Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1087/21.8T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: TAXA DE JUSTIÇA
COMPROVATIVO
RECUSA DA SECRETARIA
PETIÇÃO INICIAL
CONTESTAÇÃO
Nº do Documento: RP202201101087/21.8T8STS.P1
Data do Acordão: 01/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não tendo a secretaria recusado a petição inicial por falta de comprovação do prévio pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão de apoio judiciário com a consequente distribuição da acção, e, não prevendo a lei a solução a adoptar nestes casos, deve recorrer-se a analogia para integrar a respectiva lacuna (artigo 10.º, nº 2 do CCivil).
II - A nova redação, decorrente do disposto no DL 97/2019, de 26/07, conferida ao artigo 560.º do CPCivil, apenas prevê a recusa nas situações em que não seja obrigatória a constituição de mandatário, razão pela qual não pode ser aplicado às situações em que seja obrigatória aquela constituição.
III – Deverá, por conseguinte, recorrer-se ao previsto para a ausência de pagamento de taxa de justiça com a contestação com as devidas adaptações (cfr. artigo 570.º do CPCivil), antes de se recusar o recebimento da petição inicial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1087/21.8T8STS.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Comércio de Santo Tirso- J1
Relator: Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
B…, solteira, maior, residente na Rua…, nº …, da freguesia de …, do concelho de Vila Nova de Famalicão, veio propor contra, C…, LDA., com sede na rua…, nº…, da freguesia de …, do concelho de Santo Tirso, acção de nulidade e anulação de deliberações sociais.
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Conclusos os autos foi proferida o seguinte despacho:
“No que à tramitação da presente ação comum respeita, preceitua o artigo 552º/3 do Código de Processo Civil que com petição inicial, deve o Autor juntar o documento comprovativo do prévio pagamento da taxa de justiça devida ou da concessão do benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa total do mesmo.
Ainda no que respeita ao presente caso, preceitua também o artigo 558º/f) do Código de Processo Civil que a secretaria recusa o recebimento da petição inicial quando não tenha sido junto o documento comprovativo do prévio pagamento da taxa de justiça inicial ou o documento que ateste a concessão de apoio judiciário.
Não tendo sido paga a taxa de justiça inicial, não tendo a Autora junto documento comprovativo de lhe ter sido concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e considerando que os autos não revestem natureza urgente e que, consequentemente, não se verifica o disposto no artigo 552º/5 do Código de Processo Civil, deveria a petição inicial ter sido recusada pela secretaria.
O facto, porém, de a secretaria não ter recusado a petição inicial não faz precludir o conhecimento dos motivos que deveriam levar à sua recusa.
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Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais acima referidas, nomeadamente o disposto nos artigos 552º/3 e 55º/f), ambos do Código de Processo Civil, recuso o recebimento da petição inicial apresentada pela Autora B….
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Sem custas.
Valor da ação: o oferecido com a petição inicial recusada.”
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Notificada, veio a Autora impetrar requerimento solicitando que fosse dado sem efeito, a recusa do recebimento da petição inicial.
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Sobre o assim solicitado recaiu o seguinte despacho:
“Requerimento que antecede – O disposto no artigo 560º do Código de Processo Civil não tem aplicação nos autos uma vez que os autos importam a constituição de mandatário e a Autora está representada por mandatário.
O despacho de recusa da petição inicial foi proferido em conformidade com o que constava dos autos nessa data (que, aliás, se mantém).
De facto, a Autora, com a petição inicial, não juntou documento comprovativo do prévio pagamento da taxa de justiça devida ou da concessão do benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa total do mesmo, nem alegou o seu deferimento tácito.
Assim, não tendo sido paga a taxa de justiça inicial, não tendo a Autora junto documento comprovativo de lhe ter sido concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça, nem tendo alegado deferimento tácito, impunha-se a recusa da petição inicial.
Pelo exposto, indefere-se o requerido e mantém-se a decisão proferida.
Notifique.
D.N. à devolução da taxa de justiça paga com o requerimento que antecede”.
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Inconformado com esta decisão, veio a Autora interpor o presente recurso, cujas alegações terminou com as seguintes conclusões:
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar decidir:
a)- saber se existe, ou não, fundamento para a recusa do recebimento da petição inicial.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria factual ter em conta para a decisão do presente recurso é a que do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO
Tal como supra se referiu é apenas uma a questão que cumpre apreciar e decidir:
a)- saber se existe, ou não, fundamento para a recusa do recebimento da petição inicial.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento que no caso em apreço estava verificada a facti species dos artigos 552.º, nº 7 e 558.º, nº 1 al. al. f) do CPCivil, ou seja, de que com a petição inicial não foi comprovado o prévio pagamento da taxa de justiça nem a concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do mesmo.
É contra este entendimento que se insurge a recorrente.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
Preceitua o artigo 552.º, nº 7 do CPCivil sob a epígrafe “Requisitos da petição inicial” que:
(…)
7 - O autor deve, com a apresentação da petição inicial, comprovar o prévio pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do mesmo, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º.
(…)
Por sua vez o artigo 558.º, nº 1 al. f) do mesmo diploma legal sob a epígrafe “Recusa da petição pela secretaria” estatui que:
1 - São fundamentos de rejeição da petição inicial os seguintes factos:
(…)
f) Não tenha sido comprovado o prévio pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão de apoio judiciário, exceto no caso previsto no n.º 9 do artigo 552.º
(…).
Portanto, a falta de apresentação do documento comprovativo da concessão do apoio judiciário e daquele que comprova o pagamento da taxa de justiça tem por consequência, fora dos casos previstos no nº 9 do artigo 552.º a possibilidade da secretaria recusar a petição inicial [artigo 558.º, nº 1 al. f)].
Do acto de recusa cabe reclamação para o juiz e da decisão deste que confirme a recusa cabe recurso para a Relação, nos termos previstos no artigo 559.º do CPCivil.
Não sendo a petição recusada pela secretaria e fora dos casos previstos no nº 9 do artigo 552.º, a falta de apresentação do documento comprovativo da concessão do apoio judiciário e do que comprova o pagamento da taxa de justiça tem por consequência que deve ser recusada a distribuição da petição (cfr. artigo 207.º, 1 do CPCivil).
Acontece que, no caso concreto, a petição não foi recusada pela secretaria, nem foi rejeitada a sua distribuição.
Quid iuris?
Como supra já se referiu, nesta situação, o tribunal recorrido recusou o recebimento da petição.
Não cremos, todavia, respeitando-se entendimento diferente, que essa seja a decisão correcta.
Com efeito, a dinâmica subjacente ao processo civil atual privilegia soluções materialmente justas, sem desequilíbrio entre as partes e com benefício para aquelas decisões que atinjam o desiderato último do processo, qual seja a justa composição dos litígios, sendo que, o acesso ao direito e aos tribunais é um direito constitucionalmente consagrado, com mecanismos próprios para ser posto em prática, não podendo a lei ordinária conflituar com tal princípio.
Por esse motivo, a proposta adoptada pela primeira instância parece-nos não ser de aceitar, pois que, não resolve a situação e apenas obrigaria a Autora a propor nova ação e, além disso, estimula a prática de novos atos processuais, novos articulados, novos actos de citação, etc., com evidente desperdício de meios e de tempo, o que também é proibido pelo artigo 130.º CPCivil.
A recorrente defende aqui a aplicação, por analogia, do disposto no artigo 560.º do CPCivil.
Este normativo sob a epígrafe “Benefício concedido ao autor” tem a seguinte redacção:
Quando se trate de causa que não importe a constituição de mandatário, a parte não esteja patrocinada e a petição inicial seja apresentada por uma das formas previstas nas alíneas a) a c) do n.º 7 do artigo 144.º, o autor pode apresentar outra petição ou juntar o documento a que se refere a primeira parte do disposto na alínea f) do artigo 558.º, dentro dos 10 dias subsequentes à recusa de recebimento ou de distribuição da petição, ou à notificação da decisão judicial que a haja confirmado, considerando-se a ação proposta na data em que a primeira petição foi apresentada em juízo”.
Ora, a nova redação, decorrente do disposto no DL 97/2019, de 26/07, conferida a este normativo torna o mesmo imprestável para a situação dos autos, posto que ali se refere poder ser apresentada nova petição inicial–em caso de recusa da primeira-nas situações aí previstas: causa em que não seja obrigatória a constituição de mandatário (o que não é o presente caso).
Aliás, diga-se, em abono da verdade, que a aludida alteração legislativa tem suscitado bastante controvérsia, mormente, ao nível do princípio da igualdade das partes, destacando-se, neste concreto particular, o doutrinado por Miguel Teixeira de Sousa[1]: “- Admitir-se a sanação do fundamento da rejeição ou do indeferimento liminar da petição inicial apenas quando o autor não esteja representado por mandatário judicial; nesta hipótese, a discriminação verifica-se entre autores que litigam em nome próprio (que beneficiam de um regime de sanação) e autores representados por advogados (que não beneficiam de um idêntico regime); -Admitir-se a sanação do fundamento da rejeição ou do indeferimento liminar da petição inicial apenas quando o autor, não representado por advogado, não a tenha entregue por via electrónica; nesta situação, a discriminação ocorre entre autores não representados por advogado que não tenham apresentado a petição inicial por via electrónica (que beneficiam da sanação do vício) e autores que, também não estando representados por advogado, tenham entregue a petição por essa via (que não beneficiam dessa sanação); ─ Excluir-se a sanação do fundamento da rejeição ou do indeferimento liminar da petição inicial, mas admitir-se a sanação de um idêntico vício quando se verifique em relação à contestação (e a um possível pedido reconvencional) do réu; nesta hipótese, a discriminação verifica-se entre autores (que não beneficiam de um regime de sanação quando estiverem representados por advogado) e réus (que beneficiam sempre desse regime).”
Como assim, devemos centrar-nos, nas soluções que a lei dita para situações concretas semelhantes (recurso à analogia), num esforço de integração da lacuna legal para o caso (cfr. artigo 10.º, n.º 2 do CCivil).
Nesta senda, o artigo 570.º CPCivil, na ausência de pagamento da taxa de justiça prevista para a contestação, não impõe, desde logo, a sua rejeição, mas sim o pagamento de multas, razão pela qual e pela mesma ordem de razões o sistema normativo preceituaria caso tivesse previsto o mesmo problema para a petição inicial.
De modo que, na ausência daquele pagamento ou da junção do comprovativo da concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do mesmo, deverá proceder-se à notificação do demandante, nos termos do artigo 570.º, n.ºs 3 e 4: a secretaria notifica o autor para, em 10 dias, efetuar o pagamento omitido com acréscimo de multa de igual montante, mas não inferior a 1 UC nem superior a 5 UC. Caso o não faça, ocorre a solução da segunda parte do nº 5: o juiz profere despacho convidando o autor a proceder ao pagamento, em 10 dias, da taxa de justiça omitida e da multa aplicada, acrescida de multa de igual valor ao da taxa de justiça inicial, com o limite mínimo de 5 UC e máximo de 15 UC.
Se o autor nada fizer, então é que é de ponderar se o efeito será o de aguardarem os autos que o faça, sem prejuízo do prazo de deserção da instância, ou eventualmente, o desentranhamento da petição inicial, com absolvição do réu da instância.
Diante do exposto, não devia a Sra. Juiz ter recusado o recebimento da petição com aquele fundamento, devendo antes ter seguido o procedimento supra aludido e que se encontra plasmada para a contestação.
Aliás, no caso em apreço, não tendo a secretaria recusado, desde logo, o recebimento da petição, e tendo a Autora solicitado a apensação a estes autos da providencia cautelar de suspensão desta deliberação a correr termos sob o nº 879/21.2T8STS, do Juízo de Comércio de Santo Tirso–J3 e dado nota de forma expressa, na parte final do articulado inicial, da junção do comprovativo de pedido de apoio, o juízo de valor do julgador deveria ter sido mais cauteloso, ou seja, considerando insuficiente a mera junção do documento comprovativo do formulado pedido de apoio judiciário, deveria ter dado uma oportunidade à Autora, concedendo-lhe um prazo para demonstrar nos autos, a concessão daquele apoio.[2]
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Destarte, não havia motivo para se determinar de imediato, a recusa do recebimento da petição, pelo que, assistindo razão à recorrente, se revoga o despacho proferido e se determina que se siga o procedimento supra referido que se encontra estatuído para a contestação, levando-se em linha de conta, a taxa de justiça já paga pela Autora, pois que lhe foi retirado o apoio judiciário que lhe havia sido concedido.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e consequentemente, revogando a decisão recorrida, deverá o tribunal seguir a tramitação processual subsequente e acima decidida.
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Custas pela parte vencida a final e na proporção em que o for (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 10 de Janeiro de 2022.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais (dispensei o visto)
Jorge Seabra (dispensei o visto)
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[1] A (muito estranha) nova redacção do artigo 560.º do CPC, disponível https://drive.google.com/file/d/17VPaVk9OZlK30h8cd8nTWWxCcBwmmclQ/view. No mesmo sentido, vide artigo do mesmo autor na revista Julgar Online de dezembro de 2019.
[2] Veja-se a este propósito a síntese formulada no acórdão da Relação de Lisboa de 20/4/2010, proferido no âmbito do processo 6612/09.0TVLSB.L1-1, segundo a qual “Nos termos constantes do nº 2 do art. 18º da Lei nº. 47/2007, de 28 de Agosto, que alterou a Lei nº 34/2004, de 29 de Julho (regime de acesso ao direito e aos tribunais), o apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual não se fixando um prazo concreto para formular tal pretensão.
- Não sendo o Tribunal quem aprecia um tal pedido, mas os serviços da Segurança Social, nos termos constantes do nº2 do art. 24º da Lei 47/2007, de 28 de Agosto, o autor que pretenda beneficiar da dispensa de pagamento da taxa de justiça deve juntar à petição inicial documento comprovativo da apresentação do respectivo pedido.
- Não recusando a secretaria o recebimento da petição inicial, deverá o juiz conceder um prazo ao autor, para demonstrar nos autos a concessão de apoio judiciário, emanado dos serviços competentes para o efeito”.