Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
132/19.1GAPFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: INIMPUTABILIDADE
PERIGOSIDADE
PREVENÇÃO ESPECIAL
ESCOLHA DA PENA
CULPA
Nº do Documento: RP20211215132/19.1GAPFR.P1
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na avaliação da perigosidade do arguido - para os bens jurídicos protegidos pelos tipos legais de crime em causa - no âmbito da escolha da pena pelo critério definido no artigo 70º do Código Penal, deverá ser ponderada toda a factualidade provada, anterior e posterior ao(s) crime(s), para aferir o grau das exigências relevantes de prevenção especial.
II - As exigências de prevenção especial são à partida menores quando alguém comete um crime sem nunca antes ter sido condenado por crime semelhante, do que numa hipótese em que já tem um antecedente criminal.
III - A medida da culpa do arguido não interfere na escolha da pena, pois aquela, limitando a pena nos termos do disposto no nº 2 do artigo 40º do Código Penal, apenas releva no âmbito da determinação da sua medida concreta.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 132/19.1GAPFR.P1
Data do acórdão: 15 de Dezembro de 2021

Relator: Jorge M. Langweg
Adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa
Origem:
Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este
Juízo Local Criminal de Paços de Ferreira

Sumário:
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Acordam em conferência, por unanimidade, os juízes acima identificados da 4ª Secção Judicial - 2ª Secção Criminal - do Tribunal da Relação do Porto

nos presentes autos, em que figura como recorrente o arguido B…;
I – RELATÓRIO
1. Em 23 de Junho de 2021 foi proferida nos presentes autos a sentença condenatória que terminou com o dispositivo seguidamente reproduzido:
«Pelo exposto, o Tribunal decide:
1. Condenar o arguido B… pela prática em autoria material, na forma consumada, e em concurso real e efetivo, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de um ano de prisão.
2. Condenar o arguido B… pela prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso real, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.ºs 1, alíneas e) e f), e 3, por referência ao artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de dois anos de prisão.
3. Em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido, condená-lo na pena única de um dois anos e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
4. Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, na taxa de justiça de 1,5 UC (cf. artigos 344.º, n.º 2 alínea c) do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais).»

2. Inconformado com a espécie das penas aplicadas, o arguido interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
“PRIMEIRA: O presente recurso visa o reexame da matéria de Direito, no que respeita à dosimetria das penas concretamente aplicadas.
SEGUNDA: Desde logo, o arguido recorrente considera, no que respeita ao crime de condução sem habilitação legal, a pena exagerada e desproporcional, tendo em conta as finalidades da punição, a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial.
TERCEIRA: Com efeito, no dia 05-03-2019, pelas 12h20m, o arguido B…, conduziu o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula Francesa … ADB .. na via pública e, quando foi intercetado numa operação de fiscalização rodoviária da G.N.R., exibiu um documento como sendo uma carta de condução emitida pelas Autoridades Francesas em 10.09.2015, onde constava, entre outros elementos, o n.º ………, o nome B… e a fotografia do mesmo, contudo o mesmo não era possuidor de carta, licença de condução ou qualquer outro documento que o habilitasse à condução do referido veículo.
QUARTA O processo foi autuado como processo comum, com intervenção do tribunal singular, tendo o arguido recorrente sido condenado pela prática, como autor material, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de um ano de prisão e de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.ºs 1, alíneas e) e f), e 3, por referência ao artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de dois anos de prisão. Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de dois anos e quatro meses de prisão suspensa por igual período.
QUINTA: De salientar que o arguido recorrente, em sede de audiência de Julgamento, prestou uma confissão integral e sem quaisquer reservas, demonstrou profundo e sincero arrependimento e declarou ao Tribunal estar a frequentar uma escola de condução.
SEXTA: O Tribunal a quo, para formar a sua convicção, considerou o teor do certificado do registo criminal do arguido e as declarações do mesmo.
SÉTIMA: Sucede que o Arguido Recorrente não concorda com a pena que lhe foi aplicada, no que concerne à dosimetria, pois, a fixação da pena de dois anos e quatro meses de prisão, ainda que suspensa, merece censura em termos de inadequação, reputando-a por excessiva e desproporcional à gravidade dos factos que praticou e insusceptível de assegurar as finalidades que estão na base da punição.
OITAVA: Parece ao arguido que os fundamentos que sustentaram a aplicação desta pena foram essencialmente as condenações elencadas no seu certificado de registo criminal, contudo, tais condenações não deveriam ter assumido a supremacia que assumiram para o juízo de prognose desfavorável ao arguido, nem deveriam ter sido suficientes para agravar, de sobremaneira, a pena que lhe foi aplicada.
NONA: No que respeita ao crime de condução sem habilitação legal, convém salientar, antes de mais que, à data da prática dos factos dos presentes autos (05/03/2019), o arguido ainda era primário, sendo que nunca tinha sido condenado nem nunca tinha sido solenemente advertido por um tribunal.
DÉCIMA: Na verdade, o arguido sofreu a sua primeira condenação em 13/06/2019 transitada em julgado em 13/07/2019, isto é, em data posterior aos factos dos presentes autos, tendo sido, nessa altura condenado a uma pena de multa de 90 dias.
DÉCIMA PRIMEIRA: Um ano e quatro meses depois, isto é em 19/10/2020 transitada em 18/11/2020, o arguido foi condenado novamente na pena de 100 dias de multa.
DÉCIMA SEGUNDA: Ora, não é assim de todo aceitável, configurando antes um total exagero desmedido, que o Arguido oito meses depois de ter sido condenado (pelo mesmo crime, na pena de 100 dias de multa), seja condenado nos presentes autos, por um crime cuja prática dos factos (05/03/2019) remonta a data anterior à última condenação, e no qual existe uma circunstância favorável ao arguido (estar a frequentar uma escola de condução para se habilitar a ser detentor de carta de condução), numa pena de prisão de 1 ano.
DÉCIMA TERCEIRA: Pode-se assim afirmar que, o Tribunal “a quo”, na determinação da medida da pena, desconsiderou a data da prática dos factos, e em vez de aplicar uma pena de multa que poderia ser determinada até ao máximo de 240 dias, o que por si só já representaria o dobro da pena anteriormente aplicada, decidiu aplicar uma pena de prisão
DÉCIMA QUARTA: Aliás, mesmo dentro da moldura penal de um mês de prisão a dois anos de prisão, optou, sem mais, o Tribunal “a quo” pela determinação de uma pena de 1 ano, correspondente a metade da pena máxima aplicada.
DÉCIMA QUINTA: Entende assim o arguido que o Tribunal “a quo” extravasou em larga medida a medida da culpa do arguido, ao aplicar uma pena exagerada e desmedida da realidade.
DÉCIMA SEXTA: Aliás não se compreende, nem a sociedade em geral pode compreender, como é que alguém pode ser condenado, pelo mesmo crime, em 2021 numa pena de prisão, por um crime cometido em 2019, quando, no ano de 2020, foi condenado, já com antecedentes criminais, numa pena de 100 dias de multa.
DÉCIMA SÉTIMA: Se a justiça, não pode, nem deve ser cega aos circunstancialismos anteriores e posteriores à data do crime, também não se deve aceitar uma condenação totalmente díspar como a que aconteceu com o arguido nos presentes autos.
DÉCIMA OITAVA: Tanto que a presente condenação do arguido, representou um total choque para o mesmo, desacreditando na Justiça que o condenou num processo por factos anteriores de forma tão exagerada em detrimento de um outro tribunal, no qual aliás já constava condenação anterior.
DÉCIMA NONA: Salvo o devido respeito por opinião em contrário, andou mal a Justiça perante o arguido e demais comunidade ao demonstrar a total discricionariedade com que os senhores juízes aplicam penas.
VIGÉSIMA: Um sistema de justiça, deve ser justo, adequado e ponderado o que in casu não aconteceu, pois perante dois crimes da mesma natureza o arguido sofreu condenações completamente antagónicas.
VIGÉSIMA PRIMEIRA: Além do mais, não justificou de forma correta e coerente o Tribunal a condenação aplicada, alegando tão só uma suposta personalidade do arguido, assim como uma atitude contrária aos valores ético-jurídicos que regem a sociedade e, de certa forma, uma certa apetência do mesmo para o crime.
VIGÉSIMA SEGUNDA: Não pode porém o arguido concordar com tal alegação, pois apesar do mesmo já ter sido condenado por duas vezes, este tem desenvolvido esforços para readquirir o controlo da sua vida, revelando forte vontade em não incorrer na prática de novos crimes e em reestruturar a sua vida, sendo inegável que, actualmente, mantém uma vida conforme ao Direito, frequentando uma escola de condução para não mais reincidir na prática do crime de condução sem habilitação legal.
VIGÉSIMA TERCEIRA: O arguido recorrente encontra-se integrado a nível familiar, vivendo com a sua companheira e dois filhos menores, de quem é o principal cuidador e a nível profissional encontra-se empregado como carpinteiro.
VIGÉSIMA QUARTA: Assim, no momento de fixar o quantum da pena a aplicar ao arguido, o Tribunal a quo haveria de considerar as condições e o esforço perpetrado pelo arguido em seu favor, o que não aconteceu.
VIGÉSIMA QUINTA: Pelo que, considerando-se que as necessidades de prevenção geral, entendidas como tutela da crença e confiança da comunidade na ordem jurídico-penal, e as necessidades de prevenção especial que se revelam de grau moderado, deveria ter sido aplicada uma pena muito inferior à aplicada in casu.
VIGÉSIMA SEXTA: Recorde-se que, por mais repugnante que seja um crime, por mais drásticos que sejam os seus efeitos, por maiores que sejam as necessidades de prevenção, nunca pode ser infligida a um arguido uma pena que vá além dos limites impostos pela medida da sua culpa, pelo que o Tribunal a quo violou o preceituado no artigo 40.º do Código Penal.
VIGÉSIMA SÉTIMA: Posto o que, sem mais considerações, o arguido recorrente entende que, com base nos elementos constantes dos autos e os que aqui se exararam, a pena de prisão de um ano deverá ser alterada no sentido da sua desagravação, ou seja, da sua diminuição, aplicando-se uma pena de multa sempre inferior ao limite legal de 240 dias.
VIGÉSIMA OITAVA: No que respeita ao crime de falsificação de documento, condenou ainda o Tribunal “a quo” o arguido recorrente pela prática de um crime de falsificação de documento na pena de prisão de dois anos, sendo a moldura penal fixada com pena de multa de 60 a 600 dias ou pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
VIGÉSIMA NONA: Para tanto alegou o Tribunal “a quo” uma suposta carreira criminosa do arguido, optando, sem mais, por aplicar ao mesmo uma pena de prisão, uma vez mais muito acima do limite mínimo legal.
TRIGÉSIMA: Ora, não pode, uma vez mais, o arguido concordar com a dosimetria da pena aplicada, pois esqueceu o Tribunal que o arguido, à data dos factos era primário e que do seu registo criminal não consta qualquer condenação pelo mesmo tipo de crime.
TRIGÉSIMA PRIMEIRA: Olvidou ainda o Tribunal a confissão integral e sem reservas efetuada pelo arguido, assim como o profundo arrependimento demonstrado.
TRIGÉSIMA SEGUNDA: Facto pelo qual muito se estranha a escolha do Tribunal por uma pena de prisão em detrimento de uma pena de multa, que, salvo opinião em contrário, satisfazia plenamente as exigências de prevenção geral e especial.
TRIGÉSIMA TERCEIRA: Na verdade, somos do entendimento que o grau de ilicitude do arguido é diminuto pois: da sua actuaçao não resultou qualquer dano para sociedade em geral; o mesmo não foi interveniente em qualquer acidente de viação; da sua actuação não resultaram danos materiais e ou pessoais e; o mesmo assumiu que a sua conduta era errada e contrária à lei, responsabilizando-se pelos seus actos.
TRIGÉSIMA QUARTA: Daqui resulta que, ao arguido, dado ser primário, deveria ter sido aplicada uma pena de multa, satisfazendo-se assim as exigências de prevenção geral e especial. Caso assim não se venha a entender, o que o arguido apenas admite por mera hipótese académica, deveria ter sido aplicada uma pena de prisão correspondente ao limite mínimo legal, 6 meses, suspensa na sua execução.
TRIGÉSIMA QUINTA: Violou assim, uma vez mais, o Tribunal a quo o preceituado no artigo 40.º do Código Penal.
TRIGÉSIMA SEXTA: Posto o que, sem mais considerações, o arguido recorrente entende que, com base nos elementos constantes dos autos e os que aqui se exararam, a pena de prisão de dois anos deverá ser alterada no sentido da sua desagravação, ou seja, da sua diminuição, aplicando-se uma pena de multa não superior a metade do limite legal (300 dias) ou caso se opte por uma pena de prisão, suspensa, ser determinada pelo mínimo legal (6 meses).
TRIGÉSIMA SÉTIMA: Em suma, entende o recorrente que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do C.P., assim como o princípio da proporcionalidade, por incorreta e imprecisa aplicação dos seus pressupostos, em que as penas aplicadas se traduzem em penas demasiado severas e excessivas considerada toda a factualidade dada como provada.
Termos em que deve ser admitido o presente recurso e, consequentemente, na medida das articuladas conclusões e pelo douto suprimento, revogando a sentença recorrida e decretando o tribunal superior:
- aplicação de uma pena de multa inferior a 240 dias pelo crime de condução sem habilitação legal, e
- aplicação de uma pena de multa inferior a 300 dias pelo crime de falsificação de documento,
- operando de seguida o cúmulo jurídico que entenderem por adequado e justo à situação em apreço pelo que
Farão v. Exas. Soberana justiça!»

3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo imediatamente e com efeito suspensivo.
4. Na sequência da notificação da motivação do recurso, o Ministério Público apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso, que concluiu nos seguintes termos:
«A douta sentença recorrida não violou o disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal e as penas parcelares aplicadas, assim como a pena única conjunta, afigura-se justa e adequada face à factualidade dada como provada.
As exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir são elevadas, no que concerne a ambos os ilícitos pelos quais o recorrente foi condenado, pelo que as penas aplicadas ao mesmo teve em devida conta tal facto.
A sucessão dos factos dado como provados, e o modo de execução dos mesmos (requintando o seu modus operandi de forma a não ser descoberto) por parte do recorrente é por demais reveladora de que o mesmo tem uma reduzida consciência crítica dos factos que pratica e demonstra uma propensão para a prática do ilícito de condução sem habilitação legal, não olhando a meios para atingir os fins; isto é, se necessário, com recurso a falsificação de documento por si fabricado ou adquirido a terceiros.
Numa imagem global do facto, constata-se que uma pena de multa em ambos os ilícitos em causa não salvaguarda cabalmente as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir.
A douta sentença recorrida atendeu devidamente aos antecedentes criminais do recorrente e valorizou-os devidamente, dado que dispõe o artigo 71.º do Código Penal, na sua alínea e), manda atender à conduta do arguido anterior ao facto e a posterior a este.
Ademais, a apreciação das exigências de prevenção especial tem de ser efetuada no momento atual, isto é, à data da prolação da sentença em causa, devendo nesta sede ser tida em linha de conta para a determinação da pena, todos os antecedentes criminais do arguido.
Por fim, não deverá ser tido em conta o facto de somente nesta sede o recorrente vir alegar que se encontra inscrito numa escola de condução; e isto porque, não comprovou tal facto, nomeadamente, com recurso a prova documental e o mesmo não resultou provado na douta sentença recorrida, não tendo o mesmo peticionado em sede de recurso a alteração da matéria de facto dada como provada, com o consequentemente aditamento de tal facto.
Por outro lado, também não deve ser sobrevalorizado, nos termos em que o recorrente o pretende, o facto de o mesmo ter confessado de forma livre e integral os factos aqui em causa; é que, embora tenha efetivamente confessado, não demonstrou um sincero arrependimento, nem tal resultou inclusive provado.
Nestes termos, não há assim qualquer fundamento para revogar a douta Sentença proferida, devendo ser julgado totalmente improcedente o recurso ora interposto pela Recorrente, fazendo Vossas Excelências Justiça!»

Nesta instância, o Ministério Público [1] emitiu parecer, aderindo, expressamente, ao teor da resposta junta na primeira instância.
5. O recorrente não apresentou qualquer resposta.

Questão a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [2] e a jurisprudência [3] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir, somente, o alegado erro em matéria de direito:
Excessividade das penas de prisão aplicadas, sendo suficiente a imposição de penas de multa, tendo a sentença recorrida violado, nesta vertente, o disposto nos artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal;
II – A SENTENÇA RECORRIDA
Tendo em conta o objeto do recurso, torna-se essencial analisar a sentença recorrida.
Para tanto, importa recordar os factos provados, que não foram impugnados pelo recorrente, bem como a fundamentação jurídica das penas aplicadas:
«1. No dia 05-03-2019, pelas 12h20m, o arguido B…, conduziu o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula Francesa … ADB .. na via pública, mais concretamente na Avenida …, em …, Paços de Ferreira, quando foi intercetado numa operação de fiscalização rodoviária da G.N.R..
2. Nessa ocasião, o arguido exibiu aos militares um documento como sendo uma carta de condução emitida pelas Autoridades Francesas em 10.09.2015, onde consta, entre outros elementos, o n.º ………, o nome B… e a fotografia do mesmo.
3. Todavia, esse documento não foi emitido pelas autoridades competentes para o efeito.
4. O arguido, pelo menos até 05-03-2019, não era titular de qualquer documento que lhe permita o exercício da condução de veículo automóveis.
5. O arguido sabia que a mencionada carta era desconforme com a realidade, adquirindo-a a pessoa ou a entidade não autorizada à emissão de tal documento.
6. Ao utilizar essa carta quando exerceu a condução, como fez, visou obter, e obteve, efetivamente, o benefício de poder conduzir automóveis sem estar legalmente habilitado a tal, através do engano a que conduziu as autoridades fiscalizadoras do trânsito, face à veracidade e confiança que o documento oferecia.
7. Sabia ainda que não podia conduzir aquele veículo naquelas condições, sem qualquer carta ou licença que o habilitasse a tal atividade.
8. Agiu o arguido de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
9. O arguido foi condenado:
9.1. Por sentença proferida em 13.06.2019, transitada em julgado no dia 13.07.2019, no processo n.º 12/18.8GBSTS, pela prática, no dia 17.12.2017, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 90 dias de multa.
9.2. Por sentença proferida em 19.10.2020, transitada em julgado no dia 18.11.2020, no processo comum singular nº 558/20.8GBPRD, pela prática, no dia 10.10.2020, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 100 dias de multa.
10. O arguido exerce a profissão de carpinteiro, aufere o vencimento mensal de €680, reside com a sua mulher e dois filhos com 5 e 8 anos de idade em casa arrendada pela qual pagam a renda mensal de €125. Tem o 4.º ano de escolaridade.
(…)
(…)
§ 2. Das consequências jurídicas dos crimes praticados pelo arguido.
a) Enquadrado da forma descrita o comportamento do arguido, cumpre, agora, escolher e graduar, dentro da medida abstrata da pena que cabe a cada um dos crimes que praticou por si, a pena concreta a aplicar.
O crime de falsificação de documento é cominado com pena de prisão é de pena de prisão de 6 meses a 5 anos ou pena de multa até 600 dias e o crime de condução de veículo sem habilitação legal é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.
b) Admitindo ambas as referidas punições a aplicação, em alternativa, de duas penas principais, cumpre proceder, desde já, à determinação da espécie de penas que concretamente irão ser aplicadas, atendendo, para o efeito, ao sentido e ao alcance do princípio geral que resulta da combinação dos artigos 40.º e 70.º.
Nos casos, pois, em que o legislador tenha admitido o funcionamento alternativo de uma reação detentiva e de uma pena não privativa da liberdade, deverá o tribunal dar preferência à segunda sempre que, através dela, for possível realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. E como aplicação de penas tem por objetivo a proteção dos bens jurídicos e a integração do agente na sociedade, serão sempre e só considerações de prevenção geral e especial a decidir da possibilidade de preferir, no caso concreto, uma medida não detentiva a uma pena de prisão.
Neste sentido, o tribunal só deverá recusar a aplicação da pena alternativa quando tal opção seja de modo a comprometer a preservação da paz jurídica comunitária, ou quando se revele desde logo inconveniente para a viabilidade e sucesso de um projeto de ressocialização.
E, conforme refere o Prof. Figueiredo Dias, face ao princípio da subsidiariedade da intervenção penal, existe um princípio de preferência pelas reações criminais não detentivas face às detentivas.
Resulta deste princípio que as medidas de segurança detentivas só têm lugar quando as não detentivas se revelem inadequadas ou insuficientes à prevenção. Optando-se pela pena privativa da liberdade esta tem necessariamente de se dirigir para a socialização do delinquente.
Fernanda Palma afirma que "a decisão sobre a pena pressupõe uma relação não linear entre a pena e a prevenção do crime, em que na avaliação do efeito de desmotivação se pondera também a igualdade e a responsabilidade da sociedade na crimogénese. (...) A medida da igualdade e da justiça no que respeita à censura do comportamento criminoso só pode radicar no conhecimento da pessoa e na sua compreensão", isto é, a censura penal tem de atender ao agente concreto do crime e às suas circunstâncias envolventes.
Assim, a escolha entre prisão e multa, nos termos do artigo 70.º do Código Penal, depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial.
Relativamente a ambos os tipos legais de crime, fazem-se sentir particulares necessidades de prevenção geral.
Vejamos.
No que concerne à condução de veículo sem habilitação legal, continua a verificar-se atualmente um crescente e preocupante aumento da sinistralidade nas estradas portuguesas, não raras vezes devido à falta de habilitação dos mesmos para o exercício da condução, bem como de casos de condutores que praticam sistematicamente a condução sem estarem habilitados para o efeito.
Já relativamente ao crime de falsificação de documentos, diremos que as necessidades de prevenção geral são próximas dum grau médio, dada a elevada frequência com que estas condutas têm sido levadas a cabo na nossa sociedade e sendo necessário repor a confiança nas normas jurídicas violadas de tal forma que se evitem situações de insegurança e de restabelecimento na fé pública dos documentos.
Quanto às necessidades de prevenção especial, são já elevadas, porquanto o arguido tem dois antecedentes criminais, pela prática do crime de condução sem habilitação legal, tendo sido condenado em penas de multa.
Não obstante na data dos factos o arguido ser primário, o seu comportamento contemporâneo ao dos factos, bem como a circunstância de ter praticado um crime de condução sem habilitação após ter sido condenado pela prática de crime idêntico é demonstrativo de uma personalidade que nos permite fazer um juízo de prognose póstuma a ponto de confirmar que uma pena de multa não assegura, de todo, as finalidades da punição.
Assim, apenas a pena de prisão poderá, no caso concreto deste arguido, operar de forma conveniente as necessidades de punição, mas sobretudo as de prevenção especial, já que este arguido, tem notoriamente uma reduzida consciência crítica dos factos que pratica.
c) Na determinação da medida concreta da pena deve o Tribunal tomar em conta, como diretrizes fundamentais, conforme imposição legal do n.º1 do artigo 71.º do Código Penal, a culpa do agente e as exigências de prevenção, mas sempre com observância plena do princípio da proibição da dupla valoração, devendo ainda tomar em consideração, entre outros, os diversos fatores enunciados no n.º 2 do artigo acabado de mencionar.
Tendo, pois, em conta os princípios gerais que acabam de ser formulados, deverão ser, neste momento, consideradas todas aquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal convocado, sejam expressivas da culpa do arguido e da medida das necessidades de prevenção.
Descendo ao caso concreto, para a determinação das penas concretas a aplicar ao arguido por reporte aos crimes que praticou, e em seu desfavor, a ilicitude do facto é acentuada em ambos os casos, atendendo ao valor e natureza dos bens jurídicos violados; atuou em ambas as situações com dolo direto, assumindo assim a sua modalidade mais intensa.
Os factos praticados pelo arguido, reveladores da sua personalidade, denunciam uma atitude contrária aos valores ético-jurídicos que regem a sociedade e, de certa forma, uma certa apetência do mesmo para o crime, considerando que, apesar de na data da prática dos mesmos ser primário, veio a ser condenado, após, por duas vezes, pela prática de crime de condução sem habilitação legal.
A favor do arguido temos a considerar que este se encontra bem inserido familiar e profissionalmente, a sua humilde condição socio-económica e ter confessado e sem reservas os factos de que vem acusado.
Como já se referiu, as necessidades de prevenção geral são consideravelmente elevadas relativamente ao crime de condução sem habilitação legal, pela elevada sinistralidade nas nossas estradas, muitas vezes provocadas pela condução de veículos sem habilitação para o efeito e de grau médio, relativamente ao crime de falsificação.
Por último, são já elevadas as necessidades de prevenção especial, uma vez que as anteriores condenações são demonstrativas de uma personalidade desconforme ao direito e uma indiferença perante as normas que regem a sociedade. Cumpre, por fim, salientar que as penas a aplicar ao arguido devem defender o ordenamento jurídico, nomeadamente porque os comportamentos desviantes daquele são reveladores de uma atitude censurável, não considerando o desvalor de condutas ofensivas da vida comunitária, de acordo com os princípios constitucionais relevantes de um Estado de Direito Democrático. Como tal, tem de ser convenientemente sublinhada, perante a sociedade, a validade das normas que punem tais condutas e protegem o respetivo bem jurídico fundamental. E assim, sopesados os circunstancialismos acima enunciados e salvaguardas as finalidades da pena e as exigências de prevenção que se fazem sentir no caso concreto, e considerando a moldura penal aplicável a cada um dos ilícitos em causa, julga-se adequada e proporcional, a aplicação ao arguido das penas de:
Dois anos de prisão relativamente ao crime de falsificação;
Um ano de prisão relativamente ao crime de condução sem habilitação legal.
c) Tendo o arguido praticado os mencionados crimes antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, cumpre, nos termos do artigo 77.º do Código Penal, proceder à construção da moldura do concurso e, considerando globalmente o conjunto dos factos e a personalidade daquele, determinar, dentro dela, a medida concreta da pena única a aplicar-lhe.
As regras da punição do concurso mandam que este se faça, determinando, em primeiro lugar, a moldura penal do mesmo, a qual terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Para a definição da pena concreta, deve levar-se em consideração, em conjunto, os factos e sua gravidade, já supra analisados.
Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.
Vertendo ao caso dos autos, atento o disposto no n.º2 do artigo 77.º, a pena única a aplicar à arguida oscilará entre os dois anos e os três anos de prisão.
Para determinação da pena única a aplicar ao arguido há a considerar o número de crimes que cometeu (dois), bem como a natureza e gravidade dos factos em causa.
Por outro lado, há que valorar que a atividade delitual foi cometida no mesmo contexto, sendo patente que os factos se encontram numa relação de conexão – a falsificação do documento foi o meio usado para o arguido se tentar eximir ao controle da fiscalização rodoviária criando a falsa aparência de que estava habilitado a conduzir caso fosse alvo de fiscalização.
Ainda a considerar a circunstância de que o comportamento posterior contemporâneo e posterior do arguido plasmado nas duas condenações posteriores à data da prática dos factos em causa nos autos é já reconduzível a uma tendência criminosa.
Por fim, ainda há que ter presente que o conjunto dos atos empreendidos, denúncia, pela conexão que intercede entre os ilícitos típicos em presença, uma atitude pessoal de indiferença pela segurança rodoviária.
Em síntese, considerando a globalidade os factos e a personalidade do arguido acima descritos, julga-se adequada a aplicação de uma pena unitária de dois anos e quatro meses de prisão, assim se salvaguardando as finalidades da punição.
(…)
No que se refere à personalidade do agente resultou apurado que o arguido assumiu os factos, se encontra bem inserido familiar e profissionalmente e que é a primeira vez que se depara com a aplicação de uma pena de prisão.
Ora, daqui resulta que a tensão existente entre o comportamento do arguido e a necessidade de tutela da confiança da comunidade nas normas violadas ainda permite concluir que a censura que está a ser levada a cabo através da presente decisão e a ameaça da efetivação da pena de prisão satisfaz as finalidades da punição - de prevenção geral e de ressocialização do arguido – pelo que se decide suspender a execução da pena de prisão aplicada por período de tempo igual ao da pena de prisão.»
III – FUNDAMENTAÇÃO EM MATÉRIA DE DIREITO

Importa, ora, apreciar e decidir a questão que integra o thema decidendum deste recurso, tendo presente a realidade processual documentada nos autos e que se mostra relatada, no essencial, neste acórdão.
- Do alegado erro em matéria de direito que resultou na aplicação de pena de prisão:
- o crime de falsificação de documento é punível com pena de prisão de prisão de 6 meses a 5 anos ou pena de multa até 600 dias; e
- o crime de condução de veículo sem habilitação legal é punível com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.

§ 1 - Na sentença recorrida, o tribunal “a quo” reconheceu que o critério legal impõe que se dê preferência à pena não privativa da liberdade sempre que, através dela, for possível realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Identificando neste âmbito as finalidades de prevenção criminal geral e especial, classificou as primeiras como médias (quanto aos crimes de falsificação de documento) e crescentes (relativamente aos crimes de condução de veículo sem habilitação legal).
No entanto, é nas preocupações de prevenção especial que o Tribunal “a quo” se baseou, principalmente, para optar pela aplicação de pena de prisão relativamente aos dois crimes, considerando-as elevadas pela existência de dois “antecedentes criminais” pela prática de crime de condução sem habilitação legal, tendo sido condenado em penas de multa – não obstante reconhecer, igualmente, que à data dos factos o arguido era primário -.
É a reiteração da prática desse crime, após os crimes que constituíram objeto deste processo, que o tribunal da primeira instância valora para concluir que uma mera pena de multa não assegurará, de todo, as finalidades da punição, exigindo a aplicação de penas de prisão de modo a satisfazer as necessidades de prevenção especial.
§ 2 – O arguido recorrente insurge-se contra tal entendimento, pugnando pela aplicação de penas de multa, uma vez que, à data da prática dos crimes o arguido não tinha qualquer antecedente criminal e, mesmo por novos crimes, apenas foi condenado em penas de multa, não se fazendo sentir especiais preocupações de prevenção especial.
Ora, confrontando o entendimento jurídico na decisão recorrida com o outro entendimento plasmado nas demais sentenças condenatórias entretanto proferidas quanto ao arguido, o recorrente insurge-se contra a aparente arbitrariedade que lhe parece ser a aplicação das penas de prisão gravosas em que foi condenado pelo tribunal “a quo”, a seu ver incompreensível à luz da jurisprudência consolidada nas outras condenações.
§ 3 - O Ministério Público concorda com as penas aplicadas na sentença recorrida, alegando existirem elevadas preocupações de prevenção geral e especial, respetivamente, quanto aos dois tipos legais de crime e em relação ao arguido.
Quanto a este último, a sucessão dos factos dado como provados e o modo de execução dos mesmos é, no entender do Ministério Público, reveladora de que o arguido tem uma reduzida consciência crítica dos factos que pratica e demonstra uma propensão para a prática do ilícito de condução sem habilitação legal, não olhando a meios para atingir os fins, designadamente, se necessário, com recurso ao uso de documento falsificado.
Acrescenta que a apreciação das exigências de prevenção especial tem de ser efetuada no momento da prolação da sentença, devendo ser considerados todos os antecedentes criminais do arguido – mesmo os posteriores à data dos crimes in iudicium -.
Cumpre apreciar e decidir.
A circunstância de, no teor literal da lei, a pena de multa vir mencionada em segundo lugar depois da pena de prisão, não deve, em nada, prejudicar o reconhecimento – aliás pacífico na doutrina e jurisprudência - de que a pena de multa é a pena em abstrato legalmente preferida[4].
Nos termos do disposto no artigo 70º do Código Penal, o tribunal dá preferência à pena não privativa da liberdade – pena de multa -, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
A punição visa, apenas e tão-somente, a proteção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente (artigo 40º, 1, do mesmo texto legal).
Atenta a ratio legis inerente às normas citadas, o critério legal de escolha da pena (privativa/não privativa da liberdade), previsto no artigo 70º do Código Penal é o seguinte: o tribunal deve dar preferência à pena não privativa da liberdade, verificados que estejam os pressupostos formais da sua aplicação, sempre que ela realize, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Tendo em consideração os fins das penas concretizados no artigo 40º, nº 1, do Código Penal, conclui-se que são as necessidades de prevenção – geral positiva [tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada] e especial de socialização – que presidem à escolha da pena.
Contrariamente ao sustentado na motivação do recurso, a medida da culpa do arguido não interfere na escolha da pena, pois aquela, limitando a pena nos termos do disposto no nº 2 do artigo 40º do Código Penal, apenas releva no âmbito da determinação da sua medida concreta.
Por outro lado, a circunstância do arguido não ter quaisquer antecedentes criminais (no sentido de sentença condenatória transitada em julgado por crimes cometidos anteriormente) à data dos crimes que constituíram objeto deste processo - tendo apenas sido condenado poucos meses depois em pena de multa por outro crime de condução sem habilitação cometido pouco mais de um ano antes dos crimes que originaram este processo - não significa que se possa ficcionar que a sentença condenatória proferida nestes autos tenha sido proferida na época em que os crimes “in iudicium” foram cometidos, ignorando assim quaisquer factos posteriores: tal como foi realçado na resposta do Ministério Público à motivação do recurso, até na determinação do “quantum” da pena é valorada a conduta posterior aos factos ilícitos criminais, razão pela qual também na avaliação da perigosidade do arguido - para os bens jurídicos protegidos pelos tipos legais de crime em causa - no âmbito da escolha da pena pelo critério definido no artigo 70º do Código Penal, se deverá ponderar toda a factualidade provada, anterior e posterior aos crimes, para aferir o grau das exigências relevantes de prevenção especial, que se mostrem decisivas na apreciação do mérito do recurso.
No entanto, importa reconhecer que as exigências de prevenção especial são à partida menores quando alguém comete um crime sem nunca antes ter sido condenado por crime semelhante, do que numa hipótese em que já tem um antecedente criminal.
Relativamente ao objeto deste processo, importa recordar que o arguido cometeu o crime de condução sem habilitação legal, fazendo-se acompanhar de um título de condução falso, depois de já ter sido fiscalizado há pouco mais de um ano quando conduzia também sem habilitação legal - sem que, entretanto, tenha sido julgado pelo primeiro crime, o que só viria a suceder após praticar os novos crimes -.
Assim veio a ser julgado e condenado por sentença proferida em 13.06.2019, transitada em julgado no dia 13.07.2019 (processo n.º 12/18.8GBSTS), pela prática, no dia 17.12.2017, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 90 dias de multa; tal condenação não surtiu os desejados efeitos de prevenção especial, pois o arguido voltou a cometer novo crime, tendo sido condenado por sentença proferida em 19.10.2020, transitada em julgado no dia 18.11.2020 (processo comum singular nº 558/20.8GBPRD), pela prática, no dia 10.10.2020, de um novo crime de condução sem habilitação legal, na pena de 100 dias de multa.
E, chegando a esse ponto cronológico, chega-se à sentença condenatória produzida nos presentes autos, datada de 23 de Junho de 2021, em que foram determinadas as penas de prisão pelos crimes de falsificação de documento e de condução de veículo sem habilitação legal cometidos no passado dia 5 de Março de 2019.
Não obstante tal reiteração da atividade criminosa por parte do arguido, que gerou no Ministério Público e no Tribunal “a quo” compreensíveis preocupações de prevenção especial, não se pode ficar indiferente à circunstância já acima apontada das exigências de prevenção especial estarem mitigadas pela circunstância do arguido não ter qualquer antecedente criminal à data dos crimes, o mesmo ter família (mulher e dois filhos menores de idade) e exercer uma profissão.
Por tais motivos impõe-se – no limite - optar pela pena de multa, por tal corresponder ao critério previsto no artigo 70º do Código Penal.
Importa, assim, determinar as penas de multa.
A determinação da medida concreta da pena é efetuada de acordo com os critérios gerais enunciados no artigo 71º do Código Penal, uma vez que depende da gravidade do ilícito e da culpa do agente do crime – e é nesta vertente que os fatores agravantes da pena assumem um nível muito elevado, considerando o histórico penal do arguido -.
Esta norma estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, precisando o nº2 do mesmo artigo que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele.
Estas podem ser agrupadas em três grupos fundamentais:
a) fatores relativos à execução do facto [alíneas a), b) e c) – grau de ilicitude do facto, modo de execução, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpa e sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta];
b) fatores relativos à personalidade do agente [alíneas d) e f) – condições pessoais do agente e sua condição económica, falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto]; e
c) fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto - alínea e) -.
Conclui-se da ratio desta estatuição, que a culpa possui a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena e a prevenção geral a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente.
Para o efeito, o tribunal deverá atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depuserem a favor ou contra o agente, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (art. 40º, 2, do mesmo texto legal), conforme já anteriormente referido.
Em suma, impõe-se ter em consideração que é a culpa concreta do agente que impõe uma retribuição justa, devendo respeitar-se as exigências decorrentes do fim preventivo especial, referentes à reinserção social do delinquente, para além das exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade.
Importa assim ponderar, como agravantes de caráter geral dotados em conjunto de eficácia muito elevada na determinação das duas penas:
a) a circunstância do arguido ter cometido o crime de condução sem habilitação legal pouco mais de um ano após ter sido fiscalizado a conduzir também sem habitação legal;
b) a intensidade dolosa (dolo direto) manifestada na prática dos crimes;
c) os antecedentes criminais existentes à data do julgamento realizado nos presentes autos, por crime de condução sem habilitação legal;
Simultaneamente, importa considerar as seguintes atenuantes, de eficácia reduzida:
a) a ausência de antecedentes criminais à data dos crimes;
b) a integração familiar e profissional do arguido;
c) o grau reduzido de escolaridade do arguido;
Note-se neste âmbito, ainda, que não foram provados quaisquer factos susceptíveis de revelar um arrependimento efetivo do arguido pela prática dos crimes, contrariamente ao sugerido pelo recorrente.
Ponderado tudo quanto acima ficou exposto e a situação socioeconómica média/baixa do arguido (sua situação económica e financeira, considerando ainda os seus encargos pessoais, designadamente com a renda de casa e as demais despesas regulares do seu agregado familiar) – artigo 47, nº 2, do Código Penal -, considera-se ajustado aplicar as seguintes penas:
- para o crime de falsificação de documento (punível com pena de multa até 600 dias): 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 7,--€ (sete euros); e
- para o crime de condução de veículo sem habilitação legal (punível com pena de multa até 240 dias): 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 7,--€ (sete euros);
Na medida da pena unitária são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º, nº 2, do Código Penal), tendo como limite máximo, “in casu”, 400 (quatrocentos) dias de multa, à referida taxa diária - correspondente à soma das penas parcelares, sem que exceda a pena máxima geral - e, como limite mínimo, 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 7,--€ (sete euros), por corresponder à pena mais elevada integrada no cúmulo.
O sistema de punição do concurso de crimes consagrado no artigo 77.º do Código Penal afasta uma visão atomística da pluralidade de crimes e implica uma valoração conjunta dos factos – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do agente dos crimes –.
Nestes termos, determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares factos, cabe ao tribunal, depois de estabelecida a moldura do concurso, encontrar e justificar a pena conjunta, cujos critérios legais de determinação são diferentes dos propostos para a primeira etapa (na determinação das penas parcelares).
Nesta segunda fase, estabelece-se uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) – agora concretizada em relação à globalidade dos factos que se encontram relacionados no concurso de infrações –: a sua concretização traduzir-se-á na valoração conjunta dos factos e da personalidade, exigida pelo disposto na parte final do nº 1 do artigo 77º do Código Penal.
Nesta perspetiva, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a relação e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes seja estabelecido.
Na avaliação da personalidade – unitária – do agente importa determinar, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é subsumível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa ou, tão-só, a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
Importa ainda realçar que na determinação da medida das penas parcelar e única não é admissível uma dupla valoração do mesmo fator com a mesma expressão: assim, se as penas parcelares valoraram a gravidade objetiva dos crimes, tal fator não poderá voltar a ser valorado para a determinação da pena única.
Na avaliação da personalidade expressa nos factos importa considerar a reiteração da atividade criminosa comprovada, tendo o arguido sido fiscalizado pouco mais de um ano antes de praticar os crimes, estando a conduzir sem habilitação legal. Para evitar voltar a ser detectado pelas autoridades policiais na prática da “condução automóvel sem carta”, muniu-se de um documento falso e, deste modo, ao praticar de novo esse crime, também acrescentou a prática de um crime de falsificação de documento.
Mesmo depois de ter sido novamente surpreendido pelas autoridades policiais no âmbito da fiscalização rodoviária que originou os presentes autos, voltou a conduzir sem habilitação legal, gerando outro antecedente criminal consubstanciado numa condenação transitada em julgado antes de ter sido julgado no âmbito dos presentes autos.
Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de cúmulo material de penas (soma das penas com mera limitação do limite máximo) nem pelo da agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e dos singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente.
A determinação da pena emergente do cúmulo jurídico exige, assim, um exame crítico de ponderação conjunta sobre a interligação entre os factos e a personalidade do condenado, de modo a valorar o ilícito global perpetrado.
Atenta a medida muito elevada de culpa do arguido, manifestada na reiteração histórica da mesma atividade criminosa (condução automóvel sem habilitação legal) e no concurso deste crime com o de falsificação de documento (cuja prática foi motivada, notoriamente, para encobrir o novo crime de condução ilegal) e as fortíssimas exigências de prevenção especial –, considera-se ajustada a pena única de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 7,--€ (sete euros), a qual não excede a medida da culpa concreta do arguido.
O recurso será, assim, julgado provido.
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Das custas processuais:
Sendo o recurso do arguido julgado provido, não há lugar ao pagamento de custas.
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IV – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência e por unanimidade os juízes subscritores, da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em julgar provido o recurso interposto pelo arguido B… e, em consequência, alteram as penas aplicadas na sentença recorrida, fixando-as nos seguintes termos:
a) para a prática, em autoria material, com dolo direto, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 7,--€ (sete euros);
b) para a prática, em autoria material e sob a forma consumada, com dolo direto, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.ºs 1, alíneas e) e f), e 3, por referência ao artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 7,--€ (sete euros);
c) procedendo ao cúmulo jurídico das penas acima referidas, aplicadas pela prática dos crimes em concurso efetivo de crimes, fixa-se a pena única em 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 7,--€ (sete euros), num total de 2.450,--€ (dois mil quatrocentos e cinquenta euros)
Sem custas.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, em 15 de Dezembro de 2021.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
________________
[1] Parecer subscrito pelo Procurador-Geral Adjunto Dr. Fernando Manuel Barbosa Soares de Miranda.
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[3] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[4] Neste sentido, entre outros, Eduardo Correia, in Revista de Legislação e Jurisprudência, 123º, pág. 102, Figueiredo Dias, in Direito Penal – 2, 1998, págs. 128, 129-9, R. Cordeiro, in Jornadas de Direito Penal, C.E.J., pág. 239, Acórdão da Relação de Évora, de 6 de Novembro de 1984, in B.M.J. 343º, pág. 396, Anabela Miranda Rodrigues em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Março de 1990, na Revista Portuguesa de Ciências Criminais, I, pág. 248 e seguintes e Acórdão do Tribunal Constitucional de 15 de Junho de 1989, in B.M.J. 388º, página 176.