.
Para a reclamação poder ser aproveitada como recurso era necessário que a reclamação tivesse sido apresentada no prazo dentro do qual era possível apresentar o recurso, o que não se verifica.
O despacho proferido na sequência da reclamação do acto da secretaria e que decidiu ser devido o pagamento da taxa de justiça foi proferido em 26-04-2021 e foi notificado ao reclamante por ofício elaborado no dia 27-04-2021, pelo que o reclamante se considera notificado no dia 30-04-2021.
O despacho em causa é um despacho cujo recurso de apelação tem de ser interposto de modo autónomo independentemente da decisão final porque a sua impugnação apenas com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil (já o recorrente teria de ter pago a taxa de justiça que pretende não ter de pagar). Além disso, trata-se de um processo urgente. Por isso, o prazo de interposição de recurso era de 15 dias (artigos 638.º, n.º 1, e 644.º, n.º 2, alínea h), do Código de Processo Civil).
Como a reclamação ao abrigo do artigo 643.º do Código de Processo Civil foi apresentada apenas em 26-05-2021, nessa altura já estava ultrapassado o prazo de interposição de recurso do despacho de 26-04-2021 (terminou a 17-05-2021). Por esse motivo não é possível ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 193.º do Código de Processo Civil, aproveitar a reclamação como recurso e mandar seguir os termos deste meio processual.
Em conclusão: a reclamação tem de ser indeferida porque no caso não foi proferido qualquer despacho de não admissão do recurso que fosse passível de impugnação por esse meio processual; a convolação desse meio processual em recurso do despacho decidiu ser necessário pagar taxa de justiça pela interposição de recurso é inviável por na data de apresentação da reclamação já estar ultrapassado o prazo legal de interposição do recurso.
Pelo exposto, por falta do objecto específico sobre a qual ela podia recair julgo a reclamação do artigo 643.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, improcedente
O reclamante veio de seguida impugnar a decisão do Relator ao abrigo do disposto nos artigos 643.º, n.º 4, parte final, e 652.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II.
O reclamante opõe à decisão sumária do Relator essencialmente três objecções:
i) A reclamação do acto da secretaria não teve por objecto a questão do pagamento da taxa de justiça mas o acto em si mesmo, pelo que a decisão proferida sobre essa reclamação não formou caso julgado sobre aquela questão;
ii) Se a Relação não está vinculada pela decisão da 1.ª instância que admita o recurso e fixe a sua espécie e efeito (artigo 641.º, n.º 5, do Código de Processo Civil) também não está vinculada por uma decisão que considere que não se verifica um pressuposto processual do recurso apresentado;
iii) Ordenar o desentranhamento das alegações sem ter sido proferido qualquer despacho anterior a rejeitar, não receber ou indeferir o recurso é forçosamente equivalente ao indeferimento do recurso e, por isso, passível, nesse momento, da eventual reclamação do artigo 643.º do Código de Processo Civil.
Vejamos se estas objecções merecem acolhimento.
A notificação efectuada oficiosamente pela secretaria ao ora reclamante tinha o seguinte conteúdo:
«Assunto: Pagamento de taxa de justiça e multa – art.º 642.º nº 1 CPC
Com referência ao processo acima identificado, fica V. Exa. notificado, na qualidade de Mandatário do Insolvente B…, para, no prazo de 10 dias, efectuar o pagamento da taxa de justiça devida acrescida de multa.
Limites da multa:
1 - Se a taxa de justiça devida for inferior a 1 UC, a multa terá o valor de 1 UC.
2 - Se a taxa de justiça devida for superior a 5 UC, a multa terá o valor de 5 UC.
Pagamento da taxa de justiça e da multa
O pagamento da taxa de justiça e da multa em falta deverá ser efetuado, nos termos do n.º 1 do artigo 21.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril, por Guia DUC, dentro do prazo concedido.
Prazo de pagamento
O prazo de pagamento, bem como o montante, locais e o modo de pagamento da taxa de justiça e da respectiva multa constam da guia anexa.
Cominação
A falta de pagamento da taxa de justiça e da multa no prazo assinalado implica o desentranhamento da alegação, do requerimento ou da resposta apresentada pela parte em falta.»
Recebida esta notificação o reclamante apresentou requerimento com o seguinte conteúdo:
«B…, notificado para o pagamento de taxa de justiça e multas nos termos do art. 642.º CPC vem, com a devida e merecida vénia, reclamar do acto da secretaria, já que tais taxas de justiça (e subsequentes multas) não são devidas, como o não foram no anterior recurso, por força do art. 248.º CIRE.» (sublinhados nossos).
Destas duas peças resulta claro que o fundamento da reclamação não foi a legalidade da actuação da secretaria (se a secretaria actuou no exercício dos poderes de actuação oficiosa previstos na lei processual), foi o acerto do entendimento da secretaria sobre a necessidade de pagar taxa de justiça pela interposição de recurso.
Portanto, ao contrário do que agora sustenta, é evidente que na reclamação do acto da secretaria o que se questionou e se impôs ao juiz que decidisse logo aí foi se era ou não devido o pagamento de taxa de justiça pela interposição de recurso.
Foi isso mesmo que o Juiz a quo decidiu, indeferindo a reclamação por entender que a aplicação do artigo 248º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que confere ao devedor o benefício do diferimento do pagamento das custas até decisão final do pedido de exoneração do passivo restante, pressupõe que o pedido de exoneração tenha sido admitido e, como no caso isso não ocorreu e o insolvente não beneficia do deferimento do pagamento das custas nem demonstra ter requerido a concessão do benefício do apoio judiciário, era devido o pagamento de taxa de justiça pela interposição de recurso.
Esta é claramente uma decisão judicial, com fundamentação e um dispositivo no sentido de ser devido o pagamento da taxa de justiça, pelo que esse segmento decisório possui viabilidade para formar caso julgado formal. Para evitar o caso julgado a decisão tinha de ser objecto de impugnação pelas vias legais: a interposição de recurso ou a arguição de nulidades.
Refira-se que tal desfecho é independente da possibilidade de interposição de recurso. O caso julgado não depende de a decisão ser recorrível, ele forma-se mesmo em relação a decisões que não são passíveis de recurso. Por isso, se a decisão era recorrível o caso julgado formou-se quando se ultrapassou o prazo legal de recurso, se a decisão não era recorrível o caso julgado formou-se assim que decorreu o prazo de arguição de nulidades da decisão.
Improcede assim a primeira objecção suscitada.
Vejamos a segunda.
O artigo 641.º do Código de Processo Civil estabelece o regime do despacho sobre o requerimento de interposição de recurso, estabelecendo que cabe ao juiz a quo pronunciar-se sobre esse requerimento, admitindo o recurso se a tal nada obstar ou indeferindo a respectiva interposição no caso de a decisão não admitir recurso, de ter sido interposto fora de prazo, de o requerente não ter as condições necessárias para recorrer, de o requerimento não conter a alegação do recorrente ou esta não ter conclusões.
O n.º 5 do preceito estabelece que a decisão que admita o recurso, fixe a sua espécie e determine o efeito que lhe compete não vincula o tribunal superior nem pode ser impugnada pelas partes. A situação prevista nesta disposição é a de o tribunal recorrido ter admitido o recurso, não sendo aplicável nos casos em que o tribunal recorrido, ao invés, rejeita o recurso!
Se a norma fosse aplicável nesta última situação, então apesar de o tribunal recorrido ter rejeitado o recurso o processo teria de subir ao tribunal de recurso para este decidir oficiosamente se admitia o recurso, hipótese que não tem qualquer cobertura nas normas processuais.
Nessa medida carece em absoluto de apoio normativo pretender que se o tribunal de recurso não está vinculado pela decisão do tribunal recorrido de admitir o recurso e fixar a sua espécie e efeito, também não está vinculada por qualquer outra decisão que contenda com a admissibilidade do recurso e que tenha estado na origem da sua rejeição.
Em regra, certas ou erradas, todas as decisões judiciais proferidas num processo têm de ser acatadas pelo tribunal que as proferiu e, se não forem objecto de impugnação pelas vias competentes, formam caso julgado no processo, impondo-se não apenas ao tribunal onde pende o processo como também ao tribunal de recurso no caso de a sua intervenção vir a ter lugar.
Só assim não sucede nas situações expressamente previstas na lei que determinam a não formação de caso julgado da decisão e consentem a sua livre revogabilidade pelo tribunal de recurso. O n.º 5 do artigo 641.º do Código de Processo Civil é uma dessas excepções e tem o seu campo de aplicação perfeitamente demarcado às situações em que o tribunal recorrido se pronuncia sobre o requerimento de interposição de recurso e o admite, não quando o rejeita.
Improcede assim o segundo argumento.
Passemos agora ao último deles.
Defende o recorrente que ordenar o desentranhamento das alegações sem ter sido proferido qualquer despacho anterior a rejeitar, não receber ou indeferir o recurso equivale forçosamente a indeferir o recurso, sendo passível de reclamação do artigo 643.º do Código de Processo Civil.
A circunstância de uma determinada decisão arrastar consigo um efeito processual directo e este produzir uma nova situação processual com implicações próprias, não obsta a que se devam distinguir as decisões, no caso de elas serem múltiplas e distintas, e os efeitos processuais que lhe são próprios.
Conforme referiu o Relator na decisão singular, o recorrente não necessitava de reclamar do acto da secretaria para o tribunal. Podia perfeitamente limitar-se a não seguir a indicação oficiosa da secretaria e não pagar a taxa de justiça, esperando pela decisão do tribunal sobre a falta desse pagamento e impugnando depois a decisão no caso de ela lhe ser desfavorável.
No caso, por opção própria o recorrente reclamou do acto da secretaria e obrigou o tribunal a decidir de imediato se o pagamento da taxa de justiça era devido. Com isso determinou a prolação de uma decisão judicial autónoma e específica sobre essa questão jurídica. Confrontado com essa decisão o recorrente necessitava de a impugnar, sob pena de ela formar caso julgado no processo (como referido esta situação não se enquadra na previsão normativa do n.º 5 do artigo 641.º do Código de Processo Civil).
Nesse contexto, o não pagamento da taxa de justiça possui uma consequência processual específica prevista no n.º 2 do artigo 642.º do Código de Processo Civil: o desentranhamento do requerimento de interposição de recurso.
O desentranhamento de um articulado, alegação ou requerimento gera o efeito processual de a peça em questão não se considerar validamente apresentada e não ser tida em conta para nenhum efeito, tudo se passando como se a mesma não tivesse sido sequer apresentada.
Criada essa situação processual, o juiz já não tem de se pronunciar sobre o conteúdo do articulado, alegação ou requerimento. Sendo a peça em causa um requerimento de interposição de recurso, após o seu desentranhamento o tribunal já não tem de se pronunciar sobre se admite ou rejeita o recurso, não incorrendo em qualquer omissão de pronúncia por tal facto.
Não se pode confundir, como pretende o recorrente, a situação processual em que o tribunal está dispensado de se pronunciar sobre um determinado requerimento (em virtude do respectivo desentranhamento) da situação em que o tribunal se pronuncia sobre o requerimento e indefere-o.
Naquela situação, tudo se passa como se o requerimento não tivesse sido sequer apresentado. É certo que isso gera um efeito semelhante ao que ocorreria se o requerimento tivesse sido indeferido, mas o mesmo sucede se o requerimento não tivesse sido efectivamente apresentado pelo interessado. Ora certamente ninguém defenderá que também neste caso similar (quanto aos efeitos indirectos produzidos) o interessado pode reagir pelos meios processuais previstos de impugnação da … decisão de indeferimento.
Improcede assim também esta última objecção ao sentido e conteúdo da decisão singular do Relator, a qual por isso aqui deve ser confirmada.
III. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em desatender a reclamação da decisão singular do Relator, confirmando a decisão de rejeição do recurso.
Custas da reclamação pelo reclamante com 1,5 UC.
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Porto, 9 de Setembro de 2021.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 635)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]