Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3321/12.6TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: RP201507013321/12.6TDPRT.P1
Data do Acordão: 07/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O JIC pronunciando-se sobre a ausência de indícios de crime, profere uma decisão de mérito que tem força vinculativa dentro e fora do processo onde foi proferida, constituindo caso julgado res judicata e só mediante recurso de revisão pode ser reaberta a discussão sobre esses factos.
II - Por isso o despacho de não pronúncia tem de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes.
III - A falta de fundamentação de um despacho de não pronúncia constitui nulidade sanável e dependente de arguição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3321/12.6 TDPRT.P1
Recurso de decisão instrutória
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 3321/12.6 TDPRT, corre, agora, termos pela Instância Central, 1.ª Secção de Instrução Criminal (J2), da Comarca do Porto, “B…, L.da”, pessoa colectiva n.º ………, com sede social na Rua …, …/…, da cidade do Porto, que requereu e foi admitida a intervir como assistente (despacho de admissão a fls. 341), não se conformando com o despacho de arquivamento (despacho a fls. 299 e segs.) com que o Ministério Público encerrou a fase de inquérito, requereu a abertura de instrução (requerimento a fls. 316 e segs.), no termo da qual foi proferida decisão instrutória de não pronúncia (fls. 369 e segs.) do arguido C….
Ainda irresignada, a assistente recorreu dessa decisão para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
1. “No despacho de pronúncia ou não pronúncia deve-se identificar concreta e correctamente o arguido.
2. Ao indicar-se pessoa diversa do arguido nos autos existe NULIDADE.
3. Assim violou-se o disposto na al. a do nº 3 do art. 283º do CPP.
4. Os documentos quando não impugnados pelo arguido fazem prova plena do seu conteúdo.
5. No despacho dito em 1) deve efectuar-se a indicação dos factos provados e não provados, bem como o respectivo exame crítico das provas devidamente fundamentado.
6. Essa omissão viola pelo menos o disposto nos artgs. 374 nº2, 379 nº 1 e) do CPP e art.515 do CPC”.
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Admitido o recurso (despacho a fls. 408) e notificados os sujeitos processuais por ele afectados, quer o Ministério Público, quer o arguido apresentaram resposta à respectiva motivação, ambos concluindo pela sua improcedência.
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Ordenada a remessa dos autos ao tribunal de recurso, e já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que, considerando que, aquando da decisão instrutória, os autos não forneciam indícios suficientes da prática, pelo arguido, dos crimes que o assistente lhe imputa, entende que deve ser negado provimento ao recurso, mas que o Ministério Público deverá providenciar pela extracção de certidão de todo o processado para instauração de novo inquérito, “já que os elementos de prova supervenientemente carreados aos autos demandam a realização de novas diligências de investigação”.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, com resposta do arguido a reafirmar as posições que expressou na resposta à motivação do recurso.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II - Fundamentação
O assistente pretende que o arguido seja pronunciado para ser submetido a julgamento pelos factos que enuncia no requerimento de abertura de instrução (RAI) e que, na sua perspectiva, preenchem a previsão das normas incriminadoras dos artigos 256.°, n.º 1, al. a), 205.°, n.º 4, al. a), e 258.º do Código Penal, configurando-se, assim, os crimes de falsificação de documento, abuso de confiança e falsificação de notação técnica.
São as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigo 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, disponível em www.dgsi.pt/jstj) e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
Tal como acontece com o encerramento do inquérito[1], normalmente, a questão central do despacho que encerra a fase de instrução é a de saber se foram recolhidos indícios suficientes (pressuposto fundamental, quer da dedução de acusação, quer da prolação de despacho de pronúncia, pois, de contrário, terá de ser arquivado o inquérito e proferido despacho de não pronúncia) da existência de crime e, na afirmativa, quem foi o seu agente e se este é punível.
Lendo a motivação do recurso, facilmente se constata que nela se reproduz o conteúdo da denúncia e do RAI, o que, convenhamos, não é a melhor forma de pôr em crise uma decisão de não pronúncia.
Mas a recorrente, também, manifesta a sua discordância relativamente à análise e avaliação dos indícios recolhidos nas fases de inquérito e de instrução feita na decisão instrutória e, ainda que incipientemente, fundamenta essa divergência: sustenta que, devidamente ponderadas e conjugadas a prova documental que os autos contêm e a prova por declarações dos seus dois gerentes, teria de ser outra a conclusão sobre a suficiência dos indícios para uma decisão de pronúncia (“levam inevitavelmente à conclusão de fortíssima probabilidade de os crimes terem sido praticados e a fortíssima probabilidade de condenação do arguido”).
Aliás, a recorrente termina pedindo que, no provimento do recurso, seja o despacho recorrido substituído por despacho de pronúncia.
Daí poder dizer que a questão essencial a apreciar e decidir neste recurso seria a de ponderar se os indícios probatórios recolhidos nas fases preliminares do processo (inquérito e instrução) são de molde a justificar que se leve o arguido a julgamento pelos factos descritos no RAI e com o enquadramento jurídico-penal que a assistente lhes deu.
Porém, nada disso está reflectido nas conclusões do recurso.
Justificava-se, assim, um despacho convidando ao aperfeiçoamento (artigo 417.º, n.os 3 e 4, do Cód. Proc. Penal).
Porém, não foi essa a nossa opção pelas razões que adiante explicitaremos.
O que das conclusões do recurso decorre com meridiana clareza é que a recorrente argui a nulidade da decisão instrutória:
- porque nela não está “concreta e correctamente” identificado o arguido e é indicada pessoa diversa deste;
- porque a Sra. Juiz de instrução não considerou nenhum dos documentos que constam dos autos e por isso ocorreria omissão de pronúncia;
- porque na decisão instrutória devia “efectuar-se a indicação dos factos provados e não provados, bem como o respectivo exame crítico das provas devidamente fundamentado” e a omissão dessa indicação “viola pelo menos o disposto nos artgs. 374 n.º 2, 379 n.º 1 c) do CPP e art. 515 do CPC” (conclusões V e VI).
É sobre essa arguição de nulidades que nos deteremos.
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A lei estabelece os parâmetros a que devem obedecer os actos processuais, designadamente as exigências de fundamentação dos actos decisórios.
Mas as exigências do cumprimento desse dever e as consequências da sua inobservância não são as mesmas para todos os actos decisórios: existe um regime geral (definido nos artigos 97.º e 118.º a 123.º do Cód. Proc. Penal) e regimes específicos para as sentenças (artigos 374.º e 379.º) e para os despachos que aplicam medidas de coacção (artigo 194.º do mesmo compêndio normativo).
A primeira arguição de nulidade da decisão instrutória alicerça-se na falta de identificação do arguido e na indicação de pessoa diversa deste.
Concretamente, o que terá suscitado a reacção da assistente foi o seguinte trecho da decisão instrutória: “quanto à factualidade relativa a D… e atento o princípio «in dúbio pro reo», não nos merece igualmente reparo o despacho em causa”.
Como bem salienta o Ex.mo PGA no seu parecer, esta afirmação não passa de uma alusão infeliz, reveladora de desatenção.
O despacho que encerrou a fase de inquérito é, na realidade, um duplo despacho de arquivamento: no primeiro, o Ministério Público pronuncia-se sobre os factos denunciados pela sociedade denunciante “B…, L.da”; no segundo, aprecia a queixa apresentada por D… (que deu origem ao processo a que foi atribuído o n.º 112/12.8 SLPRT) contra a mesma pessoa que foi denunciada pela ora assistente/recorrente: o arguido C….
Tendo sido notificada desse despacho (e não há motivo para duvidar que o foi na íntegra), a assistente ficou a saber que aquela D… era queixosa e que o processo originado pela apresentação da sua queixa foi apensado a estes autos, por ocorrer conexão subjectiva.
Dificilmente se entende a razão por que na decisão instrutória nunca é identificado o arguido.
No entanto, com estatuto de arguido, como tal constituído neste processo, só há uma pessoa: é o referido C…, contra o qual a assistente apresentou denúncia e queixa.
Por isso, apesar da perplexidade provocada pela infeliz referência a D…, não há dúvidas de que a decisão instrutória se reporta, apenas, aos factos que a assistente imputou a C….
Improcede, pois, a arguição da nulidade.
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Cremos não merecer reservas o entendimento de que ocorre omissão de pronúncia, geradora de nulidade, quando o juiz deixa de se pronunciar (parcial ou integralmente) sobre questões que lhe sejam colocadas pelas partes ou sujeitos processuais ou sobre aquelas de que deva conhecer oficiosamente. Também é pacífico o entendimento de que só se impõe a pronúncia do juiz sobre questões ou problemas concretos que exijam uma decisão. Não são como tal considerados os simples argumentos, opiniões ou teses doutrinárias expendidos pelas partes na defesa das posições que tomam no decurso do processo.
Para a recorrente, haveria omissão de pronúncia porque “a M.ma Juiz não considerou NENHUM dos documentos juntos ab initio nem sobre eles se pronunciou no despacho”
Não vislumbramos a que juízo se refere a recorrente quando afirma que “os documentos juntos e indicados NÃO OBTIVERAM JUÍZO sobre os mesmos”.
Aparentemente, a recorrente pretende aludir ao valor probatório dos documentos que fez chegar ao processo, designadamente aqueles que apresentou com a denúncia, pois que, na conclusão IV, afirma que “os documentos quando não impugnados pelo arguido fazem prova plena do seu conteúdo”.
Cabe aqui lembrar que não estamos no domínio do processo civil e que o processo penal tem regras próprias de valoração probatória, nomeadamente no que tange à prova documental.
Só em relação aos documentos autênticos e autenticados a lei estabelece o respectivo valor probatório: consideram-se provados os factos materiais deles constantes enquanto a sua autenticidade e a veracidade do seu conteúdo não forem postas em causa (artigo 169.º do Cód. Proc. Penal).
De todo o modo, se a Sra. Juiz de instrução não valorou como devia os documentos que constam do processo, isso constituirá fundamento para se questionar o juízo indiciário efectuado, mas não torna a decisão nula.
Também esta arguição de nulidade não tem fundamento.
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Debruçando-nos agora sobre a terceira arguição de nulidade, impõe-se começar por esclarecer o que parece ser um equívoco da recorrente ao aludir a “indicação dos factos provados e não provados” na decisão instrutória.
Só pode falar-se em factos provados e não provados (que, nos termos do artigo 374.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, integram, necessariamente, a fundamentação da sentença) na fase de julgamento.
Nesta fase do processo está em causa, não propriamente a apreciação da prova pelo tribunal, mas sim a avaliação dos indícios probatórios recolhidos que permitirá formular um juízo de (in)suficiência desses indícios, tendo em vista a decisão de levar, ou não, o caso a julgamento.

Se da decisão instrutória hão-de constar os factos considerados suficientemente indiciados e aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes, eis a questão que agora importa abordar.
Como, facilmente, se alcança da sua leitura, a decisão instrutória em causa omite completamente a narração dos factos considerados suficientemente indiciados e aqueles para os quais não haveria essa indiciação.
Ora, ao contrário do que afirmam o Ministério Público e o arguido nas suas respostas, reúne amplo consenso o entendimento de que a decisão instrutória, seja de pronúncia ou de não pronúncia, tem de enunciar os factos considerados suficientemente indiciados e aqueles em relação aos quais não se recolheu prova indiciária bastante.
A decisão instrutória, de pronúncia ou de não pronúncia, tem de ser fundamentada, exigência que decorre, não do art.º 374.º (directamente aplicável, apenas, às sentenças), mas do dever genérico de fundamentação dos actos decisórios previsto no art.º 97.º, n.º 5, do Cód. Proc. Penal. E se é certo que com a exigência de especificação no acto decisório dos “motivos de facto e de direito da decisão” não se pretende aludir à enunciação de factos, no que tange à decisão instrutória, aquela disposição normativa tem de ser conjugada com o artigo 308.º, cujo n.º 2 manda correspondentemente aplicar ao despacho referido no número anterior (que estabelece o critério orientador para o juiz proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia) o disposto nos números 2, 3 e 4 do artigo 283.º do CPP. Ora, o n.º 3 deste preceito comina a nulidade para o despacho de acusação que não contenha “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”.
Essa exigência de narração dos factos considerados suficientemente indiciados e os não indiciados não se satisfaz com a mera remissão para uma peça do processo[2] ou com a utilização de fórmulas genéricas (cfr. acórdãos do STJ de 16.01.1997, CJ/Acs. STJ, V, T. I, 202, e de 26.05.1999, Proc. n.º 98P1488). Tal como não cumpre a determinação legal de enumeração dos factos a sentença em que se diz, por exemplo, que se provaram (ou não se provaram) os factos da acusação (ou da pronúncia), também assim é quando no despacho de não pronúncia se afirma, p. ex., “considero que não se indicia a prática, pelo arguido, de factos susceptíveis de integrar o preenchimento da tipicidade objectiva e subjectiva do crime que o assistente lhe imputa”.
Mas não é pacífico na jurisprudência este entendimento sobre o conteúdo do despacho de não pronúncia.
Divergem da orientação que tem prevalecido na jurisprudência (e recolhe os favores da doutrina), entre outros, os seguintes arestos (todos acessíveis em www.dgsi.pt):
- acórdão da Relação de Guimarães, de 17/12/2013 17/12/2013 (processo n.º 74/12TAVLN.G1), relatado pela Desembargadora Ana Teixeira da Silva;
- acórdão da Relação de Coimbra de 3/07/2013 (processo n.º 1450/11.2TACBR.C1), relatado pelo Desembargador Abílio Ramalho;
- acórdãos[3] de 29/05/2013 (processo 15847/09.4TDPRT.P1), de 05/01/2011 (processo 599/07.0TAOAZ.P1) e de 29/05/2013 (processo 15847/09.4TDPRT.P1) da Relação do Porto, todos relatados pelo Desembargador Joaquim Gomes.
No primeiro, apesar de se reconhecer que “proceder a semelhante elenco factual seria seguramente a melhor técnica de elaboração de um despacho de não pronúncia – até sob a égide do rigor, objectividade e transparência”, acaba por concluir-se que “nada na lei exige que contenha semelhante descrição de factos «indiciados» e «não indiciados»”, conclusão que é assim justificada: “Afigura-se que a remissão feita no nº2 do artº 308º do CPP para o nº 3 do artº 283º do CPP (o qual estabelece os requisitos da acusação, “sob pena de nulidade”) só pode respeitar ao despacho de pronúncia (e não ao despacho de não pronúncia, como bem se compreende face ao teor de várias das alíneas, por exemplo, a) a f), do nº3 do artº 283.º, que não fariam qualquer sentido num despacho de não pronúncia.)”.
No segundo, considerou-se que satisfaz o dever de fundamentação previsto no n.º 5 do art.º 97.º do Cód. Proc. Penal o despacho de não pronúncia que “deixar revelar, pelo respetivo teor, de modo objetivo e comummente percetível, a respeitante linha de raciocínio lógico-argumentativo e a própria razoabilidade jurídica”, não se impondo a indicação dos factos indiciados e os não indiciados.
Nos referidos acórdãos desta Relação (do Porto), defende-se que “o despacho de não pronúncia exige apenas a fundamentação prevista no nº 4 do art. 97º do Código de Processo Penal, não tendo, designadamente, que conter a descrição de quaisquer factos”, asserção que é assim fundamentada:
“…apenas se quis revestir a decisão instrutória de nulidade quando esta for de pronúncia, como já referimos, e apenas em duas situações tipo expressamente tabeladas: a) quando represente uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública ou no requerimento para abertura da instrução conducente à pronúncia – excluiu-se a alteração não substancial (309.º) e aqui diverge-se da regulamentação específica da nulidade das sentenças; b) quando não se respeite o registo legal descritivo da acusação (283.º, n.º 3, mediante remissão do art. 308.º, n.º 2).
A ser assim, não podemos estender o rigor descritivo da (in)validade da decisão de pronúncia ao despacho de não pronúncia, porquanto o segmento normativo do artigo 283.º, n.º 3 é privativo da regulação daquele libelo, já que o seu proémio apenas menciona que “A acusação contém, sob pena de nulidade:”, não estando o despacho de arquivamento do inquérito, como se pode constatar da previsão do artigo 277.º, sujeito à mesma rigidez narrativa”.
Argumentar que a remissão feita no n.º 2 do art.º 308.º do CPP para o n.º 3 do art.º 283.º da mesma Codificação é, apenas, para o despacho de pronúncia porque as várias alíneas daquele n.º 3 não fariam qualquer sentido num despacho de não pronúncia só pode resultar de uma leitura menos atenta dos preceitos legais pertinentes.
O n.º 2 do artigo 308.º não manda aplicar, taxativamente e em globo, ao despacho de pronúncia ou de não pronúncia o disposto no n.º 3 do artigo 283.º, pois o advérbio “correspondentemente” ali empregue há-de ter algum sentido útil.
Quando não há acusação, a decisão instrutória há-de ter por referência o requerimento de abertura de instrução (a peça processual que consubstancia materialmente uma acusação e define o âmbito da vinculação temática) e, como determina o n.º 2 do artigo 287.º do CPP, sendo a instrução requerida pelo assistente, àquele requerimento são aplicáveis, apenas, as alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º e é óbvio que um despacho de não pronúncia não tem que indicar a prova a produzir.
Por outro lado, não se pode equiparar o despacho de arquivamento do inquérito ao despacho de não pronúncia (como se faz nos citados acórdãos desta Relação para se justificar a não exigência da enunciação no despacho de não pronúncia dos factos indiciados e não indiciados), pois têm natureza diversa.
Como anota o Sr. Conselheiro Maia Costa (“Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 1024), tais decisões têm um tratamento legal diferente porque «o despacho de arquivamento constitui uma decisão “unilateral” do Ministério Público, que põe termo a uma fase processual caracterizada pela falta de contraditório. Pelo contrário, a decisão instrutória de não pronúncia é proferida após um debate público, contraditório e tematicamente vinculado. Por isso, a tomada de posição sobre aqueles factos pelo juiz de instrução terá de beneficiar do princípio do caso julgado, como decisão jurisdicional que é».
O traço comum que se surpreende nos arestos a que vimos aludindo é a interpretação restritiva que advogam para o n.º 2 do artigo 308.º do CPP que, ao mandar aplicar o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 283.º “ao despacho referido no número anterior” estaria a reportar-se, apenas, ao despacho de pronúncia.
Isto apesar de o n.º 1 do artigo 308.º se referir, clara e expressamente, ao despacho de pronúncia e ao despacho de não pronúncia.
Nada permitindo afirmar que o legislador não soube exprimir adequadamente o seu pensamento e não se lobrigando qualquer razão válida para tal restrição, não pode aceitar-se uma interpretação que não tem na letra da lei qualquer correspondência verbal.
Aliás, afigura-se-nos óbvio que, se o legislador quisesse restringir aquela remissão ao despacho de pronúncia, não utilizaria aquela forma de expressão, mas diria, muito simplesmente, “É correspondentemente aplicável ao despacho de pronúncia…”.
Mas não podemos ficar-nos pelas palavras do texto norma, pois é sabido que o elemento literal é, apenas, um factor hermenêutico a ter em conta e nem sequer é decisivo na determinação do sentido da norma.
A questão fundamental (como já se aflorou ao citar o Sr. Conselheiro Maia Costa) sobre a qual importa reflectir é a da natureza do despacho de não pronúncia. Concretamente, o punctum crucis está em saber se o despacho de não pronúncia tem efeitos de caso julgado formal apenas, ou se, transitado em julgado, faz caso julgado material.
Relembremos estas noções:
Uma decisão (despacho ou sentença) transita em julgado, formando caso julgado, quando, por não ser já susceptível de alteração ou revogação mediante reclamação ou recurso ordinário (já porque não foi impugnada, já porque, tendo-o sido, se esgotaram os meios de impugnação), se tornou definitiva, esgotando-se, então, o poder jurisdicional.
Tratando-se de uma decisão de mérito, ou seja, incidindo sobre a relação material controvertida, a decisão tem força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, impondo-se aos demais tribunais e a quaisquer outras entidades, públicas ou particulares.
Diz-se, então, que a decisão produz o efeito de caso julgado material (também designado como caso julgado res judicata), o mesmo é dizer que “a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual” (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, Coimbra Editora, 2001, p. 678, de José Lebre de Freitas e outros).
Se a decisão incide sobre a relação jurídico-processual (p. ex., se julga verificado um pressuposto processual ou se rejeita um meio de prova), só vale intraprocessualmente, ou seja, é vinculativa, apenas, no próprio processo em que foi proferida e para as partes e por isso a mesma matéria pode ser diversamente apreciada noutro processo ou por outro tribunal.
Temos, então, o caso julgado formal, que constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão. Efeito este que significa que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontes­tável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação», como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada.
Volvendo ao caso concreto, a entender-se que o despacho de não pronúncia tem força vinculativa de caso julgado material, então isso implica, necessariamente, a definição de um objecto (de um “tema”) de não pronúncia, que não possa ser renovado. Ou seja, o despacho de não pronúncia tem de especificar, pelo menos, os factos considerados não suficientemente indiciados.
Como se sublinha no acórdão da Relação de Guimarães de 13.01.2003 (Des. Heitor Gonçalves), disponível em www.dgsi.pt, a importância da fixação da temática factual é fundamental “para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia, quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido” (também assim, acórdão desta Relação de 16.12.2009, Des. Francisco Marcolino, disponível no mesmo sítio).
Ora, sobre esta questão, também a doutrina e a jurisprudência se dividem.
Para o Prof. Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, vol. III, 2.ª edição, Verbo, 182 e segs.), o despacho de não pronúncia é uma decisão meramente adjectiva, que tem, apenas, efeitos de caso julgado formal e por isso não impede a reabertura do inquérito (na jurisprudência, perfilhando este entendimento, cfr. os acórdãos do STJ, de 18.01.2006, Proc. n.º 3613/05.3.ª, e desta Relação de 14.02.2007, Proc. n.º 0646485, e de 16.01.2002).
Porém, é outro o entendimento que tem prevalecido.
Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, pág. 779), considera fundamental a narração dos factos não suficientemente indiciados porque é sobre esses factos que incide o efeito de caso julgado, razão por que “a delimitação objectiva e subjectiva rigorosa dos factos no despacho de não pronúncia constitui (…) a garantia última da segurança jurídica do arguido”.
O Sr. Conselheiro Maia Costa, em comentário ao artigo 308.º do CPP (Loc. Cit.), escreve que “o despacho de não pronúncia por insuficiência de indícios deverá fixar expressamente quais os factos considerados suficientemente indiciados. É que sobre tais factos forma-se caso julgado, em termos de ser inadmissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova, ao contrário do que acontece com o inquérito arquivado, que pode ser reaberto se forem descobertos factos novos (art. 279.º, n.º 1)”.
Vão no mesmo sentido as posições doutrinárias de Frederico Lacerda da Costa Pinto, “Direito Processual Penal”, edição AAFDL, 1998, pag. 164, e de J.M Damião da Cunha, “Ne bis in idem e exercício da acção penal”, in “Que futuro para o processo penal?”, p. 557) e, na jurisprudência, além dos citados arestos desta Relação e da Relação de Guimarães, alinha pela mesma tese o acórdão da Relação de Coimbra, de 29.10.2003 (CJ XXVIII, T. 4, 51).
Temos para nós que o juiz de instrução que, pronunciando-se sobre o objecto do processo, decide que não se indiciam suficientemente os factos em que assenta a imputação do crime ou crimes que estiverem em causa e por isso determina o arquivamento do processo (a não pronúncia), não seguindo o processo para julgamento, profere uma decisão de mérito, que tem por isso força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, constituindo caso julgado res judicata e só mediante recurso de revisão poderá ser reaberta a discussão sobre tais factos.
Daí que não nos fiquem quaisquer dúvidas de que o despacho de não pronúncia tem de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes.
De outro modo, não se revela possível conhecer, em recurso, se foi ou não correcta a decisão de não pronunciar o arguido.
Resta, então, saber quais as consequências da omissão no despacho de não pronúncia dessa especificação.
Também quanto a este ponto, podemos constatar profundas divergências, mas cremos ser possível afirmar a existência de uma posição dominante que considera que tal omissão fere de nulidade a decisão de não pronúncia e uma tese (que julgamos minoritária) que propende para a consideração de que a falta de especificação dos factos indiciados e não indiciados constitui uma irregularidade.
Contudo, de entre os que defendem que a decisão é nula, há quem entenda que é uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, tese que tem tido acolhimento, sobretudo, na Relação de Évora (acórdãos de 20.12.2012, 26.02.2013 e de 17.06.2014), mas também já foi perfilhada na Relação do Porto (acórdão de 17.02.2010), na Relação de Lisboa (acórdão de 07.05.2013) e na Relação de Coimbra (acórdão de 13.11.2013) e quem a considere uma nulidade sanável e, portanto, dependente de arguição (acórdãos da Relação do Porto de 17.02.2010, 27.02.2013 e de 07.07.2010, da Relação de Évora de 10.12.2009, 19.11.2013 e 22.04.2014 e da Relação de Lisboa, de 10.07.2007).
É, também, como nulidade sanável que a qualifica Paulo Pinto de Albuquerque (Op. Cit., anotação 3 ao artigo 309.º, p. 780).
Também os defensores da tese da irregularidade se dividem entre os que consideram que a insuficiência de fundamentação da decisão de não pronúncia constitui uma irregularidade sujeita ao regime geral do art. 123.º, só podendo ser conhecida mediante atempada arguição (assim, os já citados acórdãos da Relação do Porto, de 29.05.2013 e da Relação de Coimbra, de 03.07.2013) e os que afirmam ser uma irregularidade que influi no conhecimento da causa e por isso advogam o seu conhecimento oficioso, nos termos do artigo 123.º, n.º 2, do CPP, entendimento que vem sendo seguido na Relação de Guimarães, (acórdãos de 09.07.2009, 06.12.2010, 18.06.2007 e de 12.02.2007), mas também já foi adoptado no acórdão da Relação do Porto de 16.12.2009.
Por esta última corrente jurisprudencial alinha a Ex.ma Desembargadora Maria Luísa Arantes, aqui Adjunta (e que foi relatora do referido acórdão da Relação de Guimarães, de 06.12.2010).
O aqui relator tem adoptado o entendimento expresso no seguinte trecho do acórdão desta Relação de 07.07.2010 (Des. Jorge Gonçalves):
“Ainda assim, admitimos que, quando referida a uma acusação ou ao despacho de pronúncia, tal nulidade – por omissão dos factos imputados ao arguido, pelos quais deverá responder em julgamento - seja considerada insanável, tendo em vista a lógica do sistema.
Realmente, se a falta de narração dos factos na acusação pode ser conhecida oficiosamente, levando à rejeição desta como manifestamente infundada [artigo 311.º, n.º3, alínea b)], não faria sentido que a falta de factos no despacho de pronúncia não pudesse ser objecto do mesmo tipo de conhecimento em sede de recurso.
Por outras palavras: os casos referidos no n.º 3 do artigo 311.º que se contêm nas previsões das alíneas do n.º 3 do artigo 283.º reconduzem-se a uma forma de nulidade “sui generis”, insanável e de conhecimento oficioso.
Os demais casos do n.º3 do artigo 283.º, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição.
Daí que, tratando-se, no caso, não de um despacho de pronúncia, mas antes de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação (e omissão de pronúncia) se traduza numa nulidade que é sanável e dependente de arguição”.
Como é bem sabido, o regime geral das nulidades em processo penal está, basicamente, previsto nos artigos 118.º a 122.º do Cód. Proc. Penal e é dominado pelo princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades: só se consideram nulos os actos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (artigo 118.º, n.º 1).
Fora desses casos, se for cometida alguma ilegalidade susceptível de afectar o valor do acto praticado, estaremos perante uma irregularidade (n.º 2 do citado artigo 118.º).
Nos termos do n.º 3 do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal, a acusação tem de conter, “sob pena de nulidade”, além do mais, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”. E, como já foi abundantemente referido, tal disposição normativa é aplicável, por força da remissão feita no n.º 2 do artigo 308.º, ao despacho de não pronúncia, o qual deve especificar os factos considerados suficientemente indiciados e os não indiciados.
Sempre que a lei comine a nulidade de um acto sem que, expressamente, a qualifique como insanável, terá de ser havida como nulidade relativa (princípio da subsidiariedade da nulidade sanável).
Seja como for, considere-se a omissão daquela especificação (dos factos indiciados e dos não indiciados) uma nulidade insanável ou relativa ou uma irregularidade de conhecimento oficioso nos termos do artigo 123.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, neste caso, o resultado prático é o mesmo: a decisão instrutória não pode manter-se e terá de ser proferida nova decisão que supra aquela omissão.
*
Os autos evidenciam que a investigação deste caso foi deficiente e lacunar e há claros indícios, pelo menos, de falsificação de documentos que o Ministério Público e a Sra. Juiz de instrução, olimpicamente, ignoraram.
Mas, tendo-se concluído que a decisão instrutória é nula (ou, noutra perspectiva, afectada de irregularidade cuja reparação deve ser oficiosamente ordenada), fica prejudicada a apreciação da questão – que no início identificámos como a questão essencial – de saber se os indícios probatórios recolhidos nas fases preliminares do processo justificam, ou não, que se leve o arguido a julgamento pelos factos descritos no RAI.

IIIDecisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, anular a decisão instrutória recorrida, a qual será substituída por outra, seja de pronúncia ou de não pronúncia, em que se especifique os factos considerados suficientemente indiciados e os não indiciados.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 01-07-2015
Neto de Moura
Maria Luísa Arantes
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[1] Nos termos do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal, o Ministério Público deduz acusação quando tiverem sido recolhidos “indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente” e no art.º 308.º substituiu-se o termo “crime” por “pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, expressão que corresponde à definição de crime que, “para efeitos do disposto no presente Código”, se contém no art.º 1.º do Cód. Proc. Penal.
[2] Note-se que, quando o n.º 1 do artigo 307.º prevê a possibilidade de o juiz de instrução fundamentar por remissão para a acusação ou para o requerimento de abertura de instrução, essa remissão é para “as razões de facto e de direito” que, como já se assinalou, não são propriamente os factos indiciados.
[3] Que o arguido invoca na sua resposta.