Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11/10.8TBGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RITA ROMEIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
DIREITO DE RETENÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Nº do Documento: RP2014091511/10.8TBGDM.P1
Data do Acordão: 09/15/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato-promessa de compra e venda com eficácia obrigacional em que tenha havido tradição da coisa confere ao promitente-comprador direito de retenção sobre a fracção objecto do contrato prometido, pelo crédito resultante do não cumprimento daquele, imputável ao promitente vendedor.
II – O promitente comprador a quem foram entregues as chaves da fracção prometida vender, no acto de pagamento da totalidade do preço e a qual passa a vigiar e usar as garagens, sem oposição e à vista de todos, goza de direito de retenção sobre a fracção, pelo crédito resultante do incumprimento do promitente vendedor em celebrar a escritura de compra e venda.
III - A inobservância do disposto no art. 640º, nº 1, determina a rejeição do recurso quanto à decisão da matéria de facto, sem prévio despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que se prevê no nº 3 do art. 639º, ambos do Código de Processo Civil, para o recurso que versa sobre matéria de direito.
IV - O recorrente não cumpre os ónus impostos por aquele dispositivo, se não especificar nas conclusões das alegações, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nem especificar os concretos meios probatórios constantes do processo em que funda a sua discordância com a decisão da matéria de facto.
V - A inclusão de factos (não constantes dos articulados, nem dos pontos da matéria de facto assente na decisão recorrida) nas alegações e conclusões da apelação que o recorrente considera ficaram provados, sem aquelas especificações, não cumpre os ónus a que está obrigado quando impugna a decisão da matéria de facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 11/10.8TBGDM.P1
Tribunal recorrido: 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Gondomar
Recorrente: B…
Recorridos: C… e outros

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- RELATÓRIO
O A., C… residente na Rua …, nº .., …, Porto, intentou, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra a R., “D…, Ld.ª” com sede no …, nº .. – .º Esq. Traseiras, …, Gondomar, formulando o pedido que deve a acção ser julgada totalmente procedente por provada e, consequentemente:
A) - SER A RÉ CONDENADA A RECONHECER O RESPECTIVO INCUMPRIMENTO DEFINITIVO DO CONTRATO DE PROMESSA OBJECTO DOS PRESENTES AUTOS, DECLARANDO-SE DEFINITIVAMENTE RESOLVIDO O MESMO POR MOTIVO ÚNICA E EXCLUSIVAMENTE IMPUTÁVEL A ESTA PROMITENTE VENDEDORA, CONDENANDO-SE A MESMA A PAGAR AO AUTOR A QUANTIA DE € 159.616,00 (CENTO E CINQUENTA E NOVE MIL E SEISCENTOS E DEZASSEIS EUROS) A TÍTULO DE INDEMNIZAÇÃO, ACRESCIDA DOS RESPECTIVOS JUROS DE MORA ÀS TAXAS LEGAIS SUCESSIVAMENTE EM VIGOS, JUROS ESSES CONTADOS DESDE A DATA DA INTERPELAÇÃO - 4 DE NOVEMBRO DE JUROS DE MORA ÀS TAXAS LEGAIS SUCESSIVAMENTE EM VIGOS, JUROS ESSES CONTADOS DESDE A DATA DA INTERPELAÇÃO - 4 DE NOVEMBRO DE 2006 (Deve entender-se que se queria dizer 2009 e que só por lapso foi escrito 2006, face ao artº “37”, da petição inicial.) E ATÉ EFECTIVO E INTEGRAL PAGAMENTO;
B) - CASO ASSIM SE NÃO ENTENDA, DEVE SER DECLARADA A IMPOSSIBILIDADE OBJECTIVA E SUPERVENIENTE DO CUMPRIMENTO DO MENCIONADO CONTRATO DE PROMESSA EM APREÇO, DECLARANDO-SE DEFINITIVAMENTE RESOLVIDO O MESMO, E CONDENADO-SE A RÉ A PAGAR AO AUTOR A QUANTIA € 159.616,00 (CENTO E CINQUENTA E NOVE MIL E SEISCENTOS E DEZASSEIS EUROS) ACRESCIDA DOS RESPECTIVOS JUROS DE MORA À TAXA LEGAL CONTADOS DESDE A CITAÇÃO ATÉ EFECTIVO E INTEGRAL PAGAMENTO;
C) - SER, EM QUALQUER DAS SUPRA MENCIONADAS SITUAÇÕES, RECONHECIDO AO AUTOR O DIREITO DE RETENÇÃO SOBRE A FRACÇÃO AUTÓNOMA DO TIPO T3, IDENTIFICADA PELAS LETRAS “CK”, CORRESPONDENTE A UMA HABITAÇÃO NO 4º ANDAR - ESQUERDO, COM ENTRADA PELO Nº … DA RUA …, COM DOIS LUGARES DE GARAGEM E ARRUMO NA SUB CAVE COM ENTRADA PELOS NºS. .. E … DA CITADA RUA, DESIGNADOS PELAS MESMAS LETRAS DA FRACÇÃO, DESCRITO NA CONSERVATÓRIA DO REGISTO PREDIAL DE GONDOMAR SOB O NÚMERO 931/19870917 CK E INSCRITO NA MATRIZ PREDIAL RESPECTIVA SOB O ARTIGO 16.085º - CK, ATÉ QUE SEJA EFECTIVAMENTE PAGO AO MESMO O SINAL PRESTADO EM DOBRO ACRESCIDO DOS RESPECTIVOS JUROS DE MORA.
Para tanto, alegou, em síntese, que, por escrito datado de 30.01.2003, ele e a R. subscreveram um documento que denominaram de “contrato promessa de compra e venda”, sendo que entregou à R., a título de sinal e princípio de pagamento do preço da fracção autónoma por si prometida comprar, a quantia de € 11.273,00; que, em 03.04.2003, ele e a R. assinaram um documento que intitularam de “Aditamento ao contrato promessa de compra e venda”, sendo que entregou à R. a restante parte do preço da fracção autónoma por si prometida comprar, a saber, € 68.535,00, e foram-lhe entregues as chaves da fracção autónoma por si prometida comprar; que passou a gozar da fracção autónoma por si prometida comprar à vista de toda a gente sem oposição ou embaraço de quem quer que seja e na convicção de estar a exercer um direito próprio e de não estar a lesar direitos de outrem, comportando-se como dono da fracção autónoma por si prometida comprar e como tal sendo considerado por todos; que a escritura pública de compra e venda da fracção autónoma por si prometida comprar não foi celebrada até 01.12.2003 como constava do “Aditamento ao contrato promessa de compra e venda” por culpa única e exclusiva da R.; que, no dia 13.10.2009, remeteu à R. uma carta de interpelação, concedendo-lhe o prazo de 15 dias para agendar a escritura pública de compra e venda da fracção autónoma por si prometida comprar, sob pena de imediata resolução do “contrato promessa de compra e venda”; e que, em 04.11.2009, remeteu nova carta à R., face à total passividade da mesma, a resolver o “contrato promessa de compra e venda”.

Citada, a R. não apresentou contestação.

Nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 60 a 64, o A. deduziu incidente de intervenção principal provocada de “E…, Ldª” sita na Rua …, nºs .. a …, …, Gondomar e “B…, S.A.” sita na Rua …, nº ., …, Almada.
Requer que, cumprido o disposto no nº 2, do art. 326º do CPC, seja a final, admitida a intervenção principal das ora requeridas, citando-se consequentemente, as mesmas para, querendo oferecerem os seus articulados.
Notificada de fls. 60 a 64, a R. nada disse.
A fls. 177 e 178, foi proferido despacho que admitiu as intervenções de “B…, S.A.” e “E…” “como associadas da ré, nos termos do disposto no art.º 325.º, n.º 1 do Código de Processo Civil”.

Citadas as chamadas nos termos do art. 327º, do CPC, ambas contestaram.
A “B…, S.A.”, nos termos que constam da contestação de fls. 191 a 195.
Em, síntese, disse, que sobre a fracção autónoma em causa nos autos recai uma hipoteca que foi constituída pela R. a seu favor; que o A. nunca habitou a fracção autónoma em causa nos autos, a qual sempre esteve desabitada; que a fracção autónoma em causa nos autos foi penhorada no dia 04.12.2007; e que, no dia 04.12.2007, o A. ainda não tinha entrado na posse efectiva da fracção autónoma em causa nos autos, encontrando-se a mesma livre de pessoas e bens.
Conclui que deverá a acção ser julgada improcedente por não provada, com as legais consequências.

O chamado, “E…”, apresentou contestação, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 220 a 223.
Em síntese, disse, que em diligência de penhora datada de 04.12.2007, penhorou a fracção autónoma em causa nos autos no âmbito de uma execução que intentou contra a R.; que, à data de 04.12.2007, a casa estava vazia de pessoas e bens; e que o A. nunca habitou a fracção autónoma em causa nos autos.
Conclui que deve a acção ser julgada improcedente e o R. absolvido do pedido.

O A. apresentou a réplica, nos termos que constam de fls. 241 a 244, invocando que a contestação apresentada por qualquer dos chamados carece em absoluto de qualquer fundamento sério de facto e de direito.
Termina que devem ser julgadas totalmente improcedentes as excepções vertidas pelas chamadas nas suas contestações e conclui como na petição inicial.

Nos termos do despacho proferido de fls. 250 a 254, dispensou-se a realização de uma audiência preliminar, fixou-se o valor da acção em 159.060,00 euros, proferiu-se saneador tabelar e foram seleccionadas a matéria de facto considerada como assente e a incluída na base instrutória, rectificada nos termos do despacho de fls. 394.
Instruídos os autos, procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida decisão sobre a matéria de facto, nos termos que constam de fls. 414 a 422, relativamente à qual não foram deduzidas reclamações.
Por fim, foi proferida sentença que terminou com a seguinte decisão:
Nos termos e com os fundamentos supra referidos, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, tão só:
a) declaro que se verificou o incumprimento definitivo por parte da R. do contrato-promessa que o A. celebrou com ela,
b) declaro que o contrato referido em a) foi validamente resolvido pelo A.,
c) condeno a R. a pagar ao A.:
- a quantia de € 159.616,00 e
- os juros de mora da quantia de € 159.616,00 calculados à taxa legal e contados desde 13.11.2009 até efectivo e integral pagamento e
d) declaro que o A. goza do direito de retenção sobre a fracção autónoma mencionada no contrato referido em a) - fracção autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº 931-CK - até que lhe sejam pagos:
- a quantia de € 159.616,00 e
- os juros de mora da quantia de € 159.616,00 calculados à taxa legal e contados desde 13.11.2009 até efectivo e integral pagamento.
Nos termos e com os fundamentos supra referidos, a presente sentença constituirá caso julgado em relação aos chamados.
*
Custas pelo A., pela R., pela chamada e pelo chamado, na proporção de 1/200 para o A. e de 199/200 para a R., para a chamada e para o chamado, em partes iguais - cfr. artºs 446º e 446º-A, nº 1, ambos do C.P.C..”.

Inconformada a chamada “B…, SA” interpôs recurso, nos termos que constam das alegações juntas a fls. 460 e ss. que terminou com as seguintes CONCLUSÕES:
1. O presente recurso visa suscitar a reapreciação, pelo Digníssimo Tribunal da Relação, da decisão do tribunal a quo mencionado em d) da sentença: “declaro que o A. goza do direito de retenção sobre a fracção autónoma mencionada no contrato referido em a) – fracção autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº931-CK – até que lhe sejam pagos:
- a quantia de €159.616,00;
- os juros de mora da quantia de –m
€159,616,00 calculados à taxa legal e contados desde 13.11.2009 até efectivo e integral pagamento.”-
2. Entendeu o julgador “a quo” que se verificaram no caso sub judice todos os pressupostos de que a lei faz depender o reconhecimento do direito de retenção ao promitente comprador, previstos no artigo 755º, nº1, f) do CC., a saber:
a) Existir uma promessa de transmissão ou constituição de direito real;
b) a tradição da coisa objecto do contrato prometido e,
c) a existência de um crédito, por parte do beneficiário da promessa, resultante do não cumprimento imputável à outra parte nos termos do artigo 442º do CC.
3. Permitimo-nos discordar do julgador a quo, para já, quanto à interpretação jurídica que faz do pressuposto elencado em b) – a tradição da coisa.
4. A lei não concretiza o conceito de tradição, deixando em aberto a questão de saber se é suficiente a mera tradição simbólica ou se terá de ocorrer a tradição material.
5. Pese embora estejamos conscientes de que se trata de uma questão controversa, que não recolhe, por isso, unanimidade de opiniões, comungamos da opinião de uma parte (não menosprezável) da doutrina que entende que a tradição, para efeitos desta disposição legal, vai além da mera entrega simbólica da coisa, antes tem de ser aquela que se exige para o corpus na aquisição derivada da posse, conferindo ao adquirente a possibilidade de exercer uma relação material com e sobre o objecto. Torna-se, assim, necessário que o promitente-vendedor pratique actos de efectiva apreensão material da coisa prometida, em nome próprio, intervindo sobre a coisa como se fosse sua (Cfr. Maria Conceição Rocha Coelho, in “O crédito hipotecário face ao Direito de Retenção”, Universidade Católica Portuguesa, Dissertação de Mestrado em Direito Privado, 2011, págs. 21 a 23)
6. Na mesma linha, Lebre de Freitas defende um entendimento restritivo do conceito “tradição”, limitado à tradição material e à tradição simbólica que seja seguida de um acto de efetiva apreensão material da coisa prometida. (Cfr. do autor, “Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, II, 2006.)
7. No caso em apreço ficou cabalmente demonstrado, nomeadamente pelo depoimento de parte do A., que a traditio, traduzida, in casu, exclusivamente na entrega das chaves, tinha como finalidade permitir que o A. mostrasse a casa, objeto do contrato prometido, a potenciais compradores, já que, como o A. afirmou e várias testemunhas confirmaram, tratava-se de uma aquisição para revenda imediata.
8. O registo fonográfico da prova permite afirmar, sem margem para dúvidas, que as chaves do imóvel só foram entregues ao A. para que este pudesse mostrar a fração a potenciais interessados, talvez por isso o contrato-promessa nenhuma referência faça à tradição da coisa, ao contrário do que é habitual.
9. Resultou, ainda, cabalmente provado que o A. nunca habitou a fração; nunca suportou quaisquer despesas relacionadas com o uso e fruição do imóvel, nomeadamente, água, luz, condomínio, IMI, só se deslocando à fração com aquele escopo – mostrar o imóvel a potenciais interessados. Motivo pelo qual, os quesitos 4º e 5º sofreram uma resposta restritiva e o quesito 6º foi dado como não provado.
10. A natureza especulativa subjacente ao contrato-promessa não foi valorada pela digníssima juiz a quo, assim como não foi valorado o facto de a tradição, traduzida na mera entrega das chaves, não vir acompanhada da prática de actos que traduzam os poderes materiais que se podem exercer sobre a coisa prometida.
11. In casu, o A. nunca usou a coisa, praticando sobre ela os actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. A sua intenção sempre foi outra: arranjar um interessado na fração que celebrasse a escritura diretamente com a Ré D…, o A. limitar-se-ia a receber a mais valia negocial. Essa razão, evidenciada, nomeadamente, pelos depoimentos do próprio A. e da testemunha Hélder Oliveira, explica o facto do A., durante mais de 6 anos, não ter optado pela execução específica do contrato-promessa, prevista na cláusula 8ª do mesmo, e ter esperado 6 anos para resolver o contrato.
12. Salvo melhor opinião, entendemos que a MM juíza a quo fez uma interpretação literal do preceito legal, ignorando o espirito da norma, que ditava, quanto a nós, que a tradição se consubstanciasse em actos de apreensão material do imóvel.
13. Chegados aqui, podemos afirmar que, ainda que se admitisse que se verificaram, no caso em apreço, todos os pressupostos formais estritos de que a lei faz depender o reconhecimento do direito de retenção, concluindo-se pela suficiência da mera entrega simbólica, traduzida na simples entrega das chaves do imóvel, ainda assim, ficaria por preencher o pressuposto que dita e justifica a tutela excecional conferida pelo legislador ao promitente-comprador, impondo-se decisão diversa à proferida pelo tribunal de primeira instância.
14. Apesar do legislador não ter concretizado o conceito de tradição para os efeitos previstos no artigo 755º, nº1, f) do CC., tanto a doutrina como a jurisprudência não ignoram o elemento histórico que determinou a inclusão deste caso especial de reconhecimento do direito de retenção.
15. Os diplomas legais que introduziram modificações em sede de reconhecimento do direito de retenção ao promitente-comprador – DL nº 236/80 de 18 de julho e DL nº 379/86, de 11 de novembro - visavam tutelar o promitente-comprador que adquire, em inúmeros casos, para habitação própria permanente.
16. A opção legislativa (em 1980 e 1986) tem uma razão fundamental: proteger os particulares consumidores no mercado da habitação, proteger a estabilidade da habitação.
17. Os autores costumam referir a occasio legis que norteou a modificação legislativa, isto é, a fácil e frequente frustração das expectativas do promitente-comprador de imóvel destinado a habitação própria (Cfr. Isabel Menéres Campos “Duas questões sobre a efectividade prática da hipoteca: a caducidade do arrendamento com a venda judicial e o conflito do credor hipotecário com o direito de retenção”, Estudos de Homenagem ao Prof. Manuel Henrique Mesquita, vol. I, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pág. 324)
18. Mais uma vez, a Meritíssima juíza do tribunal de primeira instância, ignorou, quanto a nós, incompreensivelmente, o facto do A. exercer uma actividade especulativa, uma pessoa que compra com o escopo imediato de revenda e, nessa medida, o A. não ser um consumidor.
19. É imperioso, antes de mais, trazer à colação o conceito de consumidor estabelecido nº artigo 2º da Lei 24/96, de 31 de julho (Lei de defesa do consumidor), segundo o qual “considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos qualquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.” (sublinhado nosso)
20. Entendemos que o A., que se dedica, há largos anos, à compra e venda de imóveis, não se encaixa no conceito de consumidor, desde logo porque os bens adquiridos se destinam a um uso profissional, atenta a atividade especulativa desenvolvida ao longo dos anos.
21. O direito de retenção visa a tutela, de forma enérgica, não de qualquer promitente-adquirente (na promessa sinalizada com tradição da coisa), mas daquele que seja consumidor. Os outros sujeitos não carecem dessa tutela, podendo negociar os mecanismos adequados à defesa da sua posição, o que dependerá tanto da sua clarividência e preparação técnica, como do seu peso negocial. Esta norma deve ser, atenta a sua ratio, interpretada restritivamente de forma a acolher no seu manto de proteção só quem efetivamente dela precisa: o consumidor. (Cfr. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, in Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência, Direito Privado nº33, janeiro/Março 2011, pág. 28)
22. A ratio da lei é a tutela, na promessa sinalizada com tradição da coisa, da posição do promitente-adquirente, na nossa perspectiva, só quando ele seja um consumidor. (Cfr. Ac. do STJ de 14.06.2011, Proc. nº6132/08.0TBBRG)
23. Mais recentemente, o STJ em acórdão de uniformização de jurisprudência (Revista nº92/05.6TYVNG-M.P1.S1, pronunciou-se em idêntico sentido “Assim se compreende que a alínea f) do artigo 755º, nº1 seja entendida restritivamente de molde a que se encontre a coberto da prevalência conferida pelo “direito de retenção” o promissário da transmissão de imóvel que obtendo a tradição da coisa seja simultaneamente um consumidor.”
24. O regime jurídico previsto no artigo 755º, nº1f) tem sido objeto de vigorosas criticas por parte da doutrina, sobretudo, porque o mesmo acaba por impor uma prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca anteriormente registada.
25. Como se refere no já mencionado acórdão de uniformização de jurisprudência “A opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo-lhes o direito de retenção teve e continua a ter uma razão fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação; na verdade constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por vários anos, estando menos protegido do que o credor hipotecário (…)”
26. E continua o mui douto acordão “A tudo acresce que o direito de retenção é ainda, acima dos não registáveis, o mais transparente, já que tem, na generalidade dos casos, uma faceta visível em resultado da sua própria natureza; a do uso do objecto sobre que recai (na maioria imóveis para habitação) o que implica naturalmente, dada aquela compleição, a publicidade, que quase sempre funciona como aviso aos restantes credores em ordem a melhor poderem acautelar-se antes de optarem pela concessão de um crédito que comporta sempre certa álea de risco.”
27. O julgador a quo nenhuma referência faz à teleologia da lei centrada na proteção do consumidor, omitindo, na motivação da sentença, qualquer apreciação critico valorativa.
28. A doutrina e jurisprudência tem convergido quanto à identificação do promitente-comprador a quem deve ser reconhecida a tutela especial conferida pelo artigo 755º, nº1 f) do CC.
29. Salvo melhor entendimento, não cabem na ratio dessa disposição legal promitentes-compradores com o perfil do A. Um promitente-comprador que se dedica à compra e venda de imóveis, há muitos anos, negociando sempre as melhores condições para obter as melhores mais-valias negociais. Um promitente-comprador, atento e experiente, que a única conexão que estabelece com o imóvel é meramente formal.
30. Com toda a certeza, o A. não constitui a tal “parte mais fraca” ou “mais débil” que a norma visa tutelar.
31. O reconhecimento do direito de retenção a promitentes-compradores com as características/posição negocial do A. conduz, certamente, à perversão da teleologia normativa, gerando situações de injustiça, não pretendidas pelo legislador, e de grave e injustificável prejuízo do credor hipotecário.
32. Entende a recorrente que o digníssimo tribunal de primeira instância não fez, quanto ao segmento decisório de que se recorre, a melhor interpretação do direito aplicável, subsumindo a situação sub judice na proteção especial prevista no artigo 755º, nº1 f) do Código Civil, ignorando, contudo, factos, resultantes da prova produzida, que determinavam, atenta a ratio deste normativo legal, o não reconhecimento do direito de retenção ao Autor.
Nestes termos, e nos demais de direito que Vexas. Doutamente suprirão, deve ao presente recurso ser dado provimento e, assim, ser o segmento decisório recorrido revogado e substituído por outro em que se declare que o A. não goza do direito de retenção sobre a fração autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº931-CK.
Assim decidindo farão Vossas Excelências JUSTIÇA!

Pelo A. foram oferecidas contra-alegações em que conclui que deve ser mantida in totum a sentença proferida e julgado totalmente improcedente o recurso interposto.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo da apreciação daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, cfr. art.s 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC.
Assim, as questões a decidir consistem em saber:
- se deve proceder-se à reapreciação da prova, com a consequente alteração da decisão sobre a matéria de facto;
- se o A. goza do direito de retenção sobre a fracção autónoma mencionada no contrato referido em a) até que lhe sejam pagas as quantias que peticiona, como decidiu o tribunal recorrido ou tal não acontece como pugna a recorrente.
*
II- FUNDAMENTAÇÃO
a) OS FACTOS
1º- Na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o n.º 931/19870917-CK encontra-se descrita uma fracção autónoma designada pelas letras “CK” destinada a habitação, com dois lugares de aparcamento com arrumos na sub-cave e correspondente ao 4.º andar esquerdo do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, situado Rua …, em …, Gondomar (alínea A), dos factos assentes).
2º- Sobre tal fracção autónoma recai uma hipoteca a favor da B…, demonstrada pela inscrição Ap. 2 de 1998/01/07 e duas penhora a favor do E…, Lda demonstradas pelas inscrições Ap. 64 de 2007/07/09 e Ap. 15 de 2008/09/19 (alínea B), dos factos assentes).
3º- No âmbito da execução comum para pagamento de quantia certa que corre termos no 3.º Juízo Cível deste tribunal sob o n.º 4251/05.3 TBGDM na qual figura como executada a ré D…, Lda, como exequente o réu E…, Lda e como credor reclamante a ré B…, SA, o autor reclamou um crédito sobre a ali executada no valor de 159.616,00 euros, invocando ser titular de um direito de retenção sobre a fracção autónoma descrita em A. (alínea C), dos factos assentes).
4º- O A. e a R., “D…, Ld.ª”, subscreveram um escrito intitulado “CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA”, sendo que a fls. 17 a 20, que, aqui, se dão por integralmente reproduzidas, consta uma cópia de tal escrito (pontos 1º e 2º, ambos da base instrutória).
5º- O A. e a R., “D…, Ld.ª”, subscreveram um escrito intitulado “ADITAMENTO AO CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA”, sendo que a fls. 21 a 22, que, aqui, se dão por integralmente reproduzidas, consta uma cópia de tal escrito (ponto 3º, da base instrutória).
6º- Em 30.01.2003, a R., “D…, Ld.ª”, entregou uma chave da fracção autónoma referida em A) ao A. (ponto 4º, da base instrutória).
7º- Após 30.01.2003, o A. passou a vigiar a fracção autónoma referida em A) e chegou mesmo a manter guardados 2 automóveis - um deles seu e o outro deles do seu filho - nos lugares de aparcamento da mesma (ponto 5º, da base instrutória).
8º- A factualidade referida em 5º teve lugar à vista de todos, sem que alguma vez alguém se opusesse à mesma (ponto 7º, da base instrutória).
9º- Pelo menos após 03.04.2003, o A. passou a agir como se fosse dono da fracção autónoma referida em A), acreditando que não bulia com o direito de outrem (ponto 8º, da base instrutória).
10º- Após 30.01.2003, o A. passou a promover a venda da fracção autónoma referida em A) (ponto 9º, da base instrutória).
11º- Nunca depois de 05.11.2009, o A., F… e G… subscreveram um escrito intitulado “CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO COM PRAZO CERTO”, sendo que a fls. 23 a 27, que, aqui, se dão por integralmente reproduzidas, consta uma cópia de tal escrito (ponto 10º, da base instrutória).
12º- O A. solicitou várias vezes à R., “D…, Ld.ª”, que marcasse a escritura pública de compra e venda prometida, mas a R., “D…, Ld.ª”, nada fez (ponto 12º, da base instrutória).
13º- A R., “D…, Ld.ª”, não marcou a escritura pública de compra e venda prometida, justificando a sua conduta com uns problemas (ponto 13º, da base instrutória).
14º- O A. enviou à R., “D…, Ld.ª”, em 13.10.2009, a carta cuja cópia consta de fls. 28 a 29 e, aqui, se dá por integralmente reproduzida (ponto 14º, da base instrutória).
15º- Em 04.11.2009, o A. enviou à R., “D…, Ld.ª”, a carta cuja cópia consta de fls. 332 e, aqui, se dá por integralmente reproduzida, sendo que a R., “D…, Ld.ª”, recebeu tal carta em 13.11.2009 (ponto 15º, da base instrutória).
16º- Em 04.12.2007, a fracção autónoma referida em A) (não considerando os lugares de aparcamento da mesma) encontrava-se vazia de pessoas e bens (ponto 17º, da base instrutória).
*
B) O DIREITO
Comecemos pela questão de saber se é possível proceder à reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido, uma vez que a apelante inicia as suas alegações afirmando que o recurso versará sobre a matéria de facto e, no corpo alegatório transcreve passagens do depoimento de parte do A., bem como do depoimento de algumas testemunhas, discordando da interpretação jurídica da Mª Juíza julgadora, por considerar nos termos que refere nas conclusões 7, “…que ficou cabalmente demonstrado,…”, na 8 que “O registo fonográfico da prova permite afirmar…” e em 9, que “Resultou, ainda, cabalmente provado que …” e terminando na conclusão 32, que o tribunal da 1ª instância ignorou factos, resultantes da prova produzida, os quais, entende, determinavam o não reconhecimento do direito de retenção ao autor.
Que dizer?
Desde já, com o devido respeito por diferente opinião, que a recorrente não impugnou no presente recurso a decisão da matéria de facto, ou pelo menos de modo a que possa proceder-se à sua reapreciação.
Efectivamente, embora nas alegações recursivas faça referência à análise crítica, do depoimento do A. e de algumas testemunhas no que concerne a alguns factos que, em seu entender, resultaram provados e apreciados, impediriam a procedência da pretensão do A., o certo é que, quer no corpo alegatório quer nas respectivas conclusões, nada refere sobre os concretos pontos factuais, que mostrando-se controvertidos, deveriam ter sido considerados provados, não dando cumprimento, de modo algum, ao estatuído no art. 640º do actual Código Processo Civil (diploma a que pertencerão os demais artigos a seguir referidos sem outra menção de origem), nomeadamente ao consignado nos seus nºs 1 e 2 correspondente ao anterior art. 685º-B nº 1 als. a) e b) e nº 2 do C.P.Civil de 1961.
Expliquemos.
Nos termos do disposto no art. 662º, nº 1, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto deve ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
No caso, não ocorreu a junção superveniente de qualquer documento e do processo constam todos os elementos em que se baseou a decisão do tribunal “a quo” sobre a matéria de facto, documentos e depoimentos das testemunhas, registados em 1 CD gravado digitalmente no programa disponível na aplicação informática do tribunal “a quo”.
Pareceria, assim, que nada obstaria a que se procedesse à requerida reapreciação e, eventualmente, à alteração da decisão sobre a matéria de facto.
No entanto, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, obriga ao cumprimento de ónus a cargo do recorrente, impostos pelo art. 640º, nºs 1 e 2.
Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2014, 2ª Ed., pág. 132 quando se pronuncia sobre o sistema que agora vigora sempre que o recurso respeite à impugnação da decisão da matéria de facto, refere que podemos sintetizar da seguinte forma:
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
…”.
Será que, no caso, foram cumpridos esses ónus?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Desde logo, a impugnante apenas no “corpo” das alegações de recurso, indica os depoimentos que entende terem sido incorrectamente apreciados, omitindo de todo quais os concretos pontos que considera incorrectamente julgados. Omitindo, nas conclusões, completamente, quais os pontos da matéria de facto objecto da impugnação, bem como os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que impunham uma decisão diversa daquela que foi proferida.
Limita-se a alegar que ficou cabalmente demonstrado, o registo fonográfico da prova permite afirmar e resultou cabalmente provado, sem que mencione a que pontos concretos da matéria controvertida se refere, pretendendo que se dêem por provados os factos a que alude nas conclusões 7, 8 e 9 da sua alegação, sendo certo que tais factos não são susceptíveis de se retirar dos factos que se mostram assentes e a apelante não indica nas conclusões que depoimentos poderiam contribuir para que tal acontecesse, nem tão pouco, indica quais os artigos em que esses factos foram alegados nos articulados apresentados. No entanto, defende que se mostram demonstrados e por via disso, pretende que o segmento decisório mencionado em d) seja revogado, após serem apreciados e considerados os referidos factos.
A questão é, então, saber se será possível essa pretendida reapreciação?
A resposta só pode ser negativa.
Isso seria possível se a recorrente tivesse cumprido os ónus exigidos para o efeito.
Mas, essa falta é evidente nas conclusões da apelação, a falta de cumprimento do ónus de identificar os pontos de facto incorrectamente julgados, omitindo completamente quais os factos que considera incorrectamente julgados quer com referência aos pontos que ficaram assentes na decisão recorrida, ou até em relação aos quesitos que constavam da base instrutória sobre os quais incidiu a prova produzida em audiência e, nada dizendo sobre os meios de prova em que se funda para pugnar que a decisão seja alterada, o que impede que este tribunal alcance qual a delimitação do objecto do recurso.
De igual modo, quanto à especificação dos meios de prova que impunham decisão diversa daquela que foi proferida, nas conclusões este ónus não foi minimamente cumprido.
Efectivamente, apenas nas alegações, a impugnante refere que atendendo aos segmentos do depoimento do A. e dos depoimentos das testemunhas que identifica e transcreve no corpo das alegações, entende que devem ser dados por provados aqueles factos que menciona nas suas alegações e conclusões, mas sem qualquer referência à matéria de facto controvertida, a que ponto da decisão respeitam.
E, como já dissemos, sem que nas conclusões proceda à indicação de qualquer ponto ou à especificação dos meios de prova em que funda a sua divergência e, que em seu entender impunham decisão diversa.
Nestas não estabelece qualquer relação concreta entre o que pelas testemunhas foi dito e o que foi, alegadamente, desvalorizado. Como, omite totalmente qual a matéria de facto considerada provada, cujo exame critico da mesma impunham decisão diversa.
Em suma, nas conclusões, que delimitam o objecto do processo, a recorrente não especifica os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, nem os concretos meios de prova que fundamentam a impugnação, acrescendo que da análise da matéria de facto controvertida não constam aqueles factos que a mesma refere nas conclusões 7, 8 e 9, nem a conclusão a que chega em 11, sendo que como é bom de ver dos articulados juntos, nomeadamente, da petição inicial, contestações e réplica apresentadas, em nenhuma delas se mostra alegada aquela factualidade, que refere pretendia ver considerada pela decisão recorrida.

Que dizer?
Previamente, à análise das consequências do incumprimento dos ónus impostos pelo art. 640º, oferece-nos dizer o seguinte, perante a falta de alegação dos factos que a recorrente pugna sejam considerados na decisão.
Os factos que refere nas conclusões 7, que a entrega das chaves, tinha como finalidade permitir que o A. mostrasse a casa, objeto do contrato prometido, a potenciais compradores, 8, que as chaves do imóvel só foram entregues ao A. para que este pudesse mostrar a fração a potenciais interessados e 9 que o A. nunca habitou a fração; nunca suportou quaisquer despesas relacionadas com o uso e fruição do imóvel, nomeadamente, água, luz, condomínio, IMI, só se deslocando à fração com aquele escopo – mostrar o imóvel a potenciais interessados, factos que a recorrente pretende que sejam dados como provados não têm tradução no que foi alegado nos articulados, nem foram dados como provados ou não provados pelo tribunal recorrido.
E, ainda assim, não se vislumbra que tenha omitido a apreciação da factualidade controvertida. Pois que, a análise das peças processuais constantes dos autos retratam claramente que a realidade factual que a recorrente pretende ver como provada não foi alegada em qualquer peça processual apresentada, nomeadamente na sua contestação junta a fls. 191 e ss.
Ora, dispõe o art. 5º que “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas”.
Sendo que o nº 2, dispõe que “além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz, os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, al. a), os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido possibilidade de se pronunciar, cfr. al. b) e os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por exercício das suas funções, al. c).
Pese embora, o disposto no nº 2, resulta à evidência dos autos, que não foram os factos em causa, considerados desse modo pela Mª Juíza “a quo” e, por não terem sido alegados pelas partes não os considerou, o que a recorrente pugna ocorra através do presente recurso.
No entanto, apurar, nesta sede, se o devia ou não ter feito impunha que se procedesse à reapreciação da decisão da matéria de facto e, como já deixámos antever supra, essa possibilidade mostra-se afastada, por omissão imputável à recorrente.

Como já referimos, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispondo o nº 1, al. a) que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, nos termos da al. b) e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, al. c).
Sendo entendimento que esta “rejeição” a que alude o nº 1, tal como a “imediata rejeição” a que se alude no nº 2, al. a), do mesmo dispositivo, significa em comparação com o que dispõe o art. 639º, do mesmo código, quanto aos recursos da matéria de direito, que a mesma não é precedida de qualquer despacho a convidar o recorrente a aperfeiçoar as conclusões a este propósito.

Refere Abrantes Geraldes na obra citada, págs. 135 e 134, que “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados…

f)…”.
Prossegue este mesmo autor referindo que as exigências enunciadas “devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, …”.
E, como já dissemos, tudo sob pena de o incumprimento de tais ónus implicar a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem ser “…precedido de qualquer despacho de aperfeiçoamento.”.
Lendo-se, ainda, naquele autor que “é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas.”.
Sendo evidente que, decorre também da letra da lei que a mesma não comporta qualquer outra interpretação que não seja a da imposição da imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, caso não seja observado pelo recorrente algum dos ónus mencionados, não sendo defensável que se lance mão do convite ao aperfeiçoamento em tal matéria, como entre outros se decidiu no Ac. do STJ de 09.02.2012 in www.dgsi.pt, ainda no âmbito do código de processo civil de 1961.
O Código de Processo Civil actual veio, aliás, manter em termos praticamente idênticos todos os ónus anteriormente existentes, aditando ainda o de o recorrente dever especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, mantendo igualmente a cominação da imediata rejeição do recurso para o seu incumprimento.
Analisando o caso, atento o exposto, com clareza se verifica que a apelante, não cumpriu do modo exigido na lei, aqueles ónus para que seja reapreciada a matéria de facto por esta Relação.
É evidente a sua falta.
Não especificou nas conclusões os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nem especificou os concretos meios probatórios, o quanto basta para que tenha de se rejeitar totalmente o recurso, respeitante à repreciação das provas e impugnação da matéria de facto.

Em suma, a inobservância, por parte da recorrente, do que lhe é imposto pelo nº 1 do art. 640º, determina a “rejeição do recurso” no que toca à impugnação da aludida matéria de facto, o mesmo é dizer que nenhuma alteração se introduzirá no elenco dos factos provados supra enunciados.
Tal como entende o autor supra referido, também, é nosso entendimento que, determinando o art. 640º que, sob pena de rejeição, o recorrente que impugne a decisão da matéria de facto deverá especificar os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que levam a decisão diversa da recorrida, a referida especificação deverá obrigatoriamente constar das conclusões do recurso.
A inclusão de novos factos nas alegações e conclusões da apelação que considera ficaram provados, sem aquelas especificações, não cumpre os ónus a que está obrigada a recorrente que impugna a decisão da matéria de facto.
Isto, porque, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, não significa um julgamento “ex novo” e global dessa matéria, mas sim a possibilidade do tribunal de 2ª instância fiscalizar os erros concretos do julgamento já realizado.
Dupla jurisdição não quer dizer forçosamente repetição.
É o que o legislador pretendeu assinalar no preâmbulo do DL 35/95 de 15.02 (...), quando aí consignou, que o duplo grau de jurisdição visava “apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.”.
Ora, o exercício desta faculdade fiscalizadora sobre pontos concretos da decisão da matéria de facto só é possível com a rigorosa delimitação desses pontos nas conclusões do recurso, bem como dos meios de prova que lhes respeitam, garantindo também o cabal exercício do contraditório por parte do recorrido.
Como dissemos, as omissões apontadas não podem ser supridas através de convite ao aperfeiçoamento, porquanto, ao contrário do que se prevê no nº 3 do art. 639º, o recurso que tem por objecto a impugnação da matéria de facto, não comporta tal faculdade, sendo simplesmente rejeitado.
Por fim, no caso, é manifesta a inobservância do estatuído no citado art. 640º nº 1, al.s a) e b), a recorrente não identificou, nas conclusões das suas alegações, “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”, não especificou quais os pontos da matéria de facto alegada que continham os factos que, na sua perspectiva, foram mal julgados e não cumpriu o ónus de indicar os concretos meios probatórios em que se fundamenta e que, na sua perspectiva, impunham decisão diversa da recorrida. Pois, pese embora, nas alegações indique o nome das testemunhas, cujo depoimento, supomos, no seu entender, levariam a decisão diversa da ora recorrida, não o fez nas conclusões.
A apelante limita-se a dizer que os factos que pretende sejam considerados resultaram da prova produzida. Mas não indica, como se disse, nas conclusões, os concretos pontos de facto da matéria de facto controvertida com os quais está em desacordo, nem os meios de prova em que funda a sua discordância e de onde, eventualmente, poderia resultar uma conclusão diferente daquela a que chegou o tribunal da 1ª Instância, impossibilitando que este Tribunal possa apreciar se outros factos além dos considerados pelo tribunal “a quo” ficaram ou não demonstrados, porque como é sabido são as conclusões que definem o objecto do recurso e, no que respeita à falta de cumprimento do disposto no art. 640º, nº1, al.s a) e b), sobre as quais, não existe despacho de aperfeiçoamento.
Assim, atenta a inobservância do disposto naquele art. 640º, rejeita-se o recurso quanto à decisão da matéria de facto, que se mantém inalterada.

Mantendo-se inalterada a matéria de facto provada, consideramos que a decisão recorrida não poderia ser noutros termos diferentes daqueles que foi proferida, mostrando-se correcta a subsunção dos factos ao direito, inclusive, quanto à questão do A. gozar do direito de retenção sobre a fracção em causa nos autos, tal como julgou a Mª Juíza “a quo”, não se verificando a violação de qualquer dispositivo legal, nem em concreto os referidos pela apelante.
Assim antecipamos, desde já, qual o nosso entendimento, quanto à última questão enunciada, concordamos com a decisão recorrida, consideramos atenta a factualidade que ficou assente encontrarem-se preenchidos os pressupostos do direito de retenção a que se refere o art. 755º, nº 1, al. f), do Código Civil (diploma a que pertencerão os demais artigos a seguir referidos sem outra menção de origem).
Dela discorda a apelante mas, sempre com o devido respeito, sem que lhe assista razão.
Diz a mesma discordar da interpretação jurídica que a Mª Juíza julgadora fez do conceito de tradição da coisa, no entanto, se atentarmos na sua alegação e conclusões, concretamente, 7, 8, 9, e 10 verifica-se que a sua divergência assenta na invocação de factos que alega, ficaram cabalmente demonstrados, conclusão 7, afirmando que o registo fonográfico da prova permite afirmar, sem margem para dúvidas, que as chaves do imóvel só foram entregues ao A. para que este pudesse mostrar a fracção a potenciais interessados, conforme conclusão 8, continuando a invocar na conclusão 9, factos que não constam dos factos assentes, nem alegados nos respectivos articulados e, com base nos mesmos retira as conclusões 10 e 11 e conclui que a Mª Juíza não valorou a natureza especulativa subjacente ao contrato promessa, nem a intenção do A. para com a fracção prometida vender.
Ora, sempre com respeito por diferente entendimento, é por demais evidente a falta de razão da recorrente.
A mesma defende uma solução jurídica diferente para o caso, ignorando a factualidade que ficou assente, nomeadamente, os pontos 1º e 4º a 10º da decisão recorrida, pugnando que a interpretação feita não é a correcta, mas com base em factualidade que agora trouxe aos autos, eventualmente, matéria de excepção que deveria ter sido alegada nos respectivos articulados.
A decisão recorrida com base na factualidade que ficou assente, decidiu em nosso entender bem, do seguinte modo:
“…, no caso dos autos, é possível concluir que se encontram preenchidos os pressupostos do direito de retenção a que se refere o artº 755º, nº 1, alínea f), do C.C..
Na verdade, considerando o exposto e os pontos 1º e 4º a 10º, todos dos factos provados, é possível concluir:
a) pela existência de uma promessa de transmissão de direito real (existência do contrato-promessa bilateral de compra e venda supra referido, o qual é relativo à transmissão para o A. do direito de propriedade sobre a fracção autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº 931- CK),
b) pela obtenção pelo beneficiário da promessa da tradição da coisa a que se refere o contrato prometido (obtenção pelo A. da entrega da fracção autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº 931- CK) e
c) a titularidade, por parte do beneficiário da promessa, de um crédito resultante do não cumprimento da promessa imputável à outra parte nos termos do artº 442º, do C.C. (a titularidade, por parte do A., do crédito da quantia de € 159.616,00 e dos juros de mora da quantia de € 159.616,00 calculados à taxa legal e contados desde 13.11.2009 até efectivo e integral pagamento, o qual resulta do incumprimento definitivo (culposo) por parte da R. do contrato-promessa bilateral de compra e venda supra referido).
Em face de todo o explanado, há que concluir que o A. goza do direito de retenção sobre a fracção autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº 931-CK até que lhe sejam pagos:…”.

A apelante apesar de concordar que a lei não concretiza o conceito de tradição, discorda da interpretação feita pela Mª Juíza, mas sem qualquer outro argumento que não sejam factos que considera ficaram provados, mas que não é verdade.
Perante a factualidade que se mostra assente, não lhe assiste razão e não merece qualquer critica a decisão recorrida.

A tradição vem regulada no nosso código civil como meio de aquisição derivada da posse. E, conforme resulta da al. b) do art. 1263º, a mesma pode ser material ou simbólica, sendo essencial à aquisição da posse, pelo novo possuidor, a cessação da posse do anterior, como refere Menezes Cordeiro in “A Posse”, 2000, pág. 107.
Mais referindo que, a tradição material caracteriza-se pela existência de uma actividade exterior que traduz os actos de entregar e receber, contrariamente à tradição simbólica, na qual não tem lugar uma interferência no controlo material da coisa.
No caso, de um contrato promessa, uma vez que o elemento literal dos art.s 442º, nº 2 e 755º, nº1, al. f) comporta os dois entendimentos, não fazendo distinção entre tradição simbólica e material, parece que o espírito que presidiu à reforma do regime do contrato promessa desde que tenha havido traditio se mostra indiferente à distinção técnico-jurídica existente noutros contextos, entre a tradição meramente simbólica e real, como se verifica na exposição de motivos do Dec. Lei nº 236/80 de 18.7 e Dec. Lei nº 379/86 de 11.11 o legislador refere-se indiferenciadamente à tradição.
Com o devido respeito, por diferente entendimento, parece-nos que o que importa em cada situação é analisar qual o índice de confiança na estabilidade do negócio, por parte do promitente comprador, que justifique o mecanismo de tutela, como no caso, o direito de retenção, com as características que o mesmo surge no nosso ordenamento, direito real de garantia e especialmente privilegiado.
Em termos genéricos, o art. 754º dispõe, quando existe o direito de retenção como direito real de garantia, que “O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.”.
Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”, Vol. 2º, 5ª ed., 1992, pág. 572, procurou definir este conceito balizado pelos contornos daquele normativo, afirmando ser de retenção o “direito conferido ao credor, que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores.”
Atento aquele dispositivo temos que, são pressupostos do direito de retenção: a licitude da detenção da coisa, a reciprocidade de créditos, e a conexão substancial entre a coisa retida e o crédito do autor da retenção – neste contexto, a recusa da entrega da coisa ao proprietário é legitimada se o crédito do recusante tiver resultado de despesas feita por causa da (ou de danos causados pela) coisa.
Em casos especiais dispõe o art. 755º, nº1, no que ao caso interessa, na al. f), o seguinte: “O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, goza de direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º”.
Importa considerar que esta alínea f) não existia no texto primitivo daquele artigo, tendo sido introduzida pelo Dec.-Lei 379/86, de 11 de Novembro, com o objectivo, expresso no respectivo preâmbulo, “de reforçar a posição jurídica do promitente-comprador, especialmente no campo das transacções de imóveis urbanos para habitação.”.
Com esta norma visou-se, a tutela eficiente do promitente-comprador, especificamente quando o contrato-promessa diz respeito a edifícios ou fracções autónomas para habitação própria daquele.
O reconhecimento deste direito tem fundamento no facto de a constituição de sinal e a tradição da coisa terem como refere Almeida Costa in “Contrato-Promessa: uma síntese do regime vigente”, 8ª ed., 2004, pág. 73, “subjacente uma forte confiança na firmeza ou concretização do negócio”.
Assumindo o direito de retenção atribuído ao promitente-comprador um carácter marcadamente social, de protecção do promitente adquirente, atento o risco real de o promitente vendedor poder vir a recusar o cumprimento por ser, economicamente, vantajoso recusar a celebração do contrato definitivo, e pagar a indemnização correspondente, se a perda fosse compensada pela valorização que o imóvel, tivesse, eventualmente, sofrido.
Protecção esta reforçada através do disposto no nº 2 do art. 759º, que confere ao titular do direito de retenção a prevalência sobre uma hipoteca anteriormente registada, o que significa que, no concurso entre o crédito do promitente-comprador e o do credor hipotecário, o primeiro será graduado em primeiro lugar, com preferência aos demais credores do devedor.
Desta forma, protege-se de forma eficiente o promitente-comprador, evitando o prejuízo que para ele acarretaria a prevalência do crédito hipotecário sobre o seu crédito, conduzindo-o tanto a perder o bem objecto do contrato como o sinal prestado.
Devido a esta norma, a atribuição do direito de retenção ao promitente-comprador tem sido alvo de diversas críticas.
Apesar disso, o Tribunal Constitucional não julgou organicamente inconstitucionais as normas do Dec-Lei nº 236/80, de 18.7 e do Dec-Lei nº 379/86, de 11.11, respeitantes ao direito de retenção, e não julgou materialmente inconstitucionais as normas constantes do nº 3 do art. 410º e al. f) do nº 1 do art. 755º, (na redacção que resulta daqueles diplomas), nos termos da qual o direito de retenção do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa prevalece sobre a garantia hipotecária registada em data anterior à referida tradição, posição que foi sucessivamente reafirmada por este Tribunal, nos Acórdãos 374/03, de 15.7, 594/03, de 3.12 e 356/04, de 19.5.
O reconhecimento do direito de retenção surge, pois, como uma medida de defesa do promitente-comprador considerado como parte débil do contrato, na medida em que, não dispondo de qualquer meio eficaz para fazer cumprir a promessa, a sua posição no âmbito do mecanismo contratual se vê muito fragilizada. O legislador optou por consagrar a atribuição deste direito ao promitente-comprador, em prejuízo dos interesses dos credores hipotecários, mas sempre, tendo como alvo subjectivo um credor específico, o consumidor. Posição esta defendida, nomeadamente, por Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, in “Direito de Retenção contrato-promessa e insolvência, Cadernos de Direito Privado, nº 33, Jan./Mar. 2011, pág. 20 e ss. e Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil, Vol. II, Coimbra, 2010, pág. 401, com a qual a apelante concorda como resulta da sua apelação.
O legislador procurou proteger o promitente fiel de riscos concretos e reais: por um lado, “o do incentivo ao não cumprimento se fosse economicamente mais vantajoso recusar a alienação e pagar o sinal em dobro, caso a valorização que o imóvel, entretanto, tivesse sofrido compensasse essa perda”, cfr. Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, na obra citada, pág. 7; por outro lado, o da privação do bem resultante da postergação do promitente-comprador em sede de graduação de bens na execução ou insolvência do promitente-alienante.
A nível jurisprudencial, desde há muito que se consente neste entendimento. No Ac. do STJ de 6.11.2001 in www.dgsi.pt, escreveu-se o seguinte: “O legislador, ao contemplar o direito de retenção do promitente comprador de fracção autónoma, com tradição da coisa, procedeu na lógica da tutela do consumidor, o que constitui um imperativo constitucional em que o legislador deu primazia aos aspectos sociais e que, no conflito entre as instituições de crédito credoras do promitente vendedor e os interesses dos promitentes compradores com tradição, prevalecem justificadamente os segundos.”, neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 27.11.2007, proc. 07A3680 e de 14.06.2011, proc. 6132/08.0TBBRG-J.G1.S1, e Ac. desta Relação de 31.03.2009, proc. 708/07.0TBPRD-G.P1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.

Neste enquadramento, também nós entendemos que o direito de retenção deverá ser atribuído apenas quando o promitente-comprador é um consumidor e, não resulta da decisão recorrida que o tribunal “a quo” o tenha considerado de outro modo.
Nos termos do nº 1 do art. 2º da Lei nº 24/96 de 31.7 (Lei de Defesa do Consumidor), entende-se por consumidor “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços, ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
Acompanhamos o entendimento de L. Miguel Pestana de Vasconcelos, segundo o qual “o art. 755º, nº 1, al. f), é uma norma material de protecção do consumidor e deve ser interpretada restritivamente para o beneficiar somente a ele”, obra citada, pág 21.
No caso em apreço, o A./promitente-comprador, é um consumidor, tal como este é definido no art. 2º, nº 1, daquela Lei nº 24/96, sendo que a opção legislativa foi a de conferir, como já referido, primazia à tutela dos interesses dos consumidores na protecção da confiança na consolidação de negócios jurídicos, no confronto com os direitos das instituições de crédito e inerente confiança do registo predial.
Donde, pese embora, as alegações da apelante, no sentido de fazer crer o contrário, perante a factualidade apurada outra conclusão não se pode retirar de que o A. é um consumidor, tal como o define aquela lei e tendo-se concluído pela verificação dos pressupostos do direito de retenção a que se refere a al. f) do nº 1, do art. 755º, a decisão acertada só poderia ser a que foi proferida pelo tribunal “a quo”, sendo, por isso, de confirmar a sentença recorrida.

Improcedem, assim, todas ou são irrelevantes as conclusões da apelação.
*
III- DECISÃO
Termos em que, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Porto, 15 de Setembro de 2014
Rita Romeira
Manuel Domingos Fernandes
Caimoto Jácome
*
Sumário:
I - O contrato-promessa de compra e venda com eficácia obrigacional em que tenha havido tradição da coisa confere ao promitente-comprador direito de retenção sobre a fracção objecto do contrato prometido, pelo crédito resultante do não cumprimento daquele, imputável ao promitente vendedor.
II – O promitente comprador a quem foram entregues as chaves da fracção prometida vender, no acto de pagamento da totalidade do preço e a qual passa a vigiar e usar as garagens, sem oposição e à vista de todos, goza de direito de retenção sobre a fracção, pelo crédito resultante do incumprimento do promitente vendedor em celebrar a escritura de compra e venda.
III - A inobservância do disposto no art. 640º, nº 1, determina a rejeição do recurso quanto à decisão da matéria de facto, sem prévio despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que se prevê no nº 3 do art. 639º, ambos do Código de Processo Civil, para o recurso que versa sobre matéria de direito.
IV - O recorrente não cumpre os ónus impostos por aquele dispositivo, se não especificar nas conclusões das alegações, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nem especificar os concretos meios probatórios constantes do processo em que funda a sua discordância com a decisão da matéria de facto.
V - A inclusão de factos (não constantes dos articulados, nem dos pontos da matéria de facto assente na decisão recorrida) nas alegações e conclusões da apelação que o recorrente considera ficaram provados, sem aquelas especificações, não cumpre os ónus a que está obrigado quando impugna a decisão da matéria de facto.

Rita Romeira