Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7837/12.6TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ACTIVIDADE PERIGOSA
PRESUNÇÃO DE CULPA
Nº do Documento: RP201409257837/12.6TBMAI.P1
Data do Acordão: 09/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não se enquadra no conceito de actividade perigosa, para efeitos do disposto no nº2 do artigo 493º do Código Civil, a actividade desempenhada por empilhador na execução de tarefas de carga/descarga de mercadorias, prosseguida em armazém, numa zona destinada à circulação de máquinas/empilhadores, estando ainda o referido empilhador dotado de sinais, sonoros e luminosos, de aviso de marcha atrás, que, sempre que uma manobra dessa natureza se inicia, são accionados.
II - Um empilhador tem natureza de veículo de circulação terrestre.
III - A presunção de culpa consagrada no nº2 do artigo 493º, por força do assento nº1/80, de 21 de Novembro de 1979, hoje com força de jurisprudência uniformizadora, não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre.
IV - Uma interpretação actualista do artigo 505º do Código Civil não exclui a possibilidade de concorrência com a responsabilidade objectiva, associada ao risco inerente à circulação de veículo interveniente em acidente.
V - Essa concorrência, porém, não se configura quando o acidente tenha ficado a dever-se a culpa exclusiva do próprio lesado, constituindo esta uma circunstância excludente da responsabilidade objectiva.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 7837/12.6TBMAI.P1
Tribunal Judicial da Maia
4º Juízo Competência Cível

Relatora: Judite Pires
1ª Adjunta: Des. Teresa Santos
2º Adjunto: Des. Aristides de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO
1. B… – Companhia de Seguros, S.A., actualmente C… – Companhia de Seguros, SA., com sede na Rua …, n.º .., ….-… Lisboa instaurou acção declarativa, sob a forma sumária, contra:
- D…, com domicílio profissional na Rua …, …, …, ….-… Maia; e
- E…, SA, com sede na Rua …, …, …, ….-… Maia,
pedindo a condenação solidária dos Réus no pagamento da quantia de €16.338,46, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, contados a partir da citação e até efectivo e integral pagamento, com fundamento no facto de haver pago, no âmbito dos autos nº 538/11.4.TTMAI, do Juízo único, 4ª Secção do Tribunal de Trabalho do Porto, ao sinistrado F…, com quem havia celebrado um contrato de seguro de acidentes de trabalho, a referida importância de €16.338,46, a título de indemnização pelos danos sofridos pelo sinistrado em consequência de um acidente ocorrido no exercício da sua actividade profissional, causado por um empilhador manobrado por D…, trabalhador da segunda Ré, que, por não observar regras de precaução ou de segurança na condução do referido veículo, veio a colher o segurado da Autora, F…, causando-lhe vários ferimentos, que demandaram assistência hospitalar.
Citados os Réus, ambos contestaram, impugnando parte dos factos articulados pela Autora, atribuindo, em exclusivo, a responsabilidade na produção do acidente que o vitimou ao próprio sinistrado.
Alegando haver celebrado com a Companhia de Seguros G…, S.A. contrato de seguro pelo qual transferiu para esta a responsabilidade por factos que integrem responsabilidade civil extracontratual da Ré E…, SA perante terceiros, veio esta demandada, na contestação deduzida, formular pedido de intervenção acessória da mencionada seguradora.
Tendo sido admitida a intervenção principal passiva da Companhia de Seguros G…, S.A., e citada esta, veio a mesma apresentar contestação, na qual imputa ao sinistrado F… culpa exclusiva na eclosão do acidente que sofreu.
Foi proferido despacho saneador, afirmando a validade e regularidade da instância, tendo sido seleccionada a matéria assente considerada relevante à apreciação da causa e organizada base instrutória, que foi objecto de reclamação, parcialmente atendida.
Instruído o processo, realizou-se o julgamento, após o que foi proferida sentença que apreciou a matéria de facto a ele submetida e, conhecendo o objecto da lide, julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo os Réus e a chamada Companhia de Seguros G…, S.A., do pedido formulado pela Autora.
2. Não se conformando esta com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
“A) A questão que emerge dos presentes autos é a de se saber se, nas circunstâncias do presente caso, o mesmo se deve enquadrar ou não no âmbito da responsabilidade pelo risco a que se reporta o art. 503º, nºs. 1 e 2, do Cód. Civil ou, se assim não se entender, no âmbito de uma actividade perigosa, subsumível ao disposto sob o art. 493º, nº. 2, do mesmo Cód. Civil
B) A douta Sentença sob recurso menos adequada interpretação e aplicação ao caso em apreço das normas legais aí invocadas, violando-as, bem como deixou de atentar no disposto sob arts. 483º, nº. 2, e 503º do Cód. Civil ou art. 493º, nº. 2, do Cód. Civil, como se impunha.
C) Neste enquadramento, não competia à A. provar a culpa do condutor do empilhador, como se atenta na Sentença sob recurso.
D) Por outro lado, entende a Recorrente como menos adequado ou desajustado um juízo valorativo e no sentido de que os “…réus fizeram prova da existência de culpa do sinistrado na produção do acidente”, como se o sinistrado, em circulação a pé, tivesse ido embater e atropelar um empilhador, só não tendo causado danos ou ferimentos neste, por impossibilidade física, dando-se, assim, total prioridade ou prevalência à circulação de veículos com relação à circulação de pessoas.
E) Independentemente de culpa, nos termos do disposto e conjugado sob arts. 483º, nº. 2, e 503º do Cód. Civil, ou com culpa presumida, nos termos do disposto sob art. 493º, nº. 2, do Cód. Civil, deveriam os Réus, ora Recorridos, ter sido condenados no ressarcimento total à Autora, ora Recorrente, de todos os custos ou despesas que teve de suportar em virtude do atropelamento de que foi vítima o seu segurado/sinistrado F… (em montante total de € 16.338,46);
F) Ou, atenta a circunstância deste segurado/sinistrado não ter contribuído para que o acidente não tivesse ocorrido, por distracção, o grau de culpa do mesmo na produção do acidente não deve ser superior a 50%, numa repartição por igual de culpas com relação ao acidente ocorrido”.
As apeladas E…, S.A. e Companhia de Seguros G…, S.A. contra-alegaram, pugnando pela confirmação do decidido, tendo esta última requerido ampliação do objecto do recurso, para o caso do recurso vir a obter provimento, para apreciação da questão relativa à exclusão da cobertura do contrato de seguro por si celebrado com a segunda Ré dos danos a cuja reparação procedeu a Autora, e cujo conhecimento ficou prejudicado face ao decidido em primeira instância.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente a que título se deve imputar a responsabilidade pelo acidente de que resultaram os danos que a mesma indemnizou.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
a) A autora dedica-se à actividade seguradora e está autorizada a realizar seguros de acidentes de trabalho.
b) Entre a autora e F… foi outorgado o contrato de seguro titulado pela apólice de seguro nº ………., no ramo de acidentes de trabalho/trabalhadores independentes cuja cópia se encontra junta a fls. 30 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
c) No dia 7 de Abril de 2011, pelas 12h30m, nas instalações da 2.ª ré ocorreu um acidente em que foi sinistrado F…, tendo existido um embate entre este e um veículo empilhador, conduzido pelo 1.º réu.
d) O referido F… encontrava-se no cais de embarque da 2.ª ré acompanhado pelo trabalhador da 2.ª ré, H….
e) A 2.ª ré celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil extracontratual, titulado pela apólice n.º ………. com a Companhia de Seguros G…, o qual estava em vigor em 7/4/2011, sujeito às condições cujas cópias se encontram juntas a fls. 126 e seguintes e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
f) F… exerce a actividade de prestação serviços de avaliador, por conta própria, designadamente de controlo, fiscalização e/ou avaliação de mercadorias para exportação, aquando do seu carregamento ou inserção em contentores e para transporte para Angola.
g) O referido F… estava no local referido em D) no exercício das suas funções.
h) O local referido em D) é uma zona destinada à circulação de máquinas/empilhadoras, sendo que os peões devem transitar com bastante cuidado e com atenção à circulação desses veículos.
i) O referido F… estava no local referido em D) e começou a andar no sentido da saída do armazém, o que o obrigava a passar na zona onde se efectuava a carga da mercadoria, que ficou à sua direita atento o seu sentido de marcha.
j) O mencionado F… seguia do lado esquerdo de H….
k) O empilhador manobrado pelo 1.º réu estava a trabalhar, carregando um camião, o que o obrigava a um movimento constante.
l) Na execução dessa tarefa, o empilhador leva a carga para dentro do camião e depois sai de marcha-atrás por não haver espaço para efectuar a manobra de inversão de marcha.
m) O empilhador estava dotado de avisos sonoros e luminosos que começaram a funcionar quando foi engrenada a marcha-atrás e antes de iniciar a marcha nesse sentido.
n) O H… atentou na sinalização do empilhador e travou a sua marcha.
o) O referido F… estava distraído, pelo que não terá visto, nem ouvido, os sinais do empilhador,
p) tendo-se colocado atrás do empilhador quando este recuava.
q) Na altura do acidente o empilhador estava já totalmente fora do camião e a sua traseira havia percorrido, pelo menos, dois metros dentro do armazém.
r) O empilhador circulava a uma velocidade inferior a 7Km/h.
s) Quando executava a manobra de marcha-atrás, o 1.º réu apercebeu-se que embatera em algum obstáculo,
t) Tendo imobilizado o empilhador e saído, constatando que embatera no F….
u) Em consequência o sinistrado foi transportado para o Hospital de S. João, onde fez penso e teve alta.
v) Em consequência do acidente e das lesões sofrida no mesmo, o referido F… foi para o I… onde foi tratado cirurgicamente por Cirurgia Plástica, por duas vezes.
w) O sinistrado F…, em consequência do sinistro, fez tratamento fisiátrico, durante duas semanas, e esteve de baixa 3 meses
x) Em consequência do acidente o mesmo sofreu esfacelo da perna e tornozelo esquerdos e antebraço direito
y) Tendo-lhe sido fixada a data de 09/08/2011 como data da consolidação médico-legal destas lesões
z) Em consequência das lesões sofridas o mesmo teve uma incapacidade temporária e uma incapacidade permanente parcial de 5,8800%
aa) A autora pagou a F… o montante total de € 16.338,46, correspondente a: Salários 2.261,73; Honorários Consultas/Cirúrgicas 2.146,00; Despesas Médicas 7.229,11; Elem. Auxiliares Diagnóstico 41,08, Aparelhos e Próteses 25,87; Transportes 10,80, despesas Tribunal 234,60, Pensões 814,03 e Remições 3.575,24.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
B… – Companhia de Seguros, S.A., actualmente C… – Companhia de Seguros, SA. instaurou acção declarativa de condenação contra E…, SA. e contra o seu trabalhador D…, que manobrava, nessa qualidade, e nas instalações da primeira, um empilhador, que veio a embater em F…, com quem a Autora havia celebrado um contrato de acidentes de trabalho, pretendendo esta, por via sub-rogatória, que sejam os Réus solidariamente condenados no pagamento das quantias que despendeu em ressarcimento dos danos sofridos pelo sinistrado, seu segurado., no âmbito de processo de acidente de trabalho.
Estabelece o artigo 17º da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro, que regulamenta o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais:
“1 - Quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais.
2 - Se o sinistrado em acidente receber de outro trabalhador ou de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador, este considera-se desonerado da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.
3 - Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a exclusão da responsabilidade é limitada àquele montante.
4 - O empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode sub-rogar-se no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente.
5 - O empregador e a sua seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo”.
O nº4 do citado preceito fala hoje claramente no direito de “sub-rogar-se”, ao contrário do que sucedia com a imprecisa redacção do nº 4 do artigo 31º da anterior Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, revogada pela Lei nº 98/2009, onde se fazia referência a “direito de regresso”, embora, como já vinha sendo então defendido pela doutrina e pela jurisprudência, o termo se achasse incorrectamente empregue, entendendo-se, tal como a lei actualmente em vigor veio clarificar, que o direito acautelado por aquele normativo era um direito de sub-rogação legal da entidade patronal ou da seguradora dos direitos do sinistrado contra o causador do acidente, na medida em que houvesse pago àquele como reparação dos danos resultantes do acidente de trabalho.
Resta, assim, indagar se existe concorrência de responsabilidades para a produção do evento que vitimou o sinistrado, isto é, se a par da responsabilidade pelo acidente, caracterizado como acidente de trabalho e no âmbito do qual a Autora reparou os danos por aquele sofridos, coexiste, como esta alega, responsabilidade extracontratual de outros trabalhadores ou de terceiros, nos termos admitidos pelo citado normativo.
Explica detalhadamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2012[1] “Pode dizer-se que constitui entendimento uniforme e reiterado o de que as indemnizações consequentes ao acidente de viação e ao sinistro laboral – assentes em critérios distintos e cada uma delas com a sua funcionalidade própria – não são cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado (…).
Por outro lado, não é controvertida a conclusão segundo a qual a responsabilidade primacial e definitiva é a que incide sobre o responsável civil, quer com fundamento na culpa, quer com base no risco, podendo sempre a entidade patronal ou respectiva seguradora repercutir aquilo que, a título de responsável objectivo pelo acidente laboral, tenha pago ao sinistrado.
Desta fisionomia essencial do concurso ou concorrência de responsabilidades (que não envolve um concurso ou acumulação real de indemnizações pelos mesmos danos concretos) pode extrair-se a conclusão que este figurino normativo preenche, no essencial, a figura da solidariedade imprópria ou imperfeita, já que:
- no plano das relações externas, o lesado/sinistrado pode exigir alternativamente a indemnização ou ressarcimento dos danos a qualquer dos responsáveis, civil ou laboral, escolhendo aquele de que pretende obter em primeira linha a indemnização, mas sem que lhe seja lícito somar, em termos de acumulação real, ambas as indemnizações;
- no plano das relações internas, a circunstância de haver um escalonamento de responsabilidades, sendo um dos obrigados a indemnizar o responsável definitivo pelos danos causados, conduz a que tenha de se outorgar ao responsável provisório (a entidade patronal ou respectiva seguradora) o direito ao reembolso das quantias que tiver pago, fazendo-as repercutir definitivamente, directa ou indirectamente, no património do responsável ou responsáveis civis pelo acidente.
Têm sido, todavia, acentuadas algumas particularidades ou aspectos específicos e peculiares desta relação de solidariedade imprópria. Assim:
No que toca ao regime das relações externas, acentua-se que (ao contrário do que ocorre na normal solidariedade obrigacional – art. 523º do CC) o pagamento da indemnização pelo responsável pelo sinistro laboral não envolve extinção, mesmo parcial, da obrigação comum, não liberando o responsável pelo acidente de viação: é que, se a indemnização paga pelo detentor ou condutor do veículo extingue efectivamente a obrigação de indemnizar a cargo da entidade patronal, já o inverso não será exacto, na medida em que a indemnização paga por esta entidade não extinguiria a obrigação a cargo do responsável pela circulação do veículo que causou o acidente (…);
No plano das relações internas, tem sido acentuado que o quadro normativo aplicável é o que resulta estritamente do disposto na lei dos acidentes de trabalho em vigor (actualmente, o art. 31º da Lei 100/97), sendo o direito ao reembolso do responsável laboral efectivado necessariamente por uma de três formas:
- substituindo-se ao lesado na propositura da acção indemnizatória contra os responsáveis civis, se lhe pagou a indemnização devida pelo sinistro laboral e o lesado não curou de os demandar no prazo de 1 ano a contar da data do acidente;
- intervindo como parte principal na causa em que o sinistrado exerce o seu direito ao ressarcimento no plano da responsabilidade por factos ilícitos, aí efectivando o direito de regresso ou reembolso pelas quantias já pagas;
- exercendo o direito ao reembolso contra o próprio lesado, caso este tenha recebido (em processo em que não haja tido lugar a referida intervenção principal) indemnização que represente duplicação da que lhe tinha sido outorgada em consequência do acidente laboral”.
Imputando a Autora ao condutor do empilhador e à sua entidade patronal, respectivamente primeiro demandado e segunda demandada, a responsabilidade civil pela produção do evento de que resultaram os danos que indemnizou, com o argumento que não agiu o primeiro, ao manobrar a máquina, com os deveres de cuidados necessários a evitar o acidente, importa, assim, indagar se aquele trabalhador agiu com culpa, exclusiva ou concorrente, determinante daquele desfecho infortunístico, porquanto a culpa constitui elemento fulcral na cadeia dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, que que emerge o dever indemnizatório.
Dispõe, com efeito, o artigo 483º, nº 1 do Código Civil que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Da simples leitura do preceito, resulta que, no caso de responsabilidade por facto ilícito, vários pressupostos condicionam a obrigação de indemnizar que recai sobre o lesante, desempenhando cada um desses pressupostos um papel próprio e específico na complexa cadeia das situações geradoras do dever de reparação.
Reconduzindo esses pressupostos à terminologia técnica assumida pela doutrina, podem destacar-se os seguintes requisitos da mencionada cadeia de factos geradores de responsabilidade por factos ilícitos: a) o facto; b) a ilicitude; c) imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Assim, antes de mais, para que o facto ilícito gere responsabilidade é necessário que o agente tenha actuado com culpa, pois a responsabilidade objectiva ou pelo risco tem carácter excepcional, como se depreende da disposição contida no nº 2 do citado preceito legal.
A responsabilidade civil, em regra, pressupõe a culpa, que se traduz numa determinada posição ou situação psicológica do agente para com o facto. Aqui operam as fundamentais modalidades de culpa: a mera culpa (culpa em sentido estrito ou negligência) e o dolo, traduzindo-se aquela no simples desleixo, imprudência ou inaptidão, e esta na intenção malévola de produzir um determinado resultado danoso (dolo directo), ou apenas aceitando-se reflexamente esse efeito (dolo necessário), ou ainda correndo-se o risco de que se produza (dolo eventual).
Em termos de responsabilidade civil consagra-se a apreciação da culpa em abstracto, ou seja, desde que a lei não estabeleça outro critério, a culpa será apreciada pela diligência de um bom pai de família (in abstracto), e não segundo a diligência habitual do autor do facto ilícito (in concreto)[2]. Como sustenta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.01.2008[3], “a lei ficciona um padrão ideal de comportamento que seria o que um homem medianamente sensato e prudente adoptaria se estivesse colocado diante das circunstâncias do caso concreto – critério do “bonus pater familias”; irreleva a diligência normalmente usada pelo agente”.
A culpa define-se, para este efeito, na circunstância de uma determinada conduta poder merecer reprovação ou censura do direito, ou seja, importará sempre avaliar se o lesante, face à sua capacidade e às circunstâncias concretas do caso em que actuou, podia e devia ter agido de outro modo[4].
Causa de um acidente é a acção ou omissão normalmente idónea a produzi-lo. Tem tais características, a acção ou omissão que, no consenso da generalidade das pessoas medianamente prudentes, colocadas nas circunstâncias do caso, e segundo um juízo de prognose póstumo e de acordo com as regras da experiência comum ou conhecida do agente, é apta a produzir o evento danoso[5].
Via de regra, e segundo o disposto no artigo 487º do Código Civil, incumbe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão[6], mas casos há em que a lei estabelece presunções de culpa do responsável.
Nas acções de indemnização por facto ilícito, embora caiba ao lesado a prova da culpa do lesante, essa sua tarefa está aliviada com o recurso à chamada prova de primeira aparência (presunção simples). Ou seja: “sob pena de tornar-se excessivamente gravoso ou incomportável, o ónus probatório instituído no art. 487.º C.Civ. deverá ser mitigado pela intervenção da denominada prova prima facie ou de primeira aparência, baseada em presunções simples, naturais, judiciais, de facto ou de experiência - praesumptio facti ou hominis, que os arts. 349º e 351º C.Civ. consentem, precisamente enquanto deduções ou ilações autorizadas pelas regras de experiência - id quod plerumque accidit (o que acontece as mais das vezes)…”[7].
Conclui a sentença aqui escrutinada que “é inquestionável que o acidente em causa se ficou a dever ao próprio sinistrado”, afirmando mais à frente que “parece-nos (…) indiscutível que nenhuma responsabilidade pode ser assacada aos réus e, consequentemente, à chamada. E isto porque não foi feita qualquer prova de que existiu culpa por parte do condutor do empilhador. Pelo contrário: entendemos nós que os réus fizeram prova da existência de culpa do sinistrado na produção do acidente”.
A produção da prova em audiência forneceu o seguinte quadro factual, que, não tendo sido objecto de impugnação por parte da recorrente, nem havendo razão para esta instância proceder oficiosamente à sua modificação, se tem por fixado e que releva para a debatida questão da culpa:
- No dia em que ocorreu o acidente, F…, que exerce a actividade de prestação serviços de avaliador, por conta própria, designadamente de controlo, fiscalização e/ou avaliação de mercadorias para exportação, aquando do seu carregamento ou inserção em contentores e para transporte para Angola, encontrava-se, no exercício dessas funções, nas instalações da Ré E…, mais precisamente no cais de embarque, acompanhado por um trabalhador desta, H…;
- O referido cais de embarque é uma zona destinada à circulação de máquinas/empilhadoras;
- Quando se encontrava no referido local, a determinada altura o F…, seguindo pelo lado esquerdo de H…, começou a andar no sentido da saída do armazém, o que o obrigava a passar na zona onde se efectuava a carga da mercadoria, que ficou à sua direita atento o seu sentido de marcha;
- Na altura o empilhador manobrado pelo 1.º réu estava a trabalhar, carregando um camião, o que o obrigava a um movimento constante;
- Ao executar essa tarefa, o empilhador leva a carga para dentro do camião e depois sai de marcha-atrás por não haver espaço para efectuar a manobra de inversão de marcha;
- O empilhador estava dotado de avisos sonoros e luminosos que começaram a funcionar quando foi engrenada a marcha-atrás e antes de iniciar a marcha nesse sentido.
- O H… atentou na sinalização do empilhador e imobilizou a sua marcha;
- Porque seguisse distraído, sem atentar nos sinais do empilhador, o F… colocou-se atrás do empilhador, quando este recuava, estando já totalmente fora do camião, havendo a sua traseira percorrido, pelo menos, dois metros dentro do armazém, circulando então a uma velocidade inferior a 7Km/h;
- Quando efectuava aquela manobra, o 1.º réu apercebeu-se que embatera em algum obstáculo, e, tendo imobilizado o empilhador e saído, constatou que embatera no F….
Perante este cenário factual justifica-se a inevitabilidade da conclusão transposta para a sentença recorrida, ou seja, a de que o acidente se deveu a culpa exclusiva do próprio sinistrado.
Este, com efeito, transitava num espaço destinado à circulação de máquinas/empilhadores, e porque na altura se achasse um empilhador a efectuar manobras de carregamento de um camião, não podendo aquele sinistrado, mercê da sua actividade profissional e das funções que então exercia, desconhecer que o trânsito de peões naquele espaço físico requeria especiais cautelas, designadamente, pelo facto de a saída do empilhador do camião que carregava só poder se efectuar em manobra de marcha atrás, e daí estar dotado de sinais sonoros e luminosos de aviso, menosprezou os mais elementares de cuidado, não se mostrando atento aos referidos sinais de aviso e colocando-se na retaguarda do empilhador quando o mesmo efectuava uma manobra de recuo, vindo, deste modo, a ser colhido por ele.
Contrariando os fundamentos da sentença que ditaram a absolvição dos Réus pelo facto de a Autora não haver logrado provar a culpa do manobrador do empilhador – o 1º Réu – vem aquela em sede de recurso argumentar que “independentemente de culpa, nos termos do disposto e conjugado sob arts. 483º, nº. 2, e 503º do Cód. Civil, ou com culpa presumida, nos termos do disposto sob art. 493º, nº. 2, do Cód. Civil, deveriam os Réus, ora Recorridos, ter sido condenados no ressarcimento total à Autora, ora Recorrente, de todos os custos ou despesas que teve de suportar em virtude do atropelamento de que foi vítima o seu segurado/sinistrado”, o que constitui novidade pois que antes de a sentença haver sido proferida, nunca ela havia convocado a disciplina do artigo 503º do Código Civil, ou a culpa presumida consagrada no nº2 do artigo 493º do mesmo diploma legal.
Ainda que a Autora tenha formulado a sua pretensão indemnizatória como base na invocada culpa do condutor do empilhador que causou os danos corporais ao sinistrados que indemnizou, sem que haja alegado, sequer a título subsidiário, responsabilidade pelo risco, nada obsta que esta, apesar dessa ausência de alegação, possa ser objecto de apreciação, porquanto “…se deve presuntivamente considerar que quem formula pretensão indemnizatória com base na culpa do lesante também pretende que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso da culpa”[8]. Defende, com efeito, sem oscilação a jurisprudência, ser possível a convolação para a responsabilidade pelo risco do pedido de indemnização fundado apenas na culpa, não provada[9].
Analise-se, então, a questão da culpa na perspectiva delineada pelo nº2 do artigo 493º do Código Civil.
Segundo este normativo, “quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios empregados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de as prevenir”.
Não definindo a lei o que deve entender-se por actividade perigosa, caberá à doutrina e à jurisprudência fornecer os contornos explicativos para o preenchimento daquele conceito legal.
Pires de Lima e Antunes Varela[10] sustentam que “apenas se admite, genericamente, que a perigosidade derive da própria natureza da actividade, como a navegação marítima ou aérea, o fabrico de explosivos, o comércio de substâncias inflamáveis (…) ou da natureza dos meios utilizados (tratamentos médicos com raios x, ondas curtas, etc). É matéria, pois, a apreciar, em cada caso, segundo as circunstâncias”.
Vaz Serra[11], alinhando-se com a doutrina italiana[12], defende que “actividades perigosas são as que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras actividades”.
Idêntico entendimento é partilhado por Almeida Costa[13], para quem a actividade perigosa consiste na actividade que pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios empregues “tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral”.
E esclarece João António Álvares Dias[14] que “há dois critérios basilares que permitem definir o que é actividade perigosa: a intensidade da lesão em que a perigosidade se pode consubstanciar (critério qualitativo) e a especial probabilidade de a perigosidade da coisa ou actividade provocar um dano (critério quantitativo)”.
Ou seja: “no exercício de uma actividade perigosa a previsibilidade do dano está em “in re ipso” e o sujeito deve agir tendo em conta o perigo para os terceiros, os deveres inerentes à normal diligência seriam em tal caso insuficientes porque, onde a periculosidade está ínsita na acção, há o dever de proceder tendo em conta o perigo; o dever de evitar o dano torna-se mais rigoroso quando se actua com a nítida previsão da sua possibilidade, o sujeito, pois, deve adoptar, mesmo que com sacrifícios, todas as medidas aptas para evitar o dano”[15].
De todo o modo, e como sublinha o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.05.2009[16], “…a qualificação deve ser feita caso a caso e segundo critério naturalístico”.
O funcionamento de um empilhador num cais de embarque – zona destinada a máquinas/empilhadores, para efectuarem cargas e descargas de mercadorias e, portanto, zona não destinada à circulação pública -, estando o mesmo dotado de mecanismos sonoros e luminosos de aviso de accionamento de manobra de marcha atrás, plenamente operacionais, e que, no caso, foram accionados, não deve, na situação concreta retratada nos autos, ser qualificada como actividade perigosa para efeitos de aplicação do nº2 do artigo 493º do Código Civil, que, em matéria de culpa, estabelece a inversão do ónus da prova, presumindo que age com culpa quem exerce uma actividade perigosa.
E ainda que se pudesse reputar de perigosa, com os contornos já explicados e exigidos para o seu enquadramento no citado normativo, a actividade inerente à utilização de um empilhador para efectuar cargas e descargas naquelas circunstâncias, sempre seria arredada da presunção do nº2 do artigo 493º, por força do assento nº1/80, de 21 de Novembro de 1979[17], hoje com força de jurisprudência uniformizadora, segundo o qual “o disposto no artigo 493.º, n.º2 do Código Civil, não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre”.
Integra-se neste conceito – acidente de circulação terrestre – o acidente caracterizado pelo atropelamento de um peão por um empilhador quando este circula efectuando manobras de carga/descarga de mercadorias, independentemente de tal evento ocorrer na via pública ou em espaço fechado, designadamente num armazém[18].
Analisando as várias possibilidades de enquadramento jurídico da culpabilidade/responsabilidade de acidente no qual intervieram um empilhador, quando circulava realizando manobras de cargas/descargas de mercadorias, e um peão, colhido pelo mesmo, densifica nestas conclusões essa análise o já mencionado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.06.2010: “Podemos (…) ter por assente o seguinte:
a) Que a empilhadora constitui um veículo de circulação terrestre.
b) Que não deixa de se caracterizar como acidente de viação o acidente ocorrido com uma empilhadora ainda que num espaço de circulação que não seja via de trânsito.
c) Que o facto de o acidente ter ocorrido em via ou local que não seja daquelas a que se refere o artigo 2.º do Código da Estrada de 1994, isso não significa que se não esteja face a um acidente de circulação terrestre, significando apenas que tal acidente não está incluído no âmbito de aplicação do Código da Estrada.
d) Que um acidente de circulação terrestre constitui actividade perigosa; no entanto, por força do aludido assento, a excluir-se a mencionada interpretação restritiva, uma tal actividade não está sujeita à presunção do artigo 493.º/2 do Código Civil”.
Não se justificando, no caso, uma interpretação restritiva do mencionado assento nº 1/80, admitida, na visão do citado acórdão do STJ, para “…casos em que a circulação terrestre se efectiva em condições de especial perigosidade”, mostrando-se, por conseguinte, afastada a aplicabilidade do nº2 do artigo 493º do Código Civil, não ocorre inversão de ónus de prova, através de uma presunção de culpa que deva recair sobre os Réus, como sustenta a recorrente, pela primeira vez, em sede de recurso.
Para a hipótese de essa defesa argumentativa não colher, invoca ainda a recorrente, uma vez mais ex novo nas alegações recursivas, que independentemente de culpa, sempre os demandados deveriam ser condenados a ressarcirem-na dos custos e despesas que suportou por virtude das lesões causadas pelo atropelamento do sinistrado, seu segurado, no âmbito do processo por acidente de trabalho, convocando para o efeito o regime disciplinador do artigo 503º do Código Civil.
Nos termos do nº1 do referido dispositivo, “aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.
Determina, por sua vez, o nº3 do mesmo normativo que “aquele que conduzir veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte (…)”.
A propósito da responsabilidade objectiva consagrada no artigo 503º do Código Civil esclarece o já mencionado acórdão da Relação de Coimbra de 14.01.2014: “Na origem e razão de ser da responsabilidade objectiva, pelo risco, está, consabidamente, a “teoria” de que todo aquele que cria ou mantém um risco em proveito próprio deve suportar as consequências prejudicais do seu emprego, já que é ele que deles colhe o principal benefício (a ideia expressa no brocardo latino “ubi commodum ibi incommodum”).
É esta a razão de ser, sendo os veículos automóveis coisas perigosas, da previsão da responsabilidade objectiva, fundada no risco, consagrada no referido 503.º/1 do C. Civil.
Preceito que identifica a pessoa do responsável – quem responde objectivamente – com o fito de fixar o critério aplicável às múltiplas situações em que o uso e o domínio formal do veículo não coincidam; mas que, evidentemente, não tem em vista afastar a responsabilidade objectiva do proprietário que, presuntivamente, é o detentor do veículo e o interessado na sua utilização.
Em princípio e como regra, podemos pois afirmar que o responsável objectivo é o dono do veículo; é ele a pessoa que aproveita as especiais vantagens do veículo e quem correlativamente deve arcar com os riscos próprios da sua utilização; porém, tendo em vista as múltiplas situações em que o uso e o domínio formal do veículo andam desligados, introduziu o art. 503.º/1 as duas referidas notas: a) direcção efectiva do veículo; b) utilização deste no próprio interesse.
Com expressão/fórmula “ter a direcção efectiva do veículo”, tem-se em vista abranger todos aqueles casos em que alguém, mesmo sem o domínio jurídico, pela situação de facto em que se encontra investido, está incumbido de tomar as providências adequadas para que o veículo funcione sem causar danos a terceiros (daí o dizer-se que tem a direcção efectiva do veículo quem tiver o poder real, efectivo, de facto sobre o veículo; quem for possuidor em nome próprio); e com o requisito “utilização no próprio interesse”, tem-se em vista afastar a responsabilidade objectiva de quem, como o comissário, utiliza o veículo, não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem (o comitente).
(…) Em vez de se dizer, pura e simplesmente, que a responsabilidade objectiva recai sobre o titular do direito de propriedade, prevaleceu a orientação que não olha apenas à titularidade jurídico-formal, atendendo também à direcção efectiva do veículo e ao interesse na utilização dele”.
A responsabilidade objectiva nos moldes assinalados impunha-se, naturalmente, perante um non liquet quanto à culpa, isto é, na ausência de factos que servissem de alicerce à formulação de um juízo de culpa no procedimento que culminou no acidente sofrido pelo sinistrado. Não é o caso.
É que se a Autora fracassou na tarefa demonstrativa da imputação do acidente a conduta negligente do condutor do empilhador, já, em contrapartida, foi com sucesso que os demandados comprovaram que foi a conduta do próprio sinistrado – que, caminhando desatento numa zona destinada à circulação de máquinas/empilhadores, sabendo que um desses empilhadores efectuava o carregamento de um camião, que o obrigava a constante movimento de entrada e saída deste, sendo que a saída apenas podia efectuar-se através de manobra de marcha atrás, porque caminhasse distraído não atentou nos sinais, luminosos e sonoros indicativos da marcha de recuo do empilhador, colocou-se na retaguarda do mesmo quando o referido veículo, já totalmente saído do camião, tendo a sua traseira percorrido, pelo menos, dois metros no interior do armazém, circulava em marcha atrás, vindo a ser colhido nessas circunstâncias – exclusivamente causal do acidente.
Não fora, com efeito, essa desatenção do sinistrado F…, sempre este se teria apercebido, até pelos sinais emitidos pelo empilhador, que este efectuava a referida manobra de marcha atrás, e, em vez de cortar a linha de trânsito deste, como o fez, colocando-se na sua retaguarda quando o mesmo recuava, teria agido com a mesma destreza e prudência do H…, que, seguindo ao seu lado, ao aperceber-se dos sinais de aviso da manobra de marcha atrás encetada pelo empilhador, deteve a sua marcha, saindo, assim, incólume.
Mesmo defendendo-se uma interpretação actualista do artigo 505º do Código Civil, que não exclui a possibilidade de concorrência com a responsabilidade objectiva resultante do risco subjacente à utilização de veículo interveniente em acidente, sempre, no caso concreto, se afigura inaplicável tal entendimento, por se concluir que foi a actuação negligente do lesado a única a concorrer para a produção do acidente.
Nenhuma censura merece, pois, a sentença recorrida que absolveu do pedido contra eles formulados todos os demandados, assim improcedendo o recurso.
Com a confirmação da sentença fica prejudicada a apreciação da ampliação do objecto do recurso.
*
Síntese conclusiva:
- Não se enquadra no conceito de actividade perigosa, para efeitos do disposto no nº2 do artigo 493º do Código Civil, a actividade desempenhada por empilhador na execução de tarefas de carga/descarga de mercadorias, prosseguida em armazém, numa zona destinada à circulação de máquinas/empilhadores, estando ainda o referido empilhador dotado de sinais, sonoros e luminosos, de aviso de marcha atrás, que, sempre que uma manobra dessa natureza se inicia, são accionados.
- Um empilhador tem natureza de veículo de circulação terrestre.
- A presunção de culpa consagrada no nº2 do artigo 493º, por força do assento nº1/80, de 21 de Novembro de 1979, hoje com força de jurisprudência uniformizadora, não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre.
- Uma interpretação actualista do artigo 505º do Código Civil não exclui a possibilidade de concorrência com a responsabilidade objectiva, associada ao risco inerente à circulação de veículo interveniente em acidente.
- Essa concorrência, porém, não se configura quando o acidente tenha ficado a dever-se a culpa exclusiva do próprio lesado, constituindo esta uma circunstância excludente da responsabilidade objectiva.
*
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, julgando improcedente a apelação, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 25 de Setembro de 2014
Judite Pires
Teresa Santos
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Processo nº 40/08.1TBMMV.C1.S1, www.dgsipt.
[2] Acórdão do STJ, 18.05.2006, procº nº 06B1644, www.dgsi.pt.
[3] www.dgsi.pt.
[4] cf. Antunes Varela, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 102º, pág. 8 e ss.
[5] Neste sentido, Acórdão Relação do Porto, 14/3/89, BMJ 385º, 603.
[6] O que, de resto, se coaduna com as regras gerais da repartição do ónus da prova, plasmadas no artigo 342º do Código Civil, já que a culpa, sendo um dos pressupostos que integra e fundamenta o dever de indemnizar, é um facto constitutivo do direito a que o lesado se arroga; cf. ainda, neste sentido, entre outros, Acórdãos do STJ, 12.07.2005, 21.11.2006, 13.11.2008, Acórdão desta Relação, de 21.09.2004, todos em www.dgsi.pt.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2009, Processo n.º 04B2638, www.dgsi.pt.
[8]Acórdão da Relação de Coimbra, de 14.01.2014, processo nº 1470/10.4TBPMS.C1, www.dgsi.pt.
[9] Entre outros, Acórdão Relação de Lisboa, 09.05.78, Colectânea de Jurisprudência 1978, 3, 921; Acórdão Relação de Coimbra, 18.02.76, Colectânea de Jurisprudência 1976, 1, 33; Acórdão Relação Évora, 02.07.75, BMJ 250º- 219; Acórdão Relação de Lisboa, 03.07.74, BMJ 239º-255.
[10] “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed., 495.
[11] “Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades”, BMJ 85º, 378.
[12] Que entende que as actividades perigosas a que se refere o artigo 2050º da lei italiana - que o nº2 do artigo 493º do Código Civil constitui reprodução quase literal - são as que criam para terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, mais ainda, a probabilidade de causar danos, uma probabilidade maior do que as normalmente resultantes de outras actividades.
[13] “Direito das Obrigações”, 10ª ed., 587.
[14] “Dano Corporal – Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios”, págs.76 a 78.
[15] Acórdão da Relação de Lisboa de 14.01.2010, processo nº 967/2001.L1-8, www.dgsi.pt.
[16] Processo nº 162/09.1YFLSB, www.dgsi.pt.
[17] BMJ 291º/285.
[18] Cfr., entre outros, acórdãos do STJ de 28.3.90 – AJ 15º/16º, 36 -, de 29.01.2003 – processo nº 02B4338, www.dgsi.pt -, de 17.06.2010 – processo nº 3174/03.5TBGDM.P1.S1, www.dgsi.pt -, de 20.03.90 – processo nº 078529, www.dgsi.pt.