Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
406/14.8TBMAI.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
FUNÇÃO DO NOTÁRIO
ESCRITURA
COMPRA E VENDA
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RP20180711406/14.8TBMAI.P2
Data do Acordão: 07/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º678, FLS.245-255)
Área Temática: .
Sumário: I - Mostra-se consagrado entre nós o denominado sistema ou modelo do notariado latino, sendo que à luz deste sistema o notário é um jurista ao serviço das relações jurídico - privadas encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim, mas ao mesmo tempo é um oficial público que recebe uma delegação da autoridade pública para redigir documentos autênticos dotados de fé pública.
II - Entre o notário e as partes não se estabelece qualquer vínculo de cariz negocial, pelo que a eventual responsabilidade em que aquele incorra no exercício das suas funções assumirá natureza extracontratual.
III - A função do notário não consiste em dar fé a tudo o que veja ou oiça, seja válido ou nulo, mas em dar fé em conformidade com a lei, competindo-lhe, por isso, o controlo da legalidade do negócio, visando, designadamente, detetar incapacidades, erros de direito ou de facto, coações encobertas, fraudes à lei, e, eventualmente, reservas mentais e simulações, absolutas ou relativas.
IV - O notário, enquanto operador jurídico, da lei e da vontade das partes, não pode recusar a sua intervenção com fundamento na anulabilidade ou ineficácia do ato, devendo, contudo, por mor do disposto no nº 3 do art. 11º do DL nº 26/2004, de 4 de fevereiro, advertir os interessados da existência do vício e consignar no instrumento a advertência feita.
V - O referido normativo assume natureza de norma de proteção, porquanto - ao impor ao notário (qual “conselheiro” das partes) o dever de advertir os outorgantes da existência de qualquer vício que, em alguma medida, possa condicionar a manifestação da sua vontade negocial - visa tutelar o interesse destes últimos, obstando à prática de ato que possa revelar-se patrimonialmente lesivo.
VI - Considera-se como causa jurídica do prejuízo a condição que, pela sua natureza e em face das circunstâncias do caso, se mostre apropriada para o gerar ou, dito de outro modo, é necessário não só que o facto tenha sido, em concreto, condição sine qua non do dano, mas também que constitua, em abstrato, segundo o curso normal das coisas, causa adequada à sua produção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 406/14.8TBMAI.P2
Origem: Comarca do Porto, Póvoa de Varzim - Instância Central – 2ª Secção Cível, Juiz 1
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I- RELATÓRIO
B…, residente na …, Rue …, Lyon França veio intentar a presente ação, sob a forma de processo comum, contra C…, notário de profissão, com domicílio profissional na Rua …, nº…., …, sala …, Maia, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de 76.000,00 euros.
Para substanciar tal pretensão, alega que outorgou uma escritura notarial como comprador de um imóvel, tendo pago a quantia de 30.000,00 euros a título de preço, não tendo sido advertido pelo R. que o imóvel estava onerado com uma penhora devidamente registada.
Refere que a venda foi ardilosamente engendrada pelo vendedor para obter o pagamento do preço e da quantia de 46.000,00 euros, quantia esta que veio a entregar no âmbito do processo executivo onde estava realizada a penhora, com vista ao seu levantamento.
Alega que o vendedor sabia que se lhe comunicasse a existência da penhora a venda não se faria, omitindo tal facto, para o qual não foi advertido pelo R., estando este obrigado a efetuar tal advertência da ineficácia da transmissão do bem em relação ao exequente que beneficiava da penhora.
Devidamente citado, veio o R. contestar, alegando que não consta da escritura pública que a venda do imóvel é efectuada livre de ónus ou encargos, sendo de admitir que o preço da venda considerou o ónus da penhora que sobre ele recaia, sendo intenção do comprador adquirir o imóvel ainda que estivesse penhorado.
Mais alega que o A. deveria dirigir a sua pretensão contra o vendedor, não existindo fundamento jurídico para a demanda do notário que realizou o acto notarial.
Impugna que o prejuízo sofrido pelo A. seja no montante referido, pois que não pode assim ser considerado o preço pago pela aquisição do imóvel.
Alega ainda que se verificou a culpa do próprio A., devendo excluir-se qualquer indemnização que seja devida, ou a sua redução.
Veio ainda deduzir incidente de intervenção acessória provocada de D…, Sucursal em Portugal, alegando que a Ordem dos Notários subscreveu com esta empresa contrato de seguro de responsabilidade civil decorrente do exercício da actividade profissional de notário, tendo o R. contratado um reforço do capital seguro, de mais 400.000,00 euros.
A sua intervenção foi admitida a fls. 139.
Devidamente citada, veio a chamada excepcionar a sua ilegitimidade passiva, alegando ser apenas uma mediadora do contrato de seguro.
Mais alegou que a apólice invocada no incidente não era a apólice em vigor à data do sinistro, não tendo a primeira reclamação sido efectuada no período do seguro, que cessou em 11/10/2011.
Alega não ser aplicável o contrato de seguro de reforço de capital, pois que é peticionada quantia que se mantém nos limites do contrato de seguro outorgado com a Ordem dos Notários.
Alega por último que não lhe foi comunicado qualquer facto relativo ao ilícito imputado ao R., em data anterior à sua citação, o que exclui, nos termos do contrato, a sua responsabilidade.
Requer a intervenção principal provocada da E…, F… SA. e ainda do vendedor do imóvel, G….
No mais, alega não se perceber porque não foi demandado o devedor e que não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil.
O R. pronunciou-se sobre o pedido de intervenção a fls. 183.
O pedido de intervenção das companhias de seguro foi indeferido – fls. 187.
Foi realizada audiência prévia e, nesta, a requerimento do R., foi ordenado que a Ordem dos Notários informasse quais as apólices em vigor nos anos de 2011, 2012, 2013 e 2014.
Perante a informação prestada, requereu o R. a intervenção, principal como indicou a fls. 247 verso, de H… SA Sucursal em Portugal, E… – Sucursal em Portugal e F1… (fls. 238).
Estas Rs. foram admitidas a intervir a título principal – fls. 249.
E… Sucursal em Portugal (que a fls. 260 declarou ser a actual denominação da interveniente H…), veio alegar que o contrato de seguro existente se reporta ao período de 12/10/2011 a 31/05/2012 e de 01/06/2012 a 31/05/2014, tendo a participação sido efectuada pelo R. em 27/11/2013, estando nessa data expirado o período da apólice.
Alega ainda que o A. contribuiu para a verificação do sinistro, comungando da alegação já constante dos autos e efectuada pela chamada D….
A interveniente F… veio também contestar, arguindo a nulidade da sua citação, e alegando que o contrato de seguro esteve em vigor entre 01/06/2014 e 01/06/2015, iniciando-se nesta data outro contrato celebrado com a interveniente.
Pugna pela sua não responsabilidade por verificação de exclusão, já que os factos eram já conhecidos do R. antes da celebração do contrato de seguro, não se verificando os pressupostos da responsabilidade civil do R. Notário.
Por despacho de fls. 325 foi julgada improcedente a nulidade de citação que foi invocada, tendo sido indeferido o pedido de intervenção do vendedor do imóvel, requerido pela chamada D….
Entendendo-se que a decisão poderia ser proferida de imediato, foram as partes ouvidas sobre a dispensa da realização de audiência prévia, que aceitaram, tendo a fls. 355 sido proferida decisão que julgou a presente acção improcedente.
Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação, que veio a revogar a decisão proferida, nos termos que constam do acórdão de fls. 424 e seguintes.
Devolvidos os autos à 1ª instância, foi proferido despacho a dar cumprimento do determinado pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, convidando-se o A. a suprir as deficiências da sua alegação de facto quanto ao nexo causal entre a conduta do R. e os danos que invoca como resultado dessa actuação, não tendo, contudo, o A. dado resposta a este convite.
Foi realizada audiência prévia e, nesta, foi afirmada a validade e regularidade da instância, julgando-se improcedente a excepção de ilegitimidade invocada pela interveniente acessória, fixando-se o objecto do litígio, factos assentes e temas da prova. Realizou-se a audiência de julgamento com observância das formalidades legais, vindo a ser proferida sentença que julgou improcedente a ação, absolvendo-se o réu C… e as intervenientes principais E… S.A. Portugal e F1… do pedido que foi formulado pelo Autor.
Inconformado com tal decisão, veio o autor interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes:
CONCLUSÕES:
1. O presente recurso tem por objecto a douta decisão do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim de 11-12-2017 na qual, a decisão foi absolver os réus C…, E… – Sucursal em Portugal (também em representação da ex – H…, S.A.- Sucrusal em Portugal) e F1… do pedido.
2. Em 15.09.2011, adquiriu um imóvel, pelo valor de €30.000,00, no Cartório Notarial sito na Rua …, n.º …., … andar, sala …, Maia, perante o Recorrido/Réu.
3. O vendedor do imóvel exigiu que a escritura fosse realizada no Cartório Notarial do Apelado/ Réu e não em mais nenhum.
4. Durante as negociações que levaram ao negócio, o vendedor sabia que o dito imóvel estava onerado, mas ocultou tal informação ao Recorrente/Autor, bem sabendo que se tivesse conhecimento da penhora, o Recorrente/Autor não teria realizado o negócio.
5. O Recorrente/Autor é estrangeiro, desconhece a legislação nacional e necessita de apoio de terceiros para compreender os passos do negócio.
6. O Recorrente/Autor quando outorgou a escritura desconhecia que o imóvel estava onerado com uma penhora registada desde 07.09.2011 e o Recorrido/Réu não fez a advertência às partes de que sobre o imóvel estava registada uma penhora, nem inclui da escritura celebrada ter efectuado tal advertência.
7- Na escritura, o Recorrido/Réu menciona ter consultado a certidão predial permanente, documento este que, menciona exaustivamente todos os ónus e vícios que impendiam sobre o imóvel objecto da escritura notarial em causa, incluindo penhora.
8- Porém, por não ter analisado a certidão com a atenção devida que se impunha no exercício da sua função notarial o Recorrido /Réu causou ao Recorrente/ Autor graves prejuízos de ordem económica e emocional por não ter alertado o Recorrente/ Autor que sobre o imóvel recaía uma penhora.
9- Com esta sua falta de zelo e diligência a penhora que recaía sobre o imóvel em causa veio a ser cancelada por o Recorrente/ Autor ter procedido ao pagamento da quantia exequenda do processo à ordem do qual o prédio fora penhorado.
10- A conduta do Recorrido/Réu viola os deveres deontológicos previstos no Estatuto do Notariado, tendo o mesmo sido condenado no processo disciplinar, numa multa de €.2500,00.
11- A Ordem dos Notários subscreveu seguro que inclui a responsabilidade civil profissional dos notários em consequência de erro, omissão ou negligência e que garante as indemnizações emergentes dos actos praticados pelos Notários no exercício das suas funções que causem danos patrimoniais a terceiros.
12- O Recorrente/ Autor por não ter sido informado, pelo Recorrido/ Réu sobre a existência da penhora, dever que lhe incumbia derivado a sua profissão de Notário, causou ao Recorrente/Autor os danos peticionados nos presentes autos.
13- O Recorrido/ Réu violou o dever deontológico e jurídico de informar o Recorrente/Autor da existência do ónus do bem a escriturar o que fundamenta a ilicitude relevante para integrar a responsabilidade civil extracontratual.
14- A actuação do Recorrido/Réu constitui causa adequada do dano sofrido pelo Recorrente/Autor, pois o negócio celebrado entre o autor e o vendedor, e se o vendedor não informou o autor sobre a penhora, então, Recorrido/ Réu tinha o dever jurídico e profissional, e deveria ter-se certificado de que o Recorrente/Autor tinha conhecimento de que o imóvel estava com um ónus (Penhora), informando-o de acordo a certidão predial consultada por si no acto.
15- O Recorrido/ Réu ao não ter observado os cuidados que se exigiam, foi a causa exclusiva, ou pelo menos contribuiu em grande parte para o dano que o Autor/ Recorrente sofreu e que peticionou nos presentes autos.
16- O dano indemnizável corresponde ao valor que o Recorrente/ Autor teve de desembolsar para cancelar a penhora e outros encargos a ela inerentes.
17- A culpa do Apelado/Réu existe, ainda que seja meramente negligente, resultante da falta de informação e zelo que deveria ter tido aquando do acto notarial, informando o Apelante/Autor da existência de uma penhora que teve conhecimento pela consulta da certidão predial.
18- Se o Recorrido/Réu tivesse feito a advertência de que sobre o imóvel impendia uma penhora, o Recorrente/ autor nunca adquiriria o imóvel, como adquiriu.
19- A Ordem dos Notários subscreveu um seguro de responsabilidade civil profissional que garante o pagamento de indemnizações até €.100.000,00 e o réu contratou uma apólice complementar de seguro de reforço com o capital mínimo de €.400.000,00.
20- Constituiu a acção negligente a conduta do notário que, ao lavrar escritura pública de compra e venda não advertiu o comprador aqui Apelante de que o imóvel estaria onerado com uma penhora.
21- Tendo essa omissão ocorrido num contexto em que estava preparada uma escritura de compra e venda de um imóvel em que o outorgante vendedor fez questão de ser celebrado no cartório notarial do Apelado e em mais nenhum.
22- Existe nexo de causalidade entre a conduta do notário e os danos do comprador/Apelante, correspondentes à quantia que entregou ao exequente para cancelar a penhora e mais encargos que teve derivado à falta de zelo e negligência do Apelado/ Notário, no valor de €76,000.00 (setenta e seis mil euros), uma vez que a norma que impõe ao notário a análise da certidão predial permanente se destina a proteger os interesses dos intervenientes no ato, na perspetiva da emissão de vontade pelo outorgante comprador, e não a evitou o resultado danoso de que o comprador/Apelante foi vítima, ocorreu no círculo de interesses da “…disposição legal destinada a proteger interesses alheios…”, a que se reporta o art.º 483.º, n.º 1, do C. Civil.
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O réu C… e as intervenientes E…, S.A. e F1… apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, o objeto do presente recurso está circunscrito à apreciação da questão de saber se estão reunidos os pressupostos normativos para responsabilizar civilmente o réu C…, na qualidade de notário que realizou o ajuizado ato notarial, e bem assim as intervenientes principais, enquanto seguradoras para as quais se transferiu a responsabilidade civil pelo exercício dessa atividade profissional.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO
O tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1 – No dia 15/09/2011, o A. outorgou o contrato de compra e venda de imóvel constante dos autos a fls. 24 a 26, cujo teor integral se considera reproduzido para todos os efeitos legais, sendo o R. o Notário que redigiu a escritura pública.
2 – Desse documento consta que foram exibidos “certidão predial permanente, disponível na Internet, com o código PP-….-…..-……-……, pela qual verifiquei os indicados elementos de registo”.
3 – Sobre o imóvel recaia penhora registada com data de 07/09/2011, para garantia do pagamento da quantia de 70.199,43 euros, sendo executado, entre outro, o vendedor do imóvel.
4 – No acto da escritura o R. não fez qualquer referência ao registo da penhora que incidia sobre o imóvel.
5 - Foi celebrado entre a E… e a Ordem dos Notários em Portugal contrato de seguro relativo à responsabilidade civil emergente da actividade profissional de Notário, com sucessivas renovações desde 12/10/2011 a 31/05/2012 e de 01/06/2012 a 31/05/2014, nos termos que constam do contrato de fls. 265 e sgs., que aqui se consideram reproduzidos.
6 - Foi celebrado entre a F1… e a Ordem dos Notários em Portugal contrato de seguro relativo à responsabilidade civil emergente da actividade profissional de Notário, com início em 01/06/2014 e termo em 01/06/2015, nos termos que constam do contrato de fls. 297 e sgs., que aqui se consideram reproduzidos.
7 – Por requerimento apresentado nos autos de execução em 01/02/2012, a então exequente reduziu a quantia exequenda aí devida para o valor de 35.000,00 euros.
8 - Tendo em vista o levantamento da penhora que incidia sobre o imóvel por si adquirido, estando a execução em fase de venda do bem penhorado, o A. efectuou por escrito, datado de 07/08/2012, um acordo com o exequente do referido processo, obrigando-se a pagar-lhe a quantia de 46.000,00 euros, em quatro prestações, até ao dia 27/11/2012, mantendo-se o processo executivo enquanto não fosse paga essa quantia.
9 – O A. procedeu ao pagamento dessa quantia, tendo sido declarada a extinção da execução.
10 - O R. teve conhecimento que lhe era imputado um evento gerador de responsabilidade civil emergente da sua actividade como Notário em data anterior a 18/09/2013.
11 - O R. comunicou à interveniente E… que lhe havia sido aplicada uma multa disciplinar pela não menção no acto da realização da escritura pública de compra e venda da existência da penhora em causa nestes autos, por carta de 27/11/2013.
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O tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
a – O A. conhecesse a existência da penhora que recaia sobre o imóvel vendido.
b – O R. tivesse analisado devidamente a certidão da descrição predial do imóvel vendido, no acto da celebração do contrato de compra e venda e da sua realização por escritura pública.
c – O A. adquirisse ou não o imóvel ainda que tivesse sabido que sobre o mesmo recaia uma penhora.
d – O preço acordado para a compra e venda tivesse considerado o facto de o imóvel estar onerado com uma penhora.
e – O valor exacto da quantia exequenda quando o A. procedeu ao pagamento da quantia de 46.000,00 euros.
f – O A. não tivesse verificado a descrição predial do imóvel a adquirir quando procedeu à celebração da escritura pública de compra e venda.
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
IV.1 – Da (in)verificação dos pressupostos para responsabilizar civilmente o réu e as intervenientes principais
No caso em apreço, como deflui da exegese da petição inicial, verifica-se que o autor/apelante filia a concreta pretensão de tutela jurisdicional que aduz no presente processo no facto de o réu C…, aquando da celebração da escritura pública destinada a documentar o contrato de compra e venda que teve por objeto mediato o imóvel identificado nesse articulado - na qual o autor interveio na qualidade de comprador -, não ter cumprido os seus deveres enquanto notário, posto que, nesse ato, não fez, como se impunha, a advertência às partes outorgantes de que o imóvel se encontrava onerado por uma penhora.
A presente ação, tal como o autor a configura, integra um caso de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, domínio em que imperam, fundamentalmente, os arts. 483º a 498º do Código Civil[1].
Dispõe, com efeito, o nº 1 do art. 483º que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Do inciso normativo transcrito resulta, como, praticamente una voce, tem sido considerado pela doutrina[2], que os pressupostos, requisitos ou elementos da responsabilidade civil por factos ilícitos são o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Assim, para que exista obrigação de indemnizar, baseada em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, torna-se mister que se verifiquem todos os descritos pressupostos, sendo certo que, por força do critério geral estabelecido no art. 342º, complementado neste particular pelo disposto no art. 487º, incumbe a quem invoque a seu favor o direito à indemnização alegar e provar os factos pertinentes.
No ato decisório sob censura considerou-se não estarem, in casu, reunidos os pertinentes pressupostos ou requisitos da aludida fonte de obrigações, mormente por ausência de demonstração de nexo de causalidade entre o comportamento do réu C… e os danos cuja reparação o autor reclama na presente demanda.
É exatamente neste ponto que se situa o âmago do objeto do presente recurso, já que é primordialmente em relação à afirmação da ausência do apontado nexo causal que se reporta, em termos úteis, a divergência recursiva apresentada pelo apelante, que esgrime argumentação no sentido de que é manifesta a existência de nexo de causalidade entre o comportamento omissivo do réu e os danos que afirma ter sofrido em consequência do mesmo.
Na resolução da enunciada questão importa, como prius, caraterizar, ainda que em termos necessariamente sumários, o concreto estatuto dos notários, sendo que nos autos não é fundadamente posto em crise que a ajuizada escritura pública foi formalizada pelo réu na sua qualidade de notário.
Como é consabido[3], desde, pelo menos, a reforma levada a cabo pelos Decretos-Leis nºs 26/2004 (que aprovou o Estatuto do Notariado) e 27/2004 (que criou a Ordem dos Notários e o respetivo Estatuto), ambos de 4 de fevereiro, mostra-se consagrado entre nós o denominado sistema ou modelo do notariado latino[4], sendo que à luz deste sistema o notário é um profissional de direito encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim e conferindo-lhes autenticidade. Ou seja, notário é um jurista ao serviço das relações jurídico-privadas mas ao mesmo tempo é um oficial público que recebe uma delegação da autoridade pública para redigir documentos autênticos dotados de fé pública. Assim, é simultaneamente um oficial público e um profissional do direito, como, aliás, expressamente preceitua o nº 2 do art. 1º do DL nº 24/2004, dispondo ainda o nº 3 do mesmo normativo que “a natureza pública e privada da função notarial é incindível”.
Como oficial público exerce a fé pública notarial que tem e sustenta um duplo conteúdo: na esfera dos factos, a exatidão dos que o notário vê, ouve ou percebe pelos seus sentidos; na esfera do direito, a autenticidade e força probatória das declarações de vontade das partes no instrumento público, redigido segundo as leis. Deste modo, exerce uma função pública, documental ou de autenticação; função dirigida ao documento, na sua expressão externa de autenticidade dos factos ou das declarações de vontade, do ato ou da relação jurídica. Já como profissional de Direito exerce uma função jurídica privada: função assessora, de assistência, conselho e formação da vontade das partes e de adequação ou conformação daquela vontade ao ordenamento jurídico. Dito de outro modo, a função jurídica privada refere-se à preparação do documento, à recolha da vontade das partes, ao conselho, à pedagogia e auxílio dessa vontade e à sua interpretação, bem como à expressão da vontade das partes, à redação e conformação do ato ou relação jurídica.
Daí que o notário venha sendo considerado um terceiro imparcial, que deve estar sempre acima dos interesses comprometidos: a sua profissão obriga-o a proteger as partes com igualdade, libertando-as, com as suas explicações imparciais e oportunas, dos enganos a que poderia conduzi-las a sua ignorância. O notário tem pois o dever (legal) de cuidar dos interesses de ambas as partes e, buscando o ponto de equilíbrio, servir a vontade comum, obtendo uma composição duradoura, e se possível definitiva, dos interesses opostos. O notário serve as partes e nenhuma em particular. Para o notário não há clientes, há apenas outorgantes, e todos merecem o mesmo tratamento e proteção. Por via disso, não se estabelecendo entre o notário e as partes qualquer vínculo de cariz negocial, propendemos, pois, a considerar que a eventual responsabilidade em que aquele incorra no exercício das suas funções assumirá natureza aquiliana, que não contratual.
Portanto, no exercício desse múnus o notário (latino), a par da função estritamente documental, desempenha outrossim uma função jurídica privada[5] – que corresponde, além de outras tarefas, à adaptação, adequação ou conformação da vontade dos particulares ao ordenamento jurídico.
É certo que a segurança que o notário proporciona é, antes de tudo, uma segurança documental, derivada da eficácia do instrumento público, dotado de autenticidade, eficácia essa que se expande pelo tráfico jurídico, pelo processo e em variadas outras direções (eficácia probatória, executiva, legitimadora, etc.).
Mas a importância desta segurança formal não pode fazer esquecer que antes dela há uma outra – a segurança substancial – que requer que o ato ou contrato documentado seja válido e eficaz, segundo as prescrições do ordenamento jurídico. O instrumento público só pode ter por conteúdo um negócio válido. A função do notário não consiste em dar fé a tudo o que veja ou oiça, seja válido ou nulo, mas em dar fé em conformidade com a lei. Existe, por conseguinte, um controlo[6] da legalidade do negócio, cabendo ao notário detetar incapacidades, erros de direito ou de facto, coações encobertas, fraudes à lei, e, eventualmente, reservas mentais e simulações, absolutas ou relativas. Por isso se tem justamente afirmado que a segurança preventiva é uma consequência ou resultado normal da sua intervenção[7].
Como se assinalou, o notário enquanto operador jurídico, da lei e da vontade das partes, tem de ser (é, por definição) completamente independente no exercício da sua função, autónomo e responsável, não subordinado, devendo obediência apenas à lei e à vontade das partes, encontrando-se outrossim obrigado a proteger os outorgantes com igualdade e imparcialidade, deveres estes que resultam juspositivados, designadamente, nos arts. 10º, 11º, 12º, 13º e 15º do DL nº 26/2004.
É com o assinalado propósito de defesa dos interesses das partes que surge um comando normativo como o que se mostra vertido no art. 11º do último diploma citado, que no seu nº 1 expressamente preceitua que “o notário deve apreciar a viabilidade de todos os atos cuja prática lhe é requerida, em face das disposições legais aplicáveis e dos documentos apresentados ou exibidos, verificando especialmente a legitimidade dos interessados, a regularidade formal e substancial dos referidos documentos e a legalidade substancial do ato solicitado”. Ainda com o mesmo desiderato, dispõe o seu nº 3 que “o notário não pode recusar a sua intervenção com fundamento na anulabilidade ou ineficácia do ato, devendo, contudo, advertir os interessados da existência do vício e consignar no instrumento a advertência feita”.
Como se referiu, o demandante procura arrimo jurídico para a concreta pretensão de tutela jurisdicional que formula nos presentes autos, precisamente, na inobservância por banda do réu C… do dever (legal) estabelecido no último inciso normativo transcrito.
Tendo-se qualificado a (eventual) responsabilidade civil em que o notário incorra no exercício da sua atividade profissional como extracontratual, questão que, desde logo, se coloca é a de saber qual a natureza dessa norma.
Ora, na economia do preceito, a mencionada advertência (rectius, dever de informação legalmente imposto) destina-se a colocar os outorgantes em ato notarial em condições de emitirem as suas declarações negociais de forma esclarecida, livre e ponderada, visando outrossim afastar, tanto quanto possível, a ocorrência de vício que possa inquinar o respetivo processo volitivo. Como assim, o cumprimento desse dever impõe-se com particular acuidade quando os outorgantes não estejam assessorados por técnico de direito (v.g. advogado) ou, como parece ser o caso (cfr. art. 9º da petição inicial), um deles seja cidadão estrangeiro e não domine a língua portuguesa.
Deste modo, perante a assinalada ratio essendi, afigura-se-nos pois que a norma em causa assume natureza de norma de protecção[8], porquanto - ao impor ao notário (qual “conselheiro” das partes[9]) o dever de advertir os outorgantes da existência de qualquer vício que, em alguma medida, possa condicionar a manifestação da sua vontade negocial - visa tutelar o interesse destes últimos, obstando à prática de ato que possa revelar-se patrimonialmente lesivo.
Como assim, a sua violação será subsumível à segunda modalidade de ilicitude contemplada no nº 1 do art. 483º[10].
Ora, como se referiu, malgrado na decisão recorrida se tenha afirmado a antijuridicidade do comportamento do réu C… (por inobservância da referida regra legal), facto é que nela se concluiu pela inexistência de fundamento para a responsabilização do réu, por inverificação do necessário nexo causal entre o descrito comportamento omissivo do identificado demandado e os danos que o autor afirma ter sofrido na sua esfera jurídica.
Como aí se afirmou, o autor «não demonstrou o facto alegado e que consubstanciava o nexo causal entre a conduta do réu Notário e o dano sofrido, sendo certo que, por outro lado, a insuficiência da sua alegação não foi suprida, não sendo os factos alegados suficientes para a procedência do pedido, ainda que se afirme a prática de um facto ilícito e culposo pelo réu Notário».
O autor rebela-se contra esse entendimento argumentando, uma vez mais, que se o réu tivesse feito a advertência de que sobre o imóvel impendia uma penhora, não teria adquirido o imóvel, como adquiriu.
Que dizer?
Desde logo, afigura-se-nos claro que do simples facto de o réu não ter cumprido o dever a que estava legalmente obrigado por mor do nº 3 do citado art. 11º do DL 26/2004 não emerge que o mesmo possa, sem mais, ser responsabilizado pelos danos cuja reparação o autor impetra na presente demanda.
Tornar-se-ia igualmente mister a existência de um nexo causal entre esse inadimplemento e os prejuízos reclamados, como, aliás, deflui do art. 563º do Cód. Civil, que, de acordo com a posição majoritariamente seguida, adota a denominada teoria da causalidade adequada na sua vertente negativa.
Assim, de acordo com a lição que se extrai desse inciso normativo, somente se considera como causa jurídica do prejuízo a condição que, pela sua natureza e em face das circunstâncias do caso, se mostre apropriada para o gerar ou, dito de outro modo, é necessário não só que o facto tenha sido, em concreto, condição sine qua non do dano, mas também que constitua, em abstrato, segundo o curso normal das coisas, causa adequada à sua produção.
Ora, o substrato factual que logrou demonstração não permite afirmar a ocorrência do apontado nexo no mencionado sentido (sendo de registar que o autor enjeitou o convite que lhe foi direcionado no sentido de densificar faticamente esse nexo), mostrando-se, neste conspecto, ajustadas as considerações adrede vertidas na decisão recorrida quando aí, a dado passo, se refere que «o valor da venda do imóvel não permite concluir que o autor não teria celebrado o negócio se soubesse da existência da penhora, tanto mais que, por outro lado, o facto de ter optado pela manutenção do negócio, procurando desonerar o imóvel da penhora realizada indicia que estaria interessado no imóvel, ainda que soubesse da sua existência (pois que de outra forma, facilmente teria tentado anular, por erro ou dolo do vendedor, considerando os factos por si alegados, o negócio que celebrou com o vendedor). Existe na alegação do A. uma contradição inexplicável ao nível da matéria de facto: se o A. não estava interessado em adquirir o imóvel se soubesse que o mesmo estava penhorado e garantia aquela concreta quantia exequenda, qual o motivo pelo qual não anulou o negócio celebrado, exigindo do vendedor a devolução da quantia paga? E se não tinha tal interesse, estando antes interessado em destruir o negócio, qual o motivo pelo qual pagou para obter o levantamento da penhora, despendendo assim, no total, a quantia de 76.000,00 euros. Sem outra explicação, o pagamento da quantia de 46.000,00 euros só se percebe num contexto de interesse do A. por adquirir o imóvel ainda que o mesmo estivesse penhorado e fosse necessário desembolsar tal quantia para obter a sua compra livre de ónus e encargos (30.000,00 + 46.000,00 euros)».
Improcedem, assim, as conclusões 1 a 22.
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V - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo apelante (art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Processo Civil).

Porto, 11.07.2018
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Fátima Andrade
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Cfr., por todos, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, págs. 418 e seguintes; ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, págs. 367 e seguintes e GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, págs. 215 e seguintes.
[3] Recuperamos a este propósito as considerações anteriormente tecidas no acórdão que prolatamos no âmbito deste processo e que se mostra junto a fls. 424/452.
[4] Para uma análise do atual regime do notariado, vide, inter alia, ALBINO MATOS, O estatuto natural do notário, in Temas de Direito Notarial, págs. 181 e seguintes e MÓNICA JARDIM, in Escritos de Direito Notarial e Registal, págs. 25 e seguintes, passim.
[5] Tem-se, de facto, entendido que a função do notário é de exercício privado, uma vez que nela vão indissociavelmente ligados aspetos de interesse privado, em causa estão relações privadas, dos particulares entre si, não qualquer relação indivíduo-Estado, ou seja, interesses somente privados que os respetivos sujeitos particulares dispõem ou regulamentam, como entendem, exercendo a autonomia privada.
[6] Sendo que para uma correta e diligente realização desse controlo, o notário deve, por mor do disposto no nº 2 do art. 38º do DL nº 27/2006, “estudar com cuidado e tratar com zelo as questões que lhe são solicitadas no exercício das suas funções, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e atividade”.
[7] Isso mesmo é posto em evidência por MÓNICA JARDIM, A segurança jurídica preventiva como corolário da atividade notarial, in Escritos de Direito Notarial e Direito Registal, págs. 7-17, onde sublinha que a função do notário (latino), com o seu amplo conteúdo de assessoria, assegura a realização pacífica e espontânea do Direito, prevenindo futuros litígios baseados no desconhecimento do ordenamento jurídico. A certeza que acompanha a intervenção notarial, gera verdade, credibilidade, confiança e, assim, segurança jurídica.
[8] Cfr., sobre a caracterização das normas de proteção, inter alia, ADELAIDE MENEZES LEITÃO, Normas de proteção e danos puramente patrimoniais, págs. 569 e seguintes e MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II Direito das Obrigações, tomo 3º, págs. 448 e seguintes, que ressalta o facto de este tipo de normas serem hoje entendidas como “correias de transmissão” de valores apurados, noutros âmbitos jurídicos, para o domínio aquiliano.
[9] Na expressão de MAIA RODRIGUES, A responsabilidade civil dos notários, in Boletim dos Registos e do Notariado nº 2/2003, pág. 20, o qual salienta igualmente que, não raras vezes, as partes recorrem ao notário levando consigo apenas “o problema a resolver”, alguns documentos que lhe confiam e esperam que seja este a encontrar a solução legal que se aproxime o mais possível dos efeitos práticos pretendidos.
[10] Sendo de registar, contudo, que a doutrina pátria (cfr., por todos, MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, pág. 297, ALMEIDA COSTA, ob. citada, pág. 563 e ANTUNES VARELA, ob. citada, pág. 533) vem considerando que a inobservância de uma norma deste tipo somente legitimará a reclamação de uma indemnização caso se mostre preenchida uma grelha de requisitos relativa à sua aplicação, concretamente: i) exige-se, em primeiro lugar, que alguém tenha desrespeitado determinado comando, sem o que não haverá base para estabelecer o juízo de ilicitude; ii) exige-se que o fim da norma consista especificamente na tutela de interesses particulares e não do interesse geral - se a norma for dirigida a proteger o interesse público e só reflexamente atingir interesses particulares, estará naturalmente excluída a possibilidade de um particular exigir indemnização -; iii) finalmente, exige-se que o dano se verifique no círculo de interesses que a norma visa tutelar.